Resumo: O presente trabalho versa sobre o instituto da reincidência, sua regulação no ordenamento jurídico brasileiro, natureza e validade; é um estudo crítico fundamentado no garantismo penal, no qual se analisa as diversas respostas dadas pela doutrina a esse tema, verificando a insuficiência da legitimidade desse instituto, criticando a sua vigência dentro do sistema constitucional e sua compatibilidade com as normas que o compõe. Além disso, é discutida a realidade do sistema carcerário brasileiro, através de uma abordagem integral da conjuntura hodierna, por meio do método lógico-dedutivo, com supedâneo teórico de qualidade, bem como a análise legislativa atinente à espécie, que culmina em sugestões ao Projeto de Lei 3.473. Acrescenta-se ainda análise jurisprudencial que confirma o entendimento defendido neste artigo
Palavras-chave: Reincidência criminal. Garantismo penal. Sistema prisional. Análise jurisprudencial.
Abstract: The following paper it’s on the recidivism institute, your regulation in Brazilian law, your nature, and validity; it’s a critical study substantiated on the Guarantee of Right to Trial theorie, in which there are analysed several answers given by the doctrine to this subject, checking the insufficiency of the legitimacy of this institute, criticizing his validity inside the constitutional system and his compatibility with the standards that composes it. Besides, it’s discussed the reality of the prison system in Brazil, through an integral approach of the present state of affairs, through the deductive-logical method, with theoretical footstool of quality, as well as the legislative referent analysis to the sort, culminating in suggestions to the Bill 3.473. It’s added jurisprudential analysis that confirms the understanding defended at this paper.
Key-words: Criminal recidivism. Guarantee of right to trial. Prison system. Jurisprudential analysis.
“Nenhum dos argumentos que procuram fundamentar o instituto da reincidência consegue esconder sua irracionalidade”
Maria Lúcia Karam. (KARAM, 1994, p.125)
INTRODUÇÃO
Diante do cenário atual de falência do sistema punitivo, desrespeito aos direitos humanos e perda de legitimidade das penas, faz-se urgente estudar a regulação da reincidência no ordenamento jurídico pátrio, sendo foco do presente trabalho analisar de forma precisa e crítica a validade da recidiva, sua natureza, como se dá sua aplicação e a necessidade de sua extinção para que exista coerência dentro do sistema penal garantista.
O presente estudo se construiu pelo uso do método lógico-dedutivo embasado em pesquisa bibliográfica comprometida e aprofundada, com vistas à legislação e abordando de forma pontual a principiologia que permeia todo o sistema constitucional.
Não obstante, não há como tratar esse tema sem analisar criticamente o crime do ponto de vista cultural, e as impressões que a sociedade gera do criminoso e o reflexo disso na ação de punir, de forma que a presente análise se dá, igualmente, com um claro viés sociológico.
2. A REINCIDÊNCIA NA CODIFICAÇÃO PÁTRIA VIGENTE:
O código brasileiro atual suprimiu os conceitos de habitualidade e os demais análogos, assim como as próprias medidas de seguranças direcionadas aos reincidentes. Esse elemento comum ao direito penal do inimigo foi uma influência do código de Rocco (Itália, 1930) em parte superada.
Entretanto, manteve-se a reincidência genérica e consequentemente a reincidência ficta e a real, que possui na codificação vigente vários efeitos negativos.
A reincidência se faz presente em vários lugares na legislação brasileira, desde o código penal até leis esparsas, mas pode-se considerar o primeiro como seu “habitat natural”, uma vez que as principais disposições legais sobre esse instituto estão presentes neste diploma.
As maiorias das leis que abordam a reincidência o fazem invocando seus efeitos em determinadas situações, exempli gratia: art. 77, I, CP (impedimento do sursis); art. 83, II, CP (aumenta de um terço a metade, o prazo de efetiva privação de liberdade para o livramento condicional; art. 117, VI, CP (interrompe a prescrição).
Ademais, o foco deste trabalho recai sobre a própria validade deste instituto e a polêmica do bis in idem decorrente do uso da reincidência, sendo essencial a análise sobre as disposições legais que a moldam, estas são: o artigo 63 que estabelece o conceito ao afirmar que “Verifica-se a reincidência quando o agente comente novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no exterior, o tenha condenado por crime anterior”; o artigo 59 que traz de forma tácita (expressamente fala em antecedentes) a reincidência como circunstância a ser examinada pelo juiz na fixação da pena; e o artigo 61 inciso I, que a coloca como fator que sempre agrava a pena.
