Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a natureza jurídica do trabalho dos “cordeiros” no Carnaval de Salvador. Este é um tema de grande relevância que ainda não se encontra assentado doutrinariamente, havendo discussão acerca da existência ou não de relação de emprego, objetivando-se, no presente trabalho, explicar a forma correta de se lidar com tal problemática.
Palavras-chave: “Cordeiros” no Carnaval. Relação de trabalho. Prestação de serviços. Relação de emprego.
1. INTRODUÇÃO
Durante os festejos do Carnaval de Salvador, muitas oportunidades de trabalho são criadas, principalmente com o incremento do comércio dos blocos carnavalescos, os quais vendem as suas fantasias – conhecidas comumente como abadás – as quais consistem em camisas que permitem ao adquirente ouvir a banda musical de sua escolha, dentro de um perímetro protegido por uma corda, cercada por pessoas contratadas a fim de assegurar a proteção dos foliões.
E é justamente neste ponto que a atenção deve ser fixada. As pessoas conhecidas como “cordeiros” são homens e mulheres que formam uma corda humana, a qual garante a segurança daqueles que “brincam” nos blocos, isolando-os daquelas pessoas que “brincam” fora, além de abrir o caminho dos trios no circuito festivo.
Fica claro que tais pessoas exercem um contrato de trabalho. Mas qual a natureza jurídica desse contrato? Seria um contrato empregatício? Ou seria um contrato distinto, tal como a prestação de serviços? A importância dessa distinção encontra respaldo devido à necessidade de se saber qual a legislação pertinente ao caso. Tratar-se-ia de um contrato de emprego, sujeito aos ditames da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou seria um contrato diverso, sujeito às disposições do Código Civil?
Antes de adentrar no mérito da questão, é preciso estabelecer alguns pontos conceituais acerca do tema.
2. RELAÇÃO DE EMPREGO X RELAÇÃO DE TRABALHO
Quando se fala na expressão “relação de trabalho”, esta possui um caráter genérico, que engloba muitas acepções acerca do tema. Porém, pode-se definir tal relação como aquela que tem como objeto principal uma prestação consistente numa obrigação de fazer, concretizada através do labor humano, em troca de uma remuneração pecuniária ou não pecuniária.
Já quando se fala em “relação de emprego”, esta consiste numa espécie de relação de trabalho. Porém, ela possui alguns elementos que a singularizam, que a deixam com características particulares, que distinguem tal relação das demais.
É cediço que o contrato de trabalho é um contrato realidade, ou seja, é com base nos fatos que se depreende a natureza da relação jurídica existente, e não do quanto estabelecido no contrato escrito. Portanto, estando presentes os elementos ensejadores do contrato de emprego, este estará consolidado, independentemente de contrato expresso em sentido diverso.
Embora haja divergência na doutrina em certos pontos acerca dos elementos ensejadores da relação de emprego, é uníssona a presença de quatro elementos principais em tal relação: a subordinação jurídica; a onerosidade; a pessoalidade; e a não eventualidade (também conhecida como permanência ou habitualidade). Esses quatro elementos constituem o núcleo básico de toda relação de caráter empregatício.
A subordinação jurídica se refere ao cumprimento daquilo que foi estabelecido no contrato, o empregado está subordinado às ordens do empregador, devendo cumprir o quanto fixado entre as partes. Tal subordinação também é percebida quando da aplicação de sanções disciplinares por parte do empregador, o qual, ao fiscalizar os seus empregados e perceber que o contrato não está sendo cumprido, pode impor sanções de ordem administrativa.
A onerosidade se refere ao fato de que toda relação de emprego deve ter uma remuneração, é a possibilidade de retribuição. Caso contrário, será trabalho voluntário ou até mesmo um trabalho escravo, a depender da atividade explorada. Logo, na relação empregatícia, há uma contraprestação patrimonial e econômica.
A pessoalidade é um elemento caracterizador da relação de emprego, e consiste na exigência de que o contrato de trabalho deve ser cumprido por aquele indivíduo que assinou o referido contrato. O trabalhador não pode se fazer substituir, ele não poderá ser substituído na execução de suas tarefas por quem quer que seja (ou seja, é intuito personae em relação ao empregado).
Por último, mas não menos importante, tem-se a habitualidade (também conhecida como permanência ou não eventualidade). Este elemento se refere à concepção de que o contrato de emprego se renova no tempo, não é prestado episodicamente, e sim prestado de forma cíclica, que se renova no tempo. Porém, não se deve confundir tal elemento com a continuidade, a qual consiste numa prestação de trabalho de caráter diário, uma verdadeira habitualidade levada ao extremo.
A distinção entre relação de emprego e relação de trabalho é de suma importância. Isso porque, através do tipo de relação, poder-se-á saber qual o regime jurídico aplicável: se será a legislação pertencente ao regime do Código Civil, a qual caracteriza a grande maioria das relações de trabalho existentes; ou se é caso de se aplicar a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT – que possui como campo de atuação as relações trabalhistas subordinadas, ou seja, o contrato de emprego.
