1 - INTRODUÇÃO
A inclusão da Pessoa com deficiência é uma temática que vem merecendo grande atenção dos legisladores ao redor do mundo. A trajetória da população com deficiência ao longo da história foi marcada por estigma, pena, culpa e, principalmente, por exclusão e segregação. Entre os séculos XII e meados do século XX, disfarçada em meio a um discurso protecionista e de fortalecimento das pessoas com deficiência, a institucionalização foi a solução social “adequada” para satisfazer suas necessidades mínimas de alimentação, alojamento e saúde. É possível ver, ainda hoje, em diversos países, a retirada de pessoas com deficiência de suas comunidades de origem. Muitas vezes, elas são levadas para instituições isoladas ou para escolas especiais, frequentemente distantes de suas famílias.
A partir de meados do século XX, a integração passou a ser o modo de interação entre as pessoas com deficiência e a sociedade. Neste modelo, o processo referia-se à necessidade de modificar a pessoa com deficiência, de maneira que ela pudesse se assemelhar, o máximo possível, aos demais cidadãos. Só assim ela poderia ser inserida e integrada no convívio social.
Na década de 90, assistimos à Conferência Mundial de Educação para Todos e à Declaração de Salamanca de Princípios, Políticas e Práticas para as Necessidades Educativas Especiais que possibilitaram uma nova perspectiva de tratamento mais digno das pessoas com deficiência: a inclusiva. Nela, as exigências não se referem apenas ao direito da pessoa com deficiência à integração social, mas também ao dever da sociedade como um todo de se adaptar às diferenças individuais. Além disso, nesta perspectiva, a limitação de uma pessoa não pode, naturalmente, incidir na diminuição de seus direitos.
Foi neste cenário que, em 1991, tivemos promulgada a famigerada Lei de Cotas, que reserva às pessoas com deficiência um percentual das vagas ocupadas nas empresas com cem ou mais funcionários e que tem propiciado a entrada no mercado de trabalho formal um contingente de cidadão historicamente excluídos. Instrumento grandioso no processo de inserção do deficiente no mercado de trabalho.
No Brasil, ainda que com certo atraso, numa procura de atender minimamente aos anseios e clamores dos indivíduos e à clara determinação da nossa ordem constitucional, notadamente ao princípio da dignidade humana, houve a adesão à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e a seu Protocolo Facultativo, que resultou no Decreto. 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Nesse contexto, o primeiro impacto sentido em nossa legislação interna, por conta da aludida adoção, materializada pela Lei 12.470, foi a completa mudança no conceito de incapacidade que imperava, com claro fundamento no Direito Civil, no âmbito da Lei de Assistência Social – LOAS.
De conseguinte, houve enormes dificuldades no âmbito da operacionalização prática das medidas concebidas, para adequar o Instituto do Seguro Social, que é responsável pela administração do programa, à complexidade conceitual[1], uma vez que se trouxeram elementos metajurídicos e carecedores de intervenção de diversos profissionais, como médicos e assistentes sociais, por exemplo. Felizmente, aos poucos, vimos que já se deram alguns valorosos passos na direção esperada, ainda que persista uma série de questionamentos sobre a conturbada temática.
Pois bem. Seguindo-se na produção legislativa garantidora dos direitos dos deficientes, recentemente, com a Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, e vacatio legis de 180 dias, se consagrou, ainda em maior grau, uma série de direitos e garantias das pessoas com deficiência perante a sociedade e o Estado, o chamado Estatuto da Inclusão da Pessoa Portadora de Deficiência.
2 - DESENVOLVIMENTO – A PROBLEMÁTICA
Ainda que mereça aplausos a medida legislativa, não se pode negar o descompasso com outras realidades normativas, notadamente a do novel Código de Processo Civil, que concentra diversas colisões com o texto aprovado, gerando uma série de antinomias. Podemos citar o exemplo da conquista garantida ao deficiente com a possibilidade de ele mesmo provocar a deflagração do processo de curatela, afinal ninguém mais do que ele tem interesse na medida; no entanto, ela será revogada, por mais absurdo que pareça, por expressa previsão do Art. 1.072 do novo CPC, que passará a vigorar a partir de março do ano corrente, num brevíssimo período de vigência.
Percebe-se que o legislador, no afã de compensar o atraso nessa importante e destacada matéria, acabou “atropelando” a sua discussão e deixou de interagir com a comunidade acadêmica do Direito Civil, alterando institutos como capacidade civil, interdição, representação e a assistência, sem maior rigor técnico e científico.
O legislador, simples e inadvertidamente, sobrepôs um regime de incapacidade de tradicional consolidação, por um ainda carecedor de maior aprofundamento e estudo, ainda que de extrema relevância para efetivação de normas constitucionais. Como se sabe, sob a ótica anterior, vigente por décadas, no Brasil, sempre se tratou a incapacidade como um consectário quase infestável da deficiência. Agora, repentinamente, os deficientes superaram a condição de incapaz, independentemente da sua restrição física ou mental.
