RESUMO: O presente trabalho realiza uma análise crítica do artigo 15, inciso III, da Constituição Federal brasileira e a suspensão dos direitos políticos dos presos. Aponta e explica a maneira como tal norma constitucional é nociva ao Estado Democrático de Direito e à própria coesão do ordenamento jurídico pátrio, identificando e discorrendo sobre a incoerência deste dispositivo constitucional com alguns dos fundamentos da República Brasileira e do devido processo legal. Ressalta também a incompatibilidade dessa vedação constitucional com os fins declarados da pena, assim como o papel fundamental dos Tribunais Eleitorais na concretização do devido acesso ao voto do preso provisório.
Palavras-chave: Direito Eleitoral. Direitos políticos dos internos. Papel dos Tribunais Eleitorais na garantia do direito ao voto.
“A República pode ter homens submetidos à pena, ‘pagando suas culpas’, mas não pode ter ‘cidadãos de segunda’ sujeitos considerados afetados por uma capitis diminutio”
(Eugênio Raúl Zaffaroni)[1]
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da problemática do art. 15, inciso III, da Constituição Federal e sua expressa suspensão dos direitos políticos daqueles condenados por sentença criminal transitado em julgado, enquanto durarem os seus efeitos. Tece críticas à sua auto aplicabilidade, flagrante ofensa ao devido processo legal, e à contradição que cria dentro do próprio Texto de Outubro.
Infelizmente, o ordenamento jurídico pátrio não fornece os meios necessários para a concretização efetiva da democracia, deixando o voto como mais eficiente, e talvez único meio de participação democrática, o que nem de longe é suficiente para a construção de um Estado realmente democrático. Não obstante, graças às características peculiares de nossa democracia, tais quais, o populismo eleitoral e penal desenfreado, o direito de voto ao preso pode garantir que mudanças substanciais sejam realizadas no cárcere, que hoje, como se sabe, é uma ferramenta de exclusão e desrespeito sistemático aos direitos humanos
Trata também do direito de voto do preso provisório, as dificuldades para a sua implementação e a possível responsabilização do Estado por não respeitar esse direito.
Faz uso de material majoritariamente bibliográfico para explicar a essência dos direitos políticos e os malefícios de sua vedação aos presos condenados em sentença criminal transitado em julgado, enquanto durarem seus efeitos.
2 A EXPRESSÃO DO SUFRÁGIO
Um dos elementos que distingue o Estado Democrático de Direito dos demais regimes jurídicos e políticos, é o seu fator legitimante, que como se sabe, é a soberania popular, informação esta, que facilmente se extrai da leitura dos seguintes dispositivos constitucionais:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (CF, art. 1º) (grifos próprios).
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)” (CF, art. 14º).
Da análise dos aludidos dispositivos, conclui-se que o sufrágio é a pedra fundamental dos direitos políticos do cidadão brasileiro, e sua manifestação direta, o voto, é a maneira pela qual se faz concreta a participação política.
Neste sentido, o voto é o direito-dever dado a cada cidadão para que este possa ser parte integrante do corpo social, é a ferramenta dada pelo Constituinte Originário para que cada brasileiro possa expressar suas aspirações de construção de uma sociedade melhor, é, portanto, para todos os casos:
“instrumento que nivela toda uma sociedade, não havendo discrepâncias sociais, de credo, sexo ou cor que venham a abalá-lo, é poder de um e de todos os que se intitulam cidadãos(...)” (MAIOR, 2010, p. 138)
Ou seja, o voto é elemento essencial para que o cidadão se reconheça e seja reconhecido como tal, motivo pelo qual, é fundamental a sua preservação em toda e qualquer situação, principalmente quando se buscar alcançar os fins declarados da pena, sobretudo a ressocialização. Em um momento, no qual, segundo Mirabete (2002, p.24):
“A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior (...). A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação.”