A CLT teve o condão de conferir importantes conquistas aos trabalhadores que se situam sob a égide de um contrato de emprego. A relação trabalhista que, em um passado não tão longínquo, apenas buscava satisfazer os interesses do empregador, foi ganhando um caráter protetivo em relação aos direitos que os trabalhadores. E é com base neste entendimento que se enfrentará o mérito da questão, acerca dos serviços prestados pelos “cordeiros” no período do carnaval de Salvador.
3. NATUREZA JURÍDICA DA ATIVIDADE DOS CORDEIROS: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, OU CONTRATO DE EMPREGO?
Cabe agora analisar a natureza da atividade desempenhada pelos indivíduos conhecidos como “cordeiros”. Tal questionamento deve ser debatido, devido ao hiato doutrinário acerca do tema. Já foi dito aqui as características principais de uma relação de emprego – subordinação jurídica, onerosidade, pessoalidade e habitualidade. Agora deve-se fazer um estudo dirigido acerca da presença de cada um desses elementos na atividade posta como tema desse estudo, para, enfim, se poder chegar à conclusão da natureza jurídica desta. Afinal, qual seria a natureza jurídica da atividade dos “cordeiros” no Carnaval?
Primeiramente, como foi dito anteriormente, considerar-se-á os quatro elementos essenciais para configuração da relação de emprego, a fim de determinar a natureza jurídica da atividade de “cordeiro”, quais sejam: subordinação jurídica, onerosidade, pessoalidade e não-eventualidade (também chamada por alguns autores de habitualidade ou permanência).
No que tange à pessoalidade, fica claro que a atividade deve ser desempenhada por uma pessoa determinada. Esse elemento significa que a atividade deve ser desempenhada por aquela pessoa que firmou o contrato. Logo, não há de se falar em substituição desta pessoa por outra qualquer, visto que o contrato foi estabelecido com pessoa certa.
A pessoalidade é uma característica tanto da relação empregatícia, como também pode ser característica do contrato de Prestação de Serviços, visto que o art. 605 do Código Civil estabelece claramente que o prestador de serviços não poderá transferir a outrem o direito aos serviços ajustados, sem a anuência da outra parte. A distinção é que, neste último contrato, há a possibilidade de o serviço ser prestado por uma Pessoa Jurídica, enquanto que, no contrato de emprego, essa pessoalidade abrange o fato de o empregado ser Pessoa Física, e não Pessoa Jurídica.
Com relação à onerosidade, chega a ser impensável sua inexistência na atividade de “cordeiro” durante o carnaval. Sabendo-se que a relação de emprego só tem sentido no sistema capitalista, é difícil vislumbrar pessoas que trabalhariam por cerca de seis horas ou mais por bloco carnavalesco, arriscando a sua integridade física, apenas pelo bel-prazer de cantar e dançar de forma relativamente próxima a estrelas da música baiana. Logicamente, todos têm expectativa de retribuição financeira.
Ademais, a onerosidade também se faz presente no contrato de Prestação de Serviços, de acordo com o art. 594 do Código Civil, o qual se refere a tal contrato como toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, que pode ser contratada mediante remuneração.
Em se tratando de subordinação jurídica, é indiscutível a sua presença na atividade de “cordeiro”. Tais indivíduos sujeitam-se aos ditames dos seus superiores, seguem suas ordens, e exercitam a atividade previamente estabelecida no contrato, qual seja, assegurar a segurança dos foliões que se encontram dentro do perímetro do bloco carnavalesco, através de uma espécie de corda humana que abre caminho no percurso do Carnaval.
Pois bem, aqui está o principal traço distintivo entre o contrato de emprego e o contrato de Prestação de Serviços: neste último, inexiste subordinação jurídica, visto que os indivíduos que realizam tal contrato não têm de seguir fielmente as ordens do seu contratante, pois o objeto contratual é apenas a realização do serviço acertado entre as partes. Considerando-se o elemento subordinação nas atividades realizadas pelos “cordeiros”, mesmo que muitos deles não trabalhem exclusivamente para um único bloco de carnaval, tais sujeitos devem obedecer às ordens daquele bloco para o qual estão trabalhando naquele momento específico.
Dessa forma, eles devem percorrer o caminho no circuito carnavalesco, sempre cumprindo sua função. Portanto, essa subordinação jurídica é de grau absoluto, e o fato de os “cordeiros” não dependerem econômica, técnica ou moralmente do emprego não desconfigurará a eventual relação de emprego existente.
Um outro elemento polêmico a ser discutido na atividade dos “cordeiros” é a habitualidade. Tal elemento existiria ou não numa eventual relação de emprego entre os “cordeiros” e os blocos de carnaval?
Deve-se lembrar que a festa carnavalesca dura apenas sete dias no ano, embora ela se repita anualmente. Nesse caso, poder-se-ia considerar um exagero afirmar que há uma habitualidade nessa relação. Como forma de demonstrar tal ideia, deve-se pensar em um caso concreto.
