RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar o processo civil constitucional, que é o cooperativo, novo modelo processual vigente no ordenamento jurídico brasileiro, no qual se verifica a mudança de postura dos sujeitos processuais, magistrado e partes. No primeiro momento, serão delineados os fundamentos do processo cooperativo na Constituição da República Federativa do Brasil. Em seguida, o processo cooperativo será abordado de forma mais minuciosa, demonstrando-se, também, a existência de deveres de cooperação que moldam a atuação desses sujeitos, especialmente do magistrado. Ao final, dar-se-á um viés casuístico, a partir de demonstrações práticas de sua aplicação.
Palavras-chave: Valores Constitucionais. Democracia. Contraditório. Devido Processo Legal. Processo Civil. Cooperação.
INTRODUÇÃO
Pretende-se, no presente trabalho, de forma sucinta, demonstrar a existência de um novo processo civil no ordenamento jurídico brasileiro, pautado em diretrizes constitucionais e, por essa razão, instrumento de promoção de direitos fundamentais garantidos na Carta Maior. Para tanto, o estudo possuirá duas partes. Na primeira, serão abordadas as bases constitucionais diretas desse novo modelo, normas que, por serem tão caras à sociedade, influenciam diretamente na concepção do processo nos dias atuais. Em seguida, o processo civil constitucional, pautado na cooperação entre as partes, será abordado mais detalhadamente. Por fim, serão demonstradas repercussões práticas desse novo paradigma.
1. DIRETRIZES CONSTITUCIONAIS PARA O LEGÍTIMO PROCESSO CIVIL
1.1 Estado Democrático de Direito
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[1], em seu art. 1º, estabelece que o Brasil constitui-se de um Estado Democrático de Direito. Depreende-se, dos elementos constitutivos dessa denominação, que o poder será exercido de acordo com os limites impostos pelo direito e em consonância com a legitimação democrática.
Com efeito, sabe-se que o Estado consiste em uma instituição politicamente organizada de uma nação, delimitada em certo território. Atribui-se a ele a característica ‘de Direito’ quando essa organização é pautada no respeito a normas estabelecidas, na observância dos direitos individuais e coletivos, garantindo a segurança e a liberdade de seus integrantes.
Há, portanto, a supremacia do direito, uma vez que o exercício do poder pela organização política estatal está condicionado às normas jurídicas existentes em seu próprio ordenamento jurídico. Isso porque todos devem observância ao direito, em especial – e principalmente – o Estado, uma vez que deve, enquanto organização popular soberana, servir de exemplo e também passar segurança a todos que lhe são subordinados[2].
De outra banda, o Estado de Direito assume a condição de ‘Democrático’ quando seu funcionamento é legitimado pela participação popular, pelo princípio democrático, o qual torna “o poder político constituído, legitimado e controlado por cidadãos (povo), igualmente legitimados para participarem do processo de organização da forma de Estado e de governo”.[3]-[4]
Democracia é, portanto, a participação popular como legitimadora do Estado, do exercício de poder. Tal participação poderá se dar de maneira representativa, quando se escolhe os representantes do povo na estrutura estatal, ou direta. Ressalte-se que uma forma de exercício não exclui a outra. Do contrário: elas não apenas podem coexistir, como a existência de ambas em um só Estado legitima ainda mais sua atuação perante a sociedade que o integra.
Destarte, ela – a democracia - deve ser entendida por seu viés participativo, pelo qual os cidadãos contribuem para a formação de decisões, independentemente de suas convicções pessoais, bem como para a criação de novos direitos e para adaptação dos já existentes.
É dessa concepção, então, que se verifica, como inerente ao exercício da democracia, a necessidade de diálogo entre o cidadão e aquele que detém o poder, a fim de legitimar sua atuação e suas decisões.
No âmbito processual, o respeito ao princípio democrático pressupõe uma efetiva participação das partes na construção da decisão final proferida pelo juiz, representante estatal[5].
Há, portanto, uma estreita relação entre a democracia participativa, inerente ao princípio democrático, e o processo civil, uma vez que se entendendo o processo como espaço em que é exercido o poder, as posições jurídicas das partes e do juiz são incrementadas, dando espaço ao encontro de direitos fundamentais diversos[6].