No que diz respeito às particulares condições biológicas dos deficientes, ignoradas pelo legislador, mister se faz uma grande construção doutrinária e jurisprudencial de modo a não permitir que o texto legal gere absurdos práticos, como considerar todo e qualquer portador de transtorno mental, indistintamente, como plenamente capaz. Será preciso, a partir disso, enquadrar de alguma forma, nas hipóteses em que as condições do deficiente não lhe permitam usufruir da sua nova e automática condição de capaz, na previsão do art. 4, III, do NCC. É nessa senda que adverte o Professor Flávio Tartuce:
Todavia, pode ser feita uma crítica inicial em relação à mudança do sistema. Ela foi pensada para a inclusão das pessoas com deficiência, o que é um justo motivo, sem dúvidas. Porém, acabou por desconsiderar muitas outras situações concretas, como a dos psicopatas, que não serão mais enquadrados como absolutamente incapazes no sistema civil. Será necessário um grande esforço doutrinário e jurisprudencial para conseguir situá-los no inciso III do art. 4º do Código Civil, tratando-os como relativamente incapazes. Não sendo isso possível, os psicopatas serão considerados plenamente capazes para o Direito Civil.[2]
Dessa sorte, para alcançar seus objetivos, é preciso que a lei supere as imprecisões e conflitos que já são facilmente visualizados antes mesmo da sua aplicação prática. Porém. A inovação legislativa, porém, pela sua recente inserção no ordenamento jurídico brasileiro, encontra-se ainda sem aprofundamento doutrinário, embora já se perceba em muitos autores a extremada preocupação pelas profundas repercussões jurídicas das mudanças concebidas.
Resumidamente, com o propósito de conceder independência e autoafirmação aos portadores de deficiência, o Estatuto os retirou da condição de incapaz. Eis a grande a grande pretensão do diploma legal, com a revogação de boa parte dos artigos 3º e 4º, do Código Civil, que passarão a ter a seguinte redação:
Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
I - (Revogado);
II - (Revogado);
III - (Revogado).
Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
.....................................................................................
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
.............................................................................................
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação
especial.
Como já se disse, as implicações na prática ainda não são percebidas com clareza, tendo em vista que o Estatuto só passou a produzir efeitos jurídicos em janeiro de 2016, em razão da sua vigência protraída.
Mas, ainda assim, de antemão, conseguem-se identificar situações que merecerão muito estudo e reflexão. Lembremos que a curatela, instituto tão utilizado até hoje para intervenção de pessoas portadores de alguma sorte de limitação física ou mental, passa, a partir de agora, a ser medida extraordinária e limitada à natureza patrimonial (at. 85). No direito matrimonial, percebe-se que há autorização para o deficiente casar sem restrições, podendo expressar sua vontade por seu responsável ou curador.
Sem falar que foi introduzido um novo modelo, até então inédito em nossa legislação, alternativo ao regime da curatela, que ante a sua originalidade, carece de grande base teórica, a chamada “tomada de decisão apoiada. O professor Maurício Requião[3] registra a existência de figuras semelhantes em outros ordenamentos:
A adoção de medidas diferentes da curatela é algo que pode ser encontrado na experiência estrangeira. Apresentam-se ora através da criação de novos modelos que excluem a curatela do sistema, como no caso da austríaca Sachwalterschaft e da alemã Betreuung; ora com a criação de modelos alternativos que não excluem a curatela do sistema mas esperam provocar o seu desuso, como se deu com a criação do “administrador” belga e da figura do amministrazione di sostegno italiana; e por vezes simplesmente como figura que conviverá com a curatela, como na sauvegarde de justice francesa. No caso brasileiro optou-se pela convivência entre a curatela e o novo regime, servindo inclusive as disposições gerais daquela para este, nos termos do artigo 1783-A, §11. Se na realidade brasileira a tomada de decisão apoiada levará ao desuso da curatela, é algo que somente o tempo dirá.
Quais seriam, finalmente, os problemas trazidos pela nova legislação. Ousamos, como a devida vênia, apontar os seguintes:
1. Como harmonizar a realidade biológica de muitas espécies de deficiência à condição de plenamente capaz?
2. Em que condições os deficientes poderão ter afastada a sua conquistada condição de capacidade, sem que isso ofenda aos termos do Estatuto?
3. Como enfrentar a antinomia entre o Estatuto do Deficiente (Lei 13.146/2015) e o art.1.072 do novo CPC?
4. Qual seria a base cientifica do instituto da “tomada de decisão apoiada” e sua natureza jurídica?
5. Ainda sobre este instituto, haveria contradição entre o fato de, na dúvida entre a vontade do deficiente e a dos apoiadores, caber a decisão ao juiz, uma vez que o primeiro é considerado plenamente capaz?
