RESUMO: O presente estudo visa fornecer uma abordagem crítica acerca da relação existente entre o princípio constitucional da anterioridade tributária e a revogação de isenções não onerosas, no que se refere à necessidade ou não de observância do citado princípio. Num primeiro momento, é feita uma análise do princípio da anterioridade, explorando seu conceito, suas espécies, bem como seu caráter de direito fundamental. Em seguida, são apreciadas as modalidades de exclusão do crédito tributário, com especial enfoque no instituto da isenção. São então objeto de estudo os posicionamentos doutrinário e jurisprudencial acerca da aplicação da anterioridade na hipótese de revogação de isenções. Por fim, analisa-se qual entendimento melhor se amolda à previsão contida na Constituição Federal de 1988.
PALAVRAS-CHAVES: Direito Tributário. Princípio da anterioridade. Revogação de isenções.
ABSTRACT: This study aims to provide a critical approach of the relationship between the constitutional principle of anteriority and the repeal of tax exemptions, regarding the need or lack of observance of that principle. At first, an analysis of the principle of anteriority is made, exploring its concept, species, as well as its character of a fundamental right. Then the modalities of exclusion of the tax credit are examined, with special focus on the exemption institute. Then the doctrinal and jurisprudential comprehension on the application of the principle in case of revocation of exemptions are subject of this study. Finally, it’s analyzed which better understanding conforms to the provision contained in the 1988 Federal Constitution.
KEYWORDS: Tax Law. Principle of anteriority. Revocation of exemptions.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A anterioridade tributária como limitação constitucional do poder de tributar. 2.1 Noções gerais sobre o princípio da anterioridade. 2.2 O princípio da anterioridade anual. 2.2.1 Exceções à anterioridade anual. 2.3 O princípio da anterioridade nonagesimal. 2.3.1 Exceções à anterioridade nonagesimal. 2.4 Distinção entre o princípio da anterioridade anual e o princípio da anualidade. 2.5 O princípio da anterioridade tributária como direito fundamental do contribuinte. 3 Exclusão do crédito tributário. 3.1 Anistia. 3.2 Isenção. 3.2.1 Noções gerais. 3.2.2 Conceito de isenção. 3.2.2.1 Uma análise à luz da Teoria Geral do Direito. 3.2.3 Distinção entre isenção e imunidade. 3.2.4 Distinção entre isenção e alíquota zero. 3.2.5 Isenções onerosas e não onerosas. 3.2.6 Revogação de isenções. 4 A relação entre o princípio da anterioridade e a revogação de isenções. 4.1 Considerações iniciais. 4.2 A previsão do Código Tributário Nacional: o art. 104. 4.3 A jurisprudência do STF acerca do tema. 4.4 A posição da doutrina. 4.5 A necessária observância do princípio da anterioridade. 5 Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Entre os princípios jurídicos que compõem o sistema constitucional tributário brasileiro, consagrados pela Constituição Federal de 1988, o princípio da anterioridade destaca-se como postulado garantidor da segurança jurídica do cidadão-contribuinte, resguardando-o diante de alterações da legislação tributária que venham a onerar mais gravemente o seu patrimônio.
Busca a anterioridade assegurar ao contribuinte a previsibilidade e o conhecimento antecipado quanto à instituição ou majoração de tributos que lhe serão exigidos pelo Fisco.
No presente trabalho, analisa-se a relação existente entre o supramencionado princípio e a revogação de isenções não onerosas, buscando identificar, mais particularmente, se deve ou não haver observância ao comando constitucional nessas situações.
A doutrina e a jurisprudência pátrias possuem entendimentos diversos acerca do assunto. O Supremo Tribunal Federal acolhe posicionamento contrário à aplicação da anterioridade tributária em casos de revogação de benefício isencional. A doutrina majoritária, em contrapartida, defende a observância do princípio nas mesmas situações.
Trata-se de questão de grande relevância, não só no aspecto teórico, mas também na prática jurídica. Por abordar a relação que se estabelece entre o Fisco e os contribuintes, a discussão acarreta importantes reflexos na vida social.
A temática foi desenvolvida por intermédio de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, buscando verificar qual entendimento melhor concretiza o texto constitucional, tão carente de efetividade nos dias atuais.
Em um momento inicial, são analisadas as chamadas limitações constitucionais do poder de tributar, entre as quais se inclui o princípio da anterioridade tributária. Passa-se, então, a uma abordagem detalhada desse princípio, explorando seu conteúdo, suas espécies, sua diferenciação para com o antigo princípio da anualidade, bem como os tributos que foram ressalvados de sua aplicação pela própria Constituição Federal. Cuida-se ainda da análise da anterioridade enquanto direito fundamental do contribuinte. Esse o conteúdo do capítulo primeiro.
Em seguida, no segundo capítulo, são abordadas as hipóteses de exclusão do crédito tributário: a anistia e a isenção. Centra-se a atenção nessa segunda modalidade, explicitando o seu conceito – e as diversas controvérsias que sobre ele pairam –, sua distinção com outras figuras jurídicas (imunidade e alíquota zero) e sua classificação de acordo com o caráter de onerosidade. Por fim, analisa-se a revogação de isenções, verificando as situações em ela poderá ou não ocorrer.
No terceiro e último capítulo, são abordadas as controvérsias acerca da necessidade ou não de observância do princípio da anterioridade na hipótese de revogação de isenções. Apresentam-se as posições defendidas pela Suprema Corte e pelos doutrinadores brasileiros acerca do assunto, explicitando os argumentos que fundamentam tais entendimentos. Enfim, destaca-se a necessidade de solucionar a celeuma pautando-se na interpretação que confira ao princípio a aplicação mais consentânea ao seu caráter de fundamentalidade no ordenamento jurídico.
2 A ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PODER DE TRIBUTAR
O Estado, tendo em vista o atendimento de suas finalidades precípuas, bem como a viabilização de sua própria manutenção, necessita captar recursos financeiros que possibilitem o alcance de tais fins. São os tributos a principal fonte estatal de receitas, por meio dos quais o Estado, valendo-se de seu poder coercitivo, intervém no patrimônio dos contribuintes, cobrando-lhes prestações pecuniárias previstas em lei.
Correspondem os tributos, portanto, às chamadas receitas derivadas, quais sejam, aquelas que derivam do poder de autoridade do Estado, que se utiliza de suas prerrogativas, lastreadas na noção de interesse público, para extrair recursos do patrimônio dos particulares. Contrapõem-se essas às receitas originárias, que decorrem da exploração de atividade econômica por parte do Estado, o qual atua, nesse caso, sob o regime de direito privado. (HARADA, 2013, p. 41).
O poder do Estado de impor e exigir tributos das pessoas a ele subordinadas deriva diretamente da Constituição Federal, devendo sempre ser exercido por intermédio de lei. Tal poder de tributar encontra sua justificativa no âmbito da soberania do Estado, conforme preleciona Hugo de Brito Machado (2006, p. 53):
“No exercício de sua soberania o Estado exige que os indivíduos lhe forneçam os recursos de que necessita. Institui o tributo. O poder de tributar nada mais é que um aspecto da soberania estatal, ou uma parcela desta.”
Contudo, mais do que uma parcela da soberania estatal, o poder de tributar pode também ser considerado como uma exteriorização do próprio Estado Democrático de Direito, na medida em que tal poder advém do consentimento da população, o que se dá por intermédio da lei. Fala-se em “teoria do tributo consentido, vale dizer, o postulado segundo o qual o sujeito somente é tributado se anuir, se concordar com a tributação, o que se dá com a produção legislativa, dentro de uma democracia representativa”. (FREITAS, 2012, online).
Ao tratar do fundamento do poder de tributar, portanto, deve-se ir além da ideia de soberania do Estado, tendo relevância também a noção de consentimento popular, representada pela necessidade de lei, o que conduz à conclusão de ser a relação de tributação uma relação eminentemente jurídica.
É evidente que esse poder estatal, uma vez que atinge diretamente a esfera privada dos contribuintes, especialmente no tocante ao seu direito de propriedade, constitucionalmente garantido (art. 5º, XXII, da CF[1]), não pode ser exercido como um poder absoluto e arbitrário, de onde advém a necessidade de limitar-se o seu exercício.
Conforme assevera Aliomar Baleeiro (1977, p. 2), “o sistema tributário movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos individuais”.
Essa necessidade de limitação ganha contornos ainda mais notáveis quando se tem em mente a situação específica de nosso país, em que os contribuintes são submetidos a uma elevada carga tributária, sem que se veja a contrapartida governamental.
Nesse sentido, buscando restringir o poder estatal de impor tributos em face dos contribuintes, o legislador constituinte originário de 1988 estabeleceu na Constituição Federal brasileira, no âmbito do Capítulo “Do Sistema Tributário Nacional”, integrante do Título VI da CF/88, as denominadas “limitações constitucionais do poder de tributar”.
Segundo Machado (2006, p. 286), “em sentido amplo, é possível entender-se como limitação ao poder de tributar toda e qualquer restrição imposta pelo sistema jurídico às entidades dotadas desse poder.”
Tais limitações consubstanciam-se, basicamente, nos princípios e nas imunidades tributárias, dispostos nos artigos 150 a 152 da Constituição Federal. Enquanto as imunidades funcionam como regras de não incidência tributária, os princípios atuam como regras norteadoras da cobrança tributária.
Impende destacar que referidas garantias previstas em nossa Carta Magna, em especial na Seção intitulada “Das Limitações do Poder de Tributar”, constituem um rol meramente exemplificativo, e não exaustivo, como se pode inferir da própria redação do art. 150 da CF/88, que assim se inicia: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte [...]”.
Os princípios constitucionais tributários identificam-se, como visto, como normas que limitam o poder de tributar, estabelecendo diretrizes que regulam a cobrança de tributos por parte do Estado, ficando este vinculado à sua obediência. Servem, portanto, como instrumentos de proteção do contribuinte.
Na medida em que a relação de tributação estabelecida entre Estado e contribuinte configura uma relação jurídica, e não meramente de poder, tal relação tem de se submeter ao regramento jurídico. São os princípios tributários as mais importantes prescrições jurídicas disciplinadoras dessa relação. (MACHADO, 2004, p. 17).
Dentre os mais importantes, pode ser citado o princípio da anterioridade tributária, ao qual se dá destaque no presente trabalho.
Merece menção uma interessante discussão doutrinária, embora ainda pouco explorada. Trata-se da natureza normativa dos princípios constitucionais tributários.
Não obstante seja genericamente utilizada a expressão “princípios tributários”, parcela da doutrina indaga acerca da real natureza de alguns desses princípios constitucionais relativos à tributação, considerando que não seriam propriamente princípios, mas sim regras. Seria esse o caso do princípio da anterioridade.
De acordo com tradicional lição doutrinária, inspirada nos ensinamentos de Robert Alexy, as normas jurídicas podem ser subdivididas em duas espécies: regras e princípios. As primeiras seriam normas que se aplicam na base do “tudo ou nada”, contendo determinações, sendo sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Os últimos, por sua vez, seriam normas passíveis de satisfação em variados graus.
Os princípios, nessa concepção, são considerados como mandamentos de otimização, pois “ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes”. (ALEXY, 2008, p. 90).
Pois bem, segundo parte da doutrina, o princípio da anterioridade seria um exemplo de princípio tributário que, em verdade, teria natureza de regra, tendo em vista não ser passível de ponderação, sendo aplicável ou não a determinado caso concreto.
Em sentido oposto, a isonomia, por exemplo, consistiria verdadeiramente em um princípio, na medida em que permitiria a realização de um juízo de ponderação em sua aplicação, conforme esclarece Ricardo Alexandre (2012, p. 80, grifos do autor):
A título de exemplo, a isonomia (tratar igualmente quem é igual, e desigualmente quem é desigual, na proporção das desigualdades havidas) seria um verdadeiro princípio, pois pode ser objeto de ponderação, permitindo a concessão de uma isenção que beneficie grandes empresas para que estas se instalem em regiões subdesenvolvidas, tudo para garantir um objetivo traçado pela própria Constituição, qual seja estimular o desenvolvimento equilibrado entre as diversas regiões do País.
A despeito da discussão acima referida, prefere-se utilizar a nomenclatura tradicional, já comumente consagrada, denominando as limitações constitucionais ao poder de tributar, inclusive a da anterioridade, como “princípios tributários”.
Isso porque o termo “princípio” carrega em si mesmo um importante significado, na medida em que conduz à noção de relevância de um determinado conceito, condizente, portanto, com a magnitude que deve ser dada aos princípios constitucionais tributários. (SAMPAIO, 2010, p. 21).
Apenas alerta-se, portanto, para o fato de não ser utilizado, no presente trabalho, o termo “princípio” no sentido da classificação proposta por Robert Alexy.
2.1 Noções gerais sobre o princípio da anterioridade
No campo do Direito, o princípio da segurança jurídica tem papel de destaque como postulado garantidor da estabilidade das relações sociais, sendo princípio essencial e inerente ao Estado Democrático de Direito, com caráter inclusive de direito fundamental, materializado no art. 5º, inc. XXXVI, da CF/88.
Conforme esclarece Hugo de Brito Machado Segundo (2012, p. 19), a segurança jurídica delimita o alcance do princípio fundamental da justiça, sendo princípio “que impõe a atribuição da maior previsibilidade e estabilidade possível às relações humanas”.
Tal princípio “visa a proteger e preservar as justas expectativas das pessoas. Para tanto, veda a adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais capazes de frustrar-lhes a confiança que depositam no Poder Público”. (CARRAZZA, 2012, p. 464).
Trata-se de postulado considerado como princípio geral do Direito, com reflexos em todas as áreas que o direito abrange, significando o mínimo de certeza positivada em um ordenamento. (MELO, 2006, online).
O campo tributário, como não podia deixar de ser, não fica alheio a essa ideia de segurança jurídica, a qual, ao contrário, assume notável relevância.
Para Ricardo Alexandre (2012, p. 98), “em matéria tributária, o princípio ganha colorido especial, pois, para o contribuinte, não basta a segurança com relação aos fatos passados (irretroatividade da lei), também se faz necessário um mínimo de previsibilidade quanto ao futuro próximo”.
Leonardo Buissa Freitas (2012, online), relacionando a tributação com o princípio matriz da dignidade da pessoa humana, confirma a relevância do princípio da segurança jurídica no âmbito tributário:
[...] a tributação fundamentada na segurança jurídica é capaz de respeitar a dignidade da pessoa humana. Surpresas, normalmente desagradáveis, são inconciliáveis com o Estado Democrático de Direito. Costumo expressar que a democracia é um regime monótono, sem surpresas, sem solavancos, sem emoção, eis que tudo já está previsto, anterior e expressamente, nos claros ditames da lei. A insegurança, por seu turno, é inerente aos regimes de exceção.
É nesse contexto que exsurge o princípio da anterioridade tributária, como um corolário do princípio da segurança jurídica. Ao utilizar-se de seu poder de tributar, o Estado impõe aos cidadãos encargos que recaem diretamente sobre o seu patrimônio, afetando, por conseguinte, o seu próprio sustento. Revela-se, portanto, a necessidade de se proteger os contribuintes diante da inesperada imposição, ou majoração, de tributos.
