Resumo: Não há unanimidade em sede de doutrina e jurisprudência acerca da responsabilização civil do Estado por omissão. Pesquisas sobre o tema indicam que há quem defenda que a responsabilização deve ser objetiva e outros, subjetiva. É necessário que a omissão do Estado seja vista por um novo prisma: o do direito fundamental à boa administração. Faz-se importante reconhecer que, à luz do princípio da proporcionalidade e do direito fundamental à boa administração pública, o Poder Público deverá responder objetivamente pelos danos causados por sua “omissão inconstitucional”.
Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado objetiva e subjetiva; omissão do Estado; direito fundamental à boa administração; princípio da proporcionalidade.
Abstract: There is no unanimity in doctrine and case law based on the civil liability for failure to state. Research on the subject indicates that there are those who argue that accountability should be objective and others subjective. It is necessary that Government’s failure to be seen by a new way: the fundamental right to good administration. It will be important to recognize that, in the light of the principle of proportionality and the fundamental right to good administration, Government must respond objectively for damage caused by his unconstitutional omission.
Keywords: Liability of the Government (objective and subjective); omission of the Government; fundamental right to good administration; proportionality.
O presente trabalho foi desenvolvido com o intuito de apresentar os principais aspectos concernentes à responsabilidade do Estado por omissão, tanto do ponto de vista doutrinário como jurisprudencial.
Para tanto discorreremos sobre noções de responsabilidade civil do Estado; conceitos e aplicações da responsabilidade civil em omissão do Estado, apontando fundamentos doutrinários e jurisprudencial sobre as teses objetiva e subjetiva; por fim, traçaremos um enfoque sob a perspectiva do direito fundamental à boa administração.
Em sede de doutrina, não há unanimidade quanto ao nome pelo qual deve ser tratado o dever do Estado de ressarcir ou indenizar terceiros por danos a eles causados.
Historicamente e em decorrência do nome habitual aplicado à responsabilidade entre particulares, consagrou-se a expressão “responsabilidade civil do Estado”. Em 1904, o Ministro Amaro Cavalcanti já utilizava a expressão, como se observa: “se não havia nem há uma disposição de lei geral, reconhecendo e firmando a doutrina da responsabilidade civil do Estado, nem por isso menos certo que essa responsabilidade se acha prevista em diversos artigos de leis e decretos particulares(...)”[1].
Diogenes Gasparini adota em sua obra a expressão clássica “responsabilidade civil do Estado”.[2] Esta expressão está também presente em diversos julgados atuais dos Tribunais Superiores, sendo utilizado por diversos Ministros do Supremo Tribunal Federal[3], como Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Roberto Barroso e outros, e também no Superior Tribunal de Justiça[4], entre os muitos Ministros, apenas para ilustrarmos, destacamos Mauro Campbell Marques, Humberto Martins, Benedito Gonçalves e Herman Benjamin.
Além disso, a expressão encontra-se consignada como verbete do Dicionário Jurídico de Maria Helena Diniz[5].
No dicionário de De Plácido e Silva, porém, consta apenas “responsabilidade administrativa”, admitindo-se “responsabilidade civil” como aquela relacionada ao dever de reparação de danos entre particulares.[6]
Hely Lopes Meirelles prefere a designação “responsabilidade civil da Administração Pública”, por entender que a responsabilidade surge, em regra, de atos da Administração e não dos atos do Estado como entidade política, sendo que, via de regra, os atos políticos não gerariam responsabilidade civil.[7]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro censura a expressão empregada por Hely Lopes Meirelles, considerando errado falar em “responsabilidade da Administração Pública”. Segundo ela, a responsabilidade é do Estado como pessoa jurídica, uma vez que a Administração Pública não tem personalidade jurídica, não sendo, ela mesma, titular de direitos e obrigações na ordem civil. Por essa razão, para o tema que trataremos aqui, a autora utiliza a expressão “responsabilidade extracontratual do Estado”.[8]
Por sua vez, Celso Antônio Bandeira de Mello se utiliza, em seu “Curso de Direito Administrativo”, da expressão “responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado por comportamentos administrativos”[9].