Faz-se urgente dar voz política ao condenado, a fim de que seja feita uma pressão política suficientemente forte para garantir o respeito aos direitos humanos dos apenados; o voto é, certamente, meio muito mais benéfico e humano de ser ouvido, do que as rebeliões realizadas nos presídios, que não são outra coisa, senão a massa encarcerada urgindo por condições suportáveis de sobrevivência.
3 A Imposição Punitiva do Artigo 15, Inciso III, da Constituição Federal Brasileira
O artigo 15, inciso III, da Constituição Federal Brasileira é claro e taxativo:
“Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;” (CF, art. 15)
Estabelecendo, portanto, uma forma temporária de privação dos direitos políticos. Não há dúvidas quanto à interpretação e aplicação desta norma, a forma como foi redigida fala por si só, é sanção auto aplicável, norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
O que, todavia, consubstancia-se como arbitrariedade punitiva completamente destoante do resto do Texto de Outubro, assim como destoa também de uma série de tratados internacionais, assinados e ratificados pela República Brasileira, que serão analisados mais à frente.
Mas, de antemão, pode-se afirmar que a suspensão dos direitos políticos dos condenados por sentença criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, vai no sentido contrário ao sentimento universal de que a democracia se funda na igualdade entre seus cidadãos, em oposição à premissa básica de que todo homem e mulher é ao mesmo tempo súdito e soberano neste sistema político. Pois, ao excluir de todo e qualquer tipo de participação política o condenado, está se ferindo a própria essência do pacto social.
“No plano do pensamento político, as especulações sobre as origens da sociedade e do Estado e sobre a natureza do poder do príncipe e dos direitos dos súditos levavam a uma espécie de compromisso entre a esfera política, própria do Estado, e a esfera da consciência, própria do súdito, afirmando então o binômio ‘público’ (Estado) e ‘privado’ (indivíduo)” (Falcon, 1994, p.35).
Ora, ao excluir da vida política os que cometeram crimes e foram sentenciados por isso, não se está fazendo nada de diferente do que já fizeram todos os demais regimes políticos e jurídicos segregacionistas ao longo da história, o que mudam são os pretextos, mas a exclusão política de certas parcelas da sociedade é um fenômeno comum e cíclico na história da humanidade, exempli gratia, exclusão política das mulheres, “Neste contexto, as mulheres, que na ordem medieval não participavam das decisões políticas, atuando primordialmente no espaço doméstico, eram ignoradas na construção do Estado (Moderno) (Duby, 1990, p.210)”, exclusão política dos negros, “Ao ex-escravo restou os trabalhos da rua e da casa, os trabalhos braçais e mal remunerados e que não exigiam qualificação educacional. Jogados à margem da sociedade, permaneceram marginalizados da política e excluídos da organização formal dos operários” (SILVA, 2004 p. 28), e assim segue, de forma que a suspensão dos direitos políticos dos presos, e sobretudo o direito ao voto, é apenas mais uma forma de manifestação dessa necessidade nefasta do ser humano de “criar cidadãos de segunda”, que nada tem a ver com a carga axiológica inerente à Constituição Federal Brasileira.
Ademais, mister apontar que a própria Constituição ofende o devido processo legal, pois impõe a todos, condenados por sentença criminal transitada em julgado, seja crime ou contravenção, a suspensão automática, direta, sem qualquer motivação específica ou direito de defesa, ou seja, o artigo 15, inciso III, simplifica uma questão que não é simples, ignora as garantias de defesa, para suprimir o mais fundamental dos direitos, que é o de ser reconhecido como cidadão e poder se comportar como tal.
4 DIREITO DE VOTO DO PRESO PROVISÓRIO
No Brasil, para a discussão do direito de voto do preso provisório, torna-se necessário ressaltar que após mais de duas décadas de ditadura militar (período de 1964 a 1988), quando o Estado detinha o poder e controlava a vida da sociedade através da violência e da proibição de qualquer ideia contrária ao modelo de governo proposto; a sociedade brasileira, por meio de seus representantes constituintes, produziu a Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, que consagra o Brasil como um Estado Democrático de Direito.
