1. Introdução
A percepção de um adicional remuneratório por parte de obreiros que desempenham suas atividades profissionais em condições insalubres foi um dos muitos direitos alcançados ao longo da história pela classe trabalhadora no Brasil. A parcela já estava prevista pela Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 192, com redação dada pela Lei 6.514 de 1977. Mas foi em 1988 que o adicional passou a possuir proteção constitucional, sendo assegurado no art. 7º, XXIII, da Carta Magna vigente.
O art. 192 da CLT, ao definir o adicional de insalubridade, determina que seu valor corresponderá a 10%, 20% ou 40% do salário mínimo, a depender do grau da exposição do empregado aos agentes que o motivam. E por falta de outro texto legal posterior que tratasse do assunto, o dispositivo consolidado, mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, a princípio, continuou servindo de parâmetro para o pagamento da vantagem.
Ocorre, no entanto, que o mesmo art. 7º da CF/88, em seu inciso IV, proíbe a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. Desde então, doutrina e magistrados vinham debatendo acerca da constitucionalidade ou não da base de cálculo do adicional estipulada pelo art. 192 da CLT. Até que o Supremo Tribunal Federal, em 30 de abril de 2008 – quase 20 anos após a promulgação da Carta Magna, portanto –, declarou inconstitucional a adoção do mínimo com esse fim, ao editar a Súmula Vinculante nº 4.
Ao fazê-lo, porém, o Pretório Excelso não determinou nenhuma outra referência sobre a qual incidiria a percentagem. Mais que isso, impediu que o Judiciário estabelecesse uma nova base de cálculo, atribuindo esse dever exclusivamente ao legislador, deixando, a priori, uma lacuna no ordenamento jurídico, ao menos enquanto não sobreviesse outra lei que substituísse o conteúdo do art. 192.
É sobre esta problemática que trata o presente artigo. Mas não se limita a isso. Afinal, em torno desse impasse surgem vários outros questionamentos. A começar pelo mais essencial: a Súmula Vinculante nº 4 é pertinente, ou, até, válida? Diante do seu texto, que base de cálculo deveria ser usada para se chegar ao valor devido ao trabalhador? Se não houvesse nenhuma, a vantagem, detentora de proteção constitucional, poderia deixar de ser paga? Além disso, por quais meios seria possível dar fim a essa lacuna no ordenamento jurídico? E, finalmente, que base de cálculo seria a ideal para se chegar ao valor do adicional de insalubridade?
Achar as respostas para essas e outras questões análogas, de modo a trilhar um caminho possível para se atingir a segurança jurídica acerca do tema, foi o que motivou a elaboração do presente texto. Afinal, deve-se proteger a observância de um direito constitucional que tem a ver, de forma imediata, com a remuneração do trabalhador – parte hipossuficiente na relação de emprego – e, de forma mediata, com sua saúde.
Não bastasse isso, o tema se faz importante também pela atualidade. Ora, a Súmula Vinculante nº 4, ponto central da discussão, embora date de pouco mais de oito anos atrás, segue vigente. E ao mesmo tempo em que declara a inconstitucionalidade da vinculação do salário mínimo a outras vantagens remuneratórias, proíbe que outro Poder preencha tal lacuna, que não o Legislativo. Órgão que, por sua vez, segue inerte desde então, perpetuando um estado de inconstitucionalidade por omissão em torno do instituto do adicional de insalubridade.
Vê-se, ademais, que as respostas definitivas para vários dos questionamentos citados ainda não foram dadas pelas autoridades competentes, sendo válida qualquer produção intelectual que contribua nesse sentido.
2. O salário mínimo e a inconstitucionalidade de sua vinculação
Não é à toa que a Constituição Federal de 1988 é chamada pelos jurisconsultos de Constituição Cidadã. Promulgada cerca de três anos após o fim de um período de 21 anos de regime ditatorial no Brasil, ela reflete, mais do que qualquer outra já elaborada no País, a preocupação do constituinte em assegurar direitos individuais e sociais básicos ao cidadão brasileiro.
Nesse contexto, o art. 7º da Carta Magna lista um rol de garantias conferidas ao trabalhador, consagrando o princípio da proteção que impera no Direito do Trabalho, dada a conhecida hipossuficiência do obreiro frente ao empregador, que impera em regra. E entre esses direitos contidos no dispositivo constitucional, um dos mais importantes é sem dúvida o da percepção pelo trabalhador de um salário mínimo legal.
Em verdade, o salário mínimo está longe de ser um instituto novo no direito brasileiro. Afinal, ele já estava previsto no texto celetista original, datado de 1º de maio de 1943:
Art. 76. Salário mínimo é a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada época e região do País, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.
Acontece que a CF/88 aumentou sensivelmente a proteção em torno do instituto, conforme se pode deduzir da leitura do art. 7º, inciso IV, do texto constitucional:
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.
Uma rápida comparação entre os textos dos dois artigos – o celetista e o constitucional – já é suficiente para perceber o incremento das garantias em torno do salário mínimo, a partir de 1988, embora se saiba, é claro, do histórico desrespeito que tem sofrido esse trecho da Lei Maior por parte das autoridades brasileiras. E esse maior resguardo começa pela exigência da fixação de seu valor em lei. É claro que a proteção legal tem infinitamente mais legitimidade que a proporcionada por um decreto do Poder Executivo, instrumento utilizado antes da CF/88 para o estabelecimento do montante.
Em seguida, deve-se ressaltar o caráter nacional que passou a ter o salário mínimo. Antes, cada unidade da Federação poderia estipular seu valor individualmente, provocando odiosa disparidade entre os trabalhadores de cada Estado, em um país já tão desigual como o Brasil. Isso não significa que, após 1988, leis estaduais não possam estabelecer pisos diferentes para o salário pago ao obreiro em seu território. No entanto, este terá de ser pelo menos igual ou mais alto que o nacional.
Outra diferença importante é a de que, enquanto a CLT determina que o valor pago terá de garantir as necessidades “normais” apenas do trabalhador, a Constituição amplia essa proteção, estabelecendo que a quantia seja suficiente para “atender a suas necessidades vitais básicas (do trabalhador) e às de sua família”. Sem contar que as necessidades enumeradas pela Carta Magna são mais abrangentes que as abarcadas pelo texto celetista, que, ao citar alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte, omite-se de listar educação, saúde, lazer e previdência social.
Cite-se ainda a obrigatoriedade do reajuste periódico do valor do salário mínimo, olvidada pela CTL, mas trazida à baila pelo texto constitucional, de modo a lhe preservar o poder aquisitivo.
E é ainda no afã de preservar o valor real do salário mínimo da desvalorização que o art. 7º, IV, proibiu a sua vinculação “para qualquer fim”. Tal proibição, segundo Mauricio Godinho Delgado, em seu Curso de Direito do Trabalho (2009; pág. 707):
“Objetivava evitar a utilização da figura como medida de valor, prática que historicamente sempre conspirou contra sua efetiva valorização no contexto econômico”.
Assim sendo, o Supremo Tribunal Federal tem interpretado, segundo se pode observar em inúmeros precedentes, que é inconstitucional a estipulação de qualquer valor que utilize o salário mínimo como medida de indexação ou referência para pagamento de qualquer vantagem pecuniária, como, por exemplo, piso salarial de categorias profissionais, indenização por dano moral, correção monetária ou pensões.