Como podemos observar há na doutrina inúmeros nomes que são atribuídos à responsabilidade de o Estado compensar terceiro prejudicado por dano causado. Em vista disso e como não é o escopo deste trabalho discorrer sobre a melhor das expressões doutrinárias, as utilizaremos indistintamente, privilegiando a expressão clássica “responsabilidade civil do Estado”.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado é
“a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhes sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos.”[10]
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro o conceito é basicamente o mesmo. Ela reafirma que a responsabilidade patrimonial pode ser decorrente de atos lícitos ou ilícitos, sendo essencial apenas que se verifique um dano causado a terceiro por comportamento de agente do Estado, seja por comportamento comissivo ou omissivo. A administrativista pontua ainda que a responsabilidade do Estado, ao contrário do direito privado (que sempre exige ato ilícito), “pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior que o imposto aos demais membros da coletividade.”[11]
O cabimento de responsabilização do Estado passa, necessariamente, por violação (dano) a direito de terceiro. Por isso é tão importante, como faz Renato Alessi, distinguir “violação” de “sacrifício de direito”.[12]
É certo que nas relações do Estado, o interesse público deve predominar sobre o interesse privado. Di Pietro aponta que, embora as normas de direito público “protejam reflexamente o direito individual, [elas] têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo”.[13]
Para o atingimento do interesse público, muitas vezes, é necessário que ocorra um debilitamento de direito privado causado pelo Estado, por força de um poder conferido pela ordem jurídica, em que há autorização para a prática de ato em que o próprio conteúdo intrínseco especificamente exigir o sacrifício de direito de outrem. Neste caso, não podemos falar em responsabilidade.[14]
Porém, é importante lembrarmos que é, sim, possível identificar responsabilidade civil do Estado por atos lícitos. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, isto se dará quando “o poder deferido ao Estado e legitimamente exercido acarreta, indiretamente, como simples consequência – não como sua finalidade própria –, a lesão a um direito alheio.”[15]
José dos Santos Carvalho Filho anota que os sujeitos do cenário concernente à responsabilidade civil do Estado são três: o Estado, o lesado e o agente do Estado, sendo o próprio Estado responsável pelos danos que seus agentes causarem a terceiros.[16]
Esta afirmação ganha mais sentido à luz da teoria da responsabilidade objetiva do Estado, conhecida também como a teoria do risco administrativo.
Em verdade, na História do Direito Administrativo, é possível notar uma contínua evolução nas questões atinentes à responsabilização do Estado. Por muito tempo prevaleceu que o Estado, fundado em sua soberania, não poderia ser responsabilizado por seus atos, constituindo, assim, a teoria da irresponsabilidade.
Posteriormente, ganhou força a teoria civilista da culpa (ou teoria da responsabilidade subjetiva), cuja ideia central era a de que o Estado teria, sim, de responder pelos danos causados a terceiros, desde que verificada a sua culpa e que a origem do dano fosse um “ato de gestão” – afastando-se responsabilidade decorrente dos “atos de império”.
No final do século XIX, o famoso l'arrêt Blanco[17] deu asas ao entendimento de que a responsabilização do Estado não poderia ser regida unicamente pelos princípios civilistas, dada a especialidade institucional, dispensando-se a distinção entre os “atos de gestão” e os “de império”. É aqui que surgem as teorias publicistas, fortalecendo a teoria da culpa administrativa (ou culpa do serviço).
Seguindo o curso da História, concebeu-se a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, fundada no risco administrativo, ou seja, torna-se dispensável a verificação do fator culpa (bem como do dolo) em relação ao dano, racionalizando o conceito anteriormente apresentado de que a responsabilidade deve ser observada não só em atos ilícitos, mas também lícitos.[18]
Antes de aprofundarmos nossos estudos em um ponto crucial do presente trabalho, que é a responsabilidade do Estado por omissão – onde também retomaremos com maior zelo a teoria do risco administrativo –, parece-nos indispensável termos muito clara a distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva.