Conforme preceitua o art. 1º da Carta, a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. O parágrafo único do mesmo dispositivo expressa que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Entende-se por povo todos os nacionais, ou seja, brasileiros natos e naturalizados, detentores do poder exercido pelos representantes escolhidos de maneira direta ou indireta.
O Estado Democrático de Direito desenvolveu-se com a tentativa de unir o ideal democrático ao Estado de Direito, amparado pelas conquistas democráticas, às garantias jurídico-legais e à preocupação social, tendo como princípios: a vinculação a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica, a sociedade organizada democraticamente, um sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, a justiça social como uma maneira de corrigir as desigualdades, a igualdade como forma de compor uma sociedade mais justa, a divisão de poderes ou funções, a legalidade como medida do Direito e modo de evitar o abuso de direito e a segurança e certeza jurídicas.
Não obstante a esse “ambiente” democrático constitucional e ainda que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagre a universalidade do direito de sufrágio (Art.14, caput) e determine a suspensão dos direitos políticos apenas após “a condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos” (art.15, inciso IV), na prática, os presos provisórios brasileiros tem, sistematicamente, sido privados do exercício deste direito/dever fundamental.
Ressalte-se ainda que, no Brasil, também vigora o princípio constitucional da presunção de inocência (Art. 5º, LVII), tornando ainda mais incongruente a realidade da suspensão do direito de voto dos presos ainda não condenados por sentença criminal transitada em julgado.
Não se pode negar que na maior parte dos Estados da Federação, a Justiça Eleitoral não tem instalado urnas eleitorais nos estabelecimentos prisionais, ou mesmo viabilizado a adoção de medidas facilitadoras para o exercício do direito fundamental de sufrágio por parte dos presos provisórios.
Muitas questões de ordem prática ou operacionais são sempre levantadas enquanto justificativas para tal limitação. Do impedimento legal para o deslocamento do preso até o local onde se situa sua seção eleitoral, a demanda de alto custo para a escolta envolvida nesse deslocamento, a oportunidade de fuga, a segurança e a integridade dos mesários, até mesmo aspectos como exigência legal mínima de eleitores cadastrados para a instalação de seções eleitorais especiais em presídios e transferência da inscrição eleitoral, múltiplas “desculpas” tem servido de máscara para obstar ou suprimir um elemento essencial à concretização da cidadania.
Todavia tais argumentações são extremamente frágeis, uma vez que é evidente que a instalação de seções eleitorais nos presídios resolveria a questão do acesso à urna eletrônica, e é apenas óbvio que isso venha a trazer empecilhos de ordem prática para a sua consubstanciação, assim como todo e qualquer direito fundamental que se busca concretizar; é este o motivo pelo qual os homens se organizam em sociedade e constroem um Estado, a fim de alcançar tarefas que somente uma entidade com forte capacidade de mobilização poderia realizar.
A Associação Juízes para a Democracia (AJD) estima que, no Brasil, 40% a 50% dos cerca de 500 mil presos estão na condição de presos provisórios e, portanto, tem o direito ao voto (www.ajd.org.br). Por outro lado, dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publicados no Portal Brasil (www.brasil.gov.br/noticias) revelam que nas eleições municipais de 07 de outubro de 2012 apenas 14.671 presos provisórios e menores infratores puderam votar, distribuídos em 207 locais de votação entre presídios e centros socioeducativos, divididos em 22 estados. Os estados de São Paulo, Amazonas e Bahia apresentaram o maior número desses eleitores. Torna-se necessário chamar a atenção para o fato de que os estados do Rio de Janeiro, Pará, Mato Grosso do Sul e Goiás não instalaram seções eleitorais em unidades prisionais nas últimas eleições, numa flagrante violação aos direitos políticos essenciais dos presos provisórios custodiados nesses estados.