3. O processo de elaboração da Súmula Vinculante nº. 4
Foi na proibição contida na parte final do inciso IV do art. 7º da Constituição que o Supremo se baseou para redigir a Súmula Vinculante nº 4. Eis sua íntegra:
“Súmula Vinculante nº 4: Salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”.
O principal alvo do texto sumular foi a base de cálculo do adicional de insalubridade, que, até a redação da súmula, era o salário mínimo, segundo o art. 192 da CLT, em sua segunda metade. Vale destacar o texto do dispositivo:
Art. 192. O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de quarenta por cento, vinte por cento e dez por cento do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo.
O STF entendeu, portanto, que a vinculação ao salário mínimo do adicional percebido por obreiros que laboram em condições insalubres poderia inibir o legislador à hora de majorar o piso, posto que o aumento acarretaria um gasto maior ao empregador não só no que diz respeito ao pagamento de um mínimo mais alto, mas também no tocante ao adicional, a ele vinculado, provocando o chamado efeito cascata.
É importante mencionar, no entanto, que esse entendimento nem sempre foi pacífico na Suprema Corte. Havia uma discrepância nos posicionamentos adotados pela Primeira e pela Segunda Turmas do tribunal: enquanto a Primeira decidia sempre pela inconstitucionalidade da vinculação do salário mínimo para qualquer fim (base de cálculo e indexador), a Segunda Turma julgava possível a utilização do salário mínimo como base de cálculo e a vedava para fins de indexação.
Vale analisar a ementa de um agravo regimental em agravo de instrumento cujo julgamento, pela Segunda Turma, data de maio de 2007, cerca de um ano antes da aprovação da Súmula Vinculante nº. 4 pelo Plenário do STF, em 30 de abril de 2008:
EMENTA. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. FIXAÇÃO EM PERCENTUAL DO SALÁRIO MÍNIMO. POSSIBILIDADE. O Supremo firmou entendimento no sentido de que o artigo 7º, IV, da Constituição do Brasil veda apenas o emprego do salário mínimo como indexador, sendo legítima a sua utilização como base de cálculo do adicional de insalubridade (Precedentes: AI n. 444.412-AgR, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 19.9.03; RE n. 340.275, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 22.10.04). Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 638100 AgR / ES – Espírito Santo Agravo Regimental em Agravo de Instrumento. Relator: Min. Eros Grau. Julgamento: 22/05/2007. Órgão Julgador: Segunda Turma)
Observe-se que bem antes a Primeira Turma já adotava postura diametralmente oposta:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRABALHISTA. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. VINCULAÇÃO AO SALÁRIO MÍNIMO. INCONSTITUCIONALIDADE. A utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade ofende a parte final do inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal. Precedentes: RE 435.011-AgR e AI 423.622-ED. Agravo Regimental desprovido. (RE 451220 AgR/ES – Espírito Santo. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Relator: Min. Carlos Britto Julgamento: 28/11/2006. Órgão Julgador: Primeira Turma)
No entanto, ainda em 2007, o Supremo unificou seu entendimento sobre a matéria, na medida em que a Segunda Turma aderiu ao posicionamento tradicionalmente adotado pela Primeira, no julgamento do seguinte recurso extraordinário:
EMENTA: Recurso extraordinário. 2. Adicional de insalubridade. Base de cálculo. 3. Vedação de vinculação ao salário mínimo. Posicionamento da 1ª Turma. Adesão. 4. Restabelecimento do critério estabelecido pelo Tribunal de origem para fixação da base de cálculo. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE. Nº. 439.035/ES – Espírito Santo. Recurso Extraordinário. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 11/12/2007)
Essa mudança de postura foi determinante para que o STF chegasse ao quorum necessário para a edição da Súmula Vinculante nº. 4. Afinal, esta deveria contar com a concordância de pelo menos dois terços do pleno da Corte. E, de fato, contou não só com a anuência dos oito ministros, mas com a unanimidade entre os membros do tribunal presentes à sessão que resultou em sua aprovação, conforme será visto.
Foi ao julgar o Recurso Extraordinário nº. 565.714/SP, no dia 30 de abril de 2008, do qual foi relatora a Ministra Cármen Lúcia, que o Supremo Tribunal Federal aprovou a referida súmula. E é curioso notar que a ação em questão não tratou diretamente da eficácia do art. 192 da CLT. O recurso decorreu de uma ação protocolada pelos policiais militares de São Paulo, que pediam a declaração de inconstitucionalidade do art. 3º e § 1º da Lei Complementar estadual nº. 432/85, que tratam do cálculo do adicional de insalubridade para servidores públicos paulistas. Dispunham os referidos trechos da lei:
Art. 3º - O adicional de insalubridade será pago ao funcionário ou servidor de acordo com a classificação nos graus máximo, médio e mínimo, em percentuais de, respectivamente, 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento), que incidirão sobre o valor correspondente a 2 (dois) salários mínimos.
(...)
§ 1º - O valor do adicional de que trata este artigo será reajustado sempre que ocorrer a alteração no valor do salário mínimo.
Em lugar do salário mínimo, postulavam os PMs paulistas que o adicional de insalubridade incidisse sobre o total da remuneração percebida por eles. Para fundamentar sua tese, remeteram o juízo ao art. 7º, XXIII, da Constituição, que utiliza o termo “adicional de remuneração” para “atividades penosas, insalubres ou perigosas”, donde se concluiria, segundo os autores da ação, que o adicional deveria incidir sobre o total de vencimentos percebidos por eles.
O entendimento da relatora, Ministra Cármen Lúcia, contudo, não foi exatamente o que esperavam os policiais. Apenas em parte. Como queriam os recorrentes, e citando a uniformização da jurisprudência da Suprema Corte no tocante à matéria, ela reverteu decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou pela recepção do art. 3º e § 1º da Lei estadual nº. 432/85 pela Constituição Federal. Eis um trecho de seu voto:
Não vislumbro (...) dúvida razoável ao entendimento de que a utilização do salário mínimo para formação da base de cálculo de qualquer parcela remuneratória ou com qualquer outro objetivo pecuniário (indenizações, pensões etc.) incide na vinculação vedada pela Constituição do Brasil. O que ali se proíbe é, exatamente, tornar-se o salário mínimo como um fator indexador para novos e diferenciados ganhos decorrentes ou não de dever remuneratório.
Por outro lado, a ministra se posicionou pela impossibilidade do estabelecimento da remuneração total como base de cálculo. Para ela, o texto do inciso XXIII do art. 7º da Carta Magna nada diz sobre tal base, mas versa tão somente sobre o fato do adicional de insalubridade fazer parte da remuneração:
A expressão “adicional de remuneração” do inciso XXIII do art. 7º da Constituição há de ser entendido como adicional remuneratório, ou seja, o trabalhador que desenvolve atividades penosas insalubres ou perigosas tem direito a um acréscimo, um adicional, que comporá a sua remuneração. Assim, o art. 7º, inciso XXIII da Constituição, mesmo que aplicável fosse ao caso, o que não parece ser, não define a base de cálculo para o adicional de insalubridade.