Sabe-se que, todos os anos, os blocos carnavalescos contratam uma série de pessoas para serem “cordeiros” no período do carnaval. Entretanto, tais sujeitos, em sua grande maioria, não demonstram nenhum vínculo com aquele bloco especificamente, sendo que, provavelmente, eles servirão a mais de um bloco durante o período carnavalesco.
Tal atividade tem duração predeterminada, e não é essencial para a economia do indivíduo que a exerce (subordinação econômica), visto que, durante todo o ano, ele não realizará tal atividade, e, consequentemente, terá de buscar outras formas de auferir algum rendimento. Logicamente, há a possibilidade desse sujeito vir a tornar-se “cordeiro” do mesmo bloco, no carnaval seguinte. No entanto, isso não é algo que possa ocorrer facilmente, devido à rotatividade desse tipo de atividade, tendo em vista a grande oferta de labor humano existente, sendo que muitas pessoas veem no carnaval uma oportunidade de obter algum rendimento.
Assim, poder-se-ia considerar que existe uma habitualidade na atividade de “cordeiro” se a pessoa, reiteradamente, exerce essa atividade seguidamente nos carnavais seguintes. Entretanto, como foi comentado anteriormente, devido à rotatividade da atividade, de um ano para o outro, além de outras questões externas, pode ser que tal fato não venha ocorrer. Portanto, estaria descaracterizado o contrato de emprego devido à falta do elemento habitualidade, estando, assim, neste ponto, tal atividade mais próxima de uma autêntica prestação de serviços.
Porém, a legislação brasileira prevê uma saída que finalmente poderá colocar fim a essa discussão. A Consolidação das Leis do Trabalho, no seu art. 443, §2º, estabelece que o contrato por prazo determinado só será válido nos seguintes casos: na execução de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; em caso de atividades empresariais de caráter transitório; e em caso de contrato de experiência.
Portanto, o legislador abriu uma exceção ao elemento essencial da habitualidade no caso supracitado. Em relação à atividade dos “cordeiros”, esta se encaixa perfeitamente na primeira hipótese elencada no art. 443, §2º da CLT, qual seja, em caso de se tratar de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo.
Ajustando tal conceito ao tema em questão, no caso do Carnaval de Salvador, a necessidade dos blocos contratantes para o exercício de tal atividade durante um curto período de tempo é plenamente justificada pela própria característica da festa em questão. Logo, deve-se aplicar, ao caso em tela, as garantias compatíveis com a atividade, presentes na Constituição Federal e na CLT, visto que, apesar do curto espaço de tempo trabalhado, em virtude da própria característica da atividade, esta se refere a um efetivo contrato de emprego estabelecido pelas partes.
4. CONCLUSÃO
O tema em questão levanta uma série de polêmicas acerca da natureza jurídica do trabalho dos “cordeiros”, bem como acerca de qual legislação seria a eles aplicável.
Para resolver tal ponto controvertido, foi preciso fazer uma digressão acerca de alguns conceitos essenciais, como relação de emprego e de trabalho, elementos essenciais do contrato empregatício (subordinação jurídica, onerosidade, pessoalidade e habitualidade), além de estabelecer uma relação entre o contrato de emprego e o de prestação de serviços, tendo em vista os quatro elementos anteriormente citados.
Tal distinção fez-se indispensável devido ao intuito de se estabelecer qual a legislação aplicável: a Consolidação das Leis do Trabalho ou o Código Civil. Obviamente, as garantias oriundas da CLT são muito mais benéficas aos trabalhadores (no caso em questão, aos “cordeiros”).
Ressaltou-se que a Consolidação das Leis do Trabalho, no seu art. 443, §2º, estabelece que o contrato por prazo determinado será válido nos casos de execução de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo, em caso de atividades empresariais de caráter transitório, e em caso de contrato de experiência, sendo que o legislador abriu uma exceção ao elemento essencial da habitualidade no caso supracitado.
Salientou-se que, no que tange à atividade dos “cordeiros”, esta se encaixa perfeitamente na primeira hipótese elencada no art. 443, §2º da CLT, que abriga a situação de quando se tratar de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo. Isso porque, no caso do Carnaval de Salvador, a necessidade dos blocos carnavalescos para o exercício de tal atividade, durante um curto período de tempo, é plenamente justificada pela própria característica da festa em questão.
Assim, deve-se aplicar, ao caso em análise, as garantias compatíveis com a atividade, presentes na Constituição Federal e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), visto que, apesar do curto espaço de tempo trabalhado, em virtude da própria característica da atividade, esta se refere a um efetivo contrato de emprego vigente entre as partes.
REFERÊNCIAS
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______. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 11 de março de 2016.
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Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TáSSIO LAGO GONçALVES, . A natureza jurídica do trabalho dos "cordeiros" no carnaval de Salvador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46475/a-natureza-juridica-do-trabalho-dos-quot-cordeiros-quot-no-carnaval-de-salvador. Acesso em: 22 nov 2024.
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