A Resolução nº 20.471/99 representou a primeira manifestação do TSE com referência ao voto do preso provisório. Tratava-se de Consulta formulada pelo Presidente do TRE/CE sobre a possibilidade de instalação de seções eleitorais especiais em estabelecimentos prisionais. A resposta do Tribunal foi afirmativa no sentido de ser possível a instalação de tais seções eleitorais, respeitados os limites impostos pelo art. 136 do Código Eleitoral, que estabelece o número mínimo de 50 eleitores para instituição das mesmas.
A partir de então, as Resoluções do TSE que se sucederam, disciplinando os pleitos eleitorais de 2002, 2004, 2006 e 2008, previram a possibilidade de instalação de seções eleitorais em estabelecimentos prisionais, contudo, comungando uma redação omissiva, sem vincular a obrigatoriedade por parte da Justiça Eleitoral de instituir tais seções eleitorais, estabelecidas normativamente como uma possibilidade.
Tome-se como exemplo a redação da Resolução do TSE nº 22.712/2008 que em seu Art.19 traz:
“Art.19. Os juízes eleitorais, sob a coordenação dos tribunais regionais eleitorais, poderão criar seções eleitorais especiais em penitenciárias, a fim de que os presos provisórios tenham assegurado o direito de voto.”
De acordo com o entendimento do TSE (Resolução nº 22.190), para que o preso provisório possa votar, seria necessária a satisfação cumulativa dos seguintes requisitos:
(a) Haja instalação de seção eleitoral no estabelecimento prisional em que ele está custodiado, o que depende de decisão do TRE do respectivo Estado;
(b) Só pode haver esta instalação de seção eleitoral se o estabelecimento contar com mais de 50 eleitores devidamente registrados (art. 136 do Código Eleitoral);
(c) Cada preso provisório, para poder votar, deve requerer a transferência do seu domicílio eleitoral para a localidade onde se situa o estabelecimento prisional, com pelo menos 150 dias de anterioridade em relação à data da eleição (art. 91 da Lei 9.504/97).
A dissociação entre tais exigências, condicionadas a uma interpretação excessivamente formalista da legislação eleitoral, e os valores exaltados pela Constituição Federal de 1988 para a consolidação do Estado Democrático de Direito é contundente.
É o Estado quem aloca e transfere o preso. Por sua vez, a movimentação destes presos, novas prisões e solturas são frequentes, sendo de responsabilidade do próprio Estado e alheias à vontade do preso provisório. Não se pode negar a necessidade de organização e previsibilidade operacional por parte da Justiça Eleitoral, mas da forma proposta tem-se ao completo arbítrio das autoridades públicas encarregadas da movimentação dos presos a definição sobre a possibilidade do exercício do direito de votar de cada indivíduo preso. Basta a transferência para um presídio onde haja menos de 50 potenciais eleitores para que se anule o direito ao voto de determinado preso, por exemplo.
Em 2009, a Procuradoria Regional da República da 2ª Região e a Procuradoria Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro ofereceram representação junto ao Supremo Tribunal Federal, objetivando que a Corte:
(a) Reconhecesse a omissão inconstitucional do Tribunal Superior Eleitoral em adotar as providências de índole normativa e administrativa voltadas à viabilização do exercício do direito de voto dos presos provisórios no Brasil;
(b) Realizasse interpretação conforme a Constituição dos artigos 136 e 141 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), para assentar que eles não se aplicam, respectivamente, à instalação de seção eleitoral em estabelecimentos prisionais e à votação nestes estabelecimentos;
(c) Realizasse interpretação conforme a Constituição do Art. 91 da Lei nº 9.504/97, para afirmar que ele não se aplica à transferência de domicílio eleitoral do voto do preso provisório.
A Resolução do TSE nº 23.219, de 2 de março de 2010, inova com o peso da redação pautada pelo sentido da obrigatoriedade quando em seu Art.1º reza:
“Art. 1º. Os Juízes Eleitorais, sob a coordenação dos Tribunais Regionais Eleitorais, criarão seções eleitorais especiais em estabelecimentos penais e em unidades de internação de adolescentes, a fim de que os presos provisórios e os adolescentes internados tenham assegurado o direito de voto, observadas as normas eleitorais e as normas específicas constantes desta resolução.”