Diante dessas constatações, a ministra encaminhou seu voto no sentido de dar provimento parcial ao recurso, acolhendo o pleito dos policiais quanto à declaração da inconstitucionalidade do art. 3º e § 1º da Lei estadual 432/85, mas negando-o no que diz respeito à substituição do salário mínimo pela remuneração para base de cálculo.
Mas se o cálculo do adicional baseado no salário mínimo é inconstitucional e, por outro lado, não cabe adotar a remuneração como referência para o pagamento da parcela, como se chegaria ao valor devido aos policiais militares paulistas a título de adicional de insalubridade? Na tentativa de solucionar essa questão, a relatora sugeriu que o adicional fosse calculado sobre o valor correspondente a dois salários mínimos, seguindo o total vigente na data do trânsito em julgado do recurso, sendo o parâmetro atualizado segundo a correção monetária definida em lei. Essa referência valeria, segundo ela, “até a edição da lei a fixar, se for o caso, a nova base de cálculo”.
A solução encontrada pela relatora, data venia, não foi a melhor. Ora, segundo observaram na mesma sessão os Ministros Marco Aurélio de Mello e Cezar Peluso, a prevalecer a sugestão da ministra, o Supremo estaria ferindo o princípio non reformatio in pejus. Explica-se: os policiais militares recorreram ao STF para que fosse reformado um acórdão do TJSP que lhes fora desfavorável, pleiteando que a base de cálculo do adicional, que pela lei de constitucionalidade contestada seria o equivalente a dois salários mínimos, fosse alterada para o total de sua remuneração. Isso lhes beneficiaria, posto que a remuneração tenderia a ser maior que dois salários mínimos. Por outro lado, é sabido que raramente o índice de correção monetária acompanha a majoração do salário mínimo e, assim, a nova base de cálculo aventada pela relatora seria menos benéfica para os recorrentes do que aquela já vigente e atacada por eles no RE 565.714.
Mas, ainda assim, persistia a problemática sobre qual base de cálculo deveria ser adotada para a quantificação do adicional de insalubridade no presente caso. A solução foi dada também pelo Ministro Peluso. Para ele, outra decisão não se adequaria ao caso senão a de seguir adotando o salário mínimo como referência, apesar da presente inconstitucionalidade, porque, se adotasse qualquer outro posicionamento, o STF estaria atuando como “legislador positivo”. Eis alguns trechos da sua intervenção na sessão:
“Os autores querem substituir a base de cálculo que está na lei. O tribunal (paulista) negou! A coisa julgada vai ter por objeto esta solução de improcedência da ação. (...) O que o tribunal disse, a título de motivação (...), de que seria constitucional, não pode ser considerado pela Corte. A Corte substitui o fundamento do acórdão de S. Paulo pra manter o dispositivo do acórdão, mas por outro fundamento. A improcedência não vem porque a norma é constitucional, antes, vem do fato dela ser inconstitucional, mas a solução da causa é a mesma. Os autores não têm direito à mudança da base de cálculo. (...) Se nós tomarmos qualquer outra decisão nós estamos ou operando uma reformatio in pejus, ou estamos atuando como legislador positivo, o que também não me parece possível”.
O Supremo Tribunal, então, acolheu os citados argumentos e proclamou a seguinte decisão no julgamento do recurso extraordinário:
“Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da relatora, negou provimento ao recurso extraordinário, declarando a não recepção, pela Constituição Federal, do § 1º e da expressão ‘salário mínimo’, contida no caput do art. 3º da Lei Complementar nº. 432/1985, do Estado de São Paulo, fixando a impossibilidade de que haja alteração da base de cálculo em razão dessa inconstitucionalidade”.
Após o julgamento, seguindo proposta do próprio Ministro Peluso, o STF editou a Súmula Vinculante nº. 4, contando com a unanimidade dos ministros presentes.
Vale ressaltar que, embora pacificada no âmbito do Supremo, a inconstitucionalidade da adoção do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade não é reconhecida por todos. Exemplo disso é a opinião explicitada por Alice Monteiro de Barros, em seu Curso de Direito do Trabalho (2009; pág. 788):
“O raciocínio exposto, no nosso entendimento, não encontrava obstáculo no art. 7º, IV, da Constituição, que veda a vinculação do salário mínimo. O legislador constituinte, ao estabelecer essa restrição, o fez com o objetivo de proibir a vinculação ao salário mínimo como fator de indexação”.
Contudo, é preferível seguir o posicionamento do Supremo. Isso porque a finalidade mediata da vedação contida na parte final do inciso IV do art. 7º da CF/88 é a proteção ao poder aquisitivo do salário mínimo. O dispositivo facilita seu reajuste periódico ao desatrelar dele outros valores. No caso do adicional de insalubridade, se fosse admitida a adoção do mínimo como base de cálculo, sempre que houvesse o aumento a classe empregadora sofreria prejuízo duplo: ao pagar um salário mínimo mais alto e ao ter de arcar com um valor proporcionalmente maior do adicional de insalubridade. Ela seria incentivada a usar, portanto, de todo o seu poder de barganha junto às autoridades para impedir a majoração.
4. A Súmula Vinculante nº 4 e a segurança (ou insegurança?) jurídica
4.1. Considerações iniciais
Por definição, a edição de uma súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal se justifica diante da existência de um ambiente atual de relevante insegurança jurídica em torno de determinado tema, provocado por interpretações conflitantes acerca de algum instrumento normativo que põem em dúvida sua constitucionalidade. A súmula, assim, viria para impor uma interpretação da norma em conformidade com os ditames constitucionais, pondo fim, consequentemente, à insegurança em torno do assunto, e evitando uma multiplicação de processos no Judiciário em que o tema fosse discutido. E imagina-se que esta tenha sido a intenção do STF ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a Súmula Vinculante nº 4, sob o argumento de que a vinculação do salário mínimo ao adicional de insalubridade, prevista no art. 192 da CLT e no art. 3º da Lei Complementar 432/85 de São Paulo, feria o art. 7º, inciso IV, da CF/88. No entanto, infelizmente esse objetivo não foi atingido em sua plenitude.
4.2. Súmula Vinculante nº 4 e os requisitos do art. 103-A da CF/88
O art. 103-A da Constituição Federal, ao mesmo tempo em que faculta ao Supremo Tribunal Federal a elaboração de súmulas vinculantes, impõe a observação de alguns requisitos no processo de edição. Quais sejam: a aprovação, em sessão plenária, do texto por pelo menos dois terços dos ministros; reiteradas decisões, na Corte, em conformidade com o texto sumular; existência de controvérsia atual entre órgãos do Poder Judiciário ou entre esses e a administração pública; e o fato de essa controvérsia ter causado grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
No que diz respeito ao primeiro requisito, pode-se dizer que ele foi claramente respeitado, uma vez que a Súmula Vinculante nº 4, nos termos em que foi editada, foi aprovada em sessão plenária com o consentimento não só de dois terços dos membros da Corte, o que totalizaria oito dos 11 magistrados, mas com o da unanimidade dos ministros presentes à sessão de julgamento do RE 565.714, em 30 de abril de 2008. Como estavam ausentes os Ministros Ellen Gracie e Eros Grau, foram nove os componentes do Supremo que votaram pela aprovação da súmula.
