RESUMO: A Constituição Federal de 1988 estabelece um processo formal para a modificação de suas prescrições. Para além dessa possibilidade de modificação formal, são reconhecidos os processos informais de modificação da Constituição. Os processos informais correspondem às mutações do Texto Magno, podendo ser constitucionais ou inconstitucionais. São reconhecidas as modalidades de mutação por interpretação constitucional, por construção constitucional e pelas práticas constitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: processos informais, mutações, modalidades de mutação.
1. INTRODUÇÃO
A experiência humana se sujeita a modificações as mais variadas. Mudam-se os conceitos, as fórmulas, o modo de agir e de pensar da sociedade, as teorias econômicas, etc. O mundo, portanto, o que não é de difícil percepção, está em constante mudança.
As constituições, sendo produto humano, também não são eternas. São elas organismos vivos que, sob pena de perderem o bonde da História, aderem às novas exigências políticas, econômicas, sociais, culturais e jurídicas do Estado e da sociedade.
Nesse sentido, inerente à experiência constitucional, reconhece-se uma tensão existente entre a necessidade de durar e o anseio de mudanças. Trata-se da convivência de dois elementos aparentemente contraditórios: o estático e o dinâmico. O primeiro atende aos reclamos da segurança jurídica; o segundo, às exigências dos novos tempos.
De modo a promover, pois, um equilíbrio entre os dois citados elementos, as constituições rígidas permitem a modificação das disposições constitucionais através de um procedimento rigoroso e complexo. É o que se denomina de mudanças formais da Constituição, isto é, aquelas que alteram o texto escrito.
Nada obstante, decorrem também desse elemento dinâmico mudanças informais, as quais, sem alterar o texto da Constituição, promovem modificações em seu sentido e alcance. Essas mudanças são produto do poder constituinte difuso, e delas trataremos no presente trabalho, consignando, pois, os seus principais aspectos.
2. TERMINOLOGIAS
Inexiste consenso na doutrina a respeito da terminologia para designar as modificações informais da Constituição. São vários os termos e expressões a que se referem os autores, a saber: mutação constitucional, vicissitude constitucional tácita, mudança constitucional silenciosa, transições constitucionais, processos de fato, mudança material, processos indiretos, processos não formais, processos informais, processos oblíquos[1].
No escólio do magistério de Anna Cândida da Cunha Ferraz[2], utilizaremos indiscriminadamente as expressões processos informais, processos indiretos ou processos não formais de modificação da Constituição. Entendemos, ainda com supedâneo na doutrina de Anna Cândida da Cunha Ferraz, que os processos informais de modificação incluem as mutações constitucionais e as mutações inconstitucionais. Em outras palavras, os citados processos não formais correspondem às mutações do texto constitucional, as quais, por sua vez, podem ser constitucionais ou inconstitucionais.
3. CONCEITO
Diante das ideias expostas acima, temos que os processos informais de modificação da Constituição, quer constituam mutações constitucionais ou inconstitucionais, são os mecanismos pelos quais a Lei Magna, sem suportar qualquer modificação formal em seu texto, adquire novos sentidos e significados, adaptando-se às novas realidades e anseios sociais.
As constituições, portanto, como organismos vivos que são, incorporam as tendências sociais, políticas e econômicas que, embora não alterem a letra do texto constitucional, propiciam modificações na substância, significado, alcance e sentido dos dispositivos.
A esse respeito, valendo-se da expressão mutação constitucional em sentido genérico, são ilustrativas as palavras de Uadi Lammêgo Bulos:
Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais[3].
4. CARACTERÍSTICAS
Assim como em relação aos demais aspectos já abordados, o tema das características inerentes aos processos informais de modificação da Constituição não encontra consenso na doutrina. Para melhor otimização do assunto, no entanto, deter-nos-emos, aqui, às lições de Uadi Lammêgo Bulos e Anna Cândida da Cunha Ferraz, os quais examinaram o assunto tomando por base as mutações ditas constitucionais (em oposição às mutações inconstitucionais).