A controvérsia persiste e, paradoxalmente, eis que o retrocesso torna-se patente ao examinarmos a redação da Resolução nº 23.372, ato normativo que dispôs sobre as eleições municipais de 2012, pois, em seu Art. 20, o tom omissivo quanto à obrigatoriedade de instalação de seções eleitorais em estabelecimentos prisionais reverbera:
“Art. 20. Os Juízes Eleitorais, sob a coordenação dos Tribunais Regionais Eleitorais, poderão criar seções eleitorais especiais em estabelecimentos penais e em unidades de internação de adolescentes, a fim de que os presos provisórios e os adolescentes internos possam exercer o direito de voto, observadas as normas eleitorais e, no que couber, o disposto nos arts. 15 a 17 desta resolução.”
Na visão de que o Estado, dessa forma, promove a obstrução ao exercício do direito de voto do preso provisório, Luís Flávio D’Urso (disponível em: <http://www.ucho.info/e-xclusiva.htm > ) pondera:
“A legislação eleitoral estabelece que é crime eleitoral impedir aquele que tem direito ao voto de exercê-lo. Assim temos uma perversa realidade, onde o próprio Estado patrocina o cometimento do crime para esta legião de pessoas que estão presas, mas não condenadas, e que poderão, inclusive, ser absolvidas ao final do processo, e que tem a sua liberdade e o seu direito de voto cerceados pelo próprio Estado, com a desculpa de não ter estrutura para colhê-los.”
Cabe na análise do voto do preso provisório uma reflexão sob o ponto de vista histórico-sociológico. A história tem mostrado que a inclusão política tem sido capaz de determinar melhoria nas condições de vida da população antes excluída desses direitos. Esse tem sido um importante instrumento para trazer à tona a discussão sobre as demandas dos novos incluídos, para dar a essas questões visibilidade pública, provocando os Poderes Executivo e Legislativo, fomentando a conquista de outros direitos fundamentais.
Não há um único brasileiro capaz de negar a precariedade da grande maioria dos nossos estabelecimentos prisionais, bem como o fato dessa realidade ser precipitadora da violação de vários outros aspectos da dignidade humana. Parece-nos evidente que a sistemática exclusão política dos presos provisórios no Brasil representa um dos fatores contribuintes para a persistência deste cenário inviabilizador da reinserção social do preso.
Nas palavras de Laertes de Macedo Torrens:
“[...] seguramente não será desrespeitando os cânones constitucionais do cidadão preso provisoriamente que haveremos de exigir, no futuro, comportamento seu de acordo com a norma.” (TORRENS, 2000)
É um raciocínio claro. É a lei da ação e reação. Respeite e será respeitado, confira um tratamento digno ao preso, e a vida fora da prisão, para todos, será mais tranquila, mais pacífica.
O direito constitucional ao voto existe e cumpre implementá-lo. A ordem constitucional impõe a superação dos obstáculos reais e a desconstrução das múltiplas alegações úteis para cercear o exercício do direito/dever de votar inerente ao preso provisório no Brasil. Se a lei brasileira é cumprida para encarcerar, então que também seja cumprida em respeito à dignidade do encarcerado e sem produzir contradições dentro do ordenamento jurídico.
Efetivar o voto dos presos provisórios assim é reconhecer a dignidade dessas pessoas, conferindo-lhes respeito. É fazer com que as violações que sofrem transponham as cortinas do descaso, venham a público e passem a ser tratadas com a devida importância.
5 DIREITO DE VOTO DO PRESO CONDENADO DEFINITIVAMENTE
Como já dito alhures, o artigo 15, inciso III da Carta Magna é claro, não há dúvidas quanto à sua interpretação ou aplicação, o que se questiona com o presente trabalho, é, até onde há validade em uma norma que, por mais que constitucional seja, conflita com uma série de outros elementos normativos, alguns dos quais, também constitucionais.
