RESUMO: O presente artigo visa analisar de forma crítica e à luz do ativismo judicial duas das mais emblemáticas decisões do Supremo Tribunal Federal, quais sejam, a união estável homoafetiva e o aborto de fetos anencéfalos.
PALAVRAS CHAVES: Ativismo Judicial. ADPF 132. União homoafetiva. ADPF 54. Aborto de fetos anencéfalos.
1. INTRODUÇÃO
Trata-se de um estudo crítico acerca de duas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal que impactou o ordenamento jurídico brasileiro e a sociedade como um todo.
Será analisado a ADPF 132, que trata da união homoafetiva, e a ADPF 54, que trata sobre o aborto de fetos anencéfalos, bem como os votos dos Ministros do STF.
2. ADPF 132 – União Estável Homoafetiva
No dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, as quais possuíam como objeto o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.
Todos os dez ministros votantes no julgamento decidiram, por unanimidade, reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar, equiparando-se, assim, ao regime concernente à união estável entre homem e mulher, regulado no art. 1.723 do Código Civil Brasileiro.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal possui efeito vinculante e eficácia erga omnes. Assim, os direitos que eram reconhecidos aos casais heterossexuais, também passaram a ser reconhecidos aos casais do mesmo sexo, como pensão alimentícia, pensões do INSS, comunhão parcial de bens, planos de saúde, imposto de renda, adoção, licença-gala, entre outros.
O julgamento do presente caso, que configurou uma verdadeira ruptura com os paradigmas até então vigentes em nosso ordenamento jurídico, levantou alguns questionamentos sobre o ativismo judicial praticado pela Corte Superior do país, se este estaria usurpando a função do Poder Legislativo, afrontando, assim, o sistema de tripartição dos Poderes.
O objetivo da ADPF 132 e da ADI 4.277 era o reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar, visando a aplicação do art. 1.723 do Código Civil Brasileiro para qualquer tipo de união estável, e não somente para a união entre homem e mulher.
O caput desse art. dispõe que “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
A partir da leitura literal do artigo mencionado, infere-se que a união estável destina-se a união somente entre o homem a mulher, excluindo-se, assim, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. É exatamente nesse ponto que surge a ideia de ativismo judicial no sentido de inovar o direito, invadindo, dessa forma, a seara do Poder Legislativo.
É evidente que o STF utilizou-se do ativismo judicial no sentido de reconhecer os casais do mesmo sexo como entidade familiar, apesar de alegar que somente foi utilizada a interpretação conforme a Constituição. De fato, houve uma interpretação conforme a Constituição, no entanto, inegavelmente, também houve o ativismo judicial, pois ativismo configura-se como uma ação proativa do Poder Judiciário de interpretar a Magna Carta.
Os doutrinadores que se mostraram contrário à decisão proferida no julgamento da ADPF 132 e ADI 4.172 alegaram que o Supremo Tribunal Federal invadiu as atribuições do Poder Legislativo, querendo reescrever a Constituição e modificar conceitos.
Nesse sentido, William Douglas expõe seu pensamento:
O STF não se limitou a garantir a extensão de direitos, mas quis reescrever a Constituição e modificar conceitos, invadindo atribuições do Poder Legislativo. Conceder aos casais homossexuais direitos análogos aos decorrentes da união estável é uma coisa, mas outra coisa é mudar conceito de termos consolidados, bem como inserir palavras na Constituição, o que pode parecer um detalhe aos olhos destreinados, mas é extremamente grave e sério em face do respeito à nossa Carta Magna. “Casamento” e “união civil” não são mera questão de semântica, mas de princípios. Nem por boas razões o STF pode ignorar os princípios da maioria da população e inovar sem respaldo constitucional.
O autor ainda expõe que essa decisão abriu o precedente de o STF poder substituir totalmente o Congresso Nacional. Afirma também que se o Congresso não legisla sobre determinado tema, isso quer dizer que ele não quis praticar essa ação, pois, se quisesse, teria feito, não devendo o Poder Judiciário, valendo-se do ativismo judicial, exercer uma ditadura dos juízes, devendo o STF ser o último interprete da Constituição e não o último a maculá-la.