1.2 Força Normativa da Constituição
Inúmeros princípios inerentes ao processo civil, embora não estejam explícitos no texto constitucional ou mesmo em diplomas infraconstitucionais, podem ser extraídos da análise de princípios consagrados na Carta Magna brasileira. Até porque, enquanto Estado Democrático de Direito fundamentado em uma Constituição, o Brasil pressupõe, nos dizeres de Canotilho:
A existência de uma constituição normativa estruturante de uma ordem jurídico-normativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos. [...] Assim, o princípio da constitucionalidade postulará a força normativa da constituição.[7]
Dessa forma, uma vez que o Estado brasileiro tem como norte a supremacia do direito, a Constituição, como lei maior integrante do ordenamento jurídico, deve respaldar toda a atuação estatal. E é justamente dessa obrigatoriedade em considerar as premissas constitucionais em todas as formas de manifestação de poder, como meio de legitimar as escolhas e decisões, que exsurge a força normativa da Constituição.
Com efeito, a existência de uma Constituição, entendida como norma fundamental de um ordenamento, pressupõe a eficácia de suas normas. Se assim não fosse, toda garantia ou direito constitucionalmente previsto dependeria de uma lenta e burocrática atuação infraconstitucional para concretizar-se. Toda proteção constitucional, então, não passaria de uma “letra morta”.
Assim, os princípios constitucionais, sejam expressos ou implícitos, servem como normas condutoras no ordenamento, guiando a criação e aplicação das leis, bem como servindo de limite normativo, pois, “no Estado Constitucional brasileiro, os direitos fundamentais têm eficácia imediata (art. 5º, §1º, CF), sendo tarefa tanto do legislador como do juiz concretizá-los no formalismo do processo.”[8]
Isso porque, se deve ter em mente que eles consistem em espécie normativa que indica um “estado de coisas” a ser atingido. Assim, impõem-se condutas e deveres aos participantes de uma relação em prol da consecução do objetivo almejado pelo princípio, qual seja o atendimento do referido estado.
Nessa busca, os princípios podem incidir a partir da intermediação de outras regras ou princípios, quando se diz que sua eficácia é indireta, ou pode funcionar de maneira integrativa, quando é desnecessário o intermédio de outras normas para a concretização de seus objetivos.
É justamente esse o ensinamento de Humberto Ávila[9], para quem a eficácia dos princípios pode ser interna ou externa. Será interna quando analisada sua relação com o ordenamento jurídico ao qual pertence (perspectiva que aqui nos interessa); externa, ao seu turno, no tocante à interpretação dos fatos e provas.
Subdivide-se a eficácia interna, ainda, em direta e indireta. Quando sua eficácia é direta, aponta ele a função integrativa, pois o princípio é aplicado sem intermediação de outros princípios ou regras, ou seja, ele é responsável pela integração dos elementos componentes do ordenamento jurídico.
Ao revés, quando sofre interposição de outras normas (regras ou princípios, in casu, subprincípios), sua eficácia interna será indireta. Aponta Humberto Ávila, então, que nessa hipótese ao princípio atribuem-se as funções definitória, pois ele atua delimitando o conteúdo do princípio superior; interpretativa; bloqueadora, afastando do ordenamento elementos com ele incompatíveis; e também rearticuladora, a qual é específica dos sobreprincípios, que atuam de forma a harmonizar os subprincípios e regras a ele atrelados.
Nesse panorama, partindo da premissa de que princípios constitucionais como o contraditório e o devido processo legal almejam um processo justo e pautado na boa-fé das partes, tais objetivos só podem ser atingidos mediante um processo no qual exista atuação harmoniosa entre os sujeitos processuais.
1.3.1 Princípio do Contraditório
Como visto acima, o Estado Democrático de Direito se caracteriza, essencialmente, por seu viés participativo. Esta participação, contudo, não se restringe ao momento do voto, mas pretende garantir a atuação cidadã nas diversas decisões político-sociais.