Diante dos dispositivos expostos, pode-se chegar facilmente à conclusão de que o código penal, quando trata dessa regulação, permite a afetação da coisa julgada, uma vez que permite que seja exacerbada a pena de um crime com sentença transitada em julgado, confrontando diretamente o dispositivo constitucional presente no célebre artigo quinto, mais especificamente no inciso XXXVI que fala “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Pois, se a agravação no segundo delito decorre do primeiro, o que ocorre do ponto de vista lógico é simplesmente o aumento e a continuação da punição do primeiro em concomitância com a aplicação da pena do segundo, mesmo após já transitado em julgado a sentença condenatória, algo que por mandamentos constitucionais deveria ser intangível; do ponto de vista material está deixando de lado o fato cometido pelo indivíduo, para puni-lo por uma característica pessoal, agindo conforme fundamentos do Direito Penal do Autor e não do Direito Penal do Fato, que o Brasil, como Estado Democrático de Direito adota.
Ademais, o nosso ordenamento jurídico estabelece um sistema de hierarquias entre as normas, no qual a Constituição é a norma superior e diante dela toda legislação infraconstitucional deve se adaptar. Isto ocorre, pois na Lei Maior estão elencados os valores considerados primordiais pela sociedade para a realização da justiça e que, portanto, devem emanar por todo edifício jurídico.
Nesse sentido, reforça-se a crítica ao instituto da reincidência, pois além da direta violação ao artigo 5, XXXVI, retromencionado, há também a violação aos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da individualização da pena e da culpabilidade.
O princípio da legalidade não permite a imposição ou aplicação de pena diferente da prevista; observa-se, portanto, que ao aumentar o quantum da primeira pena (porque de fato, o indivíduo está sendo penalizado pela sua primeira conduta) justificando como reincidência na aferição da pena pelo segundo delito, ocorre uma forte violação a este princípio constitucional.
O princípio da proporcionalidade afirma que se deve respeitar a proporção entre a afetação do bem jurídico e a punição dada, o que claramente não é respeitado pelo instituto da reincidência, uma vez que a agravação desfaz todo o trabalho feito atentando para o respeito à proporcionalidade realizado pelo juiz que determinou a sentença pelo primeiro crime. Uma vez que este aumento na segunda punição não se dá por uma maior afetação ao bem jurídico, mas sim por um bem jurídico já afetado no passado, ou seja, o que ocorre na realidade é uma extensão da primeira punição.
O princípio da individualização da pena não permite que a punição dada por um crime, em uma pena, estenda-se a outro, e a reincidência promove justamente o contrário, ao aumentar o quantum da primeira pena, incorrendo em bis in idem.
A atual sistemática da reincidência na legislação brasileira, com a imposição obrigatória da reprimenda mais gravosa, não atende aos ditames do princípio da individualização da pena, visto que a sanção agravada é aplicada com base em dados objetivos, sem a efetiva verificação de sua real necessidade no caso sob análise. (CHIQUEZI, 2009, p. 93)
A culpabilidade, sinteticamente falando, é o juízo que se faz da conduta típica e ilícita do agente, quanto mais reprovável for o juízo feito, maior será a culpabilidade e consequentemente, mais severamente deverá ser punido o autor. Nesse sentido, há mais uma evidência de que a reincidência não justifica a agravação da pena, pois não há como afirmar que a conduta do reincidente é mais reprovável do que a de um réu primário, sendo este, um dado que só poderia ser aferido através da análise do caso concreto.
Expostos os pontos relevantes na legislação, não é difícil que qualquer exame superficial feito por um jurista conclua que há incoerência entre os dispositivos apresentados. O entendimento das escolas garantistas é que a reincidência é uma violação aos princípios constitucionais referentes à “coisa julgada” e non bis in idem.
3. ANÁLISE E CRÍTICA ÀS JUSTIFICATIVAS DADAS PELA DOUTRINA À REINCIDÊNCIA:
A doutrina apresenta uma série de explicações à natureza dessa regulação, malgrado a incoerência e falta de unidade nas explicações.
3.1. a reincidência como evidência de maior periculosidade da pessoa:
Há quem afirme que a reincidência é evidência de maior periculosidade do agente. Admitir tal absurdo seria afirmar que uma sentença condenatória definitiva, ao ser declarada, automaticamente instala no indivíduo a propensão para cometer crimes; quando na verdade, essa sentença deveria ser evidência de que aquele indivíduo já encarou o processo punitivo e portanto, uma vez que ao ter sido (teoricamente falando) penalizado e ressocializado, é menos perigoso.