É preciso que seja dada ao contribuinte uma margem de tempo suficiente para que ele possa se preparar diante de uma nova cobrança, permitindo-lhe a realização de um planejamento econômico, de forma a não ver suas finanças comprometidas pela tributação.
O princípio da anterioridade tributária é o postulado responsável por fornecer essa garantia temporal ao contribuinte, assegurando a ele o prévio conhecimento dos tributos que lhe serão cobrados no exercício financeiro seguinte. Refere-se, portanto, o princípio da anterioridade ao aspecto temporal da cobrança tributária. Nesse sentido, as ponderações de Sabbag (2014, p. 88):
Enquanto o estudo da legalidade tributária leva o aplicador da norma a entender, na tributação, a extensão semântica do vocábulo “como”, a análise da anterioridade tributária permitirá ao intérprete captar, em idêntica seara, a dimensão vocabular do termo “quando”. Explicando: a legalidade tributária está para a “causa”, enquanto a anterioridade tributária se liga ao “efeito”; a primeira diz com a resposta à indagação “o que me imporá o pagamento?”, enquanto a segunda atrela-se à solução do questionamento “quando pagarei?”.
Evita-se, dessa forma, com a aplicação do princípio em tela, que seja o sujeito passivo da obrigação tributária surpreendido com inesperada cobrança, sem que lhe seja concedido um prazo razoável para que possa se planejar economicamente.
Nas palavras de Roque Antonio Carrazza (2012, p. 212), “a anterioridade volta-se para fatos futuros, dando ao contribuinte a previsibilidade do que o aguarda no próximo exercício financeiro – e, portanto, condições objetivas de se programar e preparar para bem cumprir as novas exigências fiscais”. Por esse motivo, é comum a utilização pela doutrina da denominação princípio da não surpresa, ao referir-se ao princípio da anterioridade.
Conclui-se, portanto, que, em matéria tributária, o princípio da anterioridade – ao lado do princípio da irretroatividade – traduz a noção de segurança jurídica, corporificando a ideia de ser garantido aos contribuintes um mínimo de previsibilidade diante de alterações tributárias mais gravosas.[2]
Leandro Paulsen (2005, p. 128), indo além desses sentidos de “previsibilidade” e “não surpresa” usualmente associados ao princípio da anterioridade, propõe a noção de “conhecimento antecipado”:
Mais do que previsibilidade e do que não-surpresa, pois, cuida-se de assegurar ao contribuinte o conhecimento antecipado daquilo que, sendo decorrente de lei estrita devidamente publicada, lhe será com certeza imposto, incidindo sobre os atos que então venham a ser praticados ou sobre os fatos ou situações que se verifiquem em conformidade com a previsão legal, após o decurso de noventa dias e a virada do exercício ou apenas do decurso de noventa dias em se tratando de contribuições de seguridade social. (Grifou-se).
Exemplificando seu pensamento, refere-se o mencionado autor a um hipotético caso de tramitação de projeto de lei amplamente discutido nos meios de comunicação. Não haveria que se falar, nesse caso, em evitar a surpresa do contribuinte no que se refere ao aumento da carga tributária, mas, ainda assim, seria a ele garantido um lapso temporal entre a publicação da lei e a cobrança do tributo, a fim de permitir sua preparação financeira para aquilo que já sabe antecipadamente que lhe será imposto.
Nessa concepção, portanto, o princípio da anterioridade seria uma forma de assegurar ao contribuinte o conhecimento antecipado de futuras alterações tributárias.
O princípio da anterioridade encontra-se insculpido na Constituição Federal em seu art. 150, inc. III, al. “b” e “c”, podendo ser classificado em duas espécies: a anterioridade anual, também chamada anterioridade de exercício, e a anterioridade nonagesimal, também denominada anterioridade qualificada, ou mínima.
2.2 O princípio da anterioridade anual
Também chamada de anterioridade comum ou de exercício, a anterioridade anual encontra previsão no art. 150, inc. III, al. “b”, da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
[...]
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
Da análise do dispositivo acima colacionado, depreende-se que os entes federados, ao instituírem ou majorarem tributos por meio de lei – como exige o princípio da legalidade[3]–, somente podem cobrá-los no exercício financeiro seguinte àquele em que a referida lei houver sido publicada.
Por exercício financeiro, deve-se entender o período compreendido entre 1º de janeiro e 31 de dezembro, coincidente com o ano civil comum, conforme dispõe o art. 34 da Lei nº 4320/64, diploma normativo que veiculou normas gerais de Direito Financeiro.
Exemplificando, imagine-se a hipótese de uma Lei X, majoradora de determinado tributo, publicada em 15 de abril de 2014. Pois bem, aplicando-se a anterioridade anual, a referida majoração não poderia ser exigida no transcorrer do exercício financeiro de 2014, só podendo haver a cobrança do tributo majorado a partir de 1º de janeiro de 2015.
Observe-se que o marco temporal que determina a aplicação do referido princípio corresponde à data da publicação da lei instituidora ou majoradora de tributos.
Pelo postulado da anterioridade anual, portanto, a Constituição Federal determina a observância de um certo lapso temporal para que a lei possa começar a produzir seus efeitos, possibilitando a cobrança do gravame tributário, ou seja, há uma postergação ou diferimento da eficácia da lei instituidora ou majoradora de tributos. (CARRAZZA, 2012, p. 213).
Repita-se, o que se adia com a observância da anterioridade é a eficácia da lei tributária instituidora ou majoradora, e não a sua vigência, que pode se dar, inclusive, na data da própria publicação da lei, se ela assim estabelecer.[4]
É imprescindível compreender ainda que, tratando-se de princípio que visa à proteção do contribuinte, a anterioridade não será aplicada aos casos de diminuição ou manutenção da carga tributária, só tendo lugar quando se tratar de instituição ou majoração de tributos, como aduz o texto constitucional.
Dessa forma, sobrevindo a publicação de uma lei que extinga determinado tributo, ou o reduza, sua aplicação poderá ser imediata, não havendo que se falar em diferimento de sua eficácia.
Isso porque as mudanças tributárias implementadas, por reduzirem a carga tributária, beneficiam o contribuinte, de forma a não mais subsistir o fundamento justificador da observância do princípio da anterioridade. Não havendo a imposição de qualquer onerosidade, a produção imediata de efeitos da lei de nenhuma forma representaria ofensa à segurança jurídica do contribuinte.
A esse propósito, salienta Eduardo Sabbag (2014, p. 93) que: “[...] se de algum modo a lei beneficiar o contribuinte, rechaçado estará o princípio da anterioridade, pois tal postulado milita em favor do contribuinte, e nunca em seu detrimento.”
É nesse sentido que o Supremo Tribunal Federal entende que a atualização monetária do valor de um tributo não se sujeita ao princípio da anterioridade, já que mera atualização não pode ser confundida com majoração. É pacífica a jurisprudência do STF nesse sentido:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - MATÉRIA TRIBUTÁRIA - SUBSTITUIÇÃO LEGAL DOS FATORES DE INDEXAÇÃO - ALEGADA OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADQUIRIDO E DA ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA - INOCORRÊNCIA - SIMPLES ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA QUE NÃO SE CONFUNDE COM MAJORAÇÃO DO TRIBUTO - RECURSO IMPROVIDO . - Não se revela lícito, ao Poder Judiciário, atuar na anômala condição de legislador positivo, para, em assim agindo, proceder à substituição de um fator de indexação, definido em lei, por outro, resultante de determinação judicial. Se tal fosse possível, o Poder Judiciário - que não dispõe de função legislativa - passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador positivo), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes. Precedentes . - A modificação dos fatores de indexação, com base em legislação superveniente, não constitui desrespeito a situações jurídicas consolidadas ( CF , art. 5º , XXXVI ), nem transgressão ao postulado da não-surpresa, instrumentalmente garantido pela cláusula da anterioridade tributária ( CF , art. 150 , III , b ) . - O Estado não pode legislar abusivamente, eis que todas as normas emanadas do Poder Público - tratando-se, ou não, de matéria tributária - devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" ( CF , art. 5º , LIV ). O postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. Hipótese em que a legislação tributária reveste-se do necessário coeficiente de razoabilidade. Precedentes. (STF, RE-AgR 200844 PR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 25/06/2002) (Grifou-se).
Da mesma forma, posiciona-se o STF no sentido de que, tratando-se de lei que se limita a alterar o prazo para recolhimento de um tributo, não há exigência de observância do princípio da anterioridade, tendo em vista que, na visão da Suprema Corte, a antecipação do pagamento não agravaria a situação do contribuinte. Confira-se nas decisões abaixo colacionadas:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ALTERAÇÃO DO PRAZO PARA O RECOLHIMENTO DO TRIBUTO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE.
A regra legislativa que se limita a mudar o prazo de recolhimento da obrigação tributária, sem qualquer outra repercussão, não se submete ao princípio da anterioridade, por não implicar majoração do tributo. Precedentes. (STF, RE-AgR 278557 SP, 2ª T., rel. Min. Maurício Corrêa, j. 21/11/2000)
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DESTINADA AO CUSTEITO DA SEGURIDADE SOCIAL. ANTERIORIDADE NONAGESIMAL. REDUÇÃO DO PRAZO DE RECOLHIMENTO. CONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES.
1. O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido de que a alteração do prazo para recolhimento das contribuições sociais, por não gerar criação ou majoração de tributo, não ofende o Princípio da Anterioridade Tributária [artigo 195, § 6º, CB/88]. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, RE-AgR 295992 SC, 2ª T., rel. Min. Eros Grau, j. 10/06/2008)
Tal entendimento culminou, inclusive, na edição da Súmula nº 669 do STF, de 2003, com os seguintes dizeres: “Norma legal que altera o prazo de recolhimento da obrigação tributária não se sujeita ao princípio da anterioridade”.
Roque Antonio Carrazza (2012, p. 237), em posicionamento essencialmente contrário ao adotado pela Corte Maior, entende que eventuais alterações na forma e no prazo de pagamento de tributos, com reflexos negativos ao contribuinte, devem total observância ao princípio da anterioridade. Embora não haja previsão expressa na CF/88 nesse sentido, tal conclusão decorreria espontaneamente da finalidade inerente à norma que prescreve a anterioridade tributária.
Segundo o referido autor, “alterar in pejus, em meio ao exercício financeiro, a forma de pagamento do tributo, e fazer com que ela incida de imediato, é anular, à sorrelfa, as garantias do princípio da anterioridade”. (CARRAZZA, 2012, p. 237).
Cabe ainda fazer menção a um outro entendimento adotado pela Suprema Corte, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4016-2/PR[5], onde restou consagrada a orientação de que o princípio da anterioridade também não alcança a redução ou extinção de desconto previsto legalmente para pagamento de um tributo.
Entendeu o Tribunal que a lei que reduzisse ou suprimisse desconto não poderia ser equiparada à lei majoradora do tributo, podendo, portanto, ter aplicação imediata, sem submeter-se ao princípio da anterioridade tributária.
2.2.1 Exceções à anterioridade anual
Não obstante o inciso III do art. 150 da Constituição estabeleça genericamente vedação à cobrança de “tributos”, o próprio texto constitucional prevê algumas exceções ao princípio da anterioridade anual.
O estabelecimento dessas exceções se justifica à medida que, “em certas circunstâncias relacionadas com políticas públicas sujeitas à volatilidade que caracterizam o mercado internacionalizado, a anterioridade tributária cede espaço às necessidades de controle e de gestão estatais”. (FRANCISCO, 2011, online).
Trata-se de tributos que podem ter sua cobrança realizada no mesmo exercício financeiro da publicação da lei que os tenha instituído ou majorado, não havendo necessidade de se aguardar o exercício financeiro seguinte.
Tais exceções encontram-se previstas no § 1º do mesmo artigo, e são as seguintes: imposto de importação (II); imposto de exportação (IE); imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos e valores mobiliários (IOF); imposto sobre produtos industrializados (IPI); imposto extraordinário de guerra e empréstimo compulsório decorrente de calamidade pública ou guerra externa.
Os quatro primeiros impostos citados têm sua excepcionalidade justificada diante do caráter eminentemente extrafiscal que os qualifica, ou seja, diante do fato de serem impostos com objetivos precípuos de intervenção no domínio econômico do país.
As duas últimas exceções acima referidas, por outro lado, justificam-se pela urgência que permeia suas hipóteses de instituição, quais sejam, situações de guerra ou calamidade pública, diante das quais surge a necessidade de uma rápida arrecadação de recursos.
São ainda ressalvas ao princípio da anterioridade anual as contribuições para financiamento da seguridade social, as quais devem obediência apenas ao prazo nonagesimal previsto pelo art. 195, § 6º, da CF/88.
Completando o rol de exceções à anterioridade anual, a EC nº 33/2001 trouxe outros dois tributos que excepcionam o princípio em questão: a CIDE-combustível, de acordo com o art. 177, § 4º, I, “b” da CF, e o ICMS-combustível, conforme o art. 155, § 4º, IV, “c” da CF. Contudo, em ambos os casos, a anterioridade anual será excepcionada somente quando se tratar da redução e restabelecimento das alíquotas desses tributos.
2.3 O princípio da anterioridade nonagesimal
Diferentemente da anterioridade anual, que sempre esteve presente no texto constitucional de 1988, a anterioridade nonagesimal, também denominada anterioridade qualificada, privilegiada, ou, ainda, mínima, foi introduzida na atual Constituição Federal por intermédio da Emenda Constitucional nº 42/2003, estando prevista na alínea “c” do inciso III do art. 150:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
[...]
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
De acordo com esse princípio, sendo editada uma lei instituidora ou majoradora de tributos por qualquer dos entes federados, sua produção de efeitos só poderá ocorrer após 90 (noventa) dias da data de sua publicação, ou seja, haverá a postergação da eficácia da lei por um período de 90 dias – a chamada “noventena”.
Percebe-se, portanto, que as anterioridades nonagesimal e anual diferenciam-se, basicamente, pela distância temporal estabelecida na CF/88 entre a publicação da lei e a exigência da exação tributária: 90 dias, no primeiro caso, e o exercício financeiro seguinte, no segundo caso. Nesse sentido, esclarece Eduardo Sabbag (2014, p. 93):
Evidencia-se que o princípio da anterioridade, nas duas alíneas, dispõe sobre um átimo de tempo que deve intermediar a data da lei instituidora ou majoradora do gravame e a data de cobrança do tributo. Tal espaço se abre para duas exigências temporais, com dupla “espera” a ser cumprida no tempo: a anual e a nonagesimal.
No texto original da Constituição Federal de 1988, já constava previsão de exigência de um lapso temporal de 90 dias entre a publicação da lei e a cobrança do tributo, mas referida previsão restringia-se às contribuições para financiamento da seguridade social.
Trata-se do art. 195, § 6º, da CF/88, até hoje em vigor, com o seguinte teor:
§ 6º - As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, "b".
