Resumo: Do princípio da dignidade da pessoa humana e das garantias constitucionais fundamentais, pode-se extrair o chamado direito ao esquecimento, ou como comumente conhecido pelos norte-americanos, “direito de ser deixado em paz”. Originariamente, o direito ao esquecimento fora instituído para tutelar aqueles que já pagaram por crimes de fato cometidos e, com mais razão, por aqueles que foram considerados inocentes, mas que tiveram suas vidas pessoais envolvidas em eventos, muitas vezes, com efeitos nefastos e, por tal motivo, não convém serem relembrados, trazendo à tona todos os malefícios até então superados. Diante desse cenário, urge um conflito, tem-se, de um lado, a liberdade de informação, valores de índole constitucional, ínsitos de uma sociedade contemporânea, multifacetária e globalizada, e, de outro lado, os direitos da personalidade, dentre eles o direito ao esquecimento, como corolário do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem. Com o direito ao esquecimento não se pleiteia a imposição de apagar fatos ou de reescrevê-los, mas apenas a possibilidade de se regular o uso que se faz de fatos pretéritos, mais precisamente o modo e a finalidade com que tais fatos são relembrados, evitando que canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas. Neste artigo, far-se-á uma análise da colisão entre direitos fundamentais que ora suscita, apresentado os consequentes métodos propostos pela doutrina e jurisprudência para a solução do conflito.
Palavras-Chave: Liberdade de informação. Dignidade da Pessoa Humana. Direitos da Personalidade. Direito ao Esquecimento. Colisão. Ponderação.
Abstract: The principle of human dignity and fundamental guarantees intimacy, privacy, honor and image can extract the so-called right to be forgotten or as known by Americans of " right to be let alone". Originally, the right to be forgotten was created to benefit those who have already paid for the crimes committed and in fact, as more reason for those who were acquitted, but their personal lives were involved in events often with adverse effects, and that by this reason should not be remembered, surfacing overcome all evils. Given this scenario, we have, on one hand, freedom of press, freedom of information and expression values of a constitutional nature, a contemporary, multifaceted, globalized society, which can not be subjected to any kind of censorship, and on the other hand, personality rights, including the right to oblivion, as a corollary of the right to privacy, privacy, honor and image, all also with constitutional status. Right to oblivion not plead facts imposing delete or rewrite them, but only the possibility of regulating the use made of bygone events, more precisely the manner and purpose for which such facts are remembered, preventing information channels to enrich themselves by indefinite operation of private woes. In this monograph an analysis of collision between fundamental rights that emerges presented methods proposed by doctrine and jurisprudence for the solution of the conflict will be far.[1]
Keywords: Freedom of information. Human Dignity. Personality Rights. Right to Oblivion. Collision .Weighting.
1. INTRODUÇÃO
O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado, já dizia Machado de Assis, em sua obra intitulada “Quincas Borba” no ano de 1886, e parece que esta realidade não se mostra tão distante do que vivemos hoje. Atualmente, é evidente a importância e a imprescindibilidade que a mídia, de um modo geral, desempenha na sociedade contemporânea.
Com o advento do Estado Democrático de Direito por meio do qual dentre outras garantias e direitos objetiva-se assegurar o respeito às liberdades civis, ou seja, o respeito aos direitos humanos e às garantias fundamentais, com o estabelecimento de uma proteção jurídica mínima, por exemplo a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de informação e de expressão, que possui, inclusive, um viés de fundamentação constitucional de direito fundamental universalmente garantido.
Sob outra perspectiva, também agasalhada constitucionalmente, encontram-se os direitos da personalidade, pois que a personalidade é um atributo inerente ao ser humano e o acompanhará por toda a sua vida, ademais os direitos da personalidade são direitos considerados imprescindíveis à pessoa humana, pois que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade.
Hodiernamente o direito à privacidade não é mais apreendido como o direito de estar só, tendo seu conceito se estendido nos dias atuais, significando hoje, o controle sobre as próprias informações.
Deste modo, os direitos da personalidade que também podem ser compreendidos como aqueles direitos criados para dotar o Direito de mecanismos eficientes para tutelar três básicos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidariedade, por via de consequência tutelando-se os valores mais significativos do indivíduo, perante eles próprios, como também entre estes e terceiros ou até mesmo em relação ao próprio Estado.
Assim pode-se afirmar que, sob o prisma constitucional, os direitos da personalidade expressam o mínimo necessário e indispensável para se ter uma vida com dignidade.
Valendo-se dos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos e garantias fundamentais, a saber: direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, pode-se extrair, segundo será analisado neste artigo, o chamado direito ao esquecimento, ou como é denominado pelos norte-americanos de “direito de ser deixado em paz”, originariamente criado para tutelar aqueles que já cumpriram pena por crimes decorrentes de fatos anteriormente ocorridos e, com mais razão, por aqueles que foram considerados inocentes, mas que tiveram suas vidas pessoais envolvidas em eventos muitas vezes com efeitos nefastos e, por tal motivo, não convém ou mesmo seja inadequado que tais fatos sejam relembrados e repetidos, trazendo à tona todos os malefícios superados, individual e socialmente.