Em que pese o pensamento do autor mencionado, tal argumento de falta de legitimidade do Poder Judiciário em intervir na seara do Poder Legislativo não deve prevalecer. Entende-se que o ativismo judicial somente será legítimo se buscar defender os direitos fundamentais dos cidadãos.
O objeto principal do julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277 é, justamente, reconhecer o direito constitucional da dignidade da pessoa humana, liberdade, não discriminação e da isonomia dos casais do mesmo sexo. Segundo a autora Mariana Chaves (2011), desde meados da década de 90 existem, em tramitação, Projetos de Lei que versam sobre uniões homoafetivas.
Diante de uma manifesta omissão do Poder Legislativo, cabe ao Poder Judiciário, como guardião da Constituição, fazer valer os princípios por ela instituídos. Nessa esteira, a mesma autora ainda revela:
Não se pode dizer, em momento algum, com razoabilidade, que o Judiciário usurpou o que era tarefa do Legislativo. O Judiciário simplesmente agiu, enquanto o Legislativo se fingia de morto e sonegava direitos a uma imensa parcela dos cidadãos brasileiros.
Entende-se que o legítimo ativismo judicial é aquele exercido estritamente com o objetivo de garantir direitos fundamentais dos cidadãos. No caso em tela, foi realizado o reconhecimento da união estável homoafetiva por parte do Poder Judiciário e não do Poder Legislativo, pois houve uma manifesta omissão desse poder, não cumprindo seu papel principal, que é de elaborar as leis.
Como forma de garantir a efetividade das normas constitucionais, o Poder Judiciário teve que utilizar-se do ativismo judicial para fins de concretização de direitos fundamentais.
Nessa esteira, faz-se necessário expor os votos de alguns ministros no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.111. O Ministro Luiz Fux defendeu o reconhecimento dos direitos dos casais do mesmo sexo alegando que, segundo a própria Constituição, todos são iguais perante a lei, não devendo haver diferença legal na união estável entre casais hetero ou homoafetivos.
A Ministra Cármen Lúcia defendeu os direitos dos casais homoafetivos afirmando que todas as formas de preconceitos merecem ser repudiadas em uma sociedade democrática. A Ministra afirmou que uma república põe que o bem de todos tem que ser promovido sem preconceito e sem forma de discriminação, não devendo os casais do mesmo sexo ser desigualado em sua vida e seus direitos.
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes fundamenta seu voto no reconhecimento dos direitos aos casais do mesmo sexo, expondo que o não reconhecimento desses direitos importaria em discriminação, algo intolerável no nosso modelo constitucional. O Ministro ainda rebateu as críticas ao ativismo judicial afirmando que “É dever do Estado a proteção, e é dever da Corte dar essa proteção se ela não foi engendrada ou concebida pelo órgão competente”.
O voto do Ministro acima corrobora o entendimento que, diante de uma omissão estatal em reconhecer direitos fundamentais dos cidadãos, cabe ao Poder Judiciário efetivar esses direitos, sendo o ativismo judicial um meio para concretização dos direitos do povo.
O Ministro Joaquim Barbosa defendeu que é preciso que a Justiça corrija uma situação prática para a qual não há previsão legal. O ministro afirmou que “o não reconhecimento da união homoafetiva simboliza a posição do Estado de que a efetividade dos homossexuais não tem valor e não merece respeito social”.
Afirmou também existe uma situação de descompasso em que o direito não foi capaz de acompanhar as profundas mudanças sociais, pois a união entre pessoas do mesmo sexo sempre existiram e sempre existirão.
O Ministro Celso de Mello assinala que o presente julgamento é um marco histórico no país, representando um avanço significativo contra o preconceito no Brasil, não podendo ninguém, muito menos os juízes, fechar os olhos para essa nova realidade, revelando que a presente ação tem por base os princípios fundamentais.
O voto do citado Ministro teve como base a incidência dos princípios da igualdade, liberdade, não discriminação, segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que é o direito à busca da felicidade.