No que diz respeito aos demais tributos, portanto, vigorava no ordenamento apenas o princípio da anterioridade anual, o qual acabou por se mostrar, na prática, insuficiente para a proteção do contribuinte. Isso porque:
[...] sendo exigida apenas a anterioridade anual, era comum a edição de leis nos últimos dias do ano (muitas vezes no próprio dia 31 de dezembro) e, para espanto de uma análise material da confiança legítima, a jurisprudência brasileira se conformava com o respeito apenas formal à anterioridade, de modo que essa lei de 31 de dezembro já começa a ter eficácia jurídica para fatos tributáveis que acontecessem no dia seguinte. (FRANCISCO, 2011, online).
Exemplificando, pautando-se apenas no princípio da anterioridade anual, uma lei publicada em 30 de dezembro de 2002 poderia ser cobrada já em 1º de janeiro de 2003, o que acabava por deturpar o sentido da disposição constitucional, já que não assegurava prazo razoável para que o contribuinte pudesse se planejar economicamente diante da alteração tributária.
Com o advento da EC nº 42/2003, foi incluída no texto constitucional a alínea “c” do inciso III do art. 150, em redação muito parecida àquela do art. 195, § 6º, garantindo, enfim, a aplicação da noventena aos tributos em geral.
Vê-se, dessa forma, que a anterioridade nonagesimal surgiu como forma de reforçar a anterioridade anual, não havendo outra conclusão a se chegar senão aquela que impõe a conjugação dos dois princípios. A aplicação então ocorrerá da seguinte forma:
[...] deverá a lei instituidora ou majoradora de tributo aguardar o próximo exercício financeiro e, se este tempo de espera for inferior a noventa dias, deverá também aguardar que se complete o nonagésimo dia para que tenha força vinculante. Por outro lado, se passados noventa dias e não adentrado em novo exercício financeiro, deverá aguardar o período de tempo suficiente para tanto. (DINIZ, 2008, p. 51).
A própria Constituição Federal, na parte final da redação do art. 150, III, “c”, não deixou dúvidas quanto à aplicação cumulativa das duas vertentes da anterioridade, ao dispor que deve ser “observado o disposto na alínea b”.
2.3.1 Exceções à anterioridade nonagesimal
Tal como ocorre com o princípio da anterioridade anual, também a anterioridade nonagesimal tem sua aplicação ressalvada diante de alguns tributos, por expressa determinação constitucional.
O art. 150, § 1º, da CF/88 dispõe que não se submetem à anterioridade nonagesimal os seguintes gravames: imposto de importação (II); imposto de exportação (IE); imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos e valores mobiliários (IOF); imposto de renda (IR); imposto extraordinário de guerra; empréstimo compulsório decorrente de calamidade pública ou guerra externa; base de cálculo do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) e do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU).
Interessante notar a inclusão do IR nesse rol – mesmo sendo um imposto tipicamente fiscal, ou seja, com finalidade eminentemente arrecadatória –, bem como a exclusão do IPI da lista de exceções.
A esse respeito, oportuna a lição de Silvia Paula Alencar Diniz (2008, p. 57), criticando a inserção do imposto de renda no mencionado rol:
Após um raciocínio lógico, vendo que tal imposto não possui caráter extrafiscal, só se poderia concluir pela sua inclusão no rol dos que devem respeito à soma das anterioridades. Não obstante a clareza da matéria, tal razão não surgiu ao legislador constituinte derivado, que preferiu excepcioná-lo da anterioridade nonagesimal [...] Portanto, restou constitucionalmente consagrada uma das maiores violações à segurança jurídica dos contribuintes, tendo em vista a magnitude e abrangência do imposto sobre a renda, fazendo prevalecer a surpresa sobre a segurança nas relações jurídicas.
No que concerne ao IPI, adequados os esclarecimentos de Ricardo Alexandre (2012, p. 110, grifos do autor):
Parte da doutrina já classifica o IPI como um imposto fiscal. Aliás, entre os impostos, é o segundo maior arrecadador federal (o maior é o imposto de renda). (...) Sendo o IPI tratado como fonte de arrecadação, foi necessário criar um mecanismo de defesa para o contribuinte contra as majorações repentinas de sua incidência. Atento à questão, o legislador constituinte derivado, ao estender o princípio da noventena para a maioria dos tributos, não excetuou o IPI, que passou a ser o único dos impostos ditos reguladores cujos efeitos das majorações porventura realizadas estão sujeitos a prazo (noventena).
Realizando uma análise comparativa entre as exceções estabelecidas para os princípios da anterioridade anual e nonagesimal, percebe-se que cinco tributos excepcionam concomitantemente os dois postulados. São eles: II, IE, IOF, imposto extraordinário de guerra e empréstimo compulsório decorrente de calamidade pública ou guerra externa.
Referidos tributos, portanto, uma vez majorados ou instituídos, são passíveis de imediata exigência, não havendo que se esperar qualquer prazo para a realização de sua cobrança, tendo em vista que a lei instituidora ou majoradora prontamente incide.
2.4 Distinção entre o princípio da anterioridade anual e o princípio da anualidade
Não há que se confundir o princípio da anterioridade tributária anual com o antigo princípio da anualidade tributária.
Historicamente, a Constituição Imperial de 1824 já fazia referência ao princípio da anualidade, em seu art. 171, ao dispor que as contribuições diretas fossem anualmente estabelecidas pela Assembleia Geral. (HOFFMANN; BERKENBROCK, 2003, online).
Mas foi na Constituição de 1946, mais precisamente, que o princípio encontrou formulação expressa, em seu art. 141, § 34.[6] Segundo essa previsão, a cobrança de tributos em dado exercício financeiro estava condicionada à prévia autorização orçamentária. Essa previsão teria de ser anualmente renovada, daí o nome dado ao princípio.
Dessa forma, cabia ao Poder Legislativo, mediante previsão no orçamento, permitir a cobrança de determinado tributo, tendo o princípio, portanto, “um sentido nitidamente democrático” (MACHADO, 2006, p. 60), considerando-se o caráter de representatividade popular que marca esse Poder. A sistemática funcionava da seguinte forma:
[...] nenhum tributo podia ser exigido sem que a lei instituidora ou majoradora tivesse obtido, antecipadamente, a autorização orçamentária. Assim, em primeiro lugar, publicava-se a lei tributária; após, como conditio sine qua non, obtinha-se a prévia autorização orçamentária; com esta, a lei não mais poderia ser alterada. Diante disso, a arrecadação de um novo tributo ou um aumento dos já existentes, eventualmente não inscritos na lei orçamentária, demandaria a espera do próximo orçamento, a fim de fazer nele constar tais medidas remodeladoras. (SABBAG, 2014, p. 91, grifou-se).
Ainda durante a vigência da Constituição de 1946, na qual estava prevista a regra da anualidade, foram editadas as Súmulas 66 e 67 no STF, elaboradas no ano de 1963. A primeira prescreveu o seguinte: “É legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro”. Dessa forma, passou-se a admitir a cobrança de um tributo, ainda que a sua lei majoradora surgisse posteriormente à lei orçamentária, desde que essa mesma lei fosse anterior ao exercício financeiro.
A Súmula 67, por sua vez, possui o seguinte teor: “É inconstitucional a cobrança do tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro”.
Conforme esclarece Luciano Amaro (2011, p. 145, grifos do autor), “essas duas súmulas praticamente reescreveram o princípio constitucional [da anualidade]. O que passou a ser relevante, para legitimar a aplicação do tributo em cada exercício, é a anterioridade da lei em relação ao exercício [...]”.
Seguindo essa orientação da Suprema Corte, surgiu a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, que suprimiu o princípio da anualidade e, ao mesmo tempo, introduziu o princípio da anterioridade tributária no ordenamento jurídico brasileiro. Por esses motivos, a doutrina costuma apontar que o surgimento do princípio da anterioridade se deu em substituição ao princípio da anualidade.
A Constituição de 1967 reintroduziu o princípio da anualidade no ordenamento, mas por pouco tempo, tendo em vista que a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, novamente o aboliu, dessa vez de forma definitiva. A atual Constituição Federal de 1988 não acolheu esse princípio, pelo menos no que se refere à esfera tributária, consagrando apenas o princípio da anterioridade.
A esse propósito, no entendimento de Hugo de Brito Machado (2004, p. 100), andou mal o legislador constituinte de 1988 ao não restabelecer o princípio da anualidade, tendo em vista ser um “notável instrumento de fortalecimento do Poder Legislativo, de raízes profundamente democráticas”.
Pelo exposto, percebe-se que, a despeito de servirem tanto a anualidade quanto a anterioridade como instrumentos de proteção do contribuinte, não há como confundir os dois princípios.
Enquanto o princípio da anualidade tem estrita ligação com a lei orçamentária, o princípio da anterioridade fica totalmente desvinculado da mencionada lei. (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 212).
A anterioridade anual significa que nenhum tributo será cobrado no mesmo exercício em que foi publicada a lei que o instituiu ou aumentou. Após esse lapso temporal, a cobrança poderá ocorrer, nos anos seguintes, indefinidamente. Já a anualidade é diferente, tendo em vista que, “além da lei de criação ou aumento do imposto [ou de outro tributo], há necessidade de previsão da cobrança no orçamento de cada ano. A previsão de cobrança, na lei orçamentária anual, é indispensável”. (MACHADO, 2006, p. 61).
Ademais, conforme visto, não mais se cogita do princípio da anualidade no Brasil em âmbito tributário, subsistindo apenas o princípio da anterioridade. Repita-se: em âmbito tributário. Na seara do Direito Financeiro, não há dúvidas acerca da existência do princípio da anualidade orçamentária, o qual não se confunde com a anualidade tributária. (HARADA, 2013, p. 77).
Cabe ainda registrar a existência de entendimento doutrinário, embora de forma minoritária, no sentido da sobrevivência da anualidade no sistema constitucional tributário brasileiro.
Os defensores de tal posicionamento sustentam-se na ideia de que a anualidade tributária decorreria da anualidade orçamentária, permanecendo em nosso ordenamento jurídico, ainda que não expressamente prevista na CF/88, tendo em vista conferir maior garantia e proteção aos contribuintes, enquanto limitação constitucional ao poder de tributar. (MACHADO, 2006, p. 61).
2.5 O princípio da anterioridade como direito fundamental do contribuinte
Os direitos fundamentais, embora estejam, em sua maioria, catalogados no art. 5º da Constituição Federal, podem também ser encontrados em dispositivos esparsos do texto constitucional, não havendo qualquer impedimento para isso. O próprio artigo 5º, em seu § 2º, não deixa dúvidas quanto a tal entendimento, à medida em que dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Ora, conclui-se, então, que o rol de direitos fundamentais não é taxativo, sendo perfeitamente possível a existência de outros desses direitos difusamente previstos no texto constitucional. (SAMPAIO, 2010, p. 142).
O princípio constitucional da anterioridade tributária constitui, sem dúvidas, um direito fundamental do cidadão-contribuinte. Sendo uma das limitações constitucionais do poder de tributar, o princípio em questão representa importante recurso protetivo, colocado à disposição do contribuinte pelo legislador constituinte, em face da ingerência do poder estatal em seu patrimônio privado.
Como já se teve a oportunidade de se analisar, a anterioridade tributária possui estreita ligação com o princípio da segurança jurídica, o qual é essencial ao Estado Democrático de Direito. É esse princípio “que lhe serve de apoio e lhe revela as reais dimensões”. (CARRAZZA, 2012, p. 212).
Sendo, portanto, o princípio da anterioridade um instrumento de efetivação da segurança jurídica em matéria tributária, é patente a sua relevância perante a sociedade, de onde advém o seu caráter de fundamentalidade.
Referido entendimento já foi inclusive chancelado pelo STF, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939-7/DF. Nesta ação, cujo relator foi o então Ministro Sydney Sanches, a Suprema Corte apreciou a constitucionalidade da Emenda Constitucional n
º 3/93, a qual estabelecia a não aplicação do princípio da anterioridade anual (art. 150, III, “b”) em relação à instituição do antigo IPMF pela União. Confira-se abaixo trecho da ementa do julgamento:
EMENTA: [...] 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, b e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutaveis (somente eles, não outros): 1. - o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par.2., art. 60, par.4., inciso IV e art. 150, III, b da Constituição); 2. - o princípio da imunidade tributária reciproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par.4., inciso I,e art. 150, VI, a, da C.F.) (STF, ADI 939 DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Sydney Sanches, j. 15/12/1993) (Grifou-se).
Vê-se que o STF reconheceu o princípio da anterioridade como uma garantia individual do contribuinte – e, portanto, garantia fundamental. A decisão acima colacionada é considerada um importante marco em matéria tributária, tendo em vista que, pela primeira vez, o STF conferiu a um princípio tributário caráter de norma inalterável, verdadeira cláusula pétrea, estando, portanto, restrita aos limites impostos pelo art. 60, § 4º[7], da Constituição Federal.
Destarte, daí se concluir pela impossibilidade de vir a surgir emenda constitucional tendente a abolir o princípio da anterioridade, em quaisquer de suas vertentes, uma vez que tal princípio está incluso nas matérias que compõem o núcleo imodificável do texto constitucional.
3 EXCLUSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
Uma vez ocorrido o fato gerador, com a materialização, no mundo dos fatos, da hipótese de incidência prevista em lei, surge a obrigação tributária. Contudo, nesse momento, não pode ainda o Estado exigir do contribuinte a prestação pecuniária correspondente a essa obrigação.
Isso porque a obrigação tributária somente adquire exigibilidade por intermédio da realização do lançamento pela autoridade administrativa, ocasião na qual se dá a constituição do crédito tributário.
Conforme Hugo de Brito Machado Segundo (2012, p. 55), “[...] o lançamento aperfeiçoa a relação tributária preexistente, conferindo-lhe efeitos jurídicos em grau máximo, tornando-se líquida, certa e exigível. A partir de então, a obrigação tributária passa a ser chamada de crédito tributário”.
Representa, portanto, o crédito tributário o momento de exigibilidade da obrigação tributária, consistindo na “formalização da relação jurídica tributária, possibilitando ao Fisco, como sujeito ativo, exigir do sujeito passivo, contribuinte ou responsável, o cumprimento da obrigação tributária principal da qual decorre”. (ROSA JUNIOR, 1997, p. 519).
O Código Tributário Nacional, em seu art. 175, prevê hipóteses nas quais o crédito tributário poderá ser excluído, ficando, então, os contribuintes desonerados de deveres patrimoniais. Trata-se dos institutos da anistia e da isenção.
Por exclusão do crédito tributário, deve-se entender a impossibilidade de sua constituição. Ou seja, uma lei isentiva ou anistiadora obsta a ocorrência do lançamento de dado tributo ou multa, de forma a inviabilizar o nascimento do crédito tributário.
Ambas as hipóteses de exclusão do crédito tributário referem-se apenas à obrigação tributária principal, não atingindo as obrigações tributárias acessórias, as quais permanecem incólumes, de acordo com expressa previsão do art. 175, parágrafo único, do CTN.
