RESUMO: A Constituição Federal de 1988 previu, no seu art. 184, que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. A fim de entender o funcionamento dessa espécie de intervenção do Estado na propriedade e as suas peculiaridades, deve-se fazer análise quanto aos dispositivos da Carta Magna e da legislação infraconstitucional referente ao tema, enfatizando-se a função social da propriedade como empecilho ao ato expropriatório. O objetivo do presente trabalho é expor a importância dessa forma de intervenção do Estado na propriedade, diante de um país de dimensões continentais.
Palavras-chave: Constituição Federal, desapropriação, reforma agrária, função social da propriedade.
1. INTRODUÇÃO
O Título VII da Constituição Federal de 1988 introduz a chamada Ordem Econômica e Financeira, tratando, no seu capítulo III, acerca da política agrícola e fundiária e da reforma agrária.
A desapropriação para fins de reforma agrária é uma das espécies de intervenção do Estado na propriedade. Ao mesmo tempo em que o Texto Constitucional prevê como um direito fundamental dos brasileiros a propriedade privada, também determina que a propriedade deverá atender a sua função social.
Ao longo do presente artigo, entender-se-á como o Poder Público, por meio do seu poder de império, desapropria determinado imóvel rural, assim como, em quais situações este é insuscetível de ser tomado pelo Estado.
Dentro desse contexto, cabe entender como a chamada função social da propriedade cumpre o papel de harmonizar essa modalidade de intervenção na propriedade e o direito à propriedade privada rural.
2. DA DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA
A desapropriação para fins de reforma agrária é uma das espécies de desapropriação, a qual é uma das formas de intervenção do Estado na propriedade. Sobre esse tema, resumiu o doutrinador José dos Santos Carvalho Filho:
“De forma sintética, podemos considerar intervenção do Estado na propriedade toda e qualquer atividade estatal que, amparada em lei, tenha por fim ajustá-la aos inúmeros fatores exigidos pela função social a que está condicionada. Extrai-se dessa noção que qualquer ataque à propriedade, que não tenha esse objetivo, estará contaminado de irretorquível ilegalidade. Trata-se, pois, de pressuposto constitucional do qual não pode afastar-se a Administração.”[1]
Nesse sentido, por serem bastante variados os fins almejados pelo Poder Público para assegurar a harmonia social e a ordem pública, são também diversas as formas de intervenção do Estado na propriedade, dentre elas, como já mencionado, a desapropriação. Esta é um procedimento de direito público pelo qual o Estado transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização.[2]
Conforme o Ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello, o fundamento político da desapropriação é a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, quando incompatíveis. Da mesma forma, o fundamento jurídico teórico seria a tradução dos princípios políticos adotados no sistema dentro do ordenamento normativo. Trata-se do domínio eminente de que dispõe o Estado sobre todos os bens existentes em seu território.[3]
Voltando-se, no entanto, para a desapropriação para fins de reforma agrária, ou também chamada de Desapropriação Especial Rural[4], a Constituição Federal prevê, no seu art. 184, caput, que o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social será desapropriado pela União, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação de valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão. Ressalta-se que as benfeitorias úteis e necessárias devem ser indenizadas em dinheiro, conforme art. 184, §1° da CRFB.
A propriedade rural tem seus critérios de utilização definidos no Estatuto da Terra, Lei n° 4.504/64, que regula as obrigações e os direitos relativos aos bens imóveis rurais, para os fins de Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola. Inclusive, o §1° do art. 1° da referida Lei define Reforma Agrária como sendo “... o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”.
Ademais, o art. 2° dispõe que a propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente, favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias, mantém níveis satisfatórios de produtividade, assegura a conservação dos recursos naturais e observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.
No mesmo sentido, o art. 186 da CRFB define que a função social da propriedade rural é cumprida, quando atende, simultaneamente, os requisitos de: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Sendo assim, ao analisar tais dispositivos, percebe-se que a produtividade do terreno não é o único requisito a ser observado para verificar o cumprimento da função social da propriedade, de modo que um terreno rural pode ser produtivo, mas descumpridor de sua função social, devido à inobservância de outros requisitos exigidos.
Seguindo esse raciocínio, caso o proprietário não cumpra a função social do imóvel rural, cabe à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, por meio da propositura de ação de desapropriação regulada pela Lei Complementar n° 76/93, a qual estabelece o procedimento contraditório especial, de rito sumário.
Ocorre que, a própria Constituição Federal, no seu art. 185, excepciona os imóveis que não poderão sofrer a desapropriação para fins de reforma agrária, quais sejam, a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra ou a propriedade seja produtiva. Dessa forma, no caso das propriedades produtivas, ainda que descumpram a função social por qualquer outro motivo, não seriam passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, assim como, a pequena e média propriedade rural, desde que única.
A Lei n° 8.629/93, art. 6°, definiu a propriedade produtiva como sendo “... aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”. Já os §§ 1° e 2° do mesmo artigo definem que o grau de utilização da terra deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel, enquanto que o grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento).
Essa questão da impossibilidade de desapropriar terras produtivas, mesmo que não respeitem os outros requisitos necessários ao cumprimento de sua função social, é alvo de discussão constante na doutrina.
