1. Resumo
A pretensão do presente trabalho é conectar a flexibilização justrabalhista ao meio pelo qual ela especialmente se concretiza no Direito do Trabalho brasileiro. Explicita-se aqui como se dá a Negociação Coletiva e os impasses ocasionados quando as normas negociadas coletivamente entram em conflito com o direito legislado.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Flexibilização. Negociação Coletiva.
2. Introdução
A negociação coletiva é instrumento de democratização do Direito do Trabalho, uma vez que permite aos próprios atores sociais transacionar os direitos trabalhistas e interferir na modelação das respectivas relações laborais quando da instituição dos diplomas negociais de caráter normativo.
Ao longo dos anos, o capitalismo global reestruturou os antigos modelos de produção e atualmente se utiliza de um modelo mais flexível, com a introdução de altas tecnologias no processo produtivo, diminuindo postos de trabalho e demandando por relações de trabalho mais flexíveis que as concebidas para o modelo capitalista anterior.
É imperioso observar que a democratização do Direito Obreiro, através da valorização da autonomia coletiva, se deu, no Brasil, em um momento de crise do modelo trabalhista vigente e proporcionou ao Capital um eficaz instrumento de flexibilização juslaboral: a negociação coletiva. Inexistindo na Constituição previsão expressa de limitações ao exercício da autonomia coletiva e havendo, ao revés, permissivo expresso para a redução de importantes direitos trabalhistas – como é o caso dos incisos VI, XIII e XIV do art. 7º da Constituição [1] –, a negociação coletiva transforma-se em instrumento a favor da flexibilização dos direitos trabalhistas quando não manejada à luz do princípio da proteção ao trabalhador.
Na tentativa de adequar a criação de normas trabalhistas pela autonomia privada coletiva à finalidade do Direito do Trabalho surgiram diversas teorias e princípios protetivos, sendo importante proceder ao seu estudo em tópicos próprios. É o que se passa a fazer.
3. Desenvolvimento
3.1 A relação entre as regras coletivas negociadas e as regras estatais: a hierarquia justrabalhista
O fato de o Direito do Trabalho brasileiro ter possuído, durante muito tempo, uma índole autoritária fez com que ocorresse uma proliferação de regras trabalhistas estatais, heterônomas. Em razão disto, atualmente as regras heterônomas regulam praticamente todos os aspectos da relação trabalhista, de modo que, não raro, as normas coletivas negociadas tratam de matérias já regradas pela legislação estatal. Desse modo, o plurinormativismo característico do Direito Laboral torna comum nesse ramo jurídico especializado a existência de mais de uma norma apta a reger determinada situação, resultando, assim, em conflitos que serão solucionados através da aplicação do critério hierárquico, ou seja, da prevalência da regra de mais favorável ao trabalhador.
Do exposto, percebe-se que a solução encontrada para o conflito entre as regras trabalhistas estatais e as regras coletivas negociadas não é diferente da solução dada ao conflito entre duas ou mais regras heterônomas. A especificidade da hierarquia justrabalhista se dá em virtude da existência de diferentes teorias a orientar o processo de análise e seleção da norma a ser aplicada, com fulcro no princípio da norma mais favorável, se fazendo necessário, portanto, o estudo da teoria da acumulação e da teoria do conglobamento.
A primeira das teorias, a teoria da acumulação, informa que a norma mais favorável pode ser encontrada através da cisão dos diplomas, legais ou negociados, em análise, de sorte que, ao confrontar dois ou mais diplomas normativos, será possível proceder à seleção das normas favoráveis de um diploma, rejeitando-se as demais, e cumulá-las com as normas favoráveis do(s) outro(s) diploma, rejeitando-se, do mesmo modo, as demais normas. Observa-se que, na verdade, esta teoria cria um terceiro diploma, extremamente mais favorável ao obreiro, mas que não foi desejado pelo legislador e/ou pelos seres coletivos convenentes. As mais consistentes críticas a essa teoria residem no fato de que ela desconsidera a idéia de sistema, essencial à Ciência do Direito. Ao selecionar de maneira atomística as normas mais favoráveis, relevando o sistema formado por cada um dos diplomas normativos em questão, a teoria da acumulação termina por orientar o intérprete a romper a unidade ínsita à disciplina normativa, desarmonizando o sistema. No entanto, tal teoria é a recomendada pelo autor Francisco Meton Marques de Lima, em sua obra Os princípios de Direito do Trabalho na lei e na jurisprudência, por ser, segundo o autor, a que mais se coaduna com os princípios basilares do direito trabalhista.
A outra teoria, denominada teoria do conglobamento, possui orientação diversa, direcionando o intérprete, ao selecionar a norma mais favorável, a levar em consideração o conjunto de cada diploma normativo analisado. Essa teoria possui uma maior aceitação doutrinária por garantir ao obreiro a aplicação da norma mais favorável sem, no entanto, romper com a sistematicidade dos diplomas normativos. Nas palavras de Dânia Fiorin Longhi:
É uma teoria criada em contraposição à teoria da acumulação, pois, na acumulação escolhe-se a norma mais benéfica de cada instrumento coletivo[2] conflitante e se aplica cada uma, de forma fragmentada, ao contrato individual de trabalho. Na teoria do conglobamento, a norma mais benéfica é vista de forma abrangente, como um todo. Os instrumentos, os quais contem a norma conflitante, são incindíveis[3].
