RESUMO: O artigo tem por finalidade discutir a possibilidade de imputação do crime de denunciação caluniosa em desfavor da mulher vítima de violência doméstica que retrata dos fatos. O método utilizado foi o qualitativo utilizando-se da pesquisa bibliográfica e documental. Conclui-se que as motivações para a desistência da denúncia pelas mulheres podem ser diversos, e tal fato deve ser levado em consideração pelo operador do direito, interpretando a lei de acordo com as peculiaridades das condições da vítima de violência doméstica. Assim, não prospera a persecução penal, salvo indício de dolo de caluniar.
Palavras chaves: Retratação. Violência doméstica. Denunciação Caluniosa.
Introdução
O artigo tem por finalidade compreender a possibilidade de imputação do crime de denunciação caluniosa em caso de retratação dos fatos pela vítima de violência doméstica. Assim, se propõe como problema de pesquisa: Caberia a imputação do crime de denunciação caluniosa à mulher vítima de violência domestica que desiste da representação contra seu agressor?
Para tanto, há que se investigar como a jurisprudência e o Ministério Público têm atuado neste sentido, como o fim de verificar se há aplicação direta do tipo penal de denunciação caluniosa, se não se aplica o tipo devido à análises principiológicas ou se a aplicação do tipo depende da análise do caso e do dolo do agente.
Uma em cada cinco mulheres brasileiras já foram vítimas de violência doméstica. O tema se mostra dos mais importantes, uma vez que a violência contra a mulher vitima milhares de mulheres brasileiras, sendo que, de acordo com a Central de Atendimento à Mulher, no período entre janeiro e outubro de 2015, 38.72% das mulheres que ligaram no telefone 180 afirmaram que sofrem violência diária e 33,86% semanalmente. Afirmaram as mulheres que 88,85% ocorrem no ambiente doméstico, longe dos olhos da sociedade. Constatou-se também que 67,36% tem por agressor homens com quem se tem vínculos de afeto, tal como cônjuges e namorados (SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2015).
O método escolhido foi o qualitativo, na medida em que tem por objetivo compreender a condução da temática a nível doutrinário, através de consulta a livros e artigos, bem como, jurisprudencial, análise de súmulas e enunciados, e ainda, pesquisa documental nos textos de lei.
A denunciação caluniosa no caso de retratação dos fatos narrados contra o agressor em casos de violência doméstica
A Lei Maria da Penha, Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, em tributo à Maria da Penha Fernandes, mulher que sofreu diversas tentativas de homicídio por parte de seu cônjuge, e que se empenhou na luta pelo combate à violência contra a mulher. O processo judicial que tratou do seu caso foi iniciado em 1984, entretanto apenas foi finalizado em 2002, uma vez que foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos em decorrência da morosidade com que foi conduzido (LIMA, 2015).
O Brasil foi condenado por descumprimento ao compromisso assumido no combate a violência doméstica, através do relatório 54/2001 da aludida corte. Após 5 anos do relatório foi sancionada a Lei 11.340, cumprindo o exigido quando da ratificação da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU (Organização das Nações Unidas) (LIMA, 2015).
O art. 1º da Lei Maria da Penha apresenta sua finalidade, que consiste na criação de mecanismos capazes de coibir a violência doméstica e familiar, regulando assim o art. 226 da Constituição Federal, em seu parágrafo 8º, que dispõe: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988).
A implementação dos dispositivos legais consta em ação afirmativa compensatória diante da histórica desigualdade entre gênero masculino e feminino, atendendo à determinação constitucional prevista no art. 5º, I de igualdade entre homens e mulheres São também consideradas “discriminações positivas”, que consistem em políticas implementadas de forma temporária com o fito de minimizar os efeitos da discriminação social (LIMA, 2015, p. 903).
A própria Lei orienta como devem ser realizadas as decisões, preservando os direitos e garantias da mulher. O art. 4º afirma que: “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”, e os artigos 2º e 3º aduzem que o legislador, julgador e interprete da lei devem se atentar para facilitar e oportunizar à mulher uma vida sem violência física e mental, assegurando o direito à vida, à segurança e à saúde (BRASIL, 2006).