Maria Helena Diniz aponta que uma das formas de classificar a responsabilidade civil é por seu fundamento. Quando este for a existência de culpa ou dolo por ação ou omissão, exige-se prova de negligência, imprudência ou imperícia para que haja o dever de reparar o dano e tem-se a chamada responsabilidade subjetiva. Por outro lado, a responsabilidade objetiva se funda no risco, sendo irrelevante prova da conduta culposa ou dolosa do causador do dano, sendo suficiente para o dever de indenizar a existência de nexo causal entre o prejuízo que a vítima tenha sofrido e a ação do agente.[19]
Como dissemos anteriormente, é possível que o Estado tenha de ser responsabilizado por comportamentos omissivos. Celso Antônio Bandeira de Mello anota que quando o serviço público não funciona, funciona tardia ou ineficientemente, deve-se aplicar a responsabilidade subjetiva, observando-se se o Estado estava obrigado a impedir o evento lesivo.[20]
Já afirmamos e veremos mais adiante com maior profundidade que o direito atual concebe como regra a responsabilização objetiva do Estado, mas quando falamos em responsabilidade por omissão, há divergências, existindo entendimentos de que a responsabilidade é subjetiva ou objetiva.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro anota a existência das duas correntes e, embora adote a teoria subjetiva, indica que a maioria da doutrina optou pela responsabilização objetiva. Ela aduz ainda que “a diferença entre as duas teorias é tão pequena que a discussão perde um pouco de interesse, até porque ambas geram para o ente público o dever de indenizar”.[21] Celso Antônio Bandeira de Mello, porém, lembra que nos casos de “culpa presumida” se o Poder Público provar inexistência de omissão culposa ou dolosa, não terá dever de indenizar. Ao contrário, quando se está diante de responsabilidade objetiva, à responsabilização haverá presunção ex jure, não importando se teve ou não culpa.[22]
Há na doutrina quem, como Hely Lopes Meirelles, defenda a responsabilidade civil objetiva do Estado, também nos comportamentos omissivos, pois o a Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º[23], teria abandonado a teoria subjetiva da culpa, adotando fielmente a teoria do risco administrativo.
Como vimos para que haja responsabilização subjetiva, em regra, deve ser apurada a existência de culpa ou dolo na ação danosa. José dos Santos Carvalho Filho (2008, p. 531) explica que “a culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano”.[24]
Conforme as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, na responsabilidade subjetiva do Estado não é necessário que a culpa seja individualizada, prevalecendo a ideia de faute du service, presente no direito francês, que, entre nós, deve ser entendida como culpa do serviço.[25]
Em estudos na França, Paul Duez apresentou as formas em que poderia se apresentar a faute du service: “1) o serviço funciona mal (culpa in committendo); 2) o serviço não funciona (culpa in ommittendo); 3) o serviço funciona tardiamente”.[26]
Também para Carlos Ari Sundfeld, quando houver responsabilidade do Estado por omissão, ela deverá ser subjetiva. Isto porque, segundo ele,
“quando em pauta a responsabilidade por comportamento negativo, o Estado só responderá se houver omitido dever que lhe tenha sido prescrito pelas normas; não se sua inação for ilícita. É que o conceito de omissão, em direito, está ligado ao de ilicitude. Sob o ponto de vista jurídico, a mera inação não configura omissão; esta só se apresenta quando tendo o dever de agir o sujeito fica inerte”.[27]
Neste sentido, é certo dizer que para esta corrente, nos casos de omissão do Poder Público, tem-se uma modalidade de responsabilidade subjetiva, com o natural dever de indenizar, mas que, muitas vezes, inexige a comprovação da culpa, por constituir-se em presunção juris tantum (admite prova em contrário).
A este respeito, em julgamentos no Supremo Tribunal Federal, o então Ministro Carlos Velloso tinha por certo que, em se tratando de atos omissivos do Poder Público, deve-se reconhecer a responsabilidade civil subjetiva, não sendo necessário individualizar o dolo ou a culpa, podendo esta ser atribuída de forma genérica, conforme a teoria da “falta do serviço” (faute du service)[28].