No entanto, é questionável a presença do segundo requisito: o das reiteradas decisões. Foi nesse sentido a crítica feita por Damares Medina, mestre em Direito Constitucional, em seu artigo O Supremo Tribunal Federal e as súmulas vinculantes, publicado em 11 de julho de 2009 no site Jus Navigandi, ao lembrar que a edição da referida súmula teve como precedentes apenas sete decisões do STF no sentido de considerar inconstitucional a vinculação da base de cálculo do adicional de insalubridade ao salário mínimo. E vai além:
Em primeiro lugar, salta aos olhos o fato de apenas um precedente, dos sete acórdãos indicados, ter sido proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o que nos conduz a profundas reflexões acerca do papel institucional do órgão de cúpula do Poder Judiciário visto a partir de sua organicidade interna e de suas instâncias julgadoras, a saber, as turmas (1ª e 2ª) e o Plenário. Se apenas o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por intermédio de dois terços de seus membros, pode aprovar súmulas vinculantes, é mais do que razoável supor que as “reiteradas decisões”, aludidas no artigo 103-A da Constituição, sejam também tomadas em sessão plenária, composta a partir da integralidade dos membros do tribunal. Somente a partir de reiteradas decisões plenárias ter-se-á aprofundado e amadurecido o debate do tema a partir do prisma de cada um dos 11 juízes do STF, apto, então, a desdobrar na edição do entendimento sumulado vinculante.
Os precedentes a que se refere a autora, citados na ata da sessão do dia 30 de abril de 2008, são os seguintes: RE nº 236.396, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 20/11/1998; RE nº 208.684, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 18/06/1999; RE nº 217.700, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 17/12/1999; RE nº 221.234, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 05/05/2000; RE nº 338.760, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28/06/2002; RE nº 439.035, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 28/03/2008; e RE nº 565.714, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 08/08/2008. E o único desses acórdãos julgado pelo pleno, lembra ela, foi o último – justamente o que ensejou a edição da Súmula Vinculante nº 4. Some-se a isso o fato de o RE nº 565.714 ter sido também o único proferido após a mudança de postura da Segunda Turma do STF, ocorrida no julgamento do RE nº 439.035, unificando no tribunal a postura de considerar inconstitucional a adoção do salário mínimo como base de cálculo do adicional.
Mas, na verdade, o requisito das reiteradas decisões é um tanto quanto relativo, posto que o caput do art. 103-A da CF/88 não oferece um parâmetro exato do que poderia ser entendido como tal. Para o STF, esses sete julgados, pelo visto, foram suficientes.
A controvérsia atual entre órgãos do Poder Judiciário – que corresponde ao terceiro requisito do art. 103-A – fica, por sua vez, mais do que clara. A discussão acerca da inconstitucionalidade da base de cálculo estabelecida pelo art. 192 da CLT era, quando da edição da Súmula Vinculante nº 4, latente no meio jurídico, a ponto de dividir, até bem pouco tempo antes, as duas turmas do Supremo. Observe-se ainda que, em sentido oposto ao posicionamento adotado em primeiro lugar pela Primeira Turma do STF e, mais adiante, também pela Segunda, vinha o texto original da Súmula nº 228 do Tribunal Superior do Trabalho, vigente àquela época:
“Súmula nº 228: O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário mínimo de que cogita o art. 76 da CLT, salvo as hipóteses previstas na Súmula nº 17”.
Já a Súmula nº 17 do TST determinava as seguintes exceções:
“Súmula nº 17: O adicional de insalubridade devido a empregado que, por força de lei, convenção coletiva ou sentença normativa, percebe salário mínimo profissional será sobre este calculado”.
Essa divisão, é claro, acabava por se repetir tanto entre juízes de primeira instância como nos Tribunais Regionais do Trabalho.
Decorrente dessa discordância reinante nos órgãos judiciários, inclusive entre duas das mais altas cortes do País, a grave insegurança jurídica seria um cenário natural. Assim como os inúmeros processos versando sobre esse tema. Isso fica claro nas palavras do então presidente do Supremo, Ministro Gilmar Mendes, que, após aprovada a Súmula Vinculante nº 4 afirmou, ainda na sessão, que o texto recém-aprovado repercutiria diretamente sobre nada menos que 580 processos pendentes no STF e mais 2.405 que esperavam julgamento no TST.
No artigo A efetividade da Súmula Vinculante nº 04 do STF e suas repercussões na esfera trabalhista, publicado na edição de novembro de 2008 da revista Legislação do Trabalho, o desembargador Carlos Alberto Robinson, então vice-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, reforça essa ideia:
“O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, do qual tenho a honra de integrar a Administração, como Vice-Presidente, atento a este movimento da jurisprudência, bem como às decisões iterativas do STF (inclusive antes da edição da Súmula Vinculante nº 4), vinha dando seguimento a inúmeros recursos de revista, por violação do art. 7º, IV, da Constituição Federal, nos casos em que o acórdão regional fixava como base de cálculo do adicional de insalubridade, o salário mínimo, a exemplo das decisões proferidas nos autos dos processos RO 00136-2005-372-04-00-9, RO 00484-2006-003-04-00-8, RO 00496-2006-014-00-6, dentre outros.
Todavia, durante a vigência da redação original da Súmula nº 228 do TST no mundo jurídico, com fixação do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, também obtiveram seguimento os recursos de revista no caso inverso, em decorrência da violação da referida Súmula, quando, em face da ausência de salário profissional ou normativo ou por outro fundamento, o Regional fixou, como base de cálculo do adicional de insalubridade, salário contratual ou outra base de cálculo, a exemplo dos seguintes precedentes: ROPS 00168-2007-601-04-00-3, RO 00140-2006-733-04-00-8, dentre tantos”.
Diante do exposto, fica clara, excetuando-se apenas a divergência quanto às reiteradas decisões, a observância por parte do STF dos requisitos contidos no art. 103-A da CF/88 para a edição da Súmula Vinculante nº 4.
4.3. Lacunas e incertezas deixadas pela Súmula Vinculante nº 4
Foi dito no início do capítulo que a edição da Súmula Vinculante nº 4 não obteve grande êxito na tarefa de acabar com a insegurança jurídica quanto ao tema do qual trata. Ao contrário, contribuiu para que se acentuasse o cenário de incertezas existentes em torno da base de cálculo do adicional de insalubridade. Essa opinião, a propósito, também é explicitada pela juíza Rosana Devito, juíza do Trabalho em São Paulo, no artigo O adicional de insalubridade e a Súmula Vinculante nº 4: A comédia dos erros, publicado em 2008 pela revista Suplemento Trabalhista:
Longe de afastar a insegurança jurídica sobre o tema, a Súmula Vinculante nº 4 estabeleceu uma gravíssima insegurança em tema no qual a jurisprudência, através das anteriores Súmulas 228 e 17 do TST, correta ou incorretamente, já havia pacificado entendimento.