O Ministro Marco Aurélio Mello também mostrou-se favorável ao reconhecimento da união estável para casais homoafetivos. De acordo com o Ministro, fazendo-se uma leitura integral da Constituição, infere-se que não há espaço para discriminação, logo, a equiparação dos direitos de todos os cidadãos mostra-se de rigor.
Pode-se constatar, a partir do que foi exposto, que o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.2777, apresentou um grande avanço no cenário brasileiros no sentido de garantir direitos fundamentais dos cidadãos.
É cediço que não está entre as funções nucleares do Poder Judiciário inovar o direito, cabendo ao Poder Legislativo essa função. No entanto, diante de uma manifesta omissão, não pode o povo, detentor do poder, esperar eternamente uma atuação do Congresso Nacional, se subordinando à boa vontade dos legisladores em querer discutir direitos fundamentais.
É nesse sentido que o ativismo judicial mostra-se necessário para fins de efetivação de direitos. O ativismo judicial foi o veículo utilizado pelo Poder Judiciário na busca pela efetivação dos preceitos constitucionais, não afrontando os princípios constitucionais, muito pelo contrário, servindo como alternativa a ineficácia dos outros poderes do Estado, fortalecendo, dessa maneira, a democracia.
Dessa forma, pode-se inferir que o ativismo judicial exercido exclusivamente para fins de garantir direitos do detentor do poder, diga-se, o povo, será considerado uma arma poderosa contra as omissões estatais, possuindo legitimidade para tanto, pois visa tutelar e concretizar os direitos fundamentais dos cidadãos.
Infere-se, então, que o Supremo Tribunal Federal efetivou seu papel de guardião da Constituição e de seus princípios, uma vez que o Poder Legislativo foi demasiadamente omisso nesse quesito, deixando de efetivar direitos fundamentais dos casais que optaram por escolher parceiros do mesmo sexo.
Vale ressaltar que o ativismo utilizado na ADPF 132 e ADI 4.277 foi o ativismo revelador, aquele que vale-se de princípios como fundamento de uma inovação do direito.
No caso em tela, os princípios utilizados foram da dignidade da pessoa humana, liberdade, não discriminação e igualdade. Assim, corrobora-se o entendimento de que o ativismo judicial serve como um meio de concretização dos direitos insculpidos no texto Constitucional.
2. ADPF 54 – Aborto De Fetos Anencéfalos
No dia 11 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, sendo, de acordo com os próprios ministros, um dos julgamentos mais importante realizado pela Corte Excelsa.
A ADPF 54 foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), entidade de atuação nacional representativa de profissionais ligados à área de saúde, visando declarar a inconstitucionalidade dos artigos 124, 126 e 128 incisos I e II do Código Penal.
Assim dispõe os arts.124, 126 e 128 incisos I e II do Código Penal Brasileiro:
Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A partir da leitura dos artigos referidos do Código Penal, pode-se perceber que em somente duas situações a prática do aborto é permitida, quais sejam, não havendo outro meio de salvar a vida da gestante e em caso de estupro precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal, se incapaz for.
O rol de situações de aborto disposto no Código Penal é taxativo, ou seja, se exaure nas hipóteses expressas. A ADPF 54 foi proposta visando não somente declarar a inconstitucionalidade dos artigos acima mencionados, mas de também declarar a legalização do aborto de fetos anencéfalos.
É nesse sentido de permitir a legalização de outro tipo de aborto que se comenta o ativismo judicial no julgamento da ADPF 54. Segundo Luiz Roberto Barroso, “a postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário”.
O STF, após dois dias de debate, decidiu, por oito votos a dois, que grávidas de fetos sem cérebro poderão optar por interromper a gestação, desde que acompanhadas de assistência médica, sendo, consequentemente, uma conduta lícita, ou seja, não criminosa.
Para fins de melhor esclarecimento sobre a decisão da Corte Excelsa, faz-se necessário expor os conceitos de aborto e de anencefalia. O autor Fernando Capez, tece algumas considerações sobre o aborto em sua obra, veja-se:
Considera-se aborto a interrupção da gravidez com a consequente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz parte do conceito de aborto, a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno, em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses), ou feto (3 primeiras semanas de gestação), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer desde o início da concepção ate o início do parto.