Diante desse contexto há um impasse entre valores igualmente acolhidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, tem-se, de um lado, a liberdade de imprensa, a liberdade de informação e de expressão, valores de índole constitucional, ínsitos da sociedade contemporânea, multifacetária e globalizada, os quais não podem estar submetidos a qualquer tipo de censura, e, de outro lado, os direitos da personalidade, dentre eles o direito ao esquecimento, como corolário do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, todos também dotados com status constitucional.
Assim, com o desenvolvimento deste artigo, procurar-se-á responder a alguns questionamentos, tais como: o direito ao esquecimento pode ser considerado como um direito da personalidade, sendo adequada a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro? Até que ponto a publicação, pela mídia, de fatos considerados traumáticos e superados para as vítimas e seus familiares, de natureza criminal ou não, ferem os direitos da personalidade destes? A liberdade de informação seria capaz de dar permissão ampla e irrestrita à mídia para a utilização indefinidamente no tempo de tais fatos e das pessoas neles envolvidas, trazendo à tona lembranças e angústias já superadas? Com a utilização do direito ao esquecimento, não se estaria comprometendo a historicidade de um tempo ou de certos fatos importantes, onde, por exemplo, crimes e criminosos que entraram para a história poderiam simplesmente desaparecer? No conflito entre direito ao esquecimento e liberdade de informação, ambos tutelados pela Constituição de 1988, qual deve prevalecer? Quais as consequências jurídico-sociais de tais violações aos direitos da personalidade? Estas violações seriam passíveis e suficientes de se pleitear em juízo danos morais?
Vivemos hoje numa sociedade intitulada como sociedade do hiperinformacionismo, que não mais exerce a precípua função de captar, (re)produzir ou distribuir informação da maneira mais imparcial possível. Muitos estudiosos asseveram que tal mudança se deu em virtude deste meio de comunicação em massa ter se tornado uma fonte inesgotável de lucro e poder. Deste modo, percebe-se que a mídia, principalmente a televisiva, vem comandando um espetáculo permanente, na qual a vida, a honra, a imagem, a privacidade e a intimidade de muitos indivíduos sofrem lesões diárias ferindo diretamente preceitos de ordem constitucional, a saber: os direitos da personalidade, e consequentemente o direito ao esquecimento em contrapartida com o direito à informação.
Assim, o tema ora questão: a colisão de direitos fundamentais, mais precisamente o conflito entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade sob a ótica do direito ao esquecimento e as suas respectivas consequências jurídicas práticas, ainda não goza de normas jurídicas próprias, constituindo-se como tema atual e relevante, e que diante da reincidência dos casos de publicações pela mídia de eventos já marcados pelo tempo carece de uma melhor análise e discussão, como também, ponderar acerca do modo e a finalidade com os quais tais fatos são recordados. Ademais, a forma com a qual este tema será abordado neste artigo, ganhará uma nova roupagem, e será analisado sob outro prisma, com o intuito de almejar soluções e alternativas levando-se em consideração esta nova realidade social, pois que esquecer é tão importante quanto lembrar.
O presente artigo tem como objetivo geral e precípuo examinar, à luz da teoria dos direitos fundamentais e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a aplicação do denominado direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro e internacional, em decorrência dos direitos à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, ante uma sociedade globalizada e hiperinformada, os seus limites, perfazendo, também, uma análise da colisão entre direitos fundamentais que emerge, quais são os critérios utilizados pelo Poder Judiciário para a solução deste, bem como os métodos propostos pela doutrina e jurisprudência para o sopesamento do aparente conflito e eventual possibilidade de tais fatos ensejarem danos morais para as vítimas de tais violações.
2 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
O Direito é um termo polissêmico, podendo ser analisado sobre várias perspectivas (como norma, fenômeno histórico, fins e valores a serem realizados, dentre outros), apresenta-se como um conjunto de princípios e norma que tem como intuito disciplinar e organizar a vida em sociedade, resolvendo os conflitos de interesses e promovendo a Justiça (AMARAL 2006).
Em realidade, a sistematização de uma ordem jurídica tem como função primordial, prévia e condicionante a tutela do ser humano. Não obstante as discussões filosóficas acerca do direito natural ou positivo, o fato é que o objetivo do Direito é permitir a vida em sociedade (MARTINEZ, 2014)
Ocorre que o reconhecimento da ideia de personalidade foi uma dura conquista da evolução humana e esta ideia está intimamente conectada ao conceito de pessoa. Primeiramente a ideia de pessoa vinculou-se a uma aptidão genérica para adquirir direitos e obrigações, tendo em vista o art. 1° do Código Civil de 2002: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.
Esta é a concepção clássica de personalidade, que, foi superada por uma visão contemporânea de personalidade como corolário da ideia de dignidade da pessoa humana como valor, a qual merece uma tutela diferenciada em função de seus atributos.
Assim, passa-se ao estudo e análise da evolução e conceituação de “dignidade da pessoa humana” e, a partir de seu reconhecimento como base axiológica do sistema jurídico nacional, abordando os aspectos definidores e essenciais do ser humano. Quais sejam os direitos da personalidade.