Contudo, a total falência das funções declaradas da pena, tem como consequência a “dessocialização” e a especialização do criminoso, que tende a se acentuar proporcionalmente ao tempo que o meliante fica imerso na engrenagem punitiva, e que pode ser aumentado pela regulação da reincidência, exempli gratia art. 67 do código penal. Observa-se, portanto, que a punição agravada é sinistra à índole do indivíduo - diante das pressões realizadas pelo meio prisional neste – ao invés da existência de uma sentença condenatória definitiva, um pedaço de papel que nada influencia na subjetividade e moral do indivíduo, como acreditam alguns e reproduz o Código de 1984; nesse sentido, não pode o Estado, mesmo reconhecendo a sua incompetência e o caos de seu sistema carcerário, presumir a periculosidade do reincidente.
Tampouco se compreende ser mais provável que alguém venha a cometer um delito, porque foi intimado, dias antes, de uma sentença condenatória definitiva, quando, por qualquer inconveniente burocrático, poderia vir a ser intimado uns dias após, e, portanto, não tivesse transitado em julgado essa sentença, quando da prática do segundo delito.(ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2011, p. 717)
Outrossim, é ilógico afirmar que um indivíduo que comete o tipo descrito no artigo 130 (perigo de contágio venéreo), é mais propenso a realizar um crime, por exemplo, de estelionato pela emissão de cheques sem fundos, do que alguém com que nunca foi condenado; não havendo portanto, uma constante que relacione a existência de uma sentença condenatória definitiva à realização de outros tipos, haja vista, que atentando aos dados ônticos, não é coerente afirmar o contrário.
3.1.1. periculosidade presumida:
Há quem afirme que através da reincidência, pode-se presumir a periculosidade do agente, ideia esta completamente inaceitável em um Estado Democrático de Direito, além de incompatível com os princípios norteadores do Direito Penal. Pois, mesmo que se aceite a gradação e a valoração do termo periculosidade, não se pode presumi-la, pois a taxatividade e precisão do Direito Penal, assim como as garantias e conquistas constitucionais não permitem que ficções (como imaginar que alguém cometerá um delito por já haver cometido outro) sejam fatores de endurecimento da pena. Aceitar a ideia de periculosidade presumida do indivíduo é anexar ao ordenamento jurídico, elementos de Direito Penal do Inimigo, extremamente indesejáveis para a sociedade, que agrava a seletividade do sistema punitivo, criando entre os cidadãos, distinções que não respeitam a lógica normativa, e muito menos a racional.
Essa tentativa de encontrar na personalidade do agente a justificativa para a regulação da reincidência é inaceitável, pois presume uma periculosidade no agente que simplesmente não pode ser deduzida em consequência de uma sentença condenatória definitiva, haja vista que de certo modo, pode-se afirmar que todos os cidadãos já transgrediram normas de alguma forma (pirataria, desrespeito ao meio ambiente, uso de drogas, entre outras transgressões comuns no cotidiano), e nesse sentido, portanto são todos perigosos, entretanto a reincidência só afeta aquelas que foram condenadas definitivamente por isso, ou seja, o ordenamento jurídico pátrio atribui a uma folha de papel (sentença condenatória), a capacidade de determinar a periculosidade dos indivíduos, que é um aspecto subjetivo e demasiadamente complexo para ser submetido a tal reducionismo.
Se, de alguma forma, pretende-se analisar a periculosidade do agente, que se faça por meios confiáveis e precisos, ao invés de colocar a praticidade e comodidade à frente do respeito ao ser humano.
3.2. teoria psicológica da culpabilidade:
Esta teoria afirma que a reincidência confirma a vontade do autor em agir de forma delinquente, o que é falso em boa parte dos casos; uma vez que em crimes completamente diferentes não faz sentido falar em reforço de vontade, haja vista que tipos diferentes requerem motivações distintas, pois cada bem jurídico desperta uma vontade específica, motivo pelo qual não se pode dizer que há reforço na vontade daquele que transmitiu a doença venérea, ao emitir cheques sem fundos, por exemplo.