Segundo Bulos[4], são características das mutações constitucionais por que passa o Texto Magno: o fato de serem constitucionais, isto é, não gerarem deformações maliciosas nem subversões traumatizantes; a natureza fática dos processos informais, sendo que as mudanças ocorrem natural e espontaneamente; e, por fim, o desenvolvimento das mutações em momentos cronologicamente distintos, perante situações diferentes.
Por seu turno, Anna Cândida da Cunha Ferraz também enumera três características essenciais às mutações constitucionais. Nas palavras da própria Autora:
Em resumo, a mutação constitucional, para que mereça o qualificativo, deve satisfazer, portanto, os requisitos apontados. Em primeiro lugar, importa sempre em alteração do sentido, do significado ou do alcance da norma constitucional. Em segundo lugar, essa mutação não ofende a letra nem o espírito da Constituição: é, pois, constitucional. Finalmente, a alteração da Constituição se processa por modo ou meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou derivado.[5]
À exceção da exigência de que as mutações não contrariem a letra da Constituição, julgamos que os aspectos levantados pelos referidos autores também se aplicam, de igual modo, às mutações inconstitucionais.
5. MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS
Dissemos que os processos informais de modificação da Constituição constituem mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. Expliquemos, pois, em que consiste cada uma dessas espécies do fenômeno da mutação.
Em linhas gerais, tomando por pressuposto que as mutações são processos informais que modificam a compreensão do significado material da Constituição (não havendo, assim, qualquer alteração no texto formal), podemos fazer a seguinte distinção: denomina-se mutação constitucional a modificação que não viola a literalidade ou o espírito do Texto Magno; ao revés, as mutações inconstitucionais são aquelas em que a nova significação conferida à Carta Magna não se amolda perfeitamente à literalidade ou ao espírito das prescrições constitucionais.
Por oportuno, outra vez são pertinentes as considerações de Anna Cândida da Cunha Ferraz:
A expressão mutação constitucional é reservada somente para todo e qualquer processo que altere ou modifique o sentido, o significado e o alcance da Constituição sem contrariá-la; as modalidades de processos que introduzem alteração constitucional, contrariando a Constituição, ultrapassando os limites constitucionais fixados pelas normas; enfim, as alterações inconstitucionais são designadas mutações inconstitucionais. [6]
Sem maiores considerações, reafirmemos: conforme se ajustem ou não ao texto constitucional escrito, as mutações podem ser chamadas de constitucionais ou inconstitucionais.
As mutações constitucionais, por seu turno, podem se dar tanto de forma restritiva quanto de maneira ampliativa, consoante restrinjam ou ampliem o sentido e o alcance dos dispositivos constitucionais. Num e noutro caso, desde que se amoldem ao conteúdo da Constituição, citadas mutações permanecem sendo constitucionais.
No mesmo sentido, as mutações inconstitucionais também podem ser ampliativas ou restritivas, e isso, por razões já expostas no parágrafo anterior, torna-se clarividente. Aqui, no entanto, cabem maiores comentários. Segundo Anna Cândida da Cunha Ferraz[7], as mutações inconstitucionais se subdividem em processos manifestamente inconstitucionais (perante os quais a modificação afeta a letra ou o espírito da Constituição) e processos anômalos, consistentes na inércia dos poderes constituídos, desuso dos preceitos constitucionais ou mudança tácita da Constituição.
Segundo a autora, ressaltemos que as mutações manifestamente inconstitucionais podem ser verificadas, por exemplo, quando de interpretações legislativas, administrativas ou judiciais contrárias às disposições constitucionais, bem como por ocorrência dos chamados costumes contra constitutionem; de outra banda, configura-se inércia dos poderes constituídos a ausência, de forma provisória e intencional, de plena aplicabilidade dos dispositivos; o desuso constitucional, por sua vez, ocorre quando da inobservância uniforme, consciente, reiterada e pública de preceitos; e, finalmente, a mudança tácita da Constituição é verificada quando de reformas formais (emendas constitucionais, por exemplo) imprecisas ou contrárias às disposições constitucionais que lhes sejam anteriores.