Quando a lei fala em “condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” significa que os operadores do direito devem ter cuidado para com o caso concreto e interpretando e aplicando a lei de acordo com seus fins sociais de proteger a vida e a dignidade da mulher (BRASIL, 2006).
A denúncia pela mulher da violência sofrida é ato dos mais sensíveis, e por vezes o único modo de se conhecer a realidade de milhares de brasileiras no recôndito de seus lares. Assim, é um mecanismo importantes para dar visibilidade à serie de agressões sofridas, sejam físicas, morais, psicológicas, patrimoniais ou sexuais, no âmbito doméstico (NUCCI, 2013, p. 616-618).
Para dar efetividade a este mecanismo foi criada a Central de Atendimento à Mulher, que orienta e encaminha as mulhers para delegacias ou serviços de atendimento de emergência, sendo que no ano de 2015 foram aproximadamente 179 ligações diárias (SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2015).
Diante das divergências de entendimento quanto a natureza da ação penal, se pública condicionada ou incondicionada, e com o fim de atender aos fins sociais da norma, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 4424, pacificou que a violência doméstica e familiar realizada através de lesão corporal, seja dolosa ou culposa, mesmo se leve ou a contravenção penal de vias de fato, deve ser considerada ação penal pública incondicionada, o que implica na obrigatoriedade de investigação e instauração de inquérito policial mediante mero conhecimento da agressão por autoridades policiais e Ministério Público, sem depender da representação da vítima.
Tal posicionamento também é adotado pelo Ministério Público, como se nota no Enunciado nº 8 da COPEVID (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), in verbis:
Enunciado nº 08 (001/2012): Considerando a confirmação pelo STF da constitucionalidade da Lei Maria da Penha (ADIN 4424 e ADC 19), julgadas no dia 09/02/2012, a ação penal nos crimes de lesão corporal leve e contravenção penal de vias de fato, praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher, é pública incondicionada, sendo os efeitos de tais decisões extunc, vinculantes e erga omnes, não alcançando somente os casos acobertados pela coisa julgada. (Aprovado na Plenária da I Reunião Ordinária do GNDH de 28/03/2012 e pelo Colegiado do CNPG de 31/05e 01/06/2012).
O COPEVID integra o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, comissão criada em 9 de outubro de 1998, sendo associação nacional, sem fins lucrativos, com a finalidade de auxiliar os promotores públicos no exercício de suas funções.
Entretanto, os crimes de ameaça e estupro continuam sendo de ação penal pública condicionada a representação, e, consequentemente, possível de retratação. Há uma diferença entre retratação e renúncia, uma vez que a renúncia é verificada quando se “abre mão de um direito que ainda não fora exercido”, diferentemente da retratação que consiste em “voltar atrás, arrepender-se; pressupõe o prévio exercício de um direito”, assim, o art. 16 da Lei Maria da Penha fala claramente de retratação, em que pese estar escrito renúncia (LIMA, 2015).
Diante da seriedade da retratação, uma vez que o crime já foi noticiado, é que se exige alguns requisitos para sua ocorrência. Primeiramente, a “manifestação da vítima perante o juiz em audiência especialmente designada com tal finalidade”. Importante frisar que há grandes divergências jurisprudenciais sobre a obrigatoriedade da audiência, contudo, há que atentar para os fins sociais, sendo tal audiência oportunidade para compreender as motivações da vítima e suas “peculiares condições”, tal como já abordado anteriormente. Posteriormente à audiência, o Ministério Público deve ser ouvido (LIMA, 2015). E por fim o período, na medida em que a Lei Maria da Penha prevê que a audiência ocorre após o oferecimento da denúncia, há que se entender que nos casos de violência doméstica é possível a retratação posteriormente ao recebimento da denúncia, ao contrário do que dispõe o art. 25 do CPP e 102 do CP (CUNHA, PINTO, 2015, p. 131).