À vista disso, “caso haja a concessão de isenção do ICMS (obrigação principal), a norma isentante não implica a dispensa da emissão de nota fiscal (obrigação acessória)”. (SABBAG, 2014, p. 921).
Impende destacar que a anistia e a isenção devem sempre ser veiculadas por meio de lei, em sentido estrito. É isso que prevê o art. 97 do CTN, em seu inciso VI, o qual dispõe que “somente a lei pode estabelecer: as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades”. (Grifou-se).
Referido artigo corporifica o princípio da reserva legal em matéria tributária, também chamado princípio da estrita legalidade ou da tipicidade fechada, estabelecendo matérias que somente podem ser tratadas por meio de lei. Tal princípio é considerado pela doutrina como um corolário do princípio da legalidade, em sentido amplo, previsto no art. 150, inciso I, da CF/88.
Ampliando essa exigência da reserva legal, o art. 150, § 6º, da Constituição Federal assim dispõe:
§ 6.º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g. (Grifou-se).
Dessa forma, para que seja concedida uma isenção ou anistia, exige-se não apenas lei, mas lei específica, que trate exclusivamente do benefício fiscal a ser concedido ou do tributo em questão.
Tal exigência surgiu por meio da Emenda Constitucional nº 3, do ano de 1993, no intuito de impedir prática que se tornou comum no âmbito legislativo, qual seja, instituir benefícios fiscais em leis que tratam de matéria não tributária, com o objetivo de ocultá-los. (ALEXANDRE, 2012, p. 137). Como esclarece Kiyoshi Harada (2011, online):
Durante a vigência da ordem constitucional antecedente era usual as três entidades políticas (União, Estados/DF e Municípios) concederem incentivos, principalmente, os de natureza tributária no bojo de uma lei genérica cuidando de diversas matérias, o que facilitava a ação dos lobistas interessados na redução ou exoneração da carga tributária. Não havia, pois, transparência nesse tipo de renúncia de receita pública, que nem sempre atendia ao interesse público.
A regra constitucional veio, portanto, para “coibir velho hábito que induzia nosso legislador a enxertar benefícios tributários casuísticos no texto de leis, notadamente as orçamentárias, no curso do respectivo processo de elaboração [...]”. (STF, ADI-MC 1379/AL, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 24/04/1996).
Busca-se, dessa maneira, em sentido mais amplo, o combate à renúncia de receitas pelos entes federados, por meio da vedação de lei autorizativa de anistia ou isenção de forma genérica, ou em branco. (ROSA JUNIOR, 1997, p. 590).
Sobre as hipóteses de exclusão, vale ainda ressaltar que apenas o ente federado que detém a competência – constitucionalmente estabelecida – para instituir determinado tributo, ou impor determinada penalidade, terá a possibilidade de isentá-lo ou anistiá-la. Oportunas as palavras de Búrigo (2008, p. 66):
Em função da autonomia de que gozam os entes federados e considerando que a instituição do tributo não se dá pela própria Constituição (como visto, ela distribui as competências aos entes federados para que estes o façam), deduz-se então que o poder de conceder isenções incumbe àquele que institui o tributo respectivo.
Dessa forma, somente a União é competente para instituir isenção de tributo federal, bem como somente aos Estados cabe isentar tributos estaduais, e aos Municípios, tributos municipais.
Nesse sentido, o art. 151, inciso III, da Constituição Federal estabelece ser defeso à União “instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”. Veda-se, portanto, a existência de isenções heterônomas, quais sejam, aquelas concedidas por ente político diverso daquele que detém a competência para instituir o tributo correspondente.
Passa-se agora à análise específica das duas espécies de exclusão do crédito tributário, com especial foco no instituto da isenção.
3.1 Anistia
A anistia é hipótese de exclusão do crédito tributário que atua no campo das penalidades pecuniárias. Dessa forma, uma lei anistiadora existe para impedir a constituição de crédito tributário decorrente de uma multa. Na lição de Hugo de Brito Machado (2006, p. 247):
O cometimento de infração à legislação tributária enseja a aplicação de penalidades pecuniárias, multas, e estas ensejam a constituição do crédito tributário correspondente. Pela anistia, o legislador extingue a punibilidade do sujeito passivo infrator da legislação tributária, impedindo a constituição do crédito.
Funciona, portanto, a anistia como um perdão a ser concedido por lei àqueles que cometeram infrações tributárias, desonerando-os do pagamento das penalidades pecuniárias correspondentes.
O instituto da anistia não pode ser confundido com o da remissão. Sendo uma modalidade de exclusão do crédito tributário, a anistia somente pode ser concedida antes da constituição do crédito relativo à penalidade pecuniária. Se já houver sido realizado o lançamento pelo Fisco, só haverá possibilidade de concessão de remissão, modalidade de extinção do crédito tributário.
Ademais, a remissão pode extinguir o crédito tributário referente tanto à penalidade pecuniária quanto ao próprio tributo, enquanto a anistia exclui apenas o crédito decorrente de penalidades.
Ressalte-se que, segundo o art. 180 do CTN, “a anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede [...]”.
Da análise do dispositivo legal, infere-se que a lei concessiva de anistia não pode ser aplicada às infrações tributárias que ocorram posteriormente à sua entrada em vigor, visto que apenas alcança situações pretéritas, de maneira retroativa.
É possível concluir, ante o exposto, que somente poderão ser beneficiados pelo instituto da anistia aqueles que já tenham cometido a infração tributária e, ainda, que não tenham sido punidos pelo Fisco.
3.2 Isenção
Como ensina Pontes de Miranda (1987, p. 429), o termo “isenção” advém das expressões latinas “exemptio” ou “eximere”, significando tirar, liberar, eximir. Cuida-se, portanto, de instituto ligado à ideia de desobrigação tributária. Serão apreciadas, no presente tópico, algumas das principais questões relativas a essa figura jurídica.
3.2.1 Noções gerais
A isenção, diferentemente da anistia, é instituto que exclui o crédito tributário referente ao próprio tributo, e não à penalidade pecuniária.
Não obstante ambas as hipóteses sejam formas de privilégio fiscal concedidas aos contribuintes, na medida em que exoneram o pagamento do tributo (no caso da isenção) ou da multa (no caso da anistia), a instituição de cada uma delas é justificada em diferentes contextos. Nesse sentido, confira-se a lição de Sabbag (2014, p. 919):
É fato que o motivo que leva o legislador a pretender isentar um tributo não é o mesmo que o move a anistiar uma penalidade. A isenção justifica-se no plano socioeconômico da realidade social que a avoca, enquanto a anistia encontra motivação no intuito do legislador em retirar o timbre de impontualidade do inadimplente da obrigação tributária.
Ao instituir uma isenção, portanto, o legislador encontra-se sustentado por motivos socioeconômicos ou sociopolíticos. Exemplificando, poder-se-ia imaginar a hipótese de concessão de isenções – por lei municipal – a empresas que venham a se instalar no território do município, como uma forma de atrair investimentos.
Ao contrário da anistia, que, conforme visto, tem aplicação retrospectiva, atingindo apenas situações anteriores à lei anistiadora, a isenção produz efeitos prospectivos, na medida em que somente pode abranger fatos geradores posteriores à lei isentiva.
Isso ocorre exatamente em razão de a isenção ser instituto que se refere a tributos, e não a multas, devendo, desta feita, obediência ao princípio da irretroatividade (art. 150, inc. III, al. “a”, CF/88), como qualquer outra lei tributária.
De acordo com os dizeres do art. 177 do CTN, a isenção, em regra, não atinge as taxas e as contribuições de melhoria, bem como não alcança os tributos instituídos depois de sua concessão. Oportuno salientar que referidas regras não são absolutas, uma vez que o próprio texto legal permite disposição expressa de lei em sentido contrário.
No primeiro caso, relativo às taxas e contribuições de melhorias, a não extensão da isenção justifica-se por se tratar de tributos vinculados, com natureza contraprestacional, ou retributiva. Diante de tal natureza, “o sujeito passivo é, portanto, diretamente beneficiado pela situação definida em lei como fato gerador, de forma a tornar regra a não extensão do benefício a tais tributos”. (ALEXANDRE, 2012, p. 471).
No segundo caso, limita-se o alcance da isenção aos tributos já existentes no momento da edição da lei isentiva, não abrangendo aqueles que ainda venham a ser criados, ou seja, tributos novos. Tal regra decorre do fato de ser exigida lei específica (art. 150, § 6º, CF) para a sua instituição, não podendo a isenção genericamente abranger tributos que ainda nem mesmo existem. (ALEXANDRE, 2012, p. 471).
No que concerne à sua natureza jurídica, e, consequentemente, à sua própria conceituação, a isenção suscita vasta divergência doutrinária. Analisar-se-á a seguir construções teóricas que se propuseram a definir o instituto, possibilitando uma melhor compreensão do assunto.
3.2.2 Conceito de isenção
A conceituação das isenções, no âmbito doutrinário, é centro de tormentosa divergência, existindo diversas teorias que se propõem a definir esse instituto e a identificar sua natureza jurídica. Deter-se-á este estudo em duas correntes teóricas principais que abordam o tema, quais sejam: as correntes clássica e moderna.
Tais correntes se diferenciam, basicamente, de acordo com o entendimento acerca da incidência ou não incidência da norma de tributação, no momento da instituição de uma isenção.
De acordo com a doutrina clássica ou tradicional, encabeçada por Rubens Gomes de Souza, a isenção deve ser entendida como a dispensa legal do pagamento de um tributo. Ter-se-ia situação na qual é verificada a ocorrência do fato gerador, concretizando a hipótese legal de incidência, bem como o surgimento da obrigação tributária.
Esse é o entendimento de Amílcar de Araújo Falcão (1960, p. 69). Segundo esse autor, com a isenção, “ocorre o fato gerador: o legislador, entretanto, se limita a determinar a inexigibilidade do débito assim surgido”.
O que se impede, segundo essa corrente doutrinária, é apenas a realização do lançamento, ou seja, a constituição do crédito tributário, por intermédio de um favor legal. Haveria, portanto, primeiramente, a incidência da norma de tributação, e, após, a dispensa do pagamento do tributo por meio de lei.
Assim também se posiciona Rosa Junior (1997, p. 584, grifos do autor):
No conceito clássico isenção significa a dispensa do pagamento do tributo que é devido, uma vez que o fato gerador ocorre, dá-se a incidência tributária, instaura-se a relação jurídica tributária e existe obrigação tributária. Se há incidência, o tributo é devido, mas a lei dispensa o contribuinte do seu pagamento. Assim, o crédito tributário não se constitui, pois o lançamento não se efetiva por ser a isenção causa de exclusão do crédito tributário.
É esse o entendimento que, já há muito tempo, vem sendo adotado pelo STF, conforme se vê nas ementas abaixo colacionadas:
EMENTA: Icm. Isenção. [...] A expressao 'incidira' pressupoe que o estado-membro, como decorre do caput desse artigo 23, tenha instituido, por lei estadual, esse imposto, e nada impede, evidentemente, que ele conceda, também por lei estadual, isenção, que, alias, pressupoe a incidencia, uma vez que ela - no entendimento que e o acolhido por este tribunal - se caracteriza como a dispensa legal do pagamento de tributo devido. Recurso extraordinário não conhecido. (STF, RE 11371/SP, 1ª T., rel. Min. Moreira Alves, j. 26/06/1987) (Grifou-se).
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 268, DE 2 DE ABRIL DE 1990, DO ESTADO DE RONDÔNIA, QUE ACRESCENTOU INCISO AO ARTIGO 4º DA LEI 223/89. INICIATIVA PARLAMENTAR. NÃO-INCIDÊNCIA DO ICMS INSTITUÍDA COMO ISENÇÃO. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA: INEXISTÊNCIA. EXIGÊNCIA DE CONVÊNIO ENTRE OS ESTADOS E O DISTRITO FEDERAL.
[...]
2. A não-incidência do tributo equivale a todas as situações de fato não contempladas pela regra jurídica da tributação e decorre da abrangência ditada pela própria norma.
3. A isenção é a dispensa do pagamento de um tributo devido em face da ocorrência de seu fato gerador. Constitui exceção instituída por lei à regra jurídica da tributação.
4. A norma legal impugnada concede verdadeira isenção do ICMS, sob o disfarce de não-incidência. (STF, ADI 286/RO, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 22/05/2002) (Grifou-se).
Entende, portanto, a Suprema Corte, seguindo a linha de pensamento da doutrina tradicional, que a isenção pressupõe a incidência da norma tributária, enquadrando-a no conceito clássico de “dispensa legal do pagamento de tributo devido”.
Em sentido contrário, a doutrina tributarista moderna apregoa que, na hipótese de instituição de uma isenção, não há a incidência da norma jurídica tributária. Diante disso, restaria impedida a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária.
Para os adeptos dessa corrente, a isenção atuaria no plano normativo, e não no plano fático (TORRES, 2003, p. 273), de forma a impedir a incidência da norma impositiva da tributação. Nessa esteira, impossível seria a constituição do crédito tributário.
Alfredo Augusto Becker (2002, p. 305), contestando a definição clássica, entende que, na hipótese de uma isenção, a norma jurídica de tributação não chega a incidir, por lhe faltar, ou exceder, um dos elementos que compõem a sua hipótese de incidência, necessários à sua realização. Em suas palavras, “a regra jurídica de isenção incide para que a de tributação não possa incidir”.
Continua ainda o referido autor: “A realização da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, faz com que esta regra jurídica incida justamente para negar a existência de relação jurídica tributária”. (BECKER, 2002, p. 306).
José Souto Maior Borges, inspirado nas lições de Becker, igualmente critica o entendimento clássico. Em sua obra “Isenções Tributárias”, a teoria tradicional sofre seu mais forte abalo.
Para Borges (1969, p. 164), não existe obrigação tributária principal na relação jurídica de isenção. A isenção deve ser estudada por seu aspecto mais amplo: o de não incidência. Divide, então, o autor a não incidência em duas espécies:
I) pura e simples, a que se refere a fatos inteiramente estranhos à regra jurídica de tributação, a circunstâncias que se colocam fora da competência do ente tributante;
II) qualificada, dividida em duas subespécies: a) não-incidência por determinação constitucional ou imunidade tributária; b) não-incidência decorrente de lei ordinária – a regra jurídica de isenção (total). (BORGES, 1969, p. 154, grifos do autor).
Consiste, portanto, a isenção, na visão do mencionado autor, em uma hipótese de “não incidência legalmente qualificada”. Esclareça-se: a não incidência, nesse caso, é da norma jurídica de tributação.
Segundo Roque Antonio Carrazza (2012, p. 983, grifos do autor), “soa absurdo que a lei tributária que concede uma isenção dispense o pagamento do tributo. Afinal, a lei de isenção é logicamente anterior à ocorrência do fato que, se ela não existisse, aí, sim, seria imponível”.
Luciano Amaro (2011, p. 309, grifos do autor), criticando a doutrina clássica, defende que “dispensa legal de tributo devido é conceito que calharia bem para a remissão (ou perdão) de tributo, nunca para a isenção. Aplicado à isenção, ele suporia que o fato isento fosse tributado, para que, no mesmo instante, o tributo fosse dispensado pela lei”.