Dadas as dimensões desse estudo, que não nos permitiria maiores discussões, trataremos, de maneira genérica, as mutações inconstitucionais como sendo aquelas em que há afronta ao texto ou ao espírito da Constituição.
Em conclusão, convém, ainda, que façamos algumas observações elucidativas, a saber: 1) o texto insculpido no artigo 5º, XI, da CF/88, que estatui ser a casa asilo inviolável do indivíduo, configura-se exemplo de mutação constitucional[8], tendo em vista que a garantia nele consubstanciada passou a ter significação ampla, abrangendo qualquer espaço não aberto ao público e no qual exista uma expectativa de privacidade; 2) não obstante controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da matéria, o remédio constitucional do mandado de segurança coletivo, inserto no artigo 5º, LXX, da CF/88, seria igualmente exemplo de mutação constitucional (obviamente, para os que entendem que o mesmo tenha sofrido modificação informal), porquanto poderia ser manejado para a defesa de direitos difusos[9]; 3) por fim, o artigo 52, X, da CF/88, no entender de parte da doutrina, teria sofrido revogação em face de processo indireto de modificação da Constituição, não se exigindo mais a intervenção do Senado; o Supremo Tribunal Federal rechaçou a tese acima esposada, porém, caso a tivesse sufragado, ter-se-ia, ao nosso sentir, uma mutação inconstitucional.
6. MODALIDADES
Além das mutações constitucionais e inconstitucionais, sobre as quais não seria errado dizermos de uma classificação baseada no resultado do processo, são reconhecidas, desta feita sob o enfoque do meio e/ou do próprio processo de formação, outras modalidades de modificação informal da Constituição.
Também a respeito dessas modalidades (as quais, conforme critérios oportunamente analisados, podem ser constitucionais ou inconstitucionais), a doutrina não guarda uniformidade. Utilizaremos, aqui, tendo em vista os limites do presente artigo, a classificação de Uadi Lammêgo Bulos, que elenca as mutações operadas em virtude da interpretação constitucional, as decorrentes das práticas constitucionais e as originadas por construção constitucional[10].
6.1. Mutação por interpretação constitucional
Os que se destinam à interpretação da Lei das Leis promovem, no exercício do poder constituinte difuso, modificações quanto à amplitude, sentido e conteúdo das disposições do Texto Magno. Da interpretação constitucional, destarte, quer se lhe atribua ou não uma especificidade em relação às demais formas de interpretação, pode resultar mudanças informais na Constituição (isto é, mutações).
Nessa toada, sem embargo de outros tantos aspectos a que não nos deteremos, importa diferençarmos aqui a interpretação orgânica (realizada pelos órgãos estatais - poderes Legislativo, Judiciário e Executivo) da interpretação inorgânica (produto da reflexão dos juristas e estudiosos do direito). A primeira (interpretação orgânica) tem grande relevo para o nosso estudo, porquanto se reveste de atuação concreta e, tratando-se do Poder Judiciário, dos atributos da obrigatoriedade e definitividade.
6.2. Mutação por construção constitucional
Na esteira da doutrina de Uadi Lammêgo Bulos[11], há uma diferença entre interpretação stricto sensu e interpretação lato sensu. Interpretação stricto sensu é aquela em que o sujeito busca todos os elementos interpretativos no próprio Texto Constitucional, não extrapolando os limites prescritos pelo legislador constituinte. Por sua vez, interpretação lato sensu consiste na atuação interpretativa para além dos limites do texto da Constituição, realizando um diálogo com outras fontes e saberes. O fenômeno da construção constitucional corresponde, precisamente, à interpretação lato sensu; a exemplo, poderíamos citar as audiências públicas de que tem se utilizado o Poder Judiciário para fins de aprimoramento do debate e melhor embasamento de suas decisões.
6.3. Mutação pelas práticas constitucionais
Práticas constitucionais, no dizer de Uadi Lammêgo Bulos[12], correspondem aos usos e costumes que se formam à luz da Constituição, englobando, também, as praxes, os precedentes e as convenções constitucionais. As praxes são práticas às quais lhes falta a certeza da obrigatoriedade; os precedentes, decisões não judiciais de ordem política; as convenções, acordos ou consensos entre os protagonistas da vida político-constitucional; os costumes, condutas de observância geral, constante e uniforme, compostas de um elemento objetivo (o usus) e um elemento subjetivo (convicção generalizada de sua exigibilidade).