Nesse panorama, o processo se encaixa como instrumento hábil para busca da justiça. Enquanto tal deve ser tido em consonância com o Estado Democrático de Direito, ou seja, nele também deve se fazer presente a participação democrática na formação da decisão.
Dentro dessa perspectiva de participação se enquadra o princípio do contraditório, pois “o que legitima os atos de poder não é a mera e formal observância dos procedimentos, mas a participação que mediante o correto cumprimento das normas processuais tenha sido possível aos destinatários”[10]. É o que leciona Mitidiero:
O Estado Constitucional revela aqui a sua face democrática, fundando o seu direito processual civil no valor participação, traduzido normativamente no contraditório. O valor participação, a propósito, constitui a base constitucional para a colaboração no processo.[11]
Assim, às partes deve ser proporcionada a atuação eficaz para que influenciem[12] na decisão final, em prol de um processo o mais próximo possível da justiça. Com efeito:
A participação a ser franqueada aos litigantes é uma expressão da ideia, plantada no mundo político, de que o exercício do poder só se legitima quando preparado por atos idôneos segundo a Constituição e a lei, com a participação dos sujeitos interessados.[13]
Ao lado do entendimento acima, o contraditório, atualmente, remete a algo além da referida garantia: a criação de deveres a ele correlatos. Assim, além de garantir a manifestação – e influência - das partes durante todo o procedimento, o contraditório traduz a ideia de efetiva colaboração nas decisões estatais, fato que as legitima e torna válida a ordem que penetra a esfera jurídica dos litigantes (e é somente assim que se consegue garantir a efetiva influência das partes na formação do ato final, qual seja, a decisão de mérito).
Pensa-se, contudo, no contraditório exercido em consonância com limites éticos e com a lealdade. Isso porque, por mais essencial que seja a participação dos interessados, ela não pode ocorrer a qualquer tempo e de qualquer maneira. Se assim o fosse, o processo jamais conseguiria atingir seu objetivo maior, qual seja, a justiça. É por essa razão que às partes incube o dever de atuação ética e leal no processo.
Dentro dessa perspectiva, impõe-se ao magistrado o dever de conduzir constantemente o diálogo entre e com as partes, a fim de que elas influenciem ao máximo a construção da decisão que colocará um desfecho na controvérsia.
Esses deveres decorrem da ideia de que o contraditório, enquanto garantia fundamental, possui uma dimensão objetiva ao lado do subjetivismo clássico inerente aos direitos e garantias fundamentais. Consubstancia-se, então, nessa ideia inerente ao contraditório de atuação conforme a ética e a lealdade[14], a boa-fé processual objetiva[15].
1.3.2 Devido Processo Legal
A ideia de devido processo legal impõe que o processo seja algo a mais do que uma simples ordenação de atos formais, pois traz em si, a um só tempo, garantias às partes para que auxiliem na marcha processual, influenciando ao final a decisão a ser proferida, e garantia ao exercício da jurisdição, que deve ser pautado na justiça e na honestidade, características inerentes à atuação estatal, em suas diversas facetas.
Como nascedouro dessa fórmula, ao contrário do ensinamento de diversos juristas, que apontam a conhecida Magna Carta de João Sem Terra, de 1215, como primeiro documento a tratar do referido instituto, tem-se, na verdade, o Decreto Feudal de Conrado II, datado de 1039, que já tratava do due processo of law[16]. Apenas com o final da ditadura militar o princípio em comento foi inserido expressamente como normativa constitucional no Brasil, sendo erigido como direito fundamental, conforme art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988[17].
Não obstante a amplitude do princípio, razão pela qual o ideário de “processo justo” já variou bastante de acordo com o tempo e o lugar em que se situava o pensamento jurídico, não se nega, atualmente, que no ordenamento jurídico pátrio ele deve ser concebido como consentâneo da democracia e de todas as garantias democráticas asseguradas pelo Estado Democrático de Direito que o Brasil é.