Ainda utilizando-se das lições da supracitada da autora, tem-se que a teoria do conglobamento pode ser dividida em duas espécies: teoria do conglobamento por institutos e teoria do conglobamento puro. Nas palavras da autora,
A referida teoria pode ser classificada como gênero, dividindo-se em duas espécies: o conglobamento por institutos e o conglobamento puro. Diante do conflito de normas, no conglobamento por institutos, é aplicada ao trabalhador a norma que lhe traga mais benefícios, de acordo com a matéria e, no conglobamento puro, para a aplicação da norma mais benéfica, a comparação se dá no instrumento em seu todo[4].
Apesar de grande parte da doutrina posicionar-se ao lado da teoria do conglobamento por institutos[5] – ressalvando, pois, que o conjunto incindível dentro do qual deve ser encontrada a norma mais favorável refere-se apenas às regras relativas a uma determinada temática –, entende-se que a teoria do conglobamento puro é a que mais se coaduna com os fins justrabalhistas, em razão de ser extremamente importante atentar para o fato de que, por mais que seja possível concentrar um conjunto de normas referentes à determinada matéria, a negociação coletiva levada a efeito pelos seres coletivos convenentes, que instituiu as regras do diploma normativo negociado, foi objeto de acordo em relação à sua totalidade pura e não quanto a cada conjunto temático, de modo que proceder à análise da norma mais favorável por temática, ou seja, grupo a grupo, vai de encontro ao consenso que legitimou a criação do diploma coletivo.
3.2 A possibilidade de negociação coletiva in pejus
O reconhecimento constitucional da criatividade jurídica da negociação coletiva, isto é, a validade, o reconhecimento, conferido pela Constituição às regras oriundas das negociações coletivas, trouxe aos estudiosos do Direito Laboral diversas questões de difícil solução: “a negociação coletiva pode restringir os direitos conferidos pela legislação estatal?”, “como restará a proteção dos direitos essenciais do trabalhador ante a criatividade jurídica da negociação coletiva?”, entre outras.
Como já foi ressaltado, a Constituição Federal de 1988 democratizou o Direito do Trabalho, rompendo com décadas de autoritarismo juslaboral, e, ao mesmo tempo, possibilitou sua flexibilização, ao prestigiar o instituto trabalhista da Negociação Coletiva, em seu art. 7º[6], uma vez que, como não deixou claros os limites, ou a ausência de limites, em que se dará a mencionada pactuação coletiva, a autonomia privada coletiva despontou, no cenário nacional, não só como instrumento de democratização, mas também como principal instrumento de flexibilização do direito obreiro. Além do direito ao reconhecimento das negociações coletivas trabalhistas, a Constituição pátria expressamente possibilitou a flexibilização, através de negociação coletiva in pejus, dos principais direitos trabalhistas – jornada de trabalho e salário[7].
Denomina-se negociação coletiva in pejus aquela que resulta em um padrão de direitos trabalhistas inferior ao já garantido, por lei ou por qualquer outro diploma negocial válido, ao trabalhador. Já a negociação coletiva in mellius, em contraposição, corresponde àquela que estipula direitos trabalhistas mais favoráveis ao obreiro. Exclui-se o estudo acerca das negociações in mellius do objeto deste trabalho científico por entender que não há que se falar em flexibilização juslaboral quando se mantém intacto o padrão social de direitos conferido ao trabalhador pela legislação heterônoma. As estipulações in mellius são, ao contrário da flexibilização, fomentadas pelo Direito Laboral, posto ser função do Direito do Trabalho perseguir sempre melhorias nas condições de trabalho.
Da análise dos princípios justrabalhistas, especialmente o da irrenunciabilidade ou indisponibilidade dos direitos trabalhistas, é fácil inferir ser vedada a estipulação contratual que confira ao trabalhador um rol de direitos aquém dos que lhe são conferidos pela legislação estatal. Em razão da imperatividade das normas trabalhistas, tem-se que é impossível aos sujeitos da relação empregatícia afastar da incidência das regras trabalhistas o contrato entre eles firmado. É o que se deduz da leitura do art. 444 da CLT[8]. Entretanto, no âmbito coletivo trabalhista, a autonomia privada, ao realizar a transação[9] de direitos laborais, mediante negociação coletiva, restringe os princípios mencionados, adaptando-os à nova relação formada, que se dá entre seres igualmente coletivos – sindicato e empresa(s) ou entre sindicatos.
Apesar de existir cizânia doutrinária quanto à possibilidade ou não de negociação coletiva in pejus, a Constituição,em seu artigo 7º, incisos VI, XIII e XIV, expressamente a permite, restringindo, dessa forma, a relevância da discussão ao debate acerca dos limites da flexibilização juslaboral mediante negociação coletiva in pejus.