A desistência do prosseguimento da ação penal decorre de motivos diversos, tal como o afeto pelo companheiro, a fé na manutenção da relação familiar, por pressão de companheiro e parentes, por dependência financeira ou ainda devido ao medo de novas agressões (JONG, SADALA, TANAKA, 2008).
Na retratação a vítima nega a existência do crime, o que se adéqua ao tipo penal de denunciação caluniosa, previsto no art. 339 do Código Penal, em nota: “Dar causa à instauração de investigação policial, deprocesso judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente” (BRASIL, 1840).
Deste modo, noticiar informação que enseja a instauração de investigação criminal, pela polícia ou Ministério Público, de pessoa certa, no caso suposto agressor de violência doméstica, permitindo inclusive o prosseguimento do processo judicial através da denúncia, se adéqua ao tipo penal de denunciação caluniosa e enseja a instauração de inquérito policial, uma vez corresponder a crime de ação pública incondicionada.
No crime de denunciação caluniosa o sujeito passivo é o Estado e o acusado da prática do crime. No caso em análise, percebe-se que o agressor, réu no processo de violência doméstica, passa a ser vítima parte autora no processo de denunciação caluniosa (GRECO, 2015). Contudo, o crime de denunciação caluniosa tem por requisito o dolo, como se nota na expressão “imputando-lhe crime de que o sabe inocente”, de modo que há que se observar a intenção do agente quando imputou o crime a pessoa determinada.
Encontra-se jurisprudência imputando o crime de denunciação caluniosa à mulher que denuncia o homem pelo cometimento de violência doméstica e familiar e, posteriormente, desiste do ato, como se nota:
Ementa APELAÇÃO - DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA - CRIME CONFIGURADO - RECURSO DESPROVIDO. - Se a acusada deu causa a instauração de inquérito policial contra ex-marido, sabendo, perfeitamente, que este não havia praticado os atos que lhe imputara, não há dúvida de que restou configurado o crime do artigo 339 do Código Penal. Consta dos autos que a ré teria comparecido à Procuradoria de Justiça de Bicas para noticiar ter sido agredida pelo companheiro Antônio Alexandre Alves, afirmando, inclusive, ter sofrido aborto em função das aludidas agressões. (fls. 02/03). Posteriormente, a ré compareceu espontaneamente perante a autoridade policial reconhecendo serem falsas as imputações feitas contra o ex-companheiro, afirmando que teria inventado a história da agressão e aborto por estar nervosa em razão do rompimento do relacionamento afetivo (fl.15). Após a instauração de inquérito para apuração dos fatos, com oitiva de várias testemunhas, apurou-se a não-ocorrência de crime por parte de Alexandre Alves.As enfermeiras e médicos que atenderam a ré no hospital por ocasião do aborto espontâneo sofrido por esta, são unânimes em afirmar que não havia qualquer hematoma ou marca de violência no corpo da ré na data da agressão relatada por ela. Afirmam ainda, que a ré nada disse sobre a possível agressão no período em que esteve hospitalizada (fls. 81/86) (MINAS GERAIS. TJMG. 2007).
Analisando a ementa acima é possível observar que houve investigação, corroborada por testemunhas, que nega a existência de violência, tendo a mulher afirmado que noticiou as agressões devido ao rompimento do relacionamento afetivo.
Noutro lastro, Enunciado do COPEVID entende incabível a imputação de crime de denunciação caluniosa, salvo se comprovado que o depoimento prestado pela mulher era inverídico, como se nota a seguir:
Denunciação caluniosa Enunciado nº 15 (001/2014): Considerando as pressões para a retratação a que as mulheres vítimas de violência doméstica estão usualmente expostas, caso a mulher afirme na fase investigativa que foi vítima de crime praticado em situação de violência doméstica e familiar e posteriormente negue os fatos em Juízo, o seu processamento por crime de denunciação caluniosa apenas será admissível se houver outros indícios suficientes de que o primeiro depoimento foi inverídico (Aprovado na Plenária da I Reunião Ordinária do GNDH de 14/03/2014 e pelo Colegiado do CNPG de 29/04/2014).