Ante o exposto, pode-se notar que os doutrinadores que se filiam à teoria moderna, criticando a noção de uma “obrigação que não obriga” (TORRES, 2003, p. 274), consideram, em sua maioria, a isenção como uma hipótese de não incidência tributária, criada por meio de lei, portanto, “legalmente qualificada”.[8]
Hugo de Brito Machado (2006, p. 241, grifos do autor), seguindo a linha da doutrina moderna, preconiza que a isenção “exclui o próprio fato gerador. A lei isentiva retira uma parcela da hipótese de incidência da lei de tributação. Isenção, portanto, não é propriamente dispensa de tributo devido”.
Entretanto, diferentemente da maioria dos doutrinadores que adotam a corrente moderna, o referido autor situa a isenção fora do campo da não incidência tributária, distinguindo os dois institutos. Enquanto a não incidência seria tudo aquilo que não está abrangido pela hipótese de incidência, a isenção configuraria uma exceção à regra jurídica de tributação.
Segundo o seu pensamento, a isenção não se confundiria nem mesmo com a denominada não incidência juridicamente qualificada,
[...] por ser [esta última] mera explicitação que o legislador faz, para maior clareza, de que não se configura, naquele caso, a hipótese de incidência. A rigor, a norma que faz tal explicitação poderia deixar de existir sem que nada se alterasse. Já a norma de isenção, porque retira parcela da hipótese de incidência, se não existisse o tributo seria devido. (MACHADO, 2006, p. 242).
Impende salientar que parcela da doutrina entende que o Código Tributário Nacional teria acolhido a concepção clássica de isenção – dispensa legal do pagamento de tributo –, tendo em vista ter o mencionado diploma legal classificado o instituto como uma modalidade de exclusão do crédito tributário. Poder-se-ia supor, nesse sentido, que, ao fenômeno da isenção, estaria subjacente uma obrigação tributária, cujo crédito teria sido dispensado. (AMARO, 2011, p. 309).
Entretanto, o próprio Rubens Gomes de Souza, grande defensor da teoria clássica, e autor do anteprojeto do qual se originou o CTN, reconheceu que o Código se manteve neutro no tocante a essa discussão. Afinal,
[...] pela leitura do CTN, tanto se pode afirmar que a isenção exclui o crédito tributário porque dispensa o pagamento daquele que já se formou pela ocorrência do fato gerador, como se pode dizer que a exclusão decorre da circunstância de que o crédito não chegou a se constituir, porque a norma impositiva estava suspensa. (TORRES, 2003, p. 274).
No mesmo sentido, oportunas as palavras de Borges (1969, p. 167), entendendo que “incluir a isenção entre as causas de exclusão do crédito não implica necessariamente em excluí-la das hipóteses de inexistência da própria obrigação tributária”.
Ressalte-se ainda que, além das teorias aqui expostas, outras subsistem com o mesmo objetivo de desvendar a natureza jurídica das isenções, o que demonstra quão árdua é a conceituação desse instituto em âmbito doutrinário.
3.2.2.1 Uma análise à luz da Teoria Geral do Direito
Os tributaristas, em geral, costumam se debruçar sobre o debate acerca da natureza jurídica das isenções, analisando o problema da incidência ou não incidência da norma impositiva tributária, sob uma perspectiva limitada ao âmbito do Direito Tributário.
Entretanto, convém proceder-se a uma análise do tema sob o prisma da Teoria Geral do Direito, por se ter em questão conceitos típicos dessa área jurídica.
A norma isentiva, ao excluir determinadas pessoas, coisas ou situações do alcance do tributo, pode ser considerada, em um raciocínio puramente lógico, como uma norma mais específica, em comparação com a norma impositiva tributária, mais ampla, a qual determina a tributação da generalidade dessas pessoas, coisas ou situações.
Tem-se, portanto, um aparente conflito entre uma norma mais geral, obrigando o contribuinte (a norma de tributação), e uma norma mais específica, desonerando o contribuinte (a norma de isenção), caracterizando-se uma situação de antinomia.
Segundo Adrian Sgarbi (2007, p. 270), “atribui-se o nome de ‘antinomia’ à situação em que para um mesmo caso concreto a ordem jurídica apresenta determinações diversas e opostas”. Trata-se, portanto, de uma contradição normativa.
Contudo, esse conflito instaurado entre as normas, como dito acima, é apenas aparente, tendo em vista que “o ordenamento jurídico constitui um sistema de normas, isto é, um conjunto coerente e sem contradições”. (SGARBI, 2007, p. 267).
Norberto Bobbio, em sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”, propõe três critérios para a solução de antinomias, quais sejam: o critério cronológico, o critério hierárquico e o critério da especialidade.
No caso específico de uma antinomia envolvendo uma norma geral e uma norma especial, como ocorre com a norma de tributação e a norma de isenção, o conflito pode ser resolvido mediante a aplicação do critério da especialidade – lex specialis derogat generali –, segundo o qual a norma mais específica deve prevalecer em detrimento da norma geral.
Nas palavras de Bobbio (1995, p. 96), pode ser considerada lei especial aquela “que subtrai de uma norma uma parte da sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória)”.
Ora, esse é exatamente o papel realizado pela norma de isenção em face da norma impositiva de tributação, o que autoriza o caráter de especialidade da primeira.
Confira-se a lição de Hugo de Brito Machado (2013, online) acerca do tema:
A norma que concede isenção é sempre mais específica do que a norma de tributação. Seu suporte fático é necessariamente menos abrangente. Daí porque a norma de tributação continua plenamente vigente. Apenas não incide sobre aquela parte do seu suporte fático abrangida pela norma de isenção.
Nesse sentido, oportuna a lição de Bobbio (1995, p. 96, grifos do autor), esclarecendo que “quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial. Por efeito da lei especial, a lei geral cai parcialmente”.
Diante dessas considerações, pode-se concluir que a norma isentiva, por ser mais específica, prevalece sobre a norma de tributação, impedindo a sua incidência naquilo que com ela for contrário, embora não negue a sua vigência. A lei tributária geral continua incidindo no tocante aos casos que não sejam incompatíveis com a lei isentiva.
3.2.3 Distinção entre isenção e imunidade
Convém fazer importante distinção entre as figuras da isenção e da imunidade.
Independentemente do conceito de isenção que se deseje adotar, impreterivelmente haverá uma clara e inegável diferença entre os referidos institutos: enquanto a isenção decorre da lei, a imunidade sempre estará prevista no texto da Constituição Federal.
As imunidades, juntamente com os princípios tributários, constituem as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Podem ser definidas como delimitações negativas de competência tributária feita pelo legislador constituinte. Da mesma forma que a Constituição Federal atribui competência aos entes federados para a instituição de tributos, ela limita, em determinados casos, tal competência, impedindo a incidência da norma de tributação sobre eles.
Caracteriza-se a imunidade, portanto, como uma forma de não incidência da lei tributária, a qual é impedida de produzir seus efeitos pela imposição de um obstáculo constitucional. Daí ser comumente denominada como hipótese de não incidência constitucionalmente qualificada. (BORGES, 1969, p. 208).
Segundo Denise Lucena Rodrigues (1995, p. 27), “a diferença básica entre imunidade e as demais formas exonerativas, é que naquela há um impedimento permanente e superior, emanado do texto constitucional, impedindo qualquer ingerência estatal no âmbito por ela traçado”.
Costuma-se dizer na doutrina que a imunidade e a isenção distinguem-se em função do plano em que atuam. Enquanto a primeira operaria no plano da delimitação da competência tributária, a segunda atuaria no plano do exercício da competência.
E é exatamente em consequência dessa ideia – de que a imunidade delimita uma competência constitucionalmente atribuída – que se entende que ela somente pode estar prevista no texto constitucional. Afinal, “não se pode criar exceções a uma regra numa norma de hierarquia inferior àquela que estatui a própria regra”. (ALEXANDRE, 2012, p. 146).
Em contrapartida, a isenção, atuando no campo do exercício da competência tributária, e não da sua delimitação, deve estar sempre prevista em lei.
Uma outra distinção que pode ser feita em relação aos dois institutos em tela é referente à sua interpretação.
De acordo com o art. 111, inciso I, do CTN, a legislação tributária que disponha sobre causas de exclusão do crédito tributário – entre as quais, como é sabido, inclui-se a isenção – deve ser interpretada literalmente. Dessa forma, a isenção não comporta interpretação ampliativa e nem a utilização de métodos integrativos, como, por exemplo, a analogia.
Segundo Rubens Gomes de Sousa, tal regra se justifica por tratar de hipótese que constitui exceção a regras gerais de Direito Tributário, não podendo, portanto, “ser estendida por via interpretativa para além do alcance que o legislador lhe quis dar”. (SOUSA et al., 1975, p. 379).
Por outro lado, entende a doutrina, com amparo da jurisprudência do STF, que a imunidade é passível de ampla interpretação, tendo em vista ser figura jurídica que, “exatamente porque estabelecida em norma residente na Constituição, corporifica princípio superior dentro do ordenamento jurídico, a servir de bússola para o intérprete, que ao buscar o sentido e o alcance da norma imunizante não pode ficar preso à sua literalidade”. (MACHADO, 2006, p. 242).
Nesse sentido, já decidiu a Suprema Corte, por exemplo, ser a imunidade tributária recíproca extensível a empresas públicas ou sociedades de economia mista que prestem serviço público de caráter obrigatório e de forma exclusiva, como a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) [9], mesmo diante do fato de não terem sido incluídas na redação do § 2º do art. 150 da CF/88[10].
Em alguns de seus dispositivos, o texto constitucional refere-se, equivocadamente, à expressão “isenção”, quando, em verdade, exatamente por terem sede constitucional, trata-se de hipóteses de autênticas imunidades.
São três as situações em que isso ocorre, quais sejam: art. 5º, LXXIII, referente à não exigência do pagamento de custas judiciais e de ônus da sucumbência quando da propositura de ação popular; art. 184, § 5º, o qual impede a instituição de impostos sobre as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária; e art. 195, § 7º, que assegura a não sujeição das entidades beneficentes de assistência social às contribuições para a seguridade social.
Onde a Constituição diz “isentas” ou “isento”, deve-se entender que são “imunes”.
Da mesma forma, se uma eventual lei infraconstitucional vier a prescrever uma dita hipótese de tributo “imune”, deve-se entender que se trata de um caso de isenção, já que apenas em âmbito constitucional se permite o estabelecimento de imunidades. (MACHADO, 2006, p. 242).
3.2.4. Distinção entre isenção e alíquota zero
Feita a diferenciação para com a imunidade, cabe agora realizarmos a distinção entre isenção e alíquota zero, instituto que também excepciona a regra de pagamento do tributo.
Conforme já visto, quando da análise do conceito de isenção, existem duas principais correntes doutrinárias que se propõem a definir o instituto. A primeira, corrente clássica, entende que a isenção é a mera dispensa do pagamento do tributo devido, havendo a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária.
A segunda corrente, ou corrente moderna, por sua vez, considera que a isenção impede a incidência da norma de tributação, não ocorrendo o fato gerador e, muito menos, o nascimento da obrigação tributária.
Pois bem, independentemente do conceito de isenção que se queira adotar, a diferença para a chamada “alíquota zero” é evidente. Nesse sistema, não há dúvidas acerca da incidência da norma de tributação, com a consequente ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação. O crédito tributário é constituído por meio do lançamento. O que ocorre é apenas a nulificação de um dos elementos que compõem o fato gerador: a alíquota, que será igual a zero.
Ricardo Lobo Torres (2003, p. 280), o qual se filia ao conceito moderno de isenção, preleciona: “A isenção, como já visto, é uma autolimitação do poder tributário e opera pela suspensão da eficácia da norma de incidência. Na alíquota zero a norma de incidência permanece íntegra e há apenas a suspensão de um dos seus elementos quantitativos”. No caso, esse elemento é a alíquota.
Rosa Junior (1997, p. 593), embora seja um defensor da corrente clássica, chega à mesma conclusão: “[...] o ponto essencial é que a isenção afeta todos os elementos estruturais da obrigação, não permitindo a constituição do crédito tributário, enquanto no sistema de alíquota zero somente ocorre supressão de um dos elementos quantitativos, a alíquota”.
A diferença básica entre os dois institutos em comento, portanto, reside no fato de se ter ou não a realização do lançamento, constituindo o crédito tributário. No caso da alíquota zero, o lançamento fiscal é efetivamente realizado, enquanto no caso da isenção o lançamento é inibido.
Outra distinção que pode ser percebida entre os dois institutos é relativa ao modo como são instituídos. Enquanto as isenções, conforme já analisado, só podem ser instrumentalizadas por meio de lei, “os produtos ou operações tributadas à alíquota zero não o são por expressa disposição legal, mas ganham tal condição por ato do Poder Executivo”. (BÚRIGO, 2008, p. 95).
As situações de alíquota zero geralmente são instituídas no âmbito dos chamados tributos regulatórios, com finalidade precipuamente extrafiscal, como os impostos de importação (II) e exportação (IE). É comum, por exemplo, que a alíquota do IE de grande parte das mercadorias seja reduzida a zero, como forma de estimular as exportações do país. (ALEXANDRE, 2012, p. 144).
3.2.5 Isenções onerosas e não onerosas
Dentre as possíveis classificações relativas às isenções, destacar-se-á, no presente trabalho, aquela que as divide em onerosas e não onerosas.
Seguindo o entendimento adotado pelo professor Eduardo Sabbag, para que se possa compreender o tema, é necessário se ter em mente outros dois critérios classificatórios, os quais, uma vez somados, comporão a mencionada divisão. Trata-se dos critérios de classificação relativos à sua natureza e ao seu prazo.
Quanto à natureza, as isenções podem ser catalogadas como condicionadas e incondicionadas.
Podem ser entendidas como condicionadas aquelas isenções que, para que sejam concedidas e fruídas, sujeitam os interessados ao preenchimento de determinadas condições estabelecidas na lei (AMARO, 2011, p. 315). São estabelecidos, portanto, direitos e obrigações tanto para o Fisco quanto para o contribuinte.
Oportunas são as palavras de Rosa Junior (1997, p. 586):
A isenção condicionada corresponde a expediente comum de política fiscal utilizado pelo Estado visando a atrair a iniciativa privada para prestação de serviços que entende de natureza relevante, ou objetiva atrair indústrias a se localizarem em determinadas regiões, em contrapartida do oferecimento da vantagem da isenção.
Incondicionadas, em sentido oposto, são as isenções que não dependem do implemento de nenhum tipo de contraprestação por parte do contribuinte. A lei isentiva simplesmente concede o benefício, por mera liberalidade fiscal, sem estabelecer qualquer condição aos interessados.
No que se refere ao prazo, as isenções são divididas entre aquelas por prazo certo e aquelas por prazo indeterminado.