CONCLUSÃO – RESPOSTAS PROVISÓRIAS E PONTOS DE PARTIDA PARA UMA DISCUSSÃO MAIS APROFUNDADA.
Diante da colocação dos problemas, respondemos a essas questões da seguinte forma:
1 - Em primeiro lugar, o exercício da plena capacidade em determinados indivíduos dependerá do grau de restrição da sua realidade biológica, sendo temerário entender que todo e qualquer deficiente, por mais que a lei diga o contrário, goza de aptidão de exercer, ainda que com suporte de outrem, todos os negócios jurídicos disponíveis.
2 - Em segundo, o afastamento da capacidade, conferida, indistintamente, pela Lei 13.146/2015, deverá passar pelo crivo do princípio da dignidade humana, coluna mestre da nossa ordem constitucional, de modo a contornar a previsão legal, numa interpretação conforme[4] da nova redação do Código Civil, para, nas hipóteses de alto grau de comprometimento biológico da pessoa com deficiência, enquadrar essas espécies na condição de relativamente incapaz, previstas no art. 4, III, do CC.
3 – Diante da antinomia entre o Estatuto do Deficiente e o novo CPC, as regras deste deverão ser interpretadas em conformidade com as da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, pois esta tem força normativa superior àquele, relativamente à curatela especial, como medida protetiva e temporária, não sendo cabível a interpretação que retome o modelo superado de interdição, numa espécie de retrocesso social, apesar da terminologia inadequada utilizada pela lei processual, uma vez que foi a convenção atendeu ao previsto no § 3º do art. 5º da Constituição do Brasil.
4 – A “tomada de decisão apoiada”, a exemplo da curatela, parece ostentar a natureza jurídica de ação de jurisdição voluntária, uma vez que inexistiria lide propriamente dita;
5 - Na hipótese do §6[5], do novo artigo 1.783-A, do Código Civil, em que há dissenso entre a vontade do deficiente e dos seus apoiadores, deve se preservar a autonomia da vontade do deficiente, tendo em conta que esse procedimento é de titularidade exclusiva do mesmo, não fazendo, portanto, sentido que funcione em seu desfavor. Ademais, reforça essa contradição o fato de a decisão apoiada não restringir, em nenhum grau, a capacidade do deficiente.
Como se disse, são respostas superficiais e imediatas, que carecem de aprofundamento e base científica, no que pretendemos contribuir em nossa dissertação de mestrado.
REFERÊNCIAS
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MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
LÔBO, Paulo. Direito Civil Constitucional. Disponível em: <http://www.oab.org.br>. Acesso em 20 fev. 2016.
________. Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes. Disponível em :< http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em: 20 de fevereiro de 2016.
REQUIÃO, Maurício. AUTONOMIA, INCAPACIDADE E TRANSTORNO MENTAL: PROPOSTAS PELA PROMOÇÃO DA DIGNIDADE. 2015. 1975 f.. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia. 2015.
___________. Conheça a tomada de decisão apoiada, novo regime alternativo à curatela. Disponível em :http://www.conjur.com.br/2015-set-14/direito-civil-atual-conheca-tomada-decisao-apoiada-regime-alternativo-curatela. Acesso em 20 fev. 2016.
RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-modernidade. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/982/R163-08.pdf?sequence=4. Acesso em: 22 fev. 2016.
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TARTUCE. Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte I. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI224217,21048-Alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com. Acesso em: 20 fev. 2016.
VÍTOR, Paula Távora. A administração do património das pessoas com capacidade diminuída. Coimbra: Coimbra, 2008, p.175-176.
[1] § 2o Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
[3] Requião, Maurício. Conheça a tomada de decisão apoiada, novo regime alternativo à curatela. Disponível em :http://www.conjur.com.br/2015-set-14/direito-civil-atual-conheca-tomada-decisao-apoiada-regime-alternativo-curatela. Acesso em 20 fev. 2016.
[4] A interpretação conforme a Constituição determina que, quando o aplicador de determinado texto legal se encontrar frente a normas de caráter polissêmico ou, até mesmo, plurissignificativo, deve priorizar a interpretação que possua um sentido em conformidade com a Constituição. Por conseguinte, uma lei não pode ser declarada nula quando puder ser interpretada em consonância com o texto constitucional.
[5] § 6o Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão.
Procurador Federal. Ex-Defensor Público do Estado do Ceará. Especialista em Direito Processual Civil, DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS PELO IDP, ESPECIALISTA EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO PELA PUC/MINAS e em Direito Público pela UNB. Membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Trabalhista e Previdenciário. Mestrando em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Jose Aldizio Pereira. O novel Estatuto do Deficiente e seus impactos no regime civil das incapacidades: algumas indagações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46282/o-novel-estatuto-do-deficiente-e-seus-impactos-no-regime-civil-das-incapacidades-algumas-indagacoes. Acesso em: 22 nov 2024.
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