Diante do conceito de aborto que foi exposto pelo autor, pode-se inferir que, em síntese, o aborto configura-se como a interrupção do desenvolvimento do feto durante o período gestacional. Resta saber agora o conceito de anencefalia.
Para Gisleno Feitosa:
Consiste na ausência parcial ou completa da abobada craniana, bem como da ausência dos tecidos superiores com diversos graus de má formação e destruição dos rudimentos cerebrais. Em suma, anencefalia significa “sem encéfalo”, sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central, contidos na caixa cranianaproduto da concepção. Consiste na eliminação da vida intra-uterina.
Constata-se que a anencefalia, que significa “sem cérebro”, é resultado de uma má formação cerebral. Resta saber quais são as consequências desse fenômeno. Segundo o mesmo autor acima referido, a consequência da anencefalia será inevitavelmente a morte. O autor afirma que a maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento, talvez um pouco mais, mas sempre será questão de dias.
A partir do que foi exposto pelos autores, pode-se inferir que a anencefalia é a ausência da completude do sistema nervoso, sendo causa suficiente para inviabilizar a sobrevivência do feto, levando inevitavelmente ao resultado morte, não havendo possibilidade de cura.
No entanto, o aspecto científico não foi o único argumento a ser levado em consideração no julgamento da ADPF 54. Há também os argumentos das pessoas e entidades que são contra a prática de aborto, mesmo sendo de fetos anencefálicos.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que chegou a pedir a participação no julgamento na qualidade de “amicus curiae”, apresentou memorial a respeito do tema.
Veja-se o seguinte trecho:
O ser humano, independentemente de sua forma ou estágio, é pessoa humana, sujeito e nunca uma coisa ou um ser qualquer. A pessoa humana, seja em que estágio for ou estiver, não pode ser coisificada ou desqualificada em hipótese alguma. Todo ser humano, e o feto anencefálico é ser humano, independentemente da situação em que se encontre, é merecedor de uma especial atenção e dotado de uma essencial dignidade. E eles – fetos anencefálicos e todos que não tenham viabilidade ou que não sejam mais úteis – mais do que nunca, por não poderem se defender e sem terem nada, sequer a consciência de sua dignidade, são os que devem ser especialmente protegidos.
Então, infere-se que, para a CNBB, o feto anencefálico é detentor de direitos fundamentais pelo simples fato de também ser considerado como ser humano, mesmo sabendo que não há qualquer possibilidade de sobrevivência posteriormente ao parto, devendo, então, receber proteção jurídica, devendo viver no útero de sua mãe até o esgotamento natural de suas possibilidades.
Posto os conceitos de aborto, anencefalia e argumentos tanto a favor como contra a prática de aborto nos casos de fetos anencefálicos, resta, nesse momento, expor e analisar os votos dos ministros no julgamento da ADPF 54, fazendo comentários sobre o ativismo judicial praticado.
O Ministro Cezar Peluso votou contra a ADPF 54 e fundamentando sua decisão em, basicamente, dois tópicos. O primeiro é em relação a não discriminação dos fetos anencefálicos, pois, “isso atentaria contra a própria ideia de um mundo diverso e plural”, sendo a discriminação feita ao feto em nada seria diferente daquela feita ao racismo.
Falou também que a discriminação que reduz o feto “a condição de lixo”, a seu ver, “em nada difere do racismo, do sexismo e o especismo”, sendo todos esses casos “a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”.
O outro tópico abordado pelo ministro foi em relação ao ativismo judicial. O Ministro fundamentou seu voto contrário ressaltando que não cabe ao STF agir como legislador positivo, ou seja, inovando o direito, pois o Poder Legislativo expressamente não incluiu o caso dos anencéfalos nas hipóteses legais.