Ainda a respeito dos costumes, por especial relevância para o nosso estudo, ressaltemos que os mesmos se comportam segundo três formas diferentes, a saber: secundum constitutionem, praeter constitutionem e contra constitutionem. O costume secundum constitutionem é aquele disciplinado na Constituição, ao qual se reconhece o dever de observância; o costume praeter constitutionem é aquele que complementa a Constituição, exercendo um papel supletivo; por fim, o costume contra constitutionem é aquele contrário à Lei Magna, manifestando-se de maneira oposta às prescrições constitucionais.
Todas essas práticas, especialmente os costumes, podem resultar em mudanças informais na Constituição, sendo oportuno reafirmarmos que o costume contra constitutionem gera mutações inconstitucionais.
7. CONCLUSÃO
Tendo em vista que o objeto do presente trabalho é a análise dos principais aspectos relacionados ao tema dos processos informais de modificação da Constituição, importa, em conclusão, procedermos a um apanhado do estudo realizado. A saber:
As modificações informais, conquanto a doutrina não guarde unívoco entendimento acerca da terminologia empregada, podem ser indiscriminadamente denominadas processos informais, processos indiretos ou processos não formais de modificação da Constituição. Citados processos correspondem às mutações do texto constitucional, as quais, por sua vez, podem ser constitucionais ou inconstitucionais.
Assim, os processos informais de modificação da Constituição, quer constituam mutações constitucionais ou inconstitucionais, são os mecanismos pelos quais a Lei Magna, sem suportar qualquer modificação formal em seu texto, adquire novos sentidos e significados, adaptando-se às novas realidades e anseios sociais.
De outro turno, tem-se a distinção entre mutação constitucional e inconstitucional. Denomina-se mutação constitucional a modificação que não viola a literalidade ou o espírito do Texto Magno; ao revés, as mutações inconstitucionais são aquelas em que a nova significação conferida à Carta Magna não se amolda perfeitamente à literalidade ou ao espírito das prescrições constitucionais.
Tomando por base as mutações constitucionais, tem-se a dizer que, segundo Bulos[13], são características das mesmas: o fato de serem constitucionais, isto é, não gerarem deformações maliciosas nem subversões traumatizantes; a natureza fática dos processos informais, sendo que as mudanças ocorrem natural e espontaneamente; e, por fim, o desenvolvimento das mutações em momentos cronologicamente distintos, perante situações diferentes.
Por sua vez, Anna Cândida da Cunha Ferraz também enumera três características essenciais às mutações constitucionais: alteração do sentido, do significado ou do alcance da norma constitucional; não ofensa à letra nem ao espírito da Constituição; a alteração da Constituição se processa por modo ou meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou derivado.
Por fim, diga-se da classificação de Uadi Lammêgo Bulos, que elenca as seguintes modalidades de mutações: as operadas em virtude da interpretação constitucional, as decorrentes das práticas constitucionais e as originadas por construção constitucional.
São essas, pois, as considerações que, diante do objeto proposto e dos limites do presente trabalho, era pertinente traçarmos.
8. REFERÊNCIAS
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986.
[1] BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 58.
[2] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 12.
[3] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 57.
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 61.
[5] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op Cit., p. 11.
[6] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op Cit., p. 10.
[7] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op Cit., p. 213.
[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 119.
[9] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 120.
[10] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 71.
[11] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 146.
[12] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 172.
[13] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 61.
advogado e Fiscal do Município de Fortaleza com atuação no PROCON. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Aprovado nos concursos públicos para Defensor Público do Estado do Ceará (2015) e Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (2016).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PORTO, José Cláudio Diógenes. Processos informais de modificação da Constituição: principais aspectos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 set 2016, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47492/processos-informais-de-modificacao-da-constituicao-principais-aspectos. Acesso em: 22 nov 2024.
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