Neste sentido, vejamos o artigo 1º da Lei de Execução Penal (n.º 7.210/84), in verbis:
“Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” (LEP, art.1º)
Conclui-se por meio de uma análise superficial do dispositivo acima que a função da execução penal é viabilizar a construção de um cenário no qual o apenado possa ser reinserido de forma harmônica na sociedade, todavia, a suspensão do direito de voto ao condenando por sentença criminal transitada em julgado vai de encontro a tudo isso, uma vez que exclui o indivíduo de sua cidadania, e por não serem mais, os presos, cidadãos é que o cárcere se consubstancia como uma verdadeira ferramenta de ofensa à dignidade humana e desrespeito sistemático aos direitos humanos.
O dispositivo constitucional em estudo é um verdadeiro contrapeso na busca pelos fins da pena, pois impõe ao condenado que ele não é mais parte do Estado e da Sociedade brasileira, por outro lado, é um inglório, que como punição pelo seu crime deve ser excluído da vida em sociedade, sem perspectiva de retorno.
Continuando, fundamental agora confrontar o dispositivo em estudo com outros dispositivos constitucionais, que, vale salientar, constituem a própria base do Estado Democrático e Constitucional de Direito, vejamos:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (CF, art. 1º)
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)”(CF, art. 14º)
Como já aprofundado na análise feita previamente destes dispositivos, a legitimidade do Estado brasileiro e seu edifício jurídico recai na manifestação da soberania dos governados por meio de seus representantes eleitos. Ora, se os presos estão presos é porque são governados, mas como governados não podem eleger seus representantes, é uma contradição notória, bizarra, e acima de tudo, sinistra à coerência do ordenamento jurídico pátrio e, consequentemente, sua legitimidade.
Ademais, a suspensão dos direitos políticos, como consequência direta, inafastável e indefensável, da condenação criminal transitada em julgado, isto é, como sanção auto aplicável fere o devido processo legal (Art. 5º, LIV, CF), assim como a ampla defesa e o direito de contraditório (Art. 5º, LV, CF), visto que suspende os direitos políticos automaticamente, ao se proferir a sentença, como se por mágica a condenação por contravenção ou crime transformasse o indivíduo e lhe retirasse a qualidade de cidadão. Além disso, por ser aplicável indiscriminadamente a qualquer condenado, fere o princípio da individualização da pena (Art. 5º, XLVI, CF), aprofundando ainda mais a distância entre o artigo 15, inciso III, e os valores nos quais se assentam a ordem constitucional brasileira.
Neste sentido, preconiza Bobbio (1999, p.77):
“A incompatibilidade entre duas normas deve ser um mal a ser eliminado, o que pressupõe uma regra de coerência que poderia assim ser formulada: ‘Num ordenamento jurídico não devem existir antinomias’. A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento, pois é evidente que quando duas normas contraditórias são válidas e que pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências que inspiram o ordenamento jurídico: a exigência da certeza, que corresponde ao valor da paz ou da ordem, e a exigência da justiça, que corresponde ao valor da igualdade. Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, nem a justiça.”
A contradição é tamanha que conseguiu chamar a disputada atenção do nosso Parlamento, no qual tramita a Proposta de Emenda Constitucional n.º65/2003, que sugere a supressão do inciso III do artigo 15, e, incluindo o condenado por sentença criminal transitado em julgado no rol daqueles beneficiados com o voto facultativo. Naturalmente se mantém a inelegibilidade, a fim de que não sejam manchados ainda mais a honra e o simbolismo dos cargos eletivos.
Todavia, diante do desinteresse da população brasileira, e, consequentemente, seus representantes, pela questão do cárcere e os direitos fundamentais dos apenados, o futuro desta PEC é incerto, ainda mais em um sistema no qual o processo legislativo é eivado de vícios, de ponta a ponta.