Sem ingressar no debate sobre se as súmulas do TST de fato asseguravam essa pacificação, o texto da súmula do STF foi falho, e basicamente por dois motivos: deixou uma lacuna acerca da questão e não permitiu que o Poder Judiciário a fechasse. Antes de mais nada, há de se recordar seu texto:
Súmula Vinculante nº 4: Salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.
Primeiramente, constata-se que o texto sumular, em conformidade com o disposto no art. 7º, inciso IV, da Constituição, é claro ao vedar – salvo em casos previstos na própria CF/88 – a utilização do salário mínimo como base de cálculo de “vantagem de servidor público ou empregado”. Claro é também que o principal alvo da proibição é o trecho do art. 192 da CLT que fixa o mínimo como a base de cálculo do adicional de insalubridade.
Ao fazer essa proibição, contudo, os ministros do Supremo não disseram qual outro valor poderia servir como referência para se estabelecer o montante a ser pago a quem trabalha em condições insalubres. Abriram, portanto, um vão no ordenamento – com exceção dos casos previstos na súmula nº 17 do TST, que trata das profissões regulamentadas, nas quais vigorava o salário profissional ou o salário convencional como substitutos do mínimo.
O outro trecho da súmula vinculante que contribui para a formação desse quadro de insegurança jurídica é o que proíbe que uma nova base de cálculo seja estipulada mediante decisão judicial. Ou seja, além de declarar inconstitucional a vinculação da base de cálculo ao salário mínimo e não dar outra alternativa nesse quesito, a súmula do Supremo impediu que a lacuna fosse preenchida por juízes ou tribunais. Isso dá margem à interpretação de que uma nova referência só poderá ser estabelecida mediante lei. Também ficou aberta, é claro, a alternativa da negociação coletiva, que não contemplaria, entretanto, todo o universo de trabalhadores do País, suprindo a omissão apenas para determinados grupos.
Ora, ao ser considerado inconstitucional o valor referencial que consta no art. 192 da CLT, criou-se um cenário de omissão por parte da lei, que, de acordo com o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), deveria ser suprido pelo Judiciário, baseando-se em outras fontes do direito:
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
Sendo assim, o STF não poderia ter impedido, a priori, o Judiciário de buscar soluções para o caso, ferindo, inclusive, o princípio da inafastabilidade da Jurisdição, consagrado no art. 5º, inciso XXXV da Constituição.
Outra dúvida criada pela súmula é se, ao proibir que o Judiciário suprisse a lacuna no tema, também estaria vedando a estipulação de base de cálculo por meio de sentença normativa, originada de dissídio coletivo. A princípio a resposta seria negativa, posto que a sentença normativa, assim como a convenção e o acordo coletivo, gera uma regra entre as partes do dissídio e só seria proferida após esgotados todos os meios de negociação coletiva. Ainda assim, o texto sumular deveria ter sido mais claro nesse sentido.
Diante dessa lacuna e da impossibilidade, neste caso, do exercício da integração do direito por parte dos órgãos do Judiciário, haveria até mesmo o risco, segundo parte da doutrina, de o adicional de insalubridade deixar de ser aplicado na prática, o que representaria um retrocesso histórico na observância dos direitos básicos da classe trabalhadora, ferindo o princípio constitucional que o proíbe. Isso se daria pela falta de regulamentação do instituto, colocando-o em situação análoga à do adicional de penosidade, também previsto no art. 7º, inciso XXIII, da Constituição.
Em resumo, editada para pôr fim a um ambiente de insegurança jurídica, a Súmula Vinculante nº 4 provocou, ao menos de imediato, um quadro de crescentes incertezas. Incertezas essas que acometeram juízes e tribunais, que precisavam de um norte para julgar as causas a eles submetidas; empregadores, que já não sabiam com base em que calcular o adicional devido; e principalmente os obreiros, detentores do direito constitucional à percepção do adicional de insalubridade, o qual a essa altura já viam ameaçado.
5. A Súmula nº 228 do TST e a reclamação 6.266-0
Debruçando-se sobre o texto da Súmula Vinculante nº 4, o Tribunal Superior do Trabalho chegou ao correto entendimento de que ela atingia tão somente a base de cálculo do adicional de insalubridade estipulada pelo art. 192, e jamais o direito à percepção da vantagem em si. Afinal, o referido adicional, ao lado daqueles motivados pelas atividades perigosas e penosas, está assegurado no art. 7º, inciso XXIII, da CF/88. E não poderia nunca o STF, sob o argumento de salvaguardar a garantia constitucional do inciso IV do mesmo artigo, cogitar a supressão de outro bem jurídico assegurando pela Carta Magna.
Dessa forma, com o afã de assegurar a observância do adicional de insalubridade e proporcionar, por fim, a perseguida segurança jurídica em torno dele, a corte trabalhista apressou-se em buscar uma solução para a questão. Foi assim que publicou, em 4 de julho de 2008, resolução em que cancelou sua Súmula nº 17 e alterou o verbete nº 228, que passou a ter a seguinte redação:
Súmula nº 228: A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo.
Ao proceder essa alteração, o TST claramente se valeu do instituto da analogia para emprestar ao adicional de insalubridade a base de cálculo do adicional de periculosidade, estabelecida pelo art. 193, § 1º, da CLT, inaugurando, sem dúvida, uma situação mais favorável ao trabalhador do que a anterior. Afinal, o salário base seria, pelo menos, igual ao salário mínimo e, muitas vezes, bem mais alto. Ocorre, porém, que o TST se precipitou. Ao tentar resolver a questão, foi nitidamente de encontro à Súmula Vinculante nº 4, que em sua parte final impede a imposição de uma nova base de cálculo para o adicional de insalubridade por decisão judicial.
Ademais, é pertinente a crítica feita por Rosana Devito, em artigo ao qual já se fez referência, à nova redação do verbete. Ela lembra que tanto a base de cálculo do adicional de insalubridade como do de periculosidade foram estabelecidas pela Lei 6.514/77. Ou seja, embora não haja razão aparente, ficou claro que o legislador não quis tratar da mesma forma as duas vantagens, o que tornaria inviável o uso da analogia no presente caso:
O Judiciário não pode alterar a lei, mas apenas interpretá-la. Quando a intenção da lei se acha expressa no seu próprio texto, o juiz não pode ultrapassar os limites da interpretação de modo a, diretamente, aplicá-la de modo contrário à mens legis. Quando, como no caso, a mesma lei, promulgada na mesma data, em dois artigos subsequentes, institui dois adicionais e determina que cada um deles terá base de cálculo inteiramente diversa do outro, não cabe ao Judiciário alegar analogia ali onde as duas realidades foram concebidas, de modo deliberado, como diversas uma da outra.
Atenta a tudo isso, mas principalmente ao flagrante desrespeito que se deu à Súmula Vinculante nº 4, a Confederação Nacional da Indústria, amparada no § 3º do art. 103-A da Constituição e no art. 7º da Lei 11.417/2006, ingressou no Supremo com a Reclamação nº 6.266-0, conseguindo, em decisão liminar proferida em 15 de julho de 2008 pelo Ministro-Presidente Gilmar Mendes, a suspensão da aplicação da Súmula nº 228, situação que persistia até a redação do presente artigo.