Dessa maneira, o devido processo legal é imposição cuja observância estende-se não apenas ao âmbito judiciário, mas em todas as produções normativas no seio do ordenamento, seja na esfera legislativa, administrativa ou judiciária. É por tal razão que o legislador, no processo legislativo, precisa atuar em consonância com os direitos e garantias fundamentais, pois só assim haverá a harmonia almejada pela garantia do devido processo legal.
Essa obrigatoriedade decorre da aplicação do devido processo legal em consonância com os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade[18], essenciais para a efetivação do direito material perquirido. Isso porque, mediante o procedimento, se busca a concretização do escopo principal da jurisdição, que é a pacificação com justiça, atingida apenas com o desfecho da disputa de forma justa para ambas as partes, vencedora e sucumbente.
Ademais, o respeito às garantias processuais já existentes na legislação, previamente concebidas pelo legislador, são fundamentais à harmonização do processo com as garantias inerentes à democracia, com a busca pela justa composição do litígio.
Nesse cotejo, verifica-se que o devido processo legal, verdadeiramente, impõe que o processo respeite a regularidade formal pensada para ele, a qual deve ser adequada no sentido de também – e principalmente – respeitarem-se os direitos fundamentais no bojo da relação jurídica processual.
Pressupõe-se, assim, que partes e juiz, enfim, os sujeitos processuais, atuem em consonância com as exigências acima, observando as formalidades e, ainda com mais rigor, o respeito ao outro, devendo agir leal e probamente, pois apenas com respaldo em uma conduta ética consegue-se o respeito também aos direitos fundamentais de ambas as partes, elemento cuja presença é obrigatória em todo (o) processo.
2. O PROCESSO CIVIL CONSTITUCIONAL
Do exposto até o momento, verifica-se que a CRFB, a partir de seus valores mais caros, seja aqueles expressa ou implicitamente previstos em seu texto, impõe a obrigatoriedade de um diálogo efetivo entre juiz e partes, a fim de que estas influenciem as decisões proferidas, legitimando o exercício do poder estatal no âmbito processual e, em última escala, auxiliando na conformação das partes com o resultado obtido pelo Estado para a solução da controvérsia.
Nesse contexto, fala-se do processo cooperativo, no qual o magistrado não se encontra mais afastado da marcha processual, como o era no modelo adversarial, e nem tem uma postura ativo-autoritária, marca do modelo inquisitorial, passando a assumir uma postura ativo-democrática, uma vez que magistrado e partes assumem posições relevantes nessa busca pela pacificação social com justiça, não se falando mais em protagonismo judicial ou das partes, pois todos os sujeitos passam a figurar como protagonistas.
Assim, nesse novo paradigma constitucional do processo civil, há a inclusão do juiz no diálogo, em paridade com as partes – não há mais protagonistas -, saindo dessa posição apenas no momento de decidir, quando, invariavelmente, se coloca em um patamar superior ao das partes, tendo em vista ser o momento em que exerce o poder estatal a ele conferido. É imprescindível, portanto, a assunção de uma postura mais ativa pelo órgão julgador, o qual não pode assistir inerte à marcha processual.
Com efeito, sobre essa nova formatação do processo civil, de viés nitidamente constitucional, importante a colocação de Fredie Didier:
“o juiz não conduz o processo ignorando ou minimizando o papel das partes na ‘divisão do trabalho’, mas, sim, em posição paritária, com diálogo e equilíbrio”.[19]
Resta claro, portanto, que o magistrado, na perspectiva desse processo cooperativo, assume uma função de grande importância, pois, tendo em vista ser o processo uma das formas de concretização da justiça, cumpre a ele, enquanto representante estatal, buscar pela melhor e mais justa solução do litígio, a fim de que os compromissos democráticos sejam satisfeitos no âmbito processual.
O magistrado, então, atua como verdadeiro agente propulsor dos anseios constitucionais, tendo papel de grande relevância na efetivação social das diretrizes da CRFB, otimizando as previsões de participação democrática da sociedade, isonomia, devido processos legal, entre outras.
Impende destacar, ainda, que o objetivo último do processo, qual seja a pacificação social com justiça, só pode ser devidamente perquirido quando respeitado o princípio da isonomia, razão pela qual a atuação mais intensa do juiz não pode ferir sua imparcialidade[20].