Uma breve análise do arcabouço protetivo do Direito do Trabalho evidencia a existência de limites à negociação coletiva in pejus, visto que um ramo jurídico cuja finalidade é garantir ao trabalhador condições dignas de trabalho deve, no mínimo, proteger o obreiro de qualquer situação que possa macular a sua dignidade. A proteção da dignidade da pessoa do trabalhador é, pois, um primeiro limite ao arbítrio da autonomia privada coletiva. Contudo, como a discussão acerca das possibilidades e limites da negociação coletiva é tema relativamente novo no direito trabalhista brasileiro, observa-se uma certa dificuldade dos estudiosos do direito em chegar a um consenso objetivo quanto aos limites impostos pelo ordenamento jurídico à criatividade jurídica coletiva. Nesse contexto, ganha relevo o princípio da adequação setorial negociada, que busca balizar a adequação setorial dos direitos trabalhistas realizada pela via coletiva.
Se é certo que uma das funções da negociação coletiva é adequar os rígidos direitos trabalhistas aos interesses setoriais de produção e trabalho, não é menos certo afirmar, como o fez Mauricio Godinho Delgado, que há limites à adequação efetivada pela negociação coletiva e que apenas o respeito a esses limites é que permite preservar a estrutura e a finalidade protetiva do Direito do Trabalho[10].
Ainda utilizando-se das palavras de Mauricio Godinho Delgado, afirma-se que o princípio da adequação setorial negociada informa que:
[...] as regras autônomas juscoletivas podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista, quanto à comunidade profissional e econômica envolvida, desde que implementem padrão social de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável, ou desde que transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta) [11].(em itálico no original)
Do trecho transcrito, infere-se que o princípio da adequação setorial negociada, para proceder a uma limitação objetiva à autonomia privada coletiva, utiliza-se da diferenciação das regras trabalhistas quanto à sua indisponibilidade, classificando, pois, as regras trabalhistas em de indisponibilidade absoluta ou de indisponibilidade relativa. Para Mauricio Godinho Delgado, as regras trabalhistas de indisponibilidade absoluta, intransacionáveis ainda que por negociação coletiva, constituem um patamar civilizatório mínimo – conjunto de regras sem as quais não se concebe a existência de trabalho digno[12].
4. Conclusão
Por todo o exposto, é possível concluir que o princípio da adequação setorial negociada é um instrumento de atuação do princípio justrabalhista da proteção no cenário das negociações coletivas trabalhistas. Assim como a teoria do conglobamento, ou a teoria da acumulação, dependendo de qual das teorias se adote, serve de instrumento para a concretização do princípio protetor em relação à aplicação da norma mais favorável, o princípio da adequação setorial negociada funciona como instrumento de conformação, de adequação, do exercício da autonomia privada coletiva, através da criatividade jurídica da negociação coletiva, à finalidade de proteção do trabalhador própria do Direito do Trabalho.
5. Referências
[1] CONSTITUIÇÃO FEDERAL. “Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; [...] XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”.
[2] Vale ressaltar que, apesar de autora referir-se, no trecho transcrito, apenas aos conflitos entre instrumentos coletivos, entendo que a teoria pode ser aplicada também para os conflitos entre instrumento coletivo e norma heterônoma. A própria autora ressalva, mais adiante, em seu texto, que “as normas conflitantes poderão ser de fontes de origem autônomas e de fontes de origem heterônomas, podendo ainda o conflito ocorrer entre fontes de origens autônomas e heterônomas”. Cf. LONGHI, Dânia Fiorin. Teoria do Conglobamento. Universia. Disponível em: <http://biblioteca.universia.net/ficha.do?id=38076851>. Acesso em: 14 nov. 2009.
[3] [4] LONGHI, Dânia Fiorin. Teoria do Conglobamento. Universia. Disponível em: <http://biblioteca.universia.net/ficha.do?id=38076851>. Acesso em: 14 nov. 2009.
[5] São nomes que se posicionam ao lado da teoria do conglobamento por institutos: DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2007; RUPRECHT, Alfredo J. Os princípios do direito do trabalho. Trad. Edilson Alkimin Cunha. São Paulo: LTr, 1995; RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. Trad. Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 1978; entre outros.
[6] CONSTITUIÇÃO FEDERAL. “Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho;”
[7] CONSTITUIÇÃO FEDERAL. “Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]) VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; [...] XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”.
[8] CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. “Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes”.
[9] Vale lembrar que a renúncia também é vedada no âmbito juscoletivo trabalhista. Sobre o tema, cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 1322-1323. O autor assevera que “[...] ao processo negocial coletivo falecem poderes de renuncia sobre direitos de terceiros (isto é, despojamento unilateral sem contrapartida do agente adverso). Cabe-lhe, especialmente, promover transação (ou seja, despojamento bilateral ou multilateral, com reciprocidade entre os agentes envolvidos), hábil a gerar normas jurídicas”. (em itálico no original)
[10] Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 1289.
[11] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 1289-1290.
[12] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 1290.
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba (ESMAT-13).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Larissa Costa de. Flexibilização Juslaboral Mediante Negociação Coletiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jun 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46864/flexibilizacao-juslaboral-mediante-negociacao-coletiva. Acesso em: 22 nov 2024.
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