Mas se por um lado o TST errou ao mudar a redação da Súmula nº 228, por outro contribuiu, ainda que indiretamente, para o esclarecimento acerca de qual base de cálculo deverá ser adotada para o pagamento do adicional de insalubridade. Vale a pena, aqui, transcrever trechos da decisão em caráter liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes:
À primeira vista, a pretensão do reclamante afigura-se plausível no sentido de que a decisão reclamada teria afrontado a Súmula Vinculante nº 4 desta Corte.
(...)
Com efeito, no julgamento que deu origem à mencionada Súmula Vinculante nº 4 (...), esta Corte entendeu que o adicional de insalubridade deve continuar sendo calculado com base no salário mínimo, enquanto não superada a inconstitucionalidade por meio de lei ou convenção coletiva.
Dessa forma, com base no que ficou decidido no RE 565.714/SP e fixado na Súmula Vinculante nº 4, este Tribunal entendeu que não é possível a substituição do salário mínimo, seja como base de cálculo, seja como indexador, antes da edição de lei ou celebração de convenção coletiva que regule o adicional de insalubridade.
Logo, à primeira vista, a nova redação estabelecida para a Súmula nº 228/TST revela a aplicação indevida da Súmula Vinculante nº 4, porquanto permite a substituição do salário mínimo pelo salário básico no cálculo do adicional de insalubridade sem base normativa.
Ante o exposto, defiro a medida liminar para suspender a aplicação da Súmula nº 228/TST na parte em que permite a utilização do salário básico para calcular o adicional de insalubridade.
Segundo o então Presidente do STF, portanto, a base de cálculo para o adicional permanece sendo o salário mínimo, embora o texto da Súmula Vinculante nº 4 em momento algum seja explícita a esse respeito. Restabelece-se, assim, o status quo vigente anteriormente à edição do verbete pelo Supremo. Para a doutrina, o ministro interpretou que, quando da decisão que deu origem à súmula, a Corte utilizou-se de técnica de decisão então pouco difundida no Direito brasileiro, mas comum na Alemanha: a “declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade”.
O próprio Gilmar Mendes, em obra intitulada Jurisdição Constitucional – O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha, trata dessa técnica decisória (1999; pág 210):
Ao lado da declaração de nulidade, prevista no § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht (Corte Constitucional alemã), desenvolveu o Tribunal outra variante de decisão, a declaração de incompatibilidade ou declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade.
Ainda segundo Mendes (1999; pág. 228), ao comentar julgamento da Corte Constitucional alemã em situação análoga:
A suspensão da aplicação da lei inconstitucional suscita problemas que não podem ser olvidados. Na decisão proferida pelo Bundesverfassungsgericht sobre a constitucionalidade da lei que disciplinava o regime de nacionalidade das crianças nascidas dos chamados “casamentos mistos”, tornou-se evidente que, sem a aplicação provisória da disposição inconstitucional, haveria um vácuo legislativo. A Corte Constitucional reconhece a legitimidade da aplicação provisória da lei declarada inconstitucional se razões de índole constitucional, em particular, motivos de segurança jurídica, tornam imperiosa a vigência temporária da lei inconstitucional, a fim de que não surja, nessa fase intermediária, situação ainda mais distante da vontade constitucional do que a anteriormente existente.
Em complemento, acrescenta Carlos Alberto Robinson, em artigo já citado:
Ela (a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade) representa um juízo de desvalor da norma questionada que obriga o legislador a empreender as medidas necessárias para a supressão de inconstitucionalidade apontada pelo Tribunal. Envolve, especialmente, casos em que a inconstitucionalidade de lei, que violaria o princípio da igualdade, favoreceria determinado grupo em detrimento de outro. Assim, reconhecida a inconstitucionalidade, o Tribunal se absteria de declarar a nulidade, deixando à liberdade de conformação do legislador a tarefa de editar a lei, (...) a fim de atender aos ditames constitucionais.
Em outras palavras, embora considere inconstitucional a adoção do salário mínimo como base de cálculo para o adicional de insalubridade, o Supremo preferiu manter, temporariamente, a eficácia plena do art. 192 da CLT a retirar a aplicabilidade prática da vantagem, o que geraria um prejuízo infinitamente maior. Assim, a Súmula Vinculante nº 4, na verdade, serviu apenas para fixar o entendimento do Supremo sobre a inconstitucionalidade do dispositivo celetista e para incentivar o legislador a elaborar outro diploma legal, corrigindo essa transgressão à Constituição.
Poder-se-ia questionar, assim, a pertinência da edição da Súmula Vinculante nº 4. Isto é, se ela, na prática, não operou qualquer mudança no ordenamento jurídico, posto que o salário mínimo continua, por decisão proferida pelo STF, sendo a base de cálculo do adicional de insalubridade, deveria o Supremo tê-la redigido e aprovado?
Apesar de a resposta parecer incongruente num primeiro momento, há de se defender que sim. Afinal, se antes de sua edição havia um desentendimento generalizado acerca de qual seria a base de cálculo correta, a Corte não poderia se furtar de se pronunciar sobre a questão. Ademais, como já foi dito, o texto serve como forma de pressionar o Legislativo a sanar a inconstitucionalidade.
No entanto, não há dúvidas de que o Pretório Excelso falhou na forma como redigiu o verbete, pois deveria ter esclarecido desde o início que decidira pela inconstitucionalidade sem declaração de nulidade da vinculação do mínimo para esse fim. Embora esse posicionamento tenha estado presente na decisão do RE 565.714/SP, que deu origem à súmula, o STF não o deixou claro no texto desta. Teria evitado, se assim houvesse procedido a priori, o pandemônio que se instalou após a edição da súmula vinculante.
6. A busca pela solução do problema
6.1. Considerações iniciais
Embora a decisão em caráter liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes na reclamação 6.266-0, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria, tenha sido esclarecedora quanto ao valor de referência a ser usado no cálculo do adicional de insalubridade, é óbvio que o cenário atual não é o ideal. Afinal, embora tenha sido dirimido, momentaneamente, o risco de inaplicabilidade da vantagem trabalhista, a vinculação do salário mínimo segue sendo inconstitucional e prejudicial ao seu reajuste periódico.
Portanto, esse paliativo não pode ser aceito, em hipótese alguma, como um remédio permanente para o problema. As autoridades do País têm a obrigação de oferecer uma solução urgente para a questão, de forma a pôr um fim nesse quadro de inconstitucionalidade “tolerada” que já dura cerca de oito anos, nocivo à essência da Carta Magna, como instrumento garantidor de direitos individuais, coletivos e sociais. Mas quais os meios possíveis de se alcançar esse objetivo? É o que será visto a seguir.
6.2. Instrumentos para pôr fim à inconstitucionalidade
O posicionamento do STF após a Súmula Vinculante nº 4, explicitado na liminar concedida pelo Ministro Gilmar Mendes à CNI, é de que o salário mínimo continuaria a ser aplicado para calcular o adicional de insalubridade até que seja promulgada lei estipulando um novo valor de referência. Sendo assim, o caminho mais lógico a ser seguido seria esperar a propositura e consequente aprovação de uma lei ordinária nesse sentido por parte do Congresso Nacional.