Dentro dessa perspectiva é que surge com grande ênfase a importância dos deveres da cooperação, elementos centrais no processo cooperativo: esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio; estes servem de baliza a direcionar a atuação do julgador, impondo limites a essa postura mais ativa do magistrado.
Todavia, essa nova postura do magistrado não é suficiente para o êxito desse novo modelo processual. Em verdade, ao lado de sua atuação, faz-se imprescindível que as partes com ele colaborem, pois todos os sujeitos processuais devem participar da construção da decisão. Isso porque, os valores constitucionais já abordados no presente trabalho impõem um processo probo e leal, pautado na boa-fé das partes, com uma atuação harmoniosa delas e do magistrado.
Nessa perspectiva, dentre os deveres de cooperação acima elencados, sobressai, no sentido de concretização de institutos constitucionais, o dever de consulta, justamente por impor a manifestação das partes – ou, ao menos, que seja dada oportunidade e condições para tanto – em momento anterior às decisões do magistrado que, mesmo podendo fazê-lo de ofício, as chama para que elucidem determinado fato ou questão de direito essencial ao seu pronunciamento.
É que, ao assim agir, evita-se a chamada decisão-surpresa, contrária à democracia e ao devido processo legal. Aí reside, em maior grau, a função legitimadora desse novo modelo processual. Com efeito, nas palavras de Lúcio de Grassi, o órgão julgador:
“deve consultar as partes sempre que pretende conhecer da matéria de fato ou de direito, de rito ou de mérito, sobre qual aquelas não tenham tido a possibilidade de pronunciarem, seja porque o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente daquele que é a perspectiva das partes ou porque esse órgão pretende conhecer oficiosamente certo fato relevante para a decisão da causa.”[21]
Destaque-se que, justamente por pressupor a participação dos sujeitos processuais, a fim de que a decisão final seja um construído, é que se afirma que o fim a que se destina a democracia, qual seja a participação de todos na formação da vontade estatal, é concretizado no processo cooperativo.
A bem dizer, com esse novo modelo processual, o “estado de coisas” almejado por outros princípios constitucionais, a exemplo da isonomia, é otimizado.
Nesse panorama, demonstra-se que o processo cooperativo é verdadeiro processo constitucional, pois permite a maximização dos princípios e valores constitucionais que regem a sociedade e o ordenamento jurídico brasileiro, conferindo aos cidadãos a efetiva tutela jurisdicional, legítima e justa.
3. PROCESSO CIVIL CONSTITUCIONAL: A COOPERAÇÃO NA LEGISLAÇÃO E NA JURISPRUDÊNCIA
Já na CRFB verifica-se norma condizente com o processo cooperativo. Trata-se da imposição constitucional de motivação das decisões judiciais[22]. Apenas com a devida fundamentação se tem a certeza de que foi oportunizado o diálogo, com a influência das partes na valoração feita pelo magistrado no decorrer do processo[23]. Dada sua importância, inclusive, é tida como inválida uma decisão judicial que não seja motivada.
Outro importante instituto que traz em si os valores do processo cooperativo é a previsão de que o juiz determine a emenda à inicial quando constata alguma irregularidade, evitando o indeferimento de plano, contrário à finalidade do processo que é a pacificação social com justiça.
Com efeito, ao permitir que a parte regularize determinado defeito, o magistrado permite que erros de cunho formal não impeçam o andamento processual para o seu desfecho natural, que é a decisão de mérito.
Também com essa intenção de impedir que irregularidade meramente formais ponham fim ao processo, se permite que o tribunal determine prática de ato para que seja sanada determinada irregularidade recursal na apelação, com o consequente julgamento da causa por essa instância, sem necessidade retorno dos autos ao primeiro ou, pior, o indeferimento do recurso por motivos meramente formais. Cuida-se da teoria da causa madura, prevista no art. 515, §4º.
Contudo, apesar desses instrumentos positivados em harmonia com o processo cooperativo, a importância desse novo modelo salta aos olhos quando os Tribunais passam a utilizá-lo como fundamento para ampliar a utilização desses institutos para situação semelhantes mas não expressamente contempladas pelo texto legal.