O Ministro Ricardo Lewandoswski também votou contra a ADPF 54 e também fundamentou sua decisão no ativismo judicial. Para o ministro, o STF somente pode exercer o papel de legislador negativo, ou seja, é impedido de inovar o direito, devendo o Congresso Nacional, se assim desejar, alterar a legislação para incluir a legalização de aborto de anencéfalos, pois somente este Poder do Estado detém legitimidade para tanto.
O ministro afirma que “não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem de unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares eleitos”.
Em que pese os argumentos da CNBB e dos ministros acima referidos, entende-se que, fazendo uma análise geral do tema, tais argumentos não devem prevalecer. A ADPF 54 teve como fundamento principal a aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa e do direito à vida da gestante.
O princípio da dignidade da pessoa humana é, de acordo com o art. 1º da CF/88, fundamento da República Federativa do Brasil, sendo considerado um princípio que serve como direção de todos os direitos inerentes ao ser humano, sendo de fundamental importância na vida brasileira.
O autor George Salomão Leite, explica a importância desse princípio para os cidadãos:
Embora não esteja expresso no preâmbulo de nossa Constituição, é evidente que o constituinte originário elegeu a dignidade humana como valor supremo. Ora, a ideia de liberdade, igualdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento e justiça revela a nítida pretensão de colocar a dignidade como valor máximo de nosso Texto Constitucional. Desse modo, a dignidade humana é um valor de onde flui uma série de direitos e garantias constitucionais.
É diante desse conceito de dignidade da pessoa humana da mãe que os adeptos ao aborto de fetos anencefálicos fundamentam sua posição. O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento de um Estado de Direito, sendo, portanto, merecedor de proteção jurídica, pois é um direito inerente a pessoa humana.
No caso de feto anencéfalo, existe certeza científica que o feto não terá meios de sobreviver por si só, ou seja, o feto não tem potencialidade de vida extrauterina. É nesse sentido de convicção da fatalidade do feto que o foco volta-se para o estado da gestante, pois deve-se proteger seus direitos, como: liberdade, autonomia de vontade, direito à vida, dignidade da pessoa humana.
É cediço que os direitos fundamentais não são direitos absolutos. O que ocorre é uma ponderação de valores, a fim de se avaliar, em cada caso, qual direito é mais viável que o outro, utilizando-se sempre da razoabilidade e da proporcionalidade.
No presente caso concreto, em que pese o feto também possuir direitos, esses direitos não devem se sobrepor aos direitos da gestante, pois é comprovado cientificamente que não há a mínima chance de um feto anencéfalo sobreviver após o parto.
De um lado tem-se a certeza da morte do feto e do outro os direitos da liberdade, dignidade da pessoa humana, integridade física e moral e direito à vida da gestante. Então, diante dessa ponderação de valores, utilizando-se da razoabilidade, proporcionalidade e racionalidade, infere-se que, nesse caso prático, os direitos da gestante devem ser protegido primariamente.
Foi exatamente nesse sentido que o Ministro Marco Aurélio sustentou seu voto na ADPF 54, afirmando que “A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao porto, o será por poucas horas ou dias, não podendo ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”.
Para o ministro, é inadmissível que o direito à vida de um feto que não possui possibilidade de sobrevivência prevaleça em detrimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, autonomia, liberdade, saúde, integridade física, psicológica e moral da gestante.
O ministro ainda afirmou que “cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez”. Acrescentou ainda que os direitos fundamentais previstos na Constituição devem ser respeitos à mãe.
Igual posicionamento demonstrou o Ministro Joaquim Barbosa ao afirmar que, em se tratando de feto com vida extrauterina biologicamente inviável, não há possibilidade alguma de que o feto anencéfalo venha a sobreviver fora do útero materno. O ministro defendeu que a antecipação desse evento, tendo em vista a saúde física e psíquica da mãe, não se configuraria crime, pois, ao fazer a ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, nesse caso particular, os direitos da gestante deverão prevalecer.
Nessa esteira, o ministro Celso de Melo também votou favorável à ADPF 54, sustentando que está apenas a reconhecer que a mulher, apoiada em razões fundadas nos seus direitos reprodutivos e protegida pela eficácia incontrastável dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, tem o direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica de fetos anencéfalos.