Para autores como José Afonso da Silva, Ives Gandra Martins e Fábio de Oliveira Luchési, a desapropriação para fins de reforma agrária é afastada quando a propriedade produtiva atinge sua principal função social que é a de produzir frutos, independente de não respeitar os demais requisitos. Por outro lado, há doutrinadores, como o civilista Gustavo Tepedino e André Osório Godinho, que defendem o contrário, ou seja, a produtividade do imóvel não pode ser analisada isoladamente, mas sim juntamente com os outros preceitos constitucionais, pois, do contrário, seria possível que uma propriedade exploradora de trabalho escravo infantil ser imune à desapropriação para fins de reforma agrária.[5]
Esse, acredita-se, parece ser o melhor entendimento a ser aplicado nos dias de hoje, conforme resume Cláudio Chequer, in verbis:
“ Nossa Constituição estabelece, em seu Preâmbulo, a igualdade e a justiça como valores supremos, fixando, entre os seus princípios fundamentais estabelecidos no art. 1°, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, não nos parecendo, assim, que seja possível acreditar que uma grande propriedade rural que produz à custa de trabalho infantil, da não observância dos direitos trabalhistas de seus empregados e da degradação do meio ambiente possa estar inserida fora da possibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária.”[6]
O Superior Tribunal de Justiça também interpretou dessa maneira os dispositivos constitucionais, em julgado de 2011, veja-se a ementa a seguir:
“ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. SUSPENSÃO DO PROCESSO EXPROPRIATÓRIO. MEDIDA CAUTELAR PELO JUIZ SINGULAR. POSSIBILIDADE. CONCEITO DE FUNÇÃO SOCIAL QUE NÃO SE RESUME À PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL. DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL NÃO RECONHECIDA PELA CORTE DE ORIGEM. MATÉRIA PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ.
[...] 3. Nos moldes em que foi consagrado como um Direito Fundamental, o direito de propriedade tem uma finalidade específica, no sentido de que não representa um fim em si mesmo, mas sim um meio destinado a proteger o indivíduo e sua família contra as necessidades materiais.
Enquanto adstrita a essa finalidade, a propriedade consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre a sua função individual. [...]
6. O cumprimento da função social exige do proprietário uma postura ativa. A função social torna a propriedade em um poder-dever. Para estar em conformidade com o Direito, em estado de licitude, o proprietário tem a obrigação de explorar a sua propriedade. É o que se observa, por exemplo, no art. 185, II, da CF.
7. Todavia, a função social da propriedade não se resume à exploração econômica do bem. A conduta ativa do proprietário deve operar-se de maneira racional, sustentável, em respeito aos ditames da justiça social, e como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos uma existência digna.
8. Há, conforme se observa, uma nítida distinção entre a propriedade que realiza uma função individual e aquela condicionada pela função social. Enquanto a primeira exige que o proprietário não a utilize em prejuízo de outrem (sob pena de sofrer restrições decorrentes do poder de polícia), a segunda, de modo inverso, impõe a exploração do bem em benefício de terceiros.
9. Assim, nos termos dos arts. 186 da CF, e 9º da Lei n. 8.629/1993, a função social só estará sendo cumprida quando o proprietário promover a exploração racional e adequada de sua terra e, simultaneamente, respeitar a legislação trabalhista e ambiental, além de favorecer o bem-estar dos trabalhadores. [...]
(AgRg no REsp 1138517/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 01/09/2011)
Sem dúvidas, essa deve ser a posição a ser seguida, pois, o Brasil, com toda a sua extensão territorial, possui inúmeras terras consideradas produtivas, mas que não cumprem devidamente sua função social, as quais deveriam, sim, ser passíveis de desapropriação para essa finalidade.
Ressalta-se que, quando efetivada a desapropriação com esse objetivo específico, o bem expropriado terá destinação vinculada, de modo que a União não poderá definir como realizará o adequado aproveitamento do imóvel, pois é obrigatória sua destinação à reforma agrária.[7]
3. CONCLUSÃO
A desapropriação para fins de reforma agrária é uma espécie de intervenção do Estado na propriedade prevista de forma expressa na Carta Magna, em razão da sua importância e da restrição ao direito fundamental à propriedade privada.
Percebeu-se, ao longo do texto, que, apesar de uma vasta legislação que regulamenta instituto, trata-se de tema ainda bastante polêmico, salientando-se, inclusive, a pouca atenção dada aos trâmites posteriores ao ato desapropriatório propriamente dito, os quais dizem respeito à colonização da área depois da tomada da área, tema vasto a ser tratado em outra oportunidade.
Portanto, deve ser dada toda atenção ao assunto aqui exposto, uma vez que a Constituição Federal, como fonte suprema do ordenamento jurídico, deve ser respeitada, interpretando-a de forma a maximizar a proteção aos direitos fundamentais, dentre eles, a função social da propriedade. A desapropriação de imóvel para fins de reforma agrária tenta cumprir esse papel.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2013. 26ª Edição.
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Editora Jus Podivm, 2014. P. 938.
CHEQUER, Cláudio. A desapropriação para fins de reforma agrária e o princípio da proporcionalidade. Disponível em: < http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-desapropriacao-para-fins-de-reforma-agraria-e-o-principio-da-proporcionalidade/10807> Acessado em 13 de abri. de 2016.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2013. 26ª Edição. P. 781
[2] Idem, p. 820.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 895.
[4] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Editora Jus Podivm, 2014. P. 938.
[5] CHEQUER, Cláudio. A desapropriação para fins de reforma agrária e o princípio da proporcionalidade. Disponível em: < http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-desapropriacao-para-fins-de-reforma-agraria-e-o-principio-da-proporcionalidade/10807> Acessado em 13 de abr. de 2016.
[6] Idem.
[7] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. Editora Jus Podivm, 2014. P. 939.
Pós-Graduada em Direito Administrativo - LFG. Graduado em Direito - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LORENA DE FáTIMA SOUSA ARAúJO, . Desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária e a função social da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46484/desapropriacao-de-imovel-rural-para-fins-de-reforma-agraria-e-a-funcao-social-da-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
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