É o que se verifica com a possibilidade de saneamento de irregularidade recursal em sede de agravo de instrumento, em aplicação análoga ao que se permite na apelação. Por seu caráter inovador, importante colacionar ementa desse julgado:
RECURSO ESPECIAL - OFENSA AO ART. 535 DO CPC - INEXISTÊNCIA - MULTA APLICADA EM SEDE DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - AFASTAMENTO - NECESSIDADE - ENUNCIADO 98 DA SÚMULA/ STJ - MATÉRIA AFETADA COMO REPRESENTATIVA DA CONTROVÉRSIA - AGRAVO DE INSTRUMENTO DO ARTIGO 522 DO CPC - PEÇAS NECESSÁRIAS PARA COMPREENSÃO DA CONTROVÉRSIA - OPORTUNIDADE PARA REGULARIZAÇÃO DO INSTRUMENTO - NECESSIDADE - RECURSO PROVIDO. 1. Os embargos de declaração consubstanciam-se no instrumento processual destinado à eliminação, do julgado embargado, de contradição, obscuridade ou omissão sobre tema cujo pronunciamento se impunha pelo Tribunal, não verificados, in casu. 2. Embargos de declaração manifestados com notório propósito de prequestionamento não tem caráter protelatório. 3. Para fins do artigo 543-C do CPC, consolida-se a tese de que: no agravo do artigo 522 do CPC, entendendo o Julgador ausente peças necessárias para a compreensão da controvérsia, deverá ser indicado quais são elas, para que o recorrente complemente o instrumento. 4. Recurso provido. (STJ, REsp 1102467/RJ, Relator Ministro Massami Uyeda, Corte Especial, DJe 29.08.2012).
Igualmente, em Tribunais estaduais já se veem julgados pautados no processo cooperativo, exigindo a cooperação das partes e do juiz para o justo desfecho da lide, concretizando importantes valores constitucionais. Vejamos:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS. ATRASO NA ENTREGA DE IMÓVEL. PRELIMINAR. NULIDADE DA SENTENÇA. JUÍZO A QUO. ABERTURA DE PRAZO PARA CONTESTAÇÃO. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. NÃO CONFIGURADA. PRINCÍPIOS. DEVIDO PROCESSO LEGAL. PROCESSO JUSTO. SOBREPOSIÇÃO AO FORMALISMO. PRINCÍPIO DACOOPERAÇÃO OU COLABORAÇÃO. 1. Inexiste preclusão consumativa quando, embora a ré tenha se manifestado nos autos antes da citação, o juízo de origem abre prazo para que ela apresente contestação. [...] 2. O feito deve observar o devido processo legal, no qual a idéia de processo justo deve sobrepor ao formalismo da norma processual. 2.1. Ademais, eventual prejuízo causado por equívoco do juízo não pode ser repassado à parte. 3. O Projeto do Novo Código de Processo Civil, no art. 5º, assenta o princípio da cooperação ou da colaboração, que “estaria voltado eminentemente para o magistrado, de modo a orientar sua atuação como agente colaborador do processo, inclusive como participante ativo do contraditório, não mais se limitando a mero fiscal de regras” (in: Elpídio Donizetti Nunes). 4. Recurso da ré provido para acolher preliminar. 4.1. Sentença cassada. (TJ-DF - APC 20130111641078 DF 0041602-45.2013.8.07.0001, Relator JOÃO EGMONT, 5ª Turma Cível DJu 27.11.2014).