No entanto, é conhecida a tradicional inércia do nosso Poder Legislativo em cumprir com o principal dever a ele atribuído pela Constituição: legislar. Sendo assim, beiraria a ingenuidade acreditar que o Parlamento tomará com a urgência necessária a iniciativa de suprir essa lacuna no ordenamento jurídico pátrio. Haja vista o que ocorre com o adicional de penosidade, previsto no art. 7º, inciso XXIII, da CF/88 e que, após quase 28 anos da promulgação da Carta, ainda não se aplica por falta de regulamentação legal.
Poder-se-ia cogitar, como forma de pressionar o Poder Legislativo a atuar, a proposição contra ele, junto ao STF, de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. O instrumento está previsto no art. 103, § 2º, da Constituição Federal:
“§ 2º. Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
Essa ação tem como objetivo compelir órgão do Poder Público a editar norma ou ato administrativo necessário à regulamentação de direito assegurado pela Carta Magna, mas que não seja autoaplicável. É como ensina Paulo Siqueira Jr., em seu livro Direito Processual Constitucional (2009; pág. 270):
“A ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão tem por finalidade implementar preceitos constitucionais que, para plena eficácia, dependem de legislação complementar infraconstitucional. A ação tem cabimento no momento em que se verifica a inércia ou abstinência do Poder Público”.
Mais adiante, Siqueira Jr. afirma ainda (2009; pág. 274):
“A inconstitucionalidade vislumbra-se a partir de conduta negativa. O texto constitucional prescreve uma conduta positiva ao Poder Público (um fazer), com a finalidade de garantir a plena eficácia da norma constitucional. O Poder Público omite-se. Essa conduta negativa gera a inconstitucionalidade por omissão”.
José Afonso da Silva, por sua vez, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo (1999; pág. 49), prega:
“A inconstitucionalidade por omissão verifica-se nos casos em que não sejam praticados atos legislativos ou administrativos requeridos para tornar plenamente aplicáveis normas constitucionais. Muitas destas, de fato, requerem uma lei ou uma providência administrativa ulterior para que os direitos ou situações nelas previstos se efetivem na prática”.
No caso em discussão, está mais do que demonstrado que o Poder Legislativo é omisso ao não aprovar lei que substitua a base de cálculo do adicional de insalubridade contida no art. 192 da CLT.
No entanto, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, para a qual o STF tem competência originária, contém algumas características que poderiam comprometer sua eficácia no caso em debate. A primeira delas é o número restrito de agentes legitimados a propô-la, os mesmos da ação direta de inconstitucionalidade (incisos do art. 103 da CF/88). Problema esse que não é insanável, posto que, na lista, estão as confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional, que teriam, evidentemente, grande interesse em que fosse regulamentado o tema.
Contudo, a grande carência da ação é justamente a de coercitividade. Isto é, ainda que reconheça e declare a inconstitucionalidade por omissão, o STF não teria instrumentos para obrigar o Congresso a editar uma lei. É o que se depreende das palavras sempre esclarecedoras de José Afonso da Silva (1999; pág. 57):
“Se o Poder Legislativo não responder ao mandamento judicial, incidirá em omissão ainda mais grave. Pelo menos, terá que dar alguma satisfação ao Judiciário. É certo que, se não o fizer, praticamente nada se poderá fazer, pois não há como obrigar o legislador a legislar”.
Siqueira Jr. (2009; pág. 278) ainda aventa a possibilidade de os indivíduos prejudicados ajuizarem contra o Legislativo, caso este se mantenha inerte diante do reconhecimento da inconstitucionalidade, ação por perdas e danos. Ainda assim, uma eventual condenação, neste caso, atingiria tão somente o Poder Público, e não o legislador, que permaneceria sem qualquer motivação extra para cumprir seu dever constitucional.
Outra maneira da qual se poderia cogitar para pressionar o Congresso a sanar a referida inconstitucionalidade seria a impetração junto ao STF – juízo competente para o presente caso – de um mandado de injunção, remédio constitucional mandamental previsto no inciso LXXI do art. 5º da Carta Magna, que diz:
“LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Por meio do mandado, assim como na ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, o autor também requer ao Judiciário que ordene que o órgão competente cumpra seu dever constitucional de tapar uma lacuna legislativa. Logo de início, porém, ela apresenta algumas vantagens em relação ao instrumento processual anterior.
A primeira é que o Judiciário, ao dar provimento ao MI, poderá estabelecer um prazo para que o ente supra a omissão legislativa em questão e se, ainda assim, este se mantiver inerte, o juiz estará apto – seguindo a posição concretista, prevalecente no STF – a adotar, baseado na equidade, uma norma provisória para possibilitar o exercício do direito constitucional por seu titular, que valerá até que uma lei venha a regulamentar o tema definitivamente. A segunda é a ampla legitimidade para propô-la, o que, na ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, fica limitada ao art. 103 da CF/88.
Os defensores da teoria concretista individual poderiam argumentar que a decisão no mandado de injunção só vale para o caso concreto, o que limitaria demais seus efeitos para o caso de se estabelecer uma nova base de cálculo para o adicional de insalubridade. O próprio STF, contudo, em diversas ocasiões, já admitiu a propositura do mandado de injunção coletivo por entidades de classe (MI 712/PA, Rel. Min. Eros Grau, DJ. 31/10/2008; MI 102/PE, Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, DJ. 25/10/2002), em substituição processual de seus representados. Assim, confederações sindicais poderiam propô-lo, no sentido de compelir o Congresso a aprovar uma nova base de cálculo. Caso persistisse a inércia, a norma provisória editada pelo STF teria efeito praticamente erga omnes.
Ademais, mais recentemente, parece vir prevalecendo no Pretório Excelso a teoria concretista geral, segundo a qual a decisão em mandado de injunção pode adotar norma aplicável a todos. Tal conclusão advém do resultado dos MIs 670, 708 e 712, ajuizados, respectivamente, pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Pará, julgados em 25/10/2007. Neles, a Suprema Corte decidiu pela aplicação da Lei 7.783/89 como forma de assegurar o direito de greve a todos os servidores públicos do País (não só aos representados pelas referidas entidades), até a edição da lei regulamentadora do art. 37, VII, da CF/88.
No entanto, ainda assim o mandado de injunção não seria o caminho mais adequado a se seguir na presente situação. Isso porque, reparando no texto do inciso LXXI do art. 5º da CF/88, percebe-se que ele só é cabível quando a omissão legislativa impede o exercício do direito constitucional em questão. E no caso do adicional de insalubridade, o Ministro Gilmar Mendes, na liminar dada à reclamação 6.266-0 da CNI, já estabeleceu que, até que uma lei venha a sanar a inconstitucionalidade, o salário mínimo seguirá sendo a referência para o cálculo da vantagem.
Ou seja, o exercício do direito ao adicional de insalubridade não sofre mais ameaças, enquanto prevalecer esse entendimento. Isso também torna inócua uma eventual decisão do STF baseada na equidade, que, aliás, poderia ser interpretada até como um desrespeito à parte final da Súmula Vinculante nº 4, que impede que uma decisão judicial supra a ausência de uma base de cálculo constitucional. Assim, o mandado de injunção, neste caso específico, atuaria praticamente como um sucedâneo da ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, sem operar nenhuma pressão extra sobre o Legislativo.