Nas pesquisas jurisprudenciais na Corte Constitucional, contrariando o que expressou Di Pietro, há maior número de julgados que se apoiam na doutrina subjetivista da responsabilidade do Estado e na faute du service. A tese é seguida por diversos Ministros da composição atual do STF, como Ricardo Lewandowski,[29] Gilmar Mendes,[30] Roberto Barroso,[31] Rosa Weber,[32] e Luiz Fux[33]. Do mesmo posicionamento partilhavam outros ilustres Ministros da Suprema Corte, como Ilmar Galvão, Moreira Alves, Cezar Peluso e Eros Grau.[34]
Também no Superior Tribunal de Justiça prevalece que, quando caracterizada a responsabilidade subjetiva do Estado, na conjugação dos elementos a) dano; b) negligência administrativa e c) nexo causal entre o evento danoso e o comportamento ilícito do Poder Público, é mister que seja reconhecido o direito de indenização ao prejudicado.[35]
Apenas para ilustrarmos a força da teoria da responsabilidade subjetiva por comportamentos omissivos do Estado no STJ, podemos citar diversos ministros que comungam deste entendimento. Entre eles, Herman Benjamin,[36]Assusete Magalhães,[37] Humberto Martins[38] e a Ministra aposentada Eliana Calmon.[39]
A Ministra Eliana Calmon ementou com segurança o REsp 721439/RJ, em que admitiu a divergência em sede de doutrina, mas reconheceu que na jurisprudência prevalece a teoria subjetiva do ato omissivo. Aqui, colacionamos a ementa do referido julgado, com nossos grifos:
“ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO OMISSIVO – QUEDA DE ENTULHOS EM RESIDÊNCIA LOCALIZADA À MARGEM DE RODOVIA
1. A responsabilidade civil imputada ao Estado por ato danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-se o dever de indenizar quando houver dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto.
2. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso resultar de caso fortuito ou força maior, ou decorrer de culpa da vítima.
3. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes da responsabilidade objetiva e da responsabilidade subjetiva, prevalece, na jurisprudência, a teoria subjetiva do ato omissivo, só havendo indenização culpa do preposto.
4. Recurso especial improvido.”[40]
José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, expressa o entendimento de que a responsabilidade objetiva do Estado “pressupõe menção expressa em norma legal”.[41] Para tanto, o autor se vale da previsão normativa do parágrafo único do art. 927 do Código Civil[42] para qual a responsabilidade objetiva (“independentemente de culpa”) haverá nos casos que a lei especificar. Ainda segundo ele, o art. 43 do mesmo Codex[43] e nem mesmo o art. 37, § 6º da Constituição Federal teriam feito menção a condutas omissivas dos agentes do Estado. Por esta razão, para ele, essas regras só valem para comportamentos comissivos, incidindo aos omissivos a responsabilidade estatal apenas quando houver culpa.[44]
Nas discussões jurídicas, além daqueles que defendem a responsabilidade subjetiva do Estado por omissão, pelos fundamentos expostos anteriormente, há muitos que proclamam que o Estado deve ser responsabilizado objetivamente não só nos comportamentos comissivos, mas também nos omissivos.
É certo que o próprio Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que a responsabilidade do Estado nos atos ilícitos (comissivos e omissivos) é consequência do princípio da legalidade; e que nas lesões decorrentes de comportamentos lícitos, o dever de reparar se fundamenta na necessidade de garantir uma repartição equânime dos prejuízos.[45]
A corrente que defende a aplicabilidade da teoria do risco administrativo para as omissões do Estado se pauta pelo entendimento de que não há razões para fazer distinções práticas de responsabilidade quanto aos comportamentos lesivos comissivos ou omissivos. Quando se fala em responsabilidade objetiva, dispensa-se a existência de culpa, colocando como questão central à responsabilização o risco da atividade.
Leciona Caio Mário da Silva Pereira que:
“Em termos de responsabilidade civil, risco tem sentido especial, e sobre ele a doutrina civilista, desde o século passado [século XIX] vem-se projetando, com o objetivo de erigi-lo em fundamento do dever de reparar, com visos de exclusividade, ou como extremação da teoria própria, oposta à culpa.”[46].
De fato, a previsão civilista do parágrafo único do art. 927, como observamos oportunamente, é de que o aferimento de culpa pode ser dispensado se a lei assim determinar.
Também se verifica, administrativamente, a atribuição de responsabilidade objetiva ao Estado, por expressa previsão constitucional no art. 37, § 6º dispõe claramente pela responsabilização objetiva.