6 CONCLUSÕES
Ao serem tecidas essas considerações sobre a suspensão dos direitos políticos dos condenados por sentença criminal transitado em julgado buscou-se deixar claro que o voto é o fator legitimante de todo o pacto social e o meio pelo qual as classes desfavorecidas podem reivindicar ganhos e avanços sociais, é assim que funciona a evolução da sociedade democrática, mas que, a exclusão política de determinada parcela da sociedade breca essa evolução, e traz problemas dos mais sinistros à coesão e coerência do Estado Democrático e Constitucional de Direito brasileiro.
Apresentou-se também, como anda o cenário brasileiro em relação ao direito de voto dos presos provisórios, os empecilhos e avanços para a garantia desse direito de todo cidadão, mas que infelizmente não é respeitado pela autoridades públicas, criando uma situação na qual, o Estado afigura como um grande criminoso, pois como se sabe “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, II) e a lei permite ao preso provisório que o faça, mas a Administração Pública o impede de fazê-lo.
Diante da questão do preso provisório demonstrou-se a importância e o protagonismo do TSE e dos TREs na concretização deste direito fundamental, sob pena de que a inércia dos poderes legislativo e executivo continue a vedar, de forma criminosa, o acesso ao voto ao acusado.
Não restaram dúvidas quanto à incompatibilidade da norma do artigo 15, inciso III, da Carta Magna em face de uma série de dispositivos constitucionais, comprovando que esta norma, além de nociva à coerência do ordenamento, desrespeita completamente o devido processo legal e as garantias de ampla defesa e contraditório.
Por fim, foi comentada a PEC n.º 65/2003, que, reconhecendo a democracia como um corpo social formado por todos os cidadãos sem descriminação entre si, busca suprimir a imposição punitiva arbitrária do dispositivo normativo em questão.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 10. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 77
DUBY, Georges. Heresias e Sociedades na Europa Pré-Industrial, séculos XI-XVIII. in Idade Média – Idade dos Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.178
D’URSO, apud HADDAD, Ucho. Barrados no Baile: mesmo marginalizado, o preso tem o direito de votar. Disponível em: <http://www.ucho.info/e-xclusiva.htm >. Acesso em: 15 03. 2013
FALCON, Francisco José Calazans. Iluminismo. v. 84. 4.ed. São Paulo: Ática, 1994. 95 p.
MAIOR, Paula Francinetti Souto. Considerações quanto ao direito de voto do preso, diante do art. 15, inciso III, da Constituição Federal do Brasil. Atualidades Juridicas: revista eletronica do conselho federal da OAB, São Paulo, n. 9, p.138. 01 set. 2010.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2002.
SILVA, Antonio Ozaí da . A Representação do Negro na Política Brasileira. Cadernos de Estudos e Pesquisas (Universidade Salgado Oliveira), v. VIII, p. 29, 2004.
TORRENS, Laertes de Macedo. Estudos sobre Execução Penal. São Paulo: SOGE, 2000, p.90
ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral. 5 ed., rev. e atual.São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004, p. 172.
COMMENTS ON THE ARTICLE 15, ITEM III, FROM THE BRAZILIAN FEDERAL CONSTITUTION
[1] ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Manual de Direito Penal Brasileiro : parte geral. 5 ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 172.
Estudante de Direito - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisador vinculado ao Conselho Nacional de Pesquisa. (PIBIC). Monitor de Direito Penal I e II. UFRN.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REINALDO, Guilherme de Negreiros Diógenes. Comentários ao art. 15, inciso III, da constituição federal e considerações quanto ao papel dos Tribunais Regionais Eleitorais na concretização do devido acesso ao voto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46855/comentarios-ao-art-15-inciso-iii-da-constituicao-federal-e-consideracoes-quanto-ao-papel-dos-tribunais-regionais-eleitorais-na-concretizacao-do-devido-acesso-ao-voto. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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