O dolo de caluniar é requisito essencial para a configuração do crime, sob pena de tornar o agressor em vítima e a vítima em agressor. Neste sentido a jurisprudência abaixo, que tranca a ação penal diante da inexistência de animus caluniandi:
EMENTA: HABEAS CORPUS - REPRESENTAÇÃO DE AGRESSÃO - LEI MARIA DA PENHA - RETRATAÇÃO NA DELEGACIA - NECESSIDADE DE SER FEITA PERANTE JUÍZO - RETRATAÇÃO NULA - INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL CONTRA A SUPOSTA VÍTIMA DE AGRESSÃO POR CRIME DE "DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA" - DESCABIMENTO - ABSOLUTA AUSÊNCIA DE "ANIMUS CALUNIENDI" - ATIPICIDADE DA CONDUTA OU AUSÊNCIA COMPLETA DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA PARA SUPEDANEAR INQUÉRITO OU AÇÃO PENAL - AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA EVIDENCIADA - MEDIDA DE EXCEÇÃO - ORDEM CONCEDIDA PARA TRANCAR AÇÃO PENAL.
- Nos crimes cometidos com violência doméstica, sujeitos aos ditames da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida só tem validade se feita perante o juízo, como explicita o art. 16 da Lei 11.340/06. A inobservância dessa exigência legal torna nula a retratação, dela não podendo decorrer nenhuma efeito.
- A instauração de ação penal por denunciação caluniosa, quando a própria calúnia é evidentemente inexistente, e quando ausente o dolo de calúnia, é de todo descabida.Aliás, seu caso ilustra os motivos que levaram o STF, na semana passada, decidir, por maioria, pela natureza incondicionada dos crimes cometidos contra mulheres, em situação de violência doméstica. São evidentes, mesmo na precária instrução deste HC, que os indícios levam a crer que o sr. Adilson da Costa não só coagiu a paciente a se retratar, mas também a agride costumeiramente.Isso porque, ainda que as agressões que a levaram à Delegacia na primeira oportunidade (dia 13/09/2010) decorressem mesmo de um assalto (o que é muito pouco provável), a imputação delas ao sr. Adilson não teria sido feita com o intuito de caluniá-lo. Não. Ela deixa claro que fez aquilo com o propósito de afastá-lo, senão do seu convívio, do convívio de seus familiares (MINAS GERAIS, TJMG.2012) (grifo nosso)
Isto porque as motivações para a desistência pode ser de várias ordens e estas devem ser levadas em conta pelo aplicador do direito, na medida que a aplicação da lei em sua literalidade por vitimar novamente a vítima.
Conclusão
Conclui-se que a Lei Maria da Penha deve ser observada, interpretada e implementada pelos operadores atendendo a seus fins sociais, que é salvaguardar a vida e dignidade da mulher, devendo aos aplicadores da lei, seja policiais, advogados, promotores de justiça ou juízes considerar as peculiares das vítimas de violência doméstica e familiar.
Com essa perspectiva, conseguimos responder a pergunta inicial, após análise da doutrina e jurisprudência. Não é cabível a imputação de crime de denunciação caluniosa à mulher que se retrata, afirmando a inexistência do crime de violência doméstica que havia noticiado anteriormente, exceto que verificada que há indícios de que o depoimento foi inverídico e com dolo de caluniar.
REFERÊNCIAS
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CAMARA DOS DEPUTADOS. Audiência Pública nº 0355/14. Debate sobre o Projeto de Lei nº 4.501, de 2012, que dispõe sobre a repressão à violência contra a mulher, alterando dispositivos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 — Lei Maria da Penha, e dá outras providências.10/04/2014. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/documentos-1/notas-taquigraficas/notas-taquigraficas-2014/notas-taquigraficas-do-dia-10-04.2014> Acesso em 21 fev 2016
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Bacharel em Direito. Analista do Ministério Público de Minas Gerais.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Gisele Adriane. O crime de denunciação caluniosa e a retratação dos fatos nos crimes de violência doméstica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47405/o-crime-de-denunciacao-caluniosa-e-a-retratacao-dos-fatos-nos-crimes-de-violencia-domestica. Acesso em: 22 nov 2024.
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