Além disso, é válido afirmar diante da falência e perda de credibilidade do sistema penal, que o cumprimento da pena anterior pode ser o fator que reforçou a decisão criminosa; pois a máquina punitiva, do ponto de vista realista jurídico-marginal, potencializa a criminalidade, ao fazer surgir e alimentar o ódio e a incompreensão, assim como a estigmatização do criminoso que em muitos casos nunca mais se vê como parte da sociedade (o próprio termo ressocialização é estigmatizante), além de ter contato diário com um ambiente criminógeno, que independentemente da vontade do indivíduo irá aperfeiçoar seus conhecimentos sobre a ilicitude e a criminalidade.
3.3. teoria normativa da culpabilidade:
Por essa teoria se entende que a condenação anterior não foi capaz de contramotivar o autor, seja por ter sido branda ou qualquer outro motivo, e, portanto, deve-se reforçar a pena aplicada ao segundo delito, para que nesse momento logrem efeito os mecanismos de contramotivação.
Esta teoria esquece que a mera notificação de uma condenação, sem qualquer cumprimento de pena, não pode contramotivar a ninguém, ressalvada a hipótese de se lhe atribuir efeitos mágicos. (ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2011, p. 718)
Essa teoria no que tange à reincidência cai em uma contradição lógica sinistra ao admitir que ineficiência da pena em contramotivar o autor deve ser suprida pelo agravamento de uma segunda pena, cuja condenação reforçada lograria o efeito ressocializador. Ora, reconhecer a insuficiência da pena aplicada, ao mesmo tempo em que propõe o agravamento desta, é agir de forma desesperada e incoerente, consequentemente ignorando o fato que a pena, qualquer que seja (branda ou dura), possui elementos comuns, como a estigmatização, a exposição a ambientes criminógenos, entre outros, que culminam na motivação ao crime, em detrimento da contramotivação.
Além de que, para que se considere essa teoria coerente é preciso deixar de lado a falência do punitivismo tradicional, dos reais fins e consequência das penas, o que constituiria um verdadeiro delírio científico.
3.4. maior injusto do fato reincidente:
Ainda há quem afirme que um segundo delito, após a condenação por um primeiro, afeta a imagem do Estado como garantidor da segurança pública, havendo, portanto, dois bens jurídicos afetados: o primeiro que seria o núcleo do tipo e o segundo seria a imagem pública do Estado maculada pela ação criminosa. Tal situação aponta para a ineficácia do poder público em cumprir com suas funções mais básicas, uma vez que:
“Os pactos, sem força, não passam de palavras sem substância para dar qualquer segurança a ninguém”.
Nesse sentido, observa-se que desde Hobbes (2002, p.127) já se pode afirmar que a segurança da sociedade é uma função primordial do Estado.
Não obstante, essa tentativa de justificar a reincidência é claramente a mais absurda entre as demais, pois, haja vista que, mesmo aceitando que o criminoso afeta a imagem do Estado (que sofre máculas muito maiores à sua imagem, em decorrência da corrupção de seus próprios membros do que qualquer outro fator) por apontar ineficácia no sistema punitivo, ele é simplesmente uma evidência da incompetência do Estado, um elemento ôntico e não um agente que denigre a imagem daquele, servindo, em certa medida, para dar publicidade à total falência do sistema punitivo em alcançar seus fins declarados, contribuindo, nessa linha de raciocínio para o esclarecimento da sociedade.
De forma semelhante, afirmando uma duplicidade da norma dentro do tipo, defende-se que o segundo delito cometido, afeta o núcleo descrito no tipo, como também afeta a norma genérica de não cometer futuros delitos. Essa teoria logra dotar um sentido para a reincidência no qual essa regulação não viola o princípio de non bis in idem, pois nesse caso a reincidência estaria afetando um segundo bem jurídico, entretanto, este é indeterminado, e, portanto, essa teoria aparenta ser uma construção dogmática abstrata de uma saída desesperada para adequar a reincidência a certo princípio do direito penal, mas que o faz em detrimento da compatibilidade com o Direito Penal taxativo (princípio da legalidade) e seu sistema de garantias como um todo.
Desse modo, percebe-se que não há como justificar em um Direito Penal de garantias a agravação pela reincidência, seja pela violação do princípio do non bis in idem, ou pela afronta ao sistema de garantias como um todo, inclusive seus dispositivos constitucionais. Ou seja, a reincidência, só se explica, segundo Zaffaroni (1990, p.53):
“na medida em que se abandona o direito penal do ato, embora, às vezes, nem mesmo nestas posições a explicação se mostre coerente. Ao contrário, as tentativas de explica-la dentro dos limites de um direito penal do ato são todas insatisfatórias.”
4. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
De forma a confirmar o posicionamento exposto, faz-se útil apresentar precedentes judiciais nesse sentido, mostrando que o argumento da inconstitucionalidade do instituto da reincidência vai além dos limites da moderna doutrina apresentada, consubstanciando-se nos mais ilustres tribunais brasileiros, vejamos:
PENA. DOSIMETRIA. REINCIDÊNCIA. DESVALOR DE AGRAVAMENTO. Afasta-se o agravamento da punição pela reincidência, pois, além do 'bis in idem', inclui-la como causa de agravação da pena, não leva em conta que o delinqüente reincidente nem sempre é mais perverso, mais culpável, mais perigoso, em confronto com o acusado primário. Depois, não pode o próprio Estado, um dos estimuladores da reincidência, na medida em que submete o condenado a um processo dessocializador, exigir que se exacerbe a punição a pretexto de que o agente desrespeitou a sentença anterior, desprezou a formal advertência expressa nessa condenação e, assim, revelou uma culpabilidade mais intensa.” (TJRS, Apelação Crime nº 70001014810, Sexta Câmara Criminal, Relator Des. SYLVIO BAPTISTA NETO, j. 08.06.00).
“EMENTA: Roubo majorado tentado. Existência e autoria comprovadas. Condenação confirmada. Afastada a agravante da reincidência, por inconstitucional. Precedentes da câmara. Pena redimensionada. Apelo defensivo parcialmente provido. Unânime.” (TJ/RS, Apelação Criminal nº 70016965345, Quinta Câmara Criminal, Rel.: Des. Luís Gonzaga da Silva Moura, Data do Julgamento: 25/04/2007.“Roubo majorado. Palavra da vítima. confissão. Agravante da reincidência. Inconstitucionalidade. atenuante pode deixar a pena aquem do mínimo. - A palavra da vítima, em roubo, ausente interesse espúrio na condenação, corroborada pela confissão do réu e pelo restante da prova testemunhal, assume especial relevo.
- A agravante da reincidência é maculada de inconstitucionalidade, representa bis in idem e revigora anti-democrático direito penal do autor.
- Atenuante pode deixar a pena aquém do mínimo - o artigo 65, da Lei Penal, fala em "sempre".
- Não se pode excluir multa porque se trata de pena.
À unanimidade deram parcial provimento ao apelo defensivo.” (TJ/RS, Apelação Criminal nº 70015078603, Quinta Câmara Criminal, Rel.: Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO, Data do Julgamento: 14/06/2006).
Como se pode ver, os precedentes apresentados concretizam a tese aqui defendida, abordando de maneira sintética, porém clara e correta os motivos pelos quais a reincidência (especificamente, o artigo 61, I do Código Penal ) não foi recepcionada pelo Texto de Outubro.
Restando comprovado que este entendimento é o mais compatível com um direito penal de garantias, focado no ato, e não no autor, chega-se à conclusão de que a visão contrária (de que a reincidência é valida) – a qual inclusive é o entendimento do TJ/RN – só se justifica pelo senso de alguns juristas de que a agravação pela reincidência manterá “neutralizado” aquele criminoso que não está “socializado”, livrando a sociedade de ser incomodado por este, pelo menos no período em que o mesmo está sob as grades.
Outrossim, como se pode ver pelo entendimento do egrégio Tribunal de Justiça gaúcho, a justiça brasileira, pelo menos em alguns tribunais, trilha um caminho contra a estigmatização, elemento inerente ao cárcere, que só se fortalece diante do reincidente, prejudicando sua incorporação à vida livre.
5. SUGESTÃO À LEGE FERENDA
O Projeto de Lei 3.473 propõe importantes reformas à parte geral do código penal brasileiro, inclusive sobre a recidiva, e nesse ponto adota a majoração facultativa pelo juiz, que ao considerar as circunstâncias judiciais poderá ou não considerar a reincidência na fixação da pena-base, no primeiro momento do critério trifásico.
A lege ferenda supra mencionada sem dúvidas demonstra evolução no tratamento da questão, uma vez que retira a reincidência do rol das agravantes obrigatórias e permite ao juiz analisar a real necessidade de considerar o instituto, podendo dessa forma zelar pelo Direito Penal garantista ao recusar reicidiva no caso concreto.
Entretanto, para o integral respeito aos princípios constitucionais e garantistas de individualização da pena, culpabilidade do autor, proporcionalidade da pena e principalmente o non bis in idem, faz-se necessário a abolição da reincidência criminal e todos os seus efeitos no ordenamento jurídico, como foi feito na Colômbia em 1980. Já que, pelos motivos expostos, tal regulação é injustificável, além de nociva à coerência do edifício jurídico.