Isenções por prazo certo, como o próprio nome já revela, são aquelas em que a lei estabelece previamente um determinado lapso temporal para a sua vigência. Uma vez esgotado o período estabelecido, a isenção concedida não mais produzirá efeitos para o seu beneficiário.
Em contrapartida, quando a lei instituidora do benefício não estabelece um período de tempo determinado para a sua vigência, tem-se as denominadas isenções por prazo indeterminado. Trata-se, portanto, daquelas isenções que produzem seus efeitos indefinidamente, sem a previsão de um termo final.
Isso não significa, entretanto, que tais isenções vigorariam ad aeternum, sem possibilidade de revogação, como se terá a oportunidade de analisar mais adiante.
Pois bem, considerando as classificações acima explanadas, pode-se agora passar ao exame da distinção entre isenções onerosas e não onerosas.
Isenções onerosas podem ser entendidas como aquelas que são concedidas sob determinadas condições e por prazo certo. Tem-se aqui, portanto, a junção das duas classificações acima delineadas, sendo exigidos dois requisitos cumulativos para que uma isenção possa ser caracterizada como onerosa, quais sejam: o condicional e o temporal. (SABBAG, 2014, p. 927).
Oportuno ressaltar que boa parte da doutrina considera a expressão “isenção onerosa” como sinônima de “isenção condicionada”. Opta-se, contudo, por aqui perfilhar o entendimento de Eduardo Sabbag, que compreende a onerosidade como o somatório dos critérios condicional e temporal, conforme exposto.
São consideradas não onerosas, por sua vez, as isenções que não preenchem os dois requisitos necessários à caracterização da onerosidade. São aquelas classificadas como incondicionadas ou por prazo indeterminado, ou seja, aquelas nas quais a lei isentiva não impõe qualquer condição para a sua fruição, ou não estabelece um termo final para sua vigência.
3.2.6 Revogação de isenções
Nas palavras de Pontes de Miranda (1987, p. 434), “revogar é retirar a voz”. A revogação é o instituto por meio do qual uma norma jurídica perde a sua vigência, ficando sem obrigatoriedade.
É figura jurídica que “implica a cisão da vigência de determinada norma jurídica: uma vez revogada, a norma passa a não ter mais força para reger os fatos jurídicos que relatem um período temporal do evento posterior à vigência da norma revogatória”. (GRIZ, 2012, p. 260).
A doutrina costuma falar em duas espécies de revogação, de acordo com a sua abrangência: a ab-rogação ou a derrogação. A primeira ocorre quando se tem a revogação de todo o conteúdo da norma legal, ou seja, a supressão total da norma. A segunda implica supressão apenas parcial.
No campo das isenções tributárias, o art. 178 do Código Tributário Nacional estabelece regra acerca de sua revogabilidade, nos seguintes termos:
Art. 178. A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104.
Considerando os dizeres insertos no dispositivo, fácil perceber que o legislador estabeleceu, como regra geral, a possibilidade de revogação e modificação das isenções, a qualquer tempo, desde que realizadas por meio de lei. Admite-se, portanto, que uma isenção seja ab-rogada (totalmente revogada), ou derrogada (parcialmente revogada), ao alvitre do legislador. (CARVALHO, 2011, p. 577).
Com efeito, do mesmo modo que ocorre com a instituição de uma isenção, somente a lei é instrumento hábil para a sua revogação.
Na visão de Ricardo Lobo Torres (2003, p. 282), a revogação de uma isenção acarreta a reaquisição da eficácia da norma impositiva de tributação, a qual havia sido suspensa por força da lei isentiva. Luciano Amaro (2011, p. 311) preleciona que a revogação da norma isentiva equivale à edição de norma de incidência tributária.[11]
Seja como for, uma vez revogada a norma isencional, surge para o Fisco o direito de cobrar o tributo antes isento, não podendo mais o contribuinte se furtar do dever de pagá-lo.
Muito embora seja admitida a revogabilidade de uma isenção como regra geral, o texto legal estabeleceu exceção, de forma a existirem certas isenções que não passíveis de serem revogadas, ainda que por meio de lei.
Trata-se das isenções concedidas “por prazo certo e em função de determinadas condições”. Ao utilizar essa expressão, fica claro que o legislador fez referência às isenções onerosas, já analisadas no presente trabalho: aquelas que são, concomitantemente, condicionadas e temporais.
O Supremo Tribunal Federal já há muito tempo adota esse entendimento, tendo, inclusive, consubstanciando-o na Súmula nº 544, de 1969, com o seguinte teor: “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas”.
Ressalte-se que a redação original do art. 178 do CTN definia, como exceção à regra da revogabilidade, a isenção concedida por prazo certo ou em função de determinadas condições. A Lei Complementar nº 24, de 1975, contudo, alterou o texto legal, substituindo o termo “ou” pelo vocábulo “e”.
À vista disso, após a mudança implementada pela referida lei complementar, passou a ser inegável a exigência dos dois requisitos, de forma cumulativa, devendo ser a isenção, além de condicionada, a prazo certo.
Com efeito, não bastaria ser a isenção condicionada, independentemente de ser ou não por prazo certo, para que ficasse impedida a sua revogação. Tratando-se de caso de isenção concedida sob determinadas condições, mas sem determinação de prazo, a possibilidade de revogação deve ser reconhecida.
Afinal, não se poderia admitir que um benefício concedido por prazo ilimitado pudesse vincular permanentemente o Fisco, tendo em vista que “o princípio da preponderância do interesse público sobre o privado impede que a Administração se sujeite ao cidadão por tempo indeterminado. O máximo que pode haver é a sujeição temporária”. (BARBOSA SOBRINHO; JESUS; et al, 2011, online).
Dessa maneira, apenas as isenções concedidas por prazo determinado – e sob certas condições – têm sua revogação obstada. São esses os dois requisitos caracterizadores da onerosidade de uma isenção.
Entende-se que, nesses casos de isenções onerosas, o benefício é incorporado ao patrimônio do contribuinte, gerando direito adquirido, de forma a só se admitir a sua supressão, antes do fim de seu prazo, se houver o descumprimento pelo contribuinte da condição estabelecida na lei isentiva. (ROSA JUNIOR, 1997, p. 594).
Na visão Pontes de Miranda (1987, p. 434, grifos do autor), a regra referente à irrevogabilidade, apesar de explícita no art. 178 do CTN, nem precisaria estar na lei escrita, pois “quem fala de prazo a favor de alguém atribui direito. Desde o dia da promessa há o direito adquirido”.
De fato, não se poderia tolerar a revogação nessas situações de concessão de isenções onerosas, tendo em vista que a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXVI, traz significativa proteção ao direito adquirido, ao estabelecer que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Tal disposição ostenta, inclusive, o caráter de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, da CF/88).
Conveniente se faz o exemplo utilizado por Ricardo Alexandre (2012, p. 472):
A título de exemplo, imagine-se uma lei que conceda isenção de ICMS por dez anos (prazo certo) para as empresas que se instalarem no interior de Pernambuco e produzam mamona destinada à utilização no processo de produção de biodiesel (condições). A empresa que tenha cumprido os requisitos durante a vigência da lei concessionária tem direito adquirido à isenção, que não pode ser revogada.
Hugo de Brito Machado (2006, p. 244) entende que se trata de situações em que, muitas vezes, o contribuinte é incentivado, diante do benefício isencional, a se envolver com atividades que normalmente não desenvolveria, podendo sofrer graves prejuízos se tal benefício lhe for suprimido. Aduz o referido autor que, “nestes casos, a retirada da isenção representaria um ludíbrio, sendo, portanto, inadmissível”.
No mesmo sentido, confira-se os esclarecimentos de Borges (1969, p. 96):
Se nessas circunstâncias fosse juridicamente possível a cessação de plano da fruição do benefício fiscal, restabelecido total ou parcialmente o ônus da tributação, ninguém arriscaria seu futuro financeiro; ninguém acudiria aos acenos do Estado, através da legislação de incentivos fiscais, particularmente em matéria de isenções.
Dessa forma, entende-se que não podem as isenções onerosas ser extintas antes do prazo assinalado na lei isentiva, já que protegidas pelo instituto do direito adquirido, a não ser que haja o descumprimento pelo contribuinte das condições impostas para a sua fruição.
Nesse tocante, cabe ainda ressaltar a previsão constante no § 2º do art. 41 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Confira-se o teor do dispositivo:
Art. 41. Os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliarão todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes Legislativos respectivos as medidas cabíveis.
§ 2º - A revogação não prejudicará os direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela data, em relação a incentivos concedidos sob condição e com prazo certo.
O comando legal acima reproduzido assegura aos contribuintes proteção quanto à revogação de incentivos fiscais – entre os quais se incluem as isenções – anteriores à Constituição Federal de 1988, desde que concedidos sob condição e com prazo certo. Confirma, portanto, o caráter de irrevogabilidade das isenções onerosas nos mesmos moldes previstos pelo art. 178 do CTN, vale dizer, com a exigência cumulativa dos requisitos condicional e temporal.
Com essa previsão, nota-se um acentuado fortalecimento do direito adquirido do contribuinte, o qual recebeu proteção inclusive do legislador constituinte originário. Nas palavras de Hugo de Brito Machado Segundo (2013, p. 389), “até mesmo o Poder Constituinte originário, que ‘tudo pode’, respeitou o direito adquirido de quem obteve isenções onerosas e a prazo certo antes da CF/88”.
O dispositivo em comento, como visto, reforça a impossibilidade de revogação de isenções onerosas antes do término do prazo para o qual foram concedidas. Quanto às isenções ofertadas antes da vigência da CF/88, essa impossibilidade é garantida pelo art. 41, § 2º, do ADCT. Já no que concerne às isenções posteriores à atual Carta Magna, a proteção ao direito adquirido fica por conta do art. 178 do CTN.
Em sentido oposto, no que tange às isenções não onerosas, não há que se falar em direito adquirido do contribuinte. A extinção de uma isenção depende apenas da livre apreciação do legislador, por motivos de conveniência e oportunidade: “se a ele não se configura mais conveniente ou oportuno perseverar a isenção, pura e simplesmente revoga-a”. (BORGES, 1969, p. 96).
Um outro aspecto que merece ser destacado quanto ao tema é a necessária distinção que deve ser feita entre a revogação da isenção onerosa e a revogação da lei isentiva. O que se proíbe é apenas a revogação do próprio benefício isencional, mas nunca a revogação da lei que o concede.
Admitir-se o contrário seria incorrer em patente inconstitucionalidade, tendo em vista que não se pode impedir o Poder Legislativo de revogar uma lei, sob pena de ferir a independência expressamente assegurada pela Constituição Federal a esse poder.[12]
Dessa forma, pode-se imaginar a hipótese de ser concedida uma isenção onerosa e, no curso do seu período de vigência, ocorrer a revogação da lei que a veicula. Nesse caso, “todos aqueles que experimentavam o benefício antes da revogação, tendo cumprido os requisitos que o legitimam a tanto, deverão manter-se fruindo a benesse legal, pelo prazo predeterminado, mesmo após a data de revogação da norma”. (SABBAG, 2014, p. 927).
De modo diverso, Luiz Emygdio F. da Rosa Junior (1997, p. 594) entende que, em caso de revogação da lei isentiva, o benefício também seria revogado, devendo o contribuinte ser indenizado pelos prejuízos que tenham sido ocasionados com a dita revogação.
Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 577) partilha do mesmo entendimento, ao admitir que as isenções onerosas, em nome do interesse público, poderiam ser revogadas, desde que fosse concedida ao contribuinte justa indenização pelos prejuízos do inadimplemento contratual.
No entanto, esse posicionamento, que acaba por relativizar a irrevogabilidade de isenções onerosas prevista no art. 178 do CTN, não prevalece nos dias atuais.
4 A RELAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE E A REVOGAÇÃO DE ISENÇÕES NÃO ONEROSAS
Convém agora averiguarmos a relação existente entre a revogação de uma isenção não onerosa e o princípio da anterioridade tributária, buscando descobrir se deve ou não haver observância a esse princípio.
4.1 Considerações iniciais
Conforme já analisado, embora o ordenamento jurídico proíba a revogação das chamadas isenções onerosas – uma vez que estas se incorporam ao patrimônio do contribuinte, gerando direito adquirido –, é plena a possibilidade de revogação das isenções não onerosas.
Como se trata de benefícios que são concedidos pelo Poder Público sem que se exija qualquer contraprestação por parte dos contribuintes, ou sem que se estabeleça um prazo determinado para a sua vigência, não há que se falar, nesses casos, em direito adquirido, não havendo impedimento para que ocorra a revogação.
É, portanto, justamente o caráter de não onerosidade dessas isenções que conduz à admissão de sua revogabilidade. Frise-se que tal possibilidade de revogação está condicionada à existência de uma lei que a veicule.
Pois bem, diante de uma situação concreta de revogação de isenção não onerosa, não restam dúvidas de que o tributo poderá novamente ser cobrado pelo Fisco. Surge, contudo, a indagação acerca do momento em que essa cobrança poderá ser realizada. Aí reside a discussão acerca da necessidade ou não de obediência ao princípio constitucional da anterioridade tributária.
Em outras palavras, sobrevindo uma lei revogadora de determinado benefício isencional (não oneroso), poderá haver a cobrança imediata do tributo que até então estava acobertado pela isenção, ou, de modo contrário, tal cobrança só poderá ser implementada após a observância do lapso temporal da anterioridade tributária?
É esse questionamento, objeto de árdua divergência doutrinária e jurisprudencial, que será debatido no presente capítulo. A abordagem, é claro, será especificamente voltada às isenções não onerosas, tendo em vista o já comentado caráter de irrevogabilidade das isenções onerosas, o qual repele qualquer indagação acerca do princípio da anterioridade.
4.2 A previsão do Código Tributário Nacional: o art. 104
O art. 178 do Código Tributário Nacional, já analisado, que estabelece a regra relativa à possibilidade de revogação das isenções não onerosas, faz expressa referência ao art. 104, inciso III, do mesmo diploma legal, determinando a sua observância. Observe a redação desse dispositivo:
Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda:
I - que instituem ou majoram tais impostos;
II - que definem novas hipóteses de incidência;
III - que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178. (Grifou-se).
O comando legal acima reproduzido, alvo de muita discussão doutrinária, surgiu para explicitar o conteúdo do princípio constitucional da anterioridade tributária, estabelecendo os “vários modos pelos quais pode manifestar-se a instituição ou majoração de tributos”. (AMARO, 2011, p. 147, grifos do autor).
Em seu inciso III, o dispositivo relaciona o princípio da anterioridade tributária anual, ou de exercício, à extinção ou redução de isenções, determinando a sua obediência, exceto no caso de a lei dispor de forma mais benéfica ao contribuinte.
Para que se possa melhor compreender esse comando legal, e as discussões que pairam sobre ele, é necessário fazer uma breve análise do cenário de seu surgimento.