Segundo Hely Lopes Meirelles, o art. 37, § 6º, da Carta Magna, consagrou “o princípio objetivo da responsabilidade sem culpa.”[47]
Com lucidez, disserta Juarez Freitas:
“não dimana do art. 37, § 6º, da CF nenhuma rigidez dicotômica no regime da responsabilidade do Estado, no tocante às condutas omissivas ou comissivas dos agentes públicos lato sensu, mormente se se acolher a noção de causalidade (...), que não reduz a omissão à mera condição para o dano”.[48]
(FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2009)
Luis Manuel Fonseca Pires afirma que a prescrição constitucional sobre o tema representa uma imputação normativa, que tem relevância, indistintamente, a comportamentos comissivos ou omissivos, desde que nestes exista o dever jurídico de evitar lesão a terceiros, dispensável a prova de culpa, pois não há como falar em nexo causal.[49]
No Supremo Tribunal Federal, como relator do Recurso Extraordinário 327904/SP, o Ministro aposentado Ayres Britto posicionou-se pela prevalência da teoria do risco administrativo, prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, valendo a regra tanto para atos como para omissões dos agentes do Estado. Comentando o dispositivo constitucional, Ayres Britto explica que este consagra uma dupla garantia: a primeira seria quanto ao particular que tem o direito de ser indenizado; a outra seria em favor do servidor, pois só responderá civil e administrativamente perante a pessoa jurídica de direito público.[50]
Um dos principais expoentes na jurisprudência em defesa da responsabilidade objetiva em omissão é o Ministro Celso de Mello, decano da Suprema Corte brasileira. A ementa do Recurso Extraordinário 109.615/RJ, de sua relatoria, é praticamente uma aula de responsabilidade civil do Estado e a teoria do risco administrativo:
“(...) A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. - Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417). - O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima(...)”[51]
Os casos de morte ou danos à integridade física de preso sob a custódia do Estado não costuma suscitar divergências, sendo praticamente certo na jurisprudência que, nestas hipóteses, a responsabilidade será sempre objetiva.[52]
Celso Antônio Bandeira de Mello entende que esta situação se afiguraria como um “dano dependente de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória”, ou seja, o Poder Público constitui (ato comissivo) fatores que favorecem a emergência do evento danoso. Para ele, portanto, não se trata de comportamento omissivo, mas comissivo. E, como tal, a responsabilidade seria objetiva.[53]
No estudo da responsabilidade extracontratual do Estado, observamos que uma corrente defende que, mesmo em caso de lesões por omissão, tem-se responsabilidade objetiva, ou seja, que requer uma conduta (no caso, omissiva), um dano e o nexo causal entre eles, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do Estado, que, por sua vez, pode derrubar a presunção juris tantum, provando o contrário.
O nexo causal deve ser direto, afastando-se a responsabilização estatal nos casos de culpa exclusiva da vítima, por força maior irresistível, por fato de terceiro que não seja agente público nem tenha relação com a Administração e em comprovado caso de impossibilidade de execução em virtude da “reserva do possível”, desde que atingido o atendimento ao mínimo existencial.
Juarez Freitas entende que o dano é “desproporcional”, na medida em que se caracteriza por ser: “(i) certo, (ii) especial (não eventual), ainda que reflexo e (iii) discrepante dos parâmetros do normalmente aceitável”.[54]
Dando seguimento ao trabalho, desenvolvido na obra coletiva Responsabilidade Civil do Estado[55], o autor defende que os direitos fundamentais têm aplicabilidade direta, à luz do parágrafo 1º, do art. 5º, da Carta Constitucional de 1988. Em vista disso, parece-lhe imprescindível “uma teoria da responsabilidade ajustada à ampliação eficacial dos direitos”.[56]
Freitas evoca a proporcionalidade para defender que a Constituição não admite a inércia do Estado na realização de esforços para atender o interesse público, sob pena de ser responsabilizado. Por fim, o autor aponta que reconhecida a antijuridicidade da conduta omissiva desproporcional, com vistas ao combate das “omissões inconstitucionais” e o “Estado arbitrário por omissão”, deve-se aliar os princípios da proporcionalidade e da responsabilidade, no sentido da máxima aplicação do direito fundamental à boa administração pública.[57]
A argumentação de Juarez Freitas não foge muito à realidade atual do Poder Judiciário no Brasil. Ainda que timidamente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros dá sinais de que pode admitir o direito fundamental à boa administração como razão de decidir, reconhecendo-o por sua existência e alcance jurídico, apesar de, como já explanamos, não estar previsto expressamente no Texto Constitucional. Sua força é decorrente do sistema. Observe-se a ementa do julgado a seguir, que destacamos:
“ADMINISTRATIVO – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC – TERCEIRO ADQUIRENTE DE AUTOMÓVEL – CERTIFICADO DE REGISTRO DE VEÍCULO EMITIDO SEM ANOTAÇÃO DE NENHUM GRAVAME – ULTERIOR IMPORTAÇÃO DE RESTRIÇÕES PRETÉRITAS – VIOLAÇÃO DA BOA-FÉ E DO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA.