Com exceção dos Ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski, todos os outros votaram a favor da antecipação terapêutica de parto nos casos de comprovada anenfefalia do feto.
Como foi dito, um dos principais fundamentos do voto contrários dos ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski foi no sentido de afirmar que não cabe ao STF agir como legislador positivo, devendo apenas agir como legislador negativo, pois só assim não estará agindo de forma ativista.
No entanto, como foi visto anteriormente, ativismo judicial no sentido de proteger e efetivar direitos fundamentais é mais que bem-vindo em um estado democrático de Direito. Diante de uma realidade em que os poderes eleitos pelo povo não conseguem atender aos anseios da população, surge o dever do Poder Judiciário, intitulado como guardião da Constituição, fazer valer os princípios por ela regidos.
Vale ressaltar que o ativismo judicial realizado na ADPF 54 foi o ativismo revelador, ou seja, aquela que utiliza-se de princípios constitucionais a fim de inovar o Direito ou de preencher uma lacuna na lei.
No caso em tela, os princípios que foram usados, em síntese, para declarar a inconstitucionalidade dos art. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal foi os direitos da gestante de dignidade da pessoa humana, da liberdade, à vida, à autonomia da vontade, à integridade física etc.
Então, a partir do que foi exposto, pode-se inferir que, diante de uma manifesta omissão do Poder que deveria regulamentar essa questão, surge uma alternativa para o povo, que é o detentor do poder, de pleitear a efetivação dos seus direitos.
Essa alternativa é exercida pelo Poder Judiciário que, valendo-se do ativismo judicial, busca efetivar os direitos constitucionais, não devendo se falar em afronta ao princípio da separação dos poderes, pois, tal princípio, não deve ser usado como obstáculo na concretização de direitos fundamentais.
O ativismo judicial deve ser exercido pelo Poder Judicial como ferramenta a fim de ver os direitos dos cidadãos efetivados, pois só assim será legítimo e necessário em uma democracia, onde o poder emana do povo e é direcionado para o povo.
3. CONCLUSÃO
Pode-se constatar, a partir do exposto, que o julgamento da ADPF 132 e da ADPF 54 apresentou um grande avanço no cenário brasileiro no sentido de garantir direitos fundamentais dos cidadãos.
É cediço que não está entre as funções nucleares do Poder Judiciário inovar o direito, cabendo ao Poder Legislativo essa função. No entanto, diante de uma manifesta omissão, não pode o povo, detentor do poder, esperar eternamente uma atuação do Congresso Nacional, se subordinando à boa vontade dos legisladores em querer discutir direitos fundamentais.
É nesse sentido que o ativismo judicial mostra-se necessário para fins de efetivação de direitos. O ativismo judicial foi o veículo utilizado pelo Poder Judiciário na busca pela efetivação dos preceitos constitucionais, não afrontando os princípios constitucionais, muito pelo contrário, servindo como alternativa a ineficácia dos outros poderes do Estado, fortalecendo, dessa maneira, a democracia.
REFERÊNCIAS
ADPF 54, disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf54.pdf.
Acesso em: 10 de julho de 2016.
ADPF 132, disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em: 10 de julho de 2016.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n 13, 2009.
CAPEZ, Fernando. Direito Penal: parte especial. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
FEITOSA, Gisleno. IN: COSTA, Sergio; FONTES, Flávia. Tópicos em bioética. Brasília: Letras Livres, 2006.
LEITE, George Salomão. IN: SARLET, ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008.
Advogado. Formado pela ASCES - Faculdade Associação Caruaruense de Ensino Superior.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Lucas Albuquerque. Análise crítica da ADPF 132 (união estável homoafetiva) e da ADPF 54 (aborto de fetos anencéfalos) à luz do ativismo judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47184/analise-critica-da-adpf-132-uniao-estavel-homoafetiva-e-da-adpf-54-aborto-de-fetos-anencefalos-a-luz-do-ativismo-judicial. Acesso em: 22 nov 2024.
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