O referido artigo 104 foi elaborado sob a vigência da Emenda Constitucional nº 18, de 1965, a qual alterou a Constituição de 1946. Essa emenda foi responsável por introduzir o princípio da anterioridade tributária em nosso ordenamento jurídico, restringindo-o aos impostos incidentes sobre o patrimônio ou a renda. Daí a redação do art. 104, com vistas a regular o mencionado princípio, referir-se apenas a esses impostos. (MACHADO, 2006, p. 113).
Segundo a classificação constante do próprio CTN, os impostos sobre o patrimônio ou a renda são os seguintes: ITR, IPTU, ITCMD, ITBI e IR. Podem ainda ser acrescidos a essa lista o IPVA e o IGF, os quais não foram regulados no CTN.
Somente com o advento da EC nº 1/69, já sob a égide da Constituição de 1967, o princípio da anterioridade foi estendido aos demais tributos, com a previsão de algumas exceções, fórmula mantida pela atual Constituição Federal.
Para parte da doutrina, o art. 104 estaria, em verdade, revogado, não tendo sido recepcionado pela Constituição de 1988. Isso porque o princípio da anterioridade tributária, em sua concepção atual, refere-se a todos os tributos (com algumas expressas exceções), e não apenas aos impostos, muito menos apenas aos impostos sobre o patrimônio ou a renda.
Além disso, a atual previsão constitucional da anterioridade tributária, segundo entendimento majoritário, faz alusão ao diferimento da produção de efeitos da lei instituidora ou majoradora de tributos, ou seja, à sua eficácia, e não à sua entrada em vigor, como prevê o art. 104.
Diferentemente, a doutrina majoritária[13] entende que, embora não tenha sido revogado, o dispositivo do CTN deve receber uma nova interpretação, abrangendo os demais tributos, de forma a se adaptar ao disposto no texto constitucional de 1988. De acordo com esse entendimento, a referência à vigência da lei, ao invés de sua eficácia, seria apenas uma atecnia legislativa, como tantas outras existentes em nosso ordenamento.
Nessa esteira, Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 578) esclarece que “a restrição [da regra do art. 104 aos impostos sobre o patrimônio e a renda] prevaleceu apenas até o início da vigência da Carta de 1967, quando o constituinte retomou, com entusiasmo, a linha de primazia da anterioridade. A partir de então o âmbito de abrangência do citado art. 104, III, passou a ser pleno, estendendo-se a qualquer espécie de tributo”.
Luciano Amaro (2011, p. 313), no mesmo sentido, considera que “aquilo que, na época, era aplicável apenas aos tributos sobre renda e patrimônio hoje deve ser entendido como abrangente de todos os tributos protegidos pelo princípio da anterioridade”.
É esse também o entendimento adotado por Hugo de Brito Machado (2013, online):
[...] a interpretação de todo o art. 104 [...] há de respeitar o princípio hierárquico e para tanto há de ser conforme com a Constituição, que consagra o princípio da anterioridade para os tributos em geral, com as ressalvas que estabelece, e não apenas para os impostos sobre o patrimônio e a renda.
Na visão desse autor, o art. 104 teria um efeito meramente didático, tendo em vista que os preceitos nele contidos teriam que ser obedecidos mesmo se o dispositivo não existisse, por força da Constituição Federal. (MACHADO, 2013, online).
De acordo com a tese prevalente na doutrina, portanto, pode-se concluir que o Código Tributário Nacional impõe a observância do princípio da anterioridade tributária anual quando da revogação de uma isenção, independentemente da espécie tributária em questão.
Impende ressaltar que o próprio preceito legal traz duas ressalvas a essa regra.
A primeira refere-se aos casos em que a lei revogadora da isenção estabelecer disposição mais benéfica ao contribuinte, ou seja, quando assegurar um marco temporal mais distante que o primeiro dia do exercício seguinte ao da publicação da lei, aumentando a proteção ao contribuinte.
A segunda ressalva consiste na referência feita no comando legal à observância do disposto no art. 178. Tal referência diz respeito às isenções onerosas, concedidas sob determinadas condições e por prazo determinado, as quais são irrevogáveis.
A despeito do entendimento da doutrina majoritária, o Supremo Tribunal Federal adotou posição no sentido de que o comando inserto no art. 104, inciso III, não se aplicaria ao ICMS, vez que estaria restrito aos impostos sobre o patrimônio e a renda, o que resultou na edição da Súmula nº 615, como será melhor explicitado adiante.
Apenas a título de complementação, cabe ainda mencionar a existência de um outro entendimento doutrinário acerca do art. 104, com menor força, que considera que o dispositivo, exatamente por se referir à vigência da lei, e não à sua produção de efeitos, estaria estipulando uma nova garantia ao contribuinte, além da anterioridade, garantia esta que, aí sim, somente seria aplicável aos impostos sobre o patrimônio ou a renda. (ALEXANDRE, 2012, p. 111).
4.3 A jurisprudência do STF acerca do tema
O Supremo Tribunal Federal, adotando posição contrária à da doutrina majoritária, vem firmando entendimento no sentido da não observância do princípio constitucional da anterioridade tributária na hipótese de revogação de isenções não onerosas.
Entende, portanto, que, ocorrendo a revogação de uma dada isenção por lei, o tributo respectivo será prontamente exigível, podendo o contribuinte, antes beneficiado pela norma isentiva, ser imediatamente cobrado pelo Fisco, não havendo que se falar em qualquer lapso temporal a ser respeitado.
O fundamento dessa concepção decorre do conceito de isenção adotado pela Suprema Corte, na linha da teoria clássica capitaneada por Rubens Gomes de Souza, como já se teve a oportunidade de analisar, o qual considera a isenção como a dispensa legal do pagamento de tributo devido.
Sendo, portanto, a isenção um mero favor legal que obsta a constituição do crédito tributário, não impedindo a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária, na visão do STF, a revogação desse favor legal não pode ser equiparada à instituição, ou mesmo majoração, do tributo.
Isso porque a norma de tributação já teria incidido, de forma que o tributo já existiria. Apenas o seu pagamento teria sido dispensado pela lei isentiva, por meio do impedimento da realização do lançamento. Dessa forma, uma vez extinta a isenção, o tributo voltaria imediatamente a ser devido, podendo ser prontamente cobrado, ainda que no mesmo exercício financeiro em que ocorreu a revogação, ou antes do período de noventena.
Observe a jurisprudência do STF nesse sentido, apresentada em ordem cronológica:
EMENTA: ICM. ISENÇÃO NÃO ONEROSA. REVOGAÇÃO. IMEDIATA EFICACIA E EXIGIBILIDADE DO TRIBUTO. Inaplicação do princípio constitucional da anualidade. Recurso extraordinário conhecido pelo permissivo constitucional da alinea 'd', mas desprovido. (STF, RE 97482/RS, 1ª T., rel. Min. Soares Munoz, j. 26/10/1982).
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO: REVOGAÇÃO. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE. I – Revogada a isenção, o tributo torna-se imediatamente exigível. Em caso assim, não há que se observar o princípio da anterioridade, dado que o tributo já é existente. II – Precedentes do Supremo Tribunal Federal. III – R.E. conhecido e provido. (STF, RE 204062-2/ES, 2ª T., rel. Min. Carlos Velloso, j. 27/09/1996).
VOTO: [...] se até mesmo a revogação de isenção não tem sido equiparada pelo Tribunal à instituição ou majoração de tributo – ou seja, não se considera válida a assertiva segundo a qual a revogação da isenção equivale à edição de norma de incidência tributária -, parece certo, seguindo essa lógica, que a redução ou a extinção de um desconto para pagamento do tributo sob determinadas condições previstas em lei, como o pagamento antecipada em parcela única (a vista), não pode ser equiparada à majoração do tributo em questão, no caso, o IPVA. (STF, ADI 4016-2/PR, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01/08/2008) (Grifou-se).
Essa orientação, há muito tempo firmada, resultou inclusive na elaboração da Súmula nº 615, de 17 de outubro de 1984, referente ao antigo ICM (atual ICMS), com o seguinte teor: “O princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da Constituição Federal[14]) não se aplica à revogação de isenção do ICM”.
Equivocadamente, a Súmula fala em princípio da anualidade, quando, em verdade, faz referência ao princípio da anterioridade tributária. À época da elaboração desse enunciado (ano de 1984), já não mais existia o princípio da anualidade, o qual foi abolido do ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 1/69.
A súmula em questão foi redigida com base em entendimento da Suprema Corte de que o art. 104, III, do CTN, mesmo após a ampliação do alcance do princípio da anterioridade a qualquer espécie tributária, teria sua aplicação restrita aos impostos incidentes sobre o patrimônio e a renda, entre os quais não se inclui o ICMS. Dessa forma, a revogação de uma isenção referente a esse imposto não deveria obediência ao princípio da anterioridade.
Para o STF, mesmo com o alargamento do princípio da anterioridade promovido pela Emenda Constitucional nº 1/69 – estendendo-o às demais espécies tributárias –, com relação às leis revogadoras de isenções, “a situação continuou inalterada: o princípio constitucional da anualidade [leia-se: anterioridade] não as alcançava, de sorte que a regra do inciso III do artigo 104 do C.T.N. continuava a persistir por força própria (nada impede que a lei declare que à isenção se aplique a observância da anualidade), mas nos limites por ela mesma estabelecidos: isenção quanto a impostos sobre o patrimônio e a renda”. (STF, RE 97455/RS, 2ª T., rel. Min. Moreira Alves, j. 10/12/1982).
A regra geral, portanto, seria que o princípio da anterioridade tributária não alcança a revogação de isenções, tendo em vista não poder tal revogação ser comparada à instituição ou majoração de um tributo. O disposto no art. 104 do CTN se aplicaria por mera força de lei.
Ante todo o exposto, pode-se afirmar que, para o Supremo Tribunal Federal, diante da revogação de uma isenção não onerosa, o tributo, como regra, passa a ser imediatamente devido, passível de pronta cobrança pelo Fisco, não havendo qualquer ofensa aos comandos previstos no art. 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da CF/88.
A aplicação da anterioridade é admitida pela Corte Maior apenas com relação aos impostos sobre patrimônio e renda, já que expressamente determinada essa aplicabilidade pelo inciso III do art. 104 do CTN. (SEGUNDO, 2013, p. 216).
Muito embora seja essa a posição perfilhada, já há bastante tempo, pelo STF, entende-se pertinente salientar a existência de uma decisão que pareceu caminhar em sentido contrário. Trata-se da decisão proferida no julgamento de medida cautelar da ADI 2325/DF. [15]
A situação em debate no supramencionado julgamento dizia respeito
a uma mudança no sistema de creditamento do ICMS, a qual provocou um aumento da carga tributária a que estavam sujeitos os contribuintes do imposto. A Corte entendeu, de forma unânime, que a modificação no creditamento, quer consubstanciasse a redução de benefício fiscal, quer configurasse a majoração de um tributo, estava sujeita à observância do princípio da anterioridade tributária, uma vez que acarretava maior carga tributária ao contribuinte.
O caso citado, a despeito de não cuidar propriamente de situação de revogação de isenção, revelou importante entendimento da Corte, embora isolado – e em sede de medida cautelar –, no sentido de aplicar o princípio da anterioridade em caso de majoração da carga tributária, independentemente do modo pelo qual essa majoração tenha sido implementada.
Observe a lição dada, em seu voto, pelo Ministro Marco Aurélio, relator do caso em comento:
“[O princípio da anterioridade] Encerra limitação ao poder de tributar, consubstanciando, assim, garantia do contribuinte. Por isso mesmo, há de emprestar-se eficácia ao que nele se contém, independentemente da forma utilizada para majorar-se certo tributo. O preceito constitucional não especifica o modo de implementar-se o aumento. Vale dizer que toda modificação legislativa que, de maneira direta ou indireta, implicar carga tributária maior há de ter eficácia no ano subseqüente àquele no qual veio a ser feita”. (STF, ADI 2325/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 23/09/2004) (Grifou-se).
Ressalte-se, novamente, que essa decisão da Suprema Corte não cuidava especificamente de caso de revogação de isenção. Sendo essa a situação, conforme já explanado, o Tribunal consolidou sua jurisprudência em sentido contrário, ou seja, entendendo pela não aplicação do princípio da anterioridade tributária.
Contudo, tal julgado não deixa de ser relevante, por se basear em raciocínio que poderá, quiçá, impulsionar uma futura mudança na jurisprudência da Corte.
4.4 A posição da doutrina
A doutrina majoritária adota posicionamento diametralmente oposto àquele defendido pelo Supremo Tribunal Federal. Entende a grande maioria dos doutrinadores nacionais que, no caso de revogação de uma isenção não onerosa, impõe-se a observância do princípio da anterioridade tributária.
Esse entendimento deriva da concepção adotada pela doutrina no sentido de equiparar a hipótese de revogação de isenção à hipótese de instituição, ou majoração, do tributo. Revogar uma norma isentiva equivaleria a editar uma norma de incidência.
Para José Souto Maior Borges (1969, p. 109), a extinção ou redução de isenções importa em ampliação da área de incidência do tributo, pela captação de matéria imponível até então dele isenta total ou parcialmente, de forma a estarem alcançadas pela regra da anterioridade.
Segundo Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 578):
É questão assente que os preceitos de lei que extingam ou reduzam isenções só devam entrar em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que forem publicados. Os dispositivos editados com esse fim equivalem, em tudo e por tudo, aos que instituem o tributo, inaugurando um tipo de incidência.
No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado (2006, p. 244), entendendo que a lei isentiva retira uma parcela da hipótese de incidência da lei de tributação, assevera que a revogação dessa lei que concede isenção equivale à criação de tributo, por isto devendo ser observado o princípio constitucional da anterioridade.
Kiyoshi Harada (2013, p. 568) sustenta que, “salvo quando concedida por prazo certo, pode ela [a isenção] ser revogada a qualquer tempo, observado, entretanto, o princípio da anterioridade”.
Do mesmo modo entende Hugo de Brito Machado Segundo (2013, p. 216):
As situações antes contempladas pela isenção passam a ser, a partir de então [a partir da revogação da norma isentiva], abarcadas pela norma de tributação. Tem-se, portanto, que em face delas a norma tributária, que antes não incidia, passa doravante a poder incidir. Isso equivale, em todos os aspectos, à edição de lei instituindo novo tributo [...]. Não há motivos, portanto, para não se sujeitar à anterioridade.
Para Luciano Amaro (2011, p. 311), a diferença entre a revogação de norma isentiva e a edição de norma de incidência seria apenas de técnica legislativa. As duas se equivaleriam. Explica o referido autor:
Se o fato “a” estava fora do campo da incidência (porque ele, pura e simplesmente, não fora abrangido pela regra de incidência, ou porque, embora abrangido pelo gênero tributado, fora excepcionado da incidência por norma de isenção), tanto a edição de regra que o tribute como a revogação da norma que o isentava implica seu ingresso no rol dos fatos tributáveis.
Nessa esteira, defende o autor que a revogação de isenção, por ter o mesmo efeito da edição da regra de tributação, está sujeita à anterioridade tributária, como inclusive prevê o art. 104, inc. III, do CTN.