Há ainda quem se posicione a favor da existência da reincidência, contudo, no rol das atenuantes, explicando que a incompetência do Estado em ressocializar os indivíduos, e a inserção destes na engrenagem punitiva, no ambiente criminógeno das instituições carcerárias brasileiras diminui a sua culpabilidade, pois diante deste cenário de brutais afrontas aos Direitos Humanos, o indivíduo teria uma menor capacidade de autodeterminação que o réu primário, não submetido a tais pressões.
O processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deve incluir a reincidência entre as circunstâncias atenuantes. (SANTOS, 1985, p. 245)
O professor Juarez Cirino dos Santos é um dos expoentes desta doutrina e defende que quando o condenado for submetido às pressões criminógenas dos ambientes carcerários (reincidência real) deverá este ter sua pena atenuada, e havendo reincidência ficta esta deverá ser considerada um irrelevante penal.
Não obstante os méritos desta posição defendida por Cirino dos Santos deve-se rejeitá-la, haja vista que a existência da reincidência, independente da forma como se expresse, é um instrumento de estigmatização do apenado, que o coloca tanto como aquele incapaz de viver pacificamente em sociedade, como aquele limitado a exercer sua autonomia; rótulos que em muitos casos não expressam a realidade e segregam ainda mais uma sociedade construída em meio a barreiras artificiais irracionais entre as pessoas, motivadas pelo preconceito e a ignorância.
6. CONCLUSÃO
Finalmente, seguindo apenas a lógica jurídica e motivado por questões morais, conclui-se que a reincidência não é bem-vinda em um direito penal de garantias reais à sociedade.
Este instituto não consegue ser justificado pela doutrina que o defende, pois não é uma construção jurídica legitima, mas um fruto sinistro da preocupação do homem com o crime, pela necessidade que se manifesta culturalmente em punir aqueles que afetam a ordem e o bem-estar dos demais, principalmente aqueles que retornando à ilicitude se projetam sobre os olhos da população desinformada como inimigos permanentes da sociedade.
Como pode qualquer pessoa com um senso de realidade normal acreditar que a reincidência auxilia na ressocialização de um indivíduo? Como se sabe, o apoio ao egresso é uma utopia, e punir mais severamente o reincidente é uma afronta à dignidade humana. Não há ressocialização, pelo contrário, passar pelo sistema penal é afundar num poço profundo, escuro, onde jogamos entulhos e não colocamos escadas para dele sair. Depois ficamos nós do alto bradando contra o pobre diabo porque ele não conseguiu sair dali, para alcançar o que chamamos de “civilidade”.
Não obstante, o Direito, a norma jurídica, fundamenta-se em valores muito mais elevados que o preconceito generalizado de populações cuja sobriedade pode ser questionada pelo incômodo constante e real do medo, e, portanto, não pode ceder seus fortes princípios para satisfazer um sentimento de falsa segurança da sociedade, devendo mostrar que a defesa social só se concretiza mediante a defesa do indivíduo e seus direitos fundamentais.
Nesse sentido, o Brasil possui problemas muito mais graves e nocivos à regeneração social, como o sistema carcerário caótico e penas sem legitimidade, mas um foco especial deve ser dado a questões como a validade da reincidência, instituto aparentemente neutro e independente, mas que na verdade incorpora e expressa relações de opressão e segregação dignas de Estados autoritários, e que, portanto, deve ser abolida de qualquer Estado Democrático de Direito.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIQUEZI, Adler. Reincidência criminal e sua atuação como circunstância agravante. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, PUC, São Paulo 2009.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 127.
KARAM, Maria Lúcia. Aplicação da pena: por uma nova atuação da justiça criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 2, n. 6, p. 117-132, abril/jun. 1994.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal (a nova parte geral). Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 245.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 9. Ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2011, p. 717-718.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Reincidência: um conceito do direito penal autoritário. Livro de Estudos Jurídicos. v.6, 1990, p. 53.
Estudante de Direito - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisador vinculado ao Conselho Nacional de Pesquisa. (PIBIC). Monitor de Direito Penal I e II. UFRN.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REINALDO, Guilherme de Negreiros Diógenes. Exame sobre a compatibilidade entre o sistema penal garantista e a reincidência criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46808/exame-sobre-a-compatibilidade-entre-o-sistema-penal-garantista-e-a-reincidencia-criminal. Acesso em: 22 nov 2024.
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