Ademais, é de se duvidar que qualquer das duas ações resolva o problema em pauta com a agilidade esperada, dada a conhecida morosidade do Judiciário brasileiro, somada à falta de interesse dos legisladores.
Portanto, dentre todas as possibilidades, a que parece mais adequada e capaz de dirimir o problema com a rapidez necessária seria a edição de uma medida provisória pelo Presidente da República, cuja aplicação seria imediata. Trata-se, afinal de contas, de um assunto relevante, pois está em jogo a garantia de um direito trabalhista de âmbito constitucional. Ademais, evidente também é a urgência da matéria, posto que, enquanto não advém uma nova norma regulamentadora do adicional de insalubridade, convive-se diuturnamente com uma ofensa ao texto constitucional, sempre que se calcula o montante a ser pago aos obreiros com base no salário mínimo. São atendidos, assim, os requisitos trazidos pelo caput do art. 62 da Constituição Federal, não se enquadrando o tema em nenhuma das ressalvas feitas pelo § 1º do dispositivo.
Vale dizer que, na verdade, essa medida provisória já foi proposta pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), sugerindo ao Governo Federal que o texto do art. 192 da CLT passasse a ser o seguinte:
“Art. 192. O trabalho em condições insalubres assegura ao trabalhador a percepção do adicional de insalubridade correspondente a 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) ou 10% (dez por cento) incidentes sobre seu salário básico, segundo a insalubridade se classifique, respectivamente, nos graus máximo, médio ou mínimo, sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa”.
Porém, mesmo com a sugestão feita pela associação, a Presidência da República ainda não se dispôs a enviar a medida provisória ao Congresso, fazendo com que perdure o presente quadro de inconstitucionalidade. Assim, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que o que falta, em verdade, é vontade política das autoridades brasileiras em dar uma solução permanente à questão.
6.3. Opções para a base de cálculo do adicional de insalubridade
Por último, é de se perguntar qual seria o valor de referência ideal para substituir o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, sanando de uma vez por todas essa inconstitucionalidade que persiste em torno do tema.
Primeiro poder-se-ia avaliar a remuneração do trabalhador, tal como pediram os policiais militares de São Paulo no RE 565.714. Logo de cara, porém, surge um problema, que é o risco de incursão no bis in idem. Ora, a remuneração é um complexo formado pelo salário do obreiro somado às gorjetas recebidas por ele. No complexo salarial, por outro lado, incluem-se, junto às comissões, gratificações habituais, abonos e diárias para viagens correspondentes a pelo menos 50% do total percebido, as percentagens, dentre as quais está o adicional de insalubridade. Assim, este não poderia ser calculado sobre um valor que já o agrega, pois aí seria pago duas vezes.
Pelos mesmos motivos expostos acima, o salário – entendido como todos os proventos recebidos pelo obreiro, à exceção das gorjetas – tampouco poderia ser estabelecido como valor de referência.
A Súmula nº 17 do TST, hoje cancelada, propunha que fossem adotados como base de cálculo, nos casos em que fosse possível, o salário profissional (determinado por lei para certas profissões) ou o salário convencional (estabelecido mediante convenção coletiva ou sentença normativa). Mas esses parâmetros também não solucionariam o vácuo existente, pelo menos não para a totalidade dos trabalhadores do País. Afinal, nem todas as profissões possuem leis que as regulamentem ou pisos salariais estipulados pelas vias negociais.
Sendo assim, a referência mais apropriada para o cálculo do adicional de insalubridade é o salário básico, ajustado como tal no contrato de trabalho do obreiro, utilizado, aliás, para se chegar ao valor devido a título de adicional ao trabalhador que labora em condições perigosas, segundo o § 1º do art. 193 da CLT, que o descreve como “salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa”. As bases de cálculo dos adicionais de periculosidade e de insalubridade, a propósito, já deveriam ser as mesmas desde que foram estabelecidas, há quase 40 anos, não havendo qualquer motivo convincente para que a Lei 6.514/77 as tenha diferenciado. Essa também é a opinião de Francisco Antonio de Oliveira exposta no artigo Da Súmula nº 228 do TST – Da Súmula Vinculante nº 4 do STF – Da autorização residual prevista no RE 565.714/SP – Do princípio repristinatório, publicado em 2008 na revista Suplemento Trabalhista:
“Na verdade, em ambos os casos, a fixação do percentual pelo legislador celetista não obedeceu a qualquer fator técnico ou científico, não havendo qualquer fundamento para a diferença da base de cálculo”.
Carlos Alberto Robinson, por outro lado, alega que a adoção do salário-base como valor de referência poderia acarretar “a criação de passivo trabalhista e o rombo financeiro nas empresas”, seguido do que, propõe que o percentual do adicional de insalubridade deveria incidir sobre o menor salário pago dentro da empresa (mínimo pago pelo empregador), “com os reajustes legais e normativos que se seguirem”. Por fim, diz o autor:
“Apenas acrescentaria a possibilidade de adoção do salário profissional, fixado por lei, e do piso salarial (fruto de negociação coletiva ou inserto no regulamento empresário) ou salário normativo como base de cálculo do referido adicional, na linha da extinta Súmula nº 17, sempre que mais vantajosos ao empregado”.
Com o devido respeito ao posicionamento acima explicitado, ele não deve prevalecer. A adoção do menor salário pago por uma empresa específica como base de cálculo do adicional de insalubridade devido a seus trabalhadores criaria uma disparidade insanável entre os obreiros no País, pelo simples fato de terem empregadores distintos. Além disso, é muito provável que, na prática, o valor de referência continuasse sendo o salário mínimo, na maior parte das vezes. Isso porque uma empresa, composta por variados departamentos, quase sempre terá em seus quadros alguém que recebe o mínimo, cujos vencimentos serviriam de parâmetro ao percentual pago a alguém de outro setor, quiçá com muito mais qualificação.
Ademais, o risco da criação de um “passivo trabalhista” ou de um “rombo” nas contas da empresa não pode servir de argumento para que não se adote o salário básico como adicional de insalubridade. Antes, é mais uma razão para que ele seja tido como referência, incentivando a classe empregadora a proporcionar melhores condições de trabalho aos seus empregados, por meio da adoção de medidas que reduzam a ação dos agentes considerados insalubres no ambiente laboral ou mediante o fornecimento dos equipamentos de proteção individual (EPIs) apropriados. Afinal, não se pode perder de vista a real finalidade do adicional de insalubridade, qual seja, a de forçar o empregador a eliminar ou, pelo menos, minimizar a incidência desses elementos nocivos à saúde do obreiro em seu estabelecimento.
7. Conclusões
Referências
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Advogado e jornalista. Formado, em ambos os casos, pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-editor-assistente de Brasil/Internacional do Jornal do Commercio. Atualmente exerce a advocacia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Clóvis dos Santos. Base de cálculo do adicional de insalubridade: Uma inconstitucionalidade tolerada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47025/base-de-calculo-do-adicional-de-insalubridade-uma-inconstitucionalidade-tolerada. Acesso em: 22 nov 2024.
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