1. O recorrente adquiriu um automóvel, sobre o qual não havia qualquer gravame registrado no órgão de trânsito, e na emissão do Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo também não constava qualquer observação. Posteriormente, quando a autarquia passou a integrar o Sistema Nacional de Gravame, houve a importação de restrições pretéritas.
2. A situação descrita no acórdão recorrido malfere o princípio segundo o qual se deve proteger terceiros de boa-fé. Abala também a confiança que deve existir entre os administrados e o Poder Público, em ultima análise, viola o direito fundamental à boa administração pública.
3. Não é concebível que um cidadão que adquire um automóvel e se cerca de todas as providências cabíveis para conhecer da existência de possíveis gravames sobre o bem, que obtém uma certidão oficial de um órgão público no qual é atestado a inexistência de ônus, venha, posteriormente, a ser surpreendido com a importação de restrições pretéritas. Quando agiu desta forma, a administração pública violou uma das dimensões do princípio da confiança - quebrar as expectativas legítimas depositadas nos atos administrativos.
4. Com efeito, a anotação de restrições pretéritas à transferência, uma vez que não constavam no certificado de registro do veículo automotor quando adquirido por terceiro de boa-fé é ato ilegal, imputável à autoridade administrativa, que merece ser extirpado.
Aplicação, no caso, da ratio essendi da Súmula 92/STJ, segundo a qual, "A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no certificado de registro do veiculo automotor." Recurso especial provido.”[58]
Verifica-se, portanto, nas lições de Juarez Freitas, que o Poder Público deverá responder objetivamente pelos danos causados por sua “omissão inconstitucional”, em favor do que dispõe o próprio sistema constitucional brasileiro, à luz do princípio da proporcionalidade e do direito fundamental à boa administração pública.
Diante do cenário exposto acerca das divergências relativas à responsabilização do Estado por sua omissão, pode-se ver, às luzes do trabalho de Juarez de Freitas, que também esta questão deve ser revisitada sob a óptica do direito fundamental à boa administração e de princípios norteadores, notadamente a proporcionalidade.
Assim, em que pesem os entendimentos contrários, com acerto, Freitas defende que o Estado deve responder na modalidade objetiva quando detectados danos causados por sua omissão inconstitucional.
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Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: www.stj.jus.br
[1] Min. AMARO CAVALCANTI apud BANDEIRA DE MELLO (2007), op. cit., pp. 999-1000.
[2] GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 1100 e ss.
[3] V. e.g., STF - ARE 948895 AgR/SP, RE 945343 AgR/MG, RE 598537 AgR/PE, ARE 910882 AgR/RS
[4] V. e.g., STJ - REsp 1144262 / PE, AgRg no REsp 1226945 / PR, AgRg no Ag 1330275 / BA, AgRg no Resp 1197876
[5] Cf. DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 3. ed. rev., atual. e aum., São Paulo: Saraiva, 2008, v. 4, pp. 194-195
[6] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 28. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 1214-1215.
[7] Op. cit., p. 656.
[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23. ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 642.
[9] Op. cit., p. 967
[10] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 967.