Interessante ainda a observação feita por Amaro (2011, p. 312) destacando o fato de que, segundo Rubens Gomes de Souza, o Código Tributário Nacional, com a previsão do art. 104, teve a intenção específica de contrariar a jurisprudência pátria que entendia que a revogação de isenção não se equipararia à criação de tributo novo.
Ricardo Lobo Torres (2003, p. 282), à luz do mencionado art. 104, entende que, após a Constituição de 1967/1969 – que estendeu o princípio da anterioridade para além dos impostos sobre o patrimônio e renda –, todos os demais impostos, com a ressalva dos excepcionados pela própria Constituição, sujeitam-se ao princípio da anterioridade, “transferindo-se a eficácia da norma que revoga a isenção para o dia 1º de janeiro do ano seguinte”.
No mesmo sentido, Aliomar Baleeiro (2003, p. 951) assevera que, por força do art. 104, III, do CTN, a lei que revoga total ou parcialmente uma isenção não tem eficácia imediata, só sendo executada no primeiro dia do exercício financeiro seguinte àquele em que ocorra a sua publicação.
Segundo Roque Antonio Carrazza (2012, p. 240), a lei que afasta ou diminui uma isenção assemelha-se à que cria ou aumenta um tributo, tendo em vista acarretarem o mesmo encargo ao contribuinte, atingindo seu patrimônio de igual modo. Para o autor, “a aptidão para tributar compreende a de isentar, como verso e anverso de idêntica medalha”, de modo que devem também as isenções se sujeitar aos princípios do sistema constitucional tributário brasileiro, inclusive o da anterioridade.
O referido doutrinador propõe ainda um “outro caminho” para se chegar à mesma conclusão. Confira-se:
A lei que concede uma isenção revoga (no todo ou em parte) lei anterior que mandava tributar (se e quando ocorrido determinado fato). Pois bem, revogada a lei isentante, nem por isto a primitiva lei tributária voltará a vigorar. Por quê? Simplesmente porque não há o chamado efeito repristinatório no direito tributário brasileiro. [...] De conseguinte, revogada a lei isentiva, e restabelecido o dever de pagar o tributo – pela nova lei, que o recria –, é inafastável a incidência do princípio da anterioridade, que encerra, para o contribuinte, uma garantia de estabilidade da ordem jurídica. (CARRAZZA, 2012, p. 242).
Dessa forma, para o tributarista, a vedação do efeito repristinatório da lei, prevista no art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[16], conduz ao entendimento de que a lei de tributação, ao sofrer a incidência da norma isentiva, teria sido revogada, não podendo voltar a produzir efeitos diante de uma posterior revogação da isenção. A lei revogadora da isenção, portanto, equivaleria à criação de uma nova hipótese de incidência tributária, sujeitando-se ao princípio da anterioridade.
Diante do exposto, infere-se que é firme o entendimento doutrinário no sentido de que a cobrança imediata de um tributo, na hipótese de revogação da norma isentiva, ofende o princípio da anterioridade tributária, disposto no art. 150, inc. III, “b” e “c”, da Constituição Federal, embora, como visto, não seja essa a posição perfilhada pela Suprema Corte brasileira.
4.5 A necessária observância do princípio da anterioridade
Como se pôde perceber, é frequente o entendimento de que, consoante a tese adotada para definir o instituto da isenção, varia a conclusão acerca da necessidade de observância ou de não observância do princípio da anterioridade tributária na hipótese de revogação de isenções. Partindo-se de premissas diferentes, chegar-se-ia a conclusões diferentes.
Adotando-se a tese clássica, que considera a isenção como a dispensa legal do pagamento de tributo devido, a conclusão seria pela não aplicação da anterioridade. Isso porque se entende que, na hipótese de uma isenção, a norma de tributação já teria incidido, propiciando a ocorrência do fato gerador e o surgimento da obrigação fiscal. A isenção impediria apenas a constituição do crédito tributário por meio do procedimento de lançamento. Por conseguinte, com a revogação da norma isentiva, a obrigação fiscal, que já era existente, poderia ser imediatamente exigida pelo Fisco, não podendo ser comparada à majoração ou instituição de um novo tributo.
Em contrapartida, de acordo com a tese doutrinária moderna, a isenção corresponderia a uma hipótese de não incidência tributária, ou seja, impediria a incidência da norma de tributação. À vista disso, não haveria a ocorrência do fato gerador e nem o surgimento da obrigação fiscal. Nesse sentido, a revogação da norma isentiva equivaleria à nova instituição do tributo, não podendo haver a cobrança antes do lapso temporal imposto pelo princípio da anterioridade. Conclui-se, portanto, segundo esse entendimento, pela aplicação da anterioridade.
O que aqui se pretende demonstrar é que, em verdade, independentemente da tese doutrinária que se deseje utilizar para conceituar o instituto da isenção, deve-se chegar à mesma conclusão: a necessária observância do princípio constitucional da anterioridade tributária.
Nesse sentido, ainda que seja adotada a definição de isenção como um mero favor legal que dispensa o pagamento do tributo – como o faz o STF –, a anterioridade deve ser obedecida, sob pena de se ter entendimento que afronta diretamente o texto constitucional.
Conforme já explanado, a norma que prevê a anterioridade tributária na Constituição Federal de 1988 consiste em dispositivo que consagra direito fundamental do contribuinte, segundo entendimento da Suprema Corte brasileira, verdadeira cláusula pétrea, insuscetível de supressão via emenda constitucional.
Enquanto corolário do princípio da segurança jurídica, o princípio da anterioridade existe para proteger o cidadão-contribuinte de alterações tributárias mais gravosas. O sentido da norma constitucional é evitar a “tributação de surpresa” (CARRAZZA, 2012, p. 212), impedindo a instituição ou majoração de tributos no curso do exercício financeiro, ou antes de decorridos 90 dias da publicação da lei instituidora ou majoradora.
Nas palavras de Leandro Paulsen (2005, p. 131), “a anterioridade se põe para dar certeza quanto ao direito aplicável no sentido de assegurar o conhecimento antecipado de qualquer carga tributária nova, assim entendida aquela que inexistiria não fosse o novo diploma legal instituidor ou majorador”.
Oportuna ainda a lição de Hugo de Brito Machado (2004, p. 108):
Os princípios constitucionais foram construídos para proteger o cidadão contra o Estado, e o princípio da anterioridade tem por finalidade essencial evitar que no curso do ano seja o contribuinte surpreendido com um ônus tributário a mais, a dificultar o desenvolvimento de suas atividades.
Ora, se o princípio da anterioridade objetiva exatamente preservar o contribuinte diante de leis novas que venham a mais pesadamente onerá-lo, como retirar do seu âmbito de aplicação as hipóteses de revogação de isenção? Uma lei revogadora de isenção, sem dúvidas, acarreta o aumento da carga tributária a que está sujeito o contribuinte, um novo ônus tributário, agravando a sua situação financeira.
Diante disso, não há como ser negada a necessidade de observância da anterioridade tributária. Conforme aduz Roque Antonio Carrazza (2012, p. 241):
Outra postura colocaria o contribuinte sob o guante da insegurança, ensejando a instalação do império da surpresa nas relações entre ele o Estado. Ao grado de interesses passageiros seria possível afugentar a lealdade da ação estatal, contrariando o regime de direito público e o próprio princípio republicano, que a anterioridade reafirma.
O posicionamento adotado pelo STF acerca do assunto, permitindo que seja realizada a cobrança imediata de um tributo, após a revogação de uma isenção, fere gravemente o princípio constitucional da anterioridade, bem como todos os valores que esse princípio busca proteger.
Conforme já destacado, ainda que o Supremo entenda que o instituto da isenção não impede a incidência da norma de tributação, com o consequente nascimento da obrigação tributária, esse pensamento não exclui a observância do preceito constitucional contido no art. 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da CF/88.
É inegável o fato de que, independentemente de já ter ou não incidido a norma impositiva tributária, a consequência da extinção da isenção será a mesma: o aumento da carga tributária que recai sobre o contribuinte.
A esse propósito, oportuna se faz a lição de Luciano Amaro (2011, p. 312), criticando o entendimento da Suprema Corte brasileira:
Os fundamentos dessa jurisprudência partem de premissas equivocadas, que, mesmo na hipótese de serem assumidas como corretas, não levariam às conclusões que foram firmadas pelo Supremo. Já alhures procuramos demonstrar que, mesmo quando se admita a consagração, pelo Código Tributário Nacional, do conceito de isenção como “dispensa de tributo devido” (coisa que até Rubens Gomes de Sousa negou, ao dizer que o Código não tomou partido nessa discussão), ainda assim não se pode culpar o Código de ter propiciado oblíquo desrespeito ao princípio da anterioridade na hipótese em exame, pois o seu art. 104, no item III, cuidou adequadamente da matéria, quando explicitou que a revogação de isenção de tributo sujeito à anterioridade só autoriza a tributação no exercício subsequente. E mesmo que não o dissesse, não se poderia dar ao Código Tributário Nacional interpretação que pudesse ferir, ainda que indiretamente, um princípio constitucional.
Aduz razão ao entendimento acima reproduzido. A interpretação adotada pela Suprema Corte não levou em conta o verdadeiro espírito da norma constitucional. A anterioridade existe e deve ser aplicada com a finalidade de resguardar o contribuinte, permitindo o planejamento de suas atividades econômicas. Se, com a revogação da norma isentiva, surge para ele um novo ônus patrimonial, com o estabelecimento de carga tributária que anteriormente não existia, impõe-se o respeito ao princípio da anterioridade.
Embora a Constituição Federal de 1988 não preveja de forma expressa a aplicação desse princípio ao caso de revogação de isenção, essa conclusão se manifesta de forma espontânea, decorrendo da própria razão de ser da norma constitucional. Afinal, como assevera Carrazza (2012, p. 238), “as normas jurídicas devem ser interpretadas mais por seus fins, pelas razões que nortearam sua edição (ratio iuris), do que pelas palavras que a integram”.
Deve-se, portanto, privilegiar a realização de uma interpretação teleológica da norma constitucional que prevê a anterioridade, isto é, interpretação que leve em conta a finalidade a que ela se dirige.
Não bastasse isso, o próprio Código Tributário Nacional, como ressaltado acima por Luciano Amaro, não ficou omisso com relação ao assunto, tendo em vista ter assegurado a obediência à anterioridade tributária, em seu art. 104, inc. III, no tocante às hipóteses de revogação de isenções não onerosas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se a existência de uma clara controvérsia envolvendo o tema da aplicação do princípio constitucional da anterioridade tributária às hipóteses de revogação de isenções não onerosas.
Segundo entendimento usual, o cerne da questão derivaria da corrente adotada para conceituar o instituto da isenção.
De um lado, abraçando a tese de que a isenção impediria a incidência da norma impositiva tributária – obstando, portanto, a ocorrência do fato gerador da obrigação –, a doutrina pátria majoritária defende a obediência à anterioridade no momento da revogação de um benefício isencional. Consideram que a revogação de uma isenção equivaleria à edição de uma lei impositiva tributária, criando ou majorando tributo, de forma a ser exigida a aplicação do princípio.
Para esses doutrinadores, a necessidade de observância da anterioridade estende-se a qualquer espécie tributária, e não somente aos impostos sobre o patrimônio e a renda expressamente apontados no art. 104, inc. III, do Código Tributário Nacional, devendo, pois, tal dispositivo legal ser interpretado à luz da atual Constituição Federal.
Do outro lado, em sentido oposto, figura o Supremo Tribunal Federal, mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro, entendendo pela não observância da anterioridade, por considerar que as situações em comento não poderiam ser equipadas à instituição ou majoração de tributo.
Em inúmeras decisões, a Suprema Corte deixou claro seu acolhimento ao conceito clássico de isenção, entendendo que o instituto pressupõe a incidência da norma de tributação, podendo ser caracterizado como a mera dispensa legal do pagamento do tributo. Para o Tribunal, portanto, há a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária, de forma que a norma revogadora da isenção não configuraria uma nova hipótese de incidência. São esses os argumentos utilizados pela Corte para sustentar a não aplicação do princípio da anterioridade.
Ademais, entende o STF que o disposto no art. 104, inc. III, do CTN estaria restrito aos impostos sobre patrimônio e a renda, o que culminou, inclusive, na edição da Súmula nº 615.
Ocorre que, como visto, o entendimento jurisprudencial adotado confere ao princípio da anterioridade interpretação que não se coaduna com a razão de ser da norma constitucional. Existindo com o intuito de proteger o contribuinte diante de lei tributária mais gravosa, e, mais ainda, consistindo direito fundamental do contribuinte, a anterioridade deve sim ser observada no momento da revogação de uma isenção, tendo em vista que essa situação acarreta, inegavelmente, uma imposição tributária nova e inédita.
Observa-se que, independentemente do conceito de isenção adotado, essa é a única conclusão a que o texto constitucional se permite chegar. A abordagem do princípio da anterioridade, bem como de qualquer princípio constitucional, deve ser realizada de forma a otimizá-lo, dando máxima efetividade às disposições previstas na Constituição.
Pelo exposto, enseja-se a necessidade de revisão da jurisprudência pátria, para que se conforme ao texto constitucional, estendendo a observância do princípio da anterioridade aos casos de revogação de isenções não onerosas, em homenagem à segurança jurídica que deve permear a relação entre o contribuinte e o Poder Público.
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[1]CF/88, art. 5º, XXII: “é garantido o direito de propriedade”.
[2]Segundo Carrazza (2012, p. 212), o princípio da irretroatividade, por sua vez, voltando-se a fatos pretéritos, corporifica a ideia de estabilidade.
[3] CF/88, art. 150: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.
[4] Em sentido contrário, Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 209, grifou-se) entende que “a vigência da lei que institui ou aumenta tributo deve ficar protraída para o ano seguinte ao de sua publicação [...]”.
[5] STF, ADI 4016-2/PR, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01/08/2008.
[6] Art. 141, § 34: “Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”.
[7] CF/88, art. 60, § 4º: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais”.
[9] STF, RE 407.099/RS, 2ª T., rel. Min. Carlos Velloso, j. 22/06/2004.
[10] CF/88, art. 150, § 2º: “A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes”.
[11] Ressalte-se que referidos autores filiam-se ao conceito moderno de isenção, que a define como hipótese de não incidência qualificada.
[12] O art. 2º da CF/88 assegura independência aos três Poderes, nos seguintes termos: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
[13] Nesse sentido: AMARO, 2011, p. 147; ROSA JUNIOR, 1997, p. 596; TORRES, 2003, p. 282; entre outros.
[14] Art. 153, § 29: “Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o impôsto sôbre produtos industrializados e o imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição”. Trata-se de dispositivo da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 1/69.
[15] STF, Medida Cautelar na ADI 2325/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 23/09/2004.
[16] LINDB, art. 2º, § 3º: “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
Procuradora da Fazenda Nacional. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AGUIAR, Rebeca Lima. O princípio da anterioridade tributária e a revogação de isenções não onerosas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46356/o-principio-da-anterioridade-tributaria-e-a-revogacao-de-isencoes-nao-onerosas. Acesso em: 22 nov 2024.
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