APELAÇÃO CÍVEL EM EMBARGOS À EXECUÇÃO. PROTESTO POR PRODUÇÃO DE PROVAS. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA CARACTERIZADO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. RELAÇÃO DE CONSUMO E HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO DEMONSTRADAS. I. A sistemática processual rege-se, também, pelo princípio da cooperação que decorre da boa-fé e impõe os deveres de esclarecimento, lealdade e proteção a todos os envolvidos na demanda. Assim, deve o magistrado comunicar as partes do desejo de abreviar o procedimento, julgando antecipadamente a lide. II. A inversão do ônus da prova na relação consumeirista não é automática, sendo questão que se analisa caso a caso e somente se impõe quando evidenciados os requisitos do art. 6º VIII do Código de Defesa do Consumidor. III. Apelo provido em parte para manter o ônus da prova, porém, anular a sentença determinando a renovação da instrução. (TJ-MA - APL 0005812011 MA 0000234-46.2011.8.10.0000, Relator VICENTE DE PAULA GOMES DE CASTRO, Segunda Câmara Cível, DJe 15.03.2013).
Claro está, assim, que o processo cooperativo, que traz em si o respeito e a concretização de valores constitucionais e, por isso, é o modelo processual que mais se harmoniza com a CRFB, já é uma realidade no ordenamento jurídico pátrio, seja por previsões legais que expressam seus fundamentos, seja por sua, cada vez mais constante, utilização pelos Tribunais.
CONCLUSÃO
A partir dos elementos abordados no presente trabalho, verifica-se a importância desse novo modelo processual na aplicação de importantes valores constitucionais no cotidiano do cidadão.
Outrossim, apesar de não ser expressamente previsto, essa estruturação do processo é um paradigma a ser seguido, pois é o que mais se adéqua a previsões constitucionais relativas ao processo civil.
Contudo, apesar de já ser aplicado por diversos operadores do direito, para que esse modelo constitucional de processo seja efetivo, é preciso que todos aqueles que lidam com o direito autem no sentido de tornar a cooperação regra e tônica dos processos nos foros nacionais. Não basta a existência de normas e precedentes que imponham os deveres da cooperação; é essencial que todos cumpram os deveres e obrigações que lhes cabe nessa divisão de tarefas verificada em um processo pautado na colaboração.
Somente assim ter-se-á um processo verdadeiramente legítimo, em consonância com os valores da democracia, do contraditório e do devido processo legal, capaz de atingir o escopo maior da jurisdição, que é a pacificação social com justiça.
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[1] A partir deste ponto, será utilizada a sigla CRFB para referir-se à Constituição Federal.
[2] Nesse sentido Cezar Saldanha Souza Junior ao dizer que a “acolhida na Constituição, por consenso da comunidade, de valores éticos supremos do direito como fins últimos da convivência política e – a partir daí – a sujeição ao ordenamento jurídico vigente, por meio de técnicas normativas adequadas, da organização e do funcionamento do Estado e de toda a vida social”. - A supremacia do Direito no Estado Democrático e seus Modelos Básicos. In: MITIDIERO, Daniel. Processo Civil e Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007, p. 15-16.
[3]CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p. 290.
[4] Nas palavras de Inocêncio Mártires Coelho, Estado Democrático de Direito é a “A organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.” - BRANCO, Paulo G. G.; COELHO, Inocêncio M.; e MENDES, Gilmar F. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 171.
[5] “Assim como o Estado democrático se legitima mediante a participação do povo na determinação de suas diretrizes e decisões, também é a participação contraditória no processo, pelas formas procedimentais adequadas, que dará legitimidade ao provimento final a ser emitido (Const., art. 5º, inc. LV). A observância do procedimento é também exigida pela Constituição, integrando-se essa garantia no espectro bastante amplo consubstanciado na fórmula due processo of law.” - GRINOVER, Ada Pellegrini. Julgamento Antecipado da Lide. In: DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno - Tomo I. 5ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 102.
[6] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil – pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 49-50.
[7] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 245-248
[8] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. In: MITIDIERO, Daniel. Processo Civil e Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007, p. 170-171.
[9] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios - da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14 ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 104-110.
[10] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno - Tomo I. 5ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 125.
[11] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil – pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 85.
[12] “Se o contraditório tivesse apenas a conotação de manifestação nos autos e não representasse o direito de influência, não haveria dever de motivar as decisões levando em consideração os argumentos utilizados pelas partes. [...]. O contraditório é direito de influência [...], é poder, uma forma moderada de poder, é certo, mas poder.” - CABRAL, Antonio do Passo. Il principio Del contraddittorio come diritto d’influenza e dovere de dibattito. In: LACERDA, Maria Francisca dos Santos. Ativismo-Cooperativo na Produção de Provas. São Paulo: LTr, 2012, p. 93.