[11] Cf. DI PIETRO (2010), op. cit., p. 642
[12] ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano. 3.ed., Milão: Giuffrè, 1955, pp. 155 e ss. in BANDEIRA DE MELLO, op. cit. (2007), p. 968.
[13] Op. cit., p. 65.
[14] Neste sentido, BANDEIRA DE MELLO, op. cit., pp. 968-969.
[15] Op. cit., p. 969, grifos originais.
[16] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 20. ed. rev., ampl. e atual., Brasília: Lumen Juris, 2008, p. 515.
[17] Em 1873, o Tribunal de Conflitos da França decidiu que era o tribunal administrativo que deveria julgar a responsabilidade no caso de atropelamento de uma garota, Agnès Blanco, por um vagonete da Cia. Nacional de Manufatura de Fumo, visto que a responsabilidade era decorrente de prestação de serviço público.
[18] Quanto às questões sobre o histórico, ver CARVALHO FILHO, op. cit., pp. 516-518 e DI PIETRO, op. cit., pp. 643-646.
[19] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 7: responsabilidade civil. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2005, p. 129.
[20] Op. cit., p. 987.
[21] Op. cit., pp. 654-655
[22] Op. cit., pp. 977-978 e 989
[23] “Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
[24] Op. cit., p. 531.
[25] Op. cit., p. 976.
[26] DUEZ, Paul. Responsabilité de la Puissance Publique, Paris, 1927, p. 15, apud BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 979 (tradução livre).
[27] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 182, grifos originais.
[28] V. STF - RE382054/RJ, AI512698 AgR/AC, RE 369820/RS
[29] V. STF - RE 585007 AgR / DF, AI 653338 AgR / MS
[30] V. STF - RE 677139 AgR-EDv-AgR / PR
[31] AI 763873 AgR / SP
[32] AI 850063 AgR / MG
[33] RE 695887 AgR / PB
[34] V. STF - RE 172.025/RJ, Relator Min. Ilmar Galvão; RE 130.764/PR, Relator Min. Moreira Alves; AI 742268 AgR / RJ, Relator Min. Cezar Peluso; RE 602223 AgR / RN, Relator Min.Eros Grau
[35] V. STJ - REsp 1228224 / RS
[36] V. STJ - AgRg no Ag 1216939 / RJ
[37] V. STJ - AgRg no REsp 1345620 / RS
[38] V. STJ - AgRg no REsp 1562277 / MG
[39] V. STJ - REsp 1198534 / RS
[40] V. STJ - REsp 721439/RJ, grifos nossos
[41] Op. cit., pp. 531-532
[42] “Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
[43] “Art. 43 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.”
[44] Cf. CARVALHO FILHO, op. cit., p. 532
[45] Op. cit., p. 981
[46] PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Responsabilidade civil”. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 279, grifos originais.
[47] Op. cit., p. 662, grifos originais.
[48] Op. cit., p. 76.
[49] PIRES, Luis Manuel Fonseca. Responsabilidade civil do Estado por insuficiência da segurança pública in GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2010, pp. 719-721.
[50] STF - RE 327904 / SP
[51] V. STF - RE 109615 / RJ
[52] V. STF - RE 594902 AgR / DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, AI 799789 AgR / GO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, AI 724018 AgR / SP, Rel. Min. Cezar Peluso, AI 577908 AgR / GO, Rel. Min. Gilmar Mendes.
[53] Op. cit., p. 992.
[54] FREITAS, Juarez. Responsabilidade civil do Estado, a omissão inconstitucional e o princípio da proporcionalidade in GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello; PIRES, Luis Manuel Fonseca; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 230
[55] Conforme citação anterior.
[56] Cf. FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2009., p. 233.
[57] Op. cit., pp. 235-237.
[58] V. STJ - REsp 1139486 / DF, Rel. Min. Humberto Martins, Data do julgamento: 24/11/2009
Mestrando na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com linha de pesquisa em Efetividade do Direito Público e Limitações da Intervenção Estatal e núcleo de pesquisa em Direito Constitucional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé TADEU DE BARROS NóBREGA, . Responsabilidade civil do Estado por omissão e o direito à boa administração Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46949/responsabilidade-civil-do-estado-por-omissao-e-o-direito-a-boa-administracao. Acesso em: 22 nov 2024.
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