[13] Ibidem, p. 124.
[14] “Nesse desiderato, o dever de lealdade deve estar presente no curso do processo, porque a regra do contraditório deve assegurar a ambas as partes o conhecimento de todos os aspectos da causa, não podendo um dos contendores esconder qualquer elemento relevante, nem impedir que a outra parte exerça seus direitos ou dificulte ao juiz o exercício de seus poderes.” - LACERDA, Maria Francisca dos Santos. Ativismo-Cooperativo na Produção de Provas. São Paulo: LTr, 2012, p. 91.
[15] “Ou seja, de acordo com uma ‘técnica de acepção de uma regra de conduta, de lealdade nas transações, reflexo da correção da vida social’.” - MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino. Contrato de Adesão. São Paulo: Atlas, 2002, p. 243.
[16] PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O Princípio do Devido Processo Legal Substantivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 17-27.
[17] Nesse sentido: ÁVILA, Humberto. O que é “devido processo legal”?. Revista de Processo, nº 163, ano 33. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 56; PAMPLONA, Danielle Anne. Devido Processo Legal – aspecto material. Curitiba: Juruá, 2004, p. 73; e LIMA, Maria Rosynete O. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 159.
[18] Humberto Ávila concebe os postulados com uma terceira espécie normativa, distinta dos princípios e regras (normas de primeiro grau), uma vez que orientam a aplicação das já conhecidas espécies normativas. Essas diretrizes metódicas são, na verdade, metanormas (normas de segundo grau), pois direcionam a aplicação das normas de primeiro grau. Nesse sentido, a razoabilidade e a proporcionalidade se diferenciam porque o “postulado da proporcionalidade pressupõe a relação de causalidade entre o efeito de uma ação (meio) e a promoção de um estado de coisas (fim). Adotando-se o meio, promove-se o fim: o meio leva ao fim. Já na utilização da razoabilidade como exigência de congruência entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada há uma relação entre uma qualidade e uma medida adotada: uma qualidade não leva à medida, mas é critério intrínseco a ela.” - ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 143-144 e 181. Ainda sobre os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, Humberto Ávila defende que, embora não expressamente previstos no ordenamento pátrio, são decorrentes dos princípios da liberdade e da igualdade, respectivamente. Por tal razão, continua, “ não se pode apartar os deveres de proporcionalidade e de razoabilidade do direito a um processo adequado ou justo. Sendo o processo adequado ou justo aquele estruturado de maneira proporcional e razoável à proteção do direito fundamental alegado, os deveres de proporcionalidade e de razoabilidade são as próprias medidas do processo adequado ou justo”. - ÁVILA, Humberto. O que é “devido processo legal”?. Revista de Processo, nº 163, ano 33. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 53 e 55.
[19] DIDIER JR., Fredie. Os Três Modelos de Direito Processual: Inquisitivo, Dispositivo e Cooperativo. Revista de Processo, nº 198, ano 36. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2011, p.220.
[20] Ao tratar da atuação mais ativa do juiz como uma forma de dirimir as desigualdades no processo, Igor Raatz sustenta a “necessidade de munir o juiz de poderes, exercendo, assim, um papel mais ativo.” – SANTOS, Igor Raatz. Os deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio como meio de redução das desigualdades no processo civil. Revista de Processo, nº 192, ano 36. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p.59-60.
[21] GOUVEIA, Lúcio de Grassi. A função legitimadora do princípio da cooperação intersubjetiva no processo civil brasileiro. Revista de Processo, nº 72, ano 34. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 34.
[22] Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação[23] Para Mitidiero esse dever de fundamenação é a última manifestação do contraditório – MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil – Pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2º Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 153.154.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2013.1). Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Liana Antero de. Princípio da cooperação: novo modelo constitucional no processo civil brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46234/principio-da-cooperacao-novo-modelo-constitucional-no-processo-civil-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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