Conforme impende destacar, o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos constitucionais da personalidade constituem limites para o exercício das liberdades de informação, de expressão e de imprensa. Antes de adentrar na análise propriamente dita dos direitos da personalidade, imperioso se faz um exame mais detalhado do princípio da dignidade da pessoa humana, esse que é um dos mais importantes e grandiosos princípios da ordem jurídica brasileira. Tais elementos serão fundamentais para a caracterização e definição do surgimento de um novo direito da personalidade, o direito ao esquecimento (MARTINEZ, 2014).
2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO ESPÉCIE DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Finda essa breve digressão histórica, indaga-se: o que seria, então, a dignidade da pessoa humana? São inúmeras as tentativas de se elaborar um conceito pronto e acabado para a dignidade da pessoa humana, todavia, a única unanimidade que há entre os autores é que, em virtude de sua elevada carga de abstração, tal tarefa se mostra de difícil alcance.
Contudo, definir conceito de dignidade humana é essencial, pois é a partir de sua caracterização que se poderá definir, de forma clara, sua finalidade e seu alcance. A ideia de dignidade humana detém caráter multifacetado, pois que se faz presente em diversas áreas, como a Religião, a Filosofia, a Política e o Direito.
Para Barroso (2013, p. 63-65) a dignidade humana não pode ser considerada de forma absoluta, já que nenhum valor apresenta caráter ilimitado. Embora seja razoável o argumento de que a dignidade humana, muitas das vezes, irá ser o valor a prevalecer em determinada situação, não se pode afirmar ou considerar esse valor como absoluto, pois, em algumas situações, poderá ceder espaço a outro valor. A dignidade humana é, portanto, um valor fundamental, mas nem por isso absoluto.
Em contrapartida, Sarmento (2002, p. 58) diverge desse posicionamento, pois afirma, enfaticamente, não admitir qualquer relativização em relação à dignidade humana, em razão de sua matriz axiológica, funcionando como objetivo de todo o sistema.
Segundo esse entendimento, então, ao sopesar os princípios na análise do caso concreto, o julgador deve ter como norte a bisca do mínimo sacrifício da dignidade da pessoa humana.
Deste modo, pode-se dizer que a dignidade humana, enquanto valor fundamental desempenha dupla função: atuar como justificação moral e como fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais. Assim, o primeiro papel fundamental da dignidade humana é atuar, enquanto princípio, como uma fonte de direitos e deveres, incluindo os direitos não expressamente enumerados. Sua função é interpretativa, ou seja, a dignidade humana irá informar a interpretação de todos os direitos constitucionais (MARTINEZ, 2014).
Reconhecendo seu papel e suas funções precípuas, é importante estabelecer um conceito mais bem definido da dignidade humana, para que este abarque um conteúdo mínimo capaz de unificar o seu uso e de lhe conferir determinada objetividade. Nesse esteio, Barroso (2013, p. 72) sustenta que “se deve admitir uma noção de dignidade aberta, plástica e plural, sistematizando sua concepção mínima de dignidade humana”.
Assim, é possível sustentar-se que a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais representam faces de uma mesma moeda, estando umbilicalmente ligados. Enquanto aquela se volta para a seara da Filosofia, expressando os valores morais que tornam cada pessoa um ser absolutamente singular, estes se voltam mais para o Direito, contemplando os direitos fundamentais, que por sua vez, representam a moral sob a forma do Direito.
Dispõe Sarlet, neste sentido:
A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida (SARLET, 2001, p.60).
A dignidade humana contém, portanto, um núcleo essencial composto por diversos elementos com conteúdo moral, e esse núcleo gera implicações jurídicas no que se refere aos direitos fundamentais. O valor intrínseco de cada um desses elementos que compõem o núcleo essencial da dignidade humana tem, no plano jurídico, a origem de um conjunto de direitos fundamentais, dentre eles o direito à integridade psíquica ou moral, que compreende o direito à honra, à imagem, ao nome, à intimidade, bem como à privacidade (MARTINEZ, 2014).
Os direitos fundamentais são tradicionalmente apresentados pela doutrina como um conjunto de direitos divididos em categorias: direitos individuais (direitos da liberdade), direitos políticos (participação dos indivíduos na deliberação pública) e direitos sociais (englobam também os direitos econômicos e culturais são tidos como o mínimo existencial, ou seja o núcleo da dignidade humana).
Existe uma quantidade considerável de precedentes envolvendo direitos fundamentais que decorrem da dignidade humana como valor intrínseco. Assim, um dos maiores desafios do mundo contemporâneo é solucionar o conflito entre o direito à proteção individual (entendido como honra pessoal, intimidade, imagem, vida privada) e a liberdade de expressão e de informação (MARTINEZ, 2014).
A partir da ideia inicial do conceito de dignidade humana, analisar-se-á um breve exame da evolução dos direitos da personalidade na história moderna-ocidental, buscando definir seus traços mais relevantes, suas características, fundamentos e âmbitos de proteção.
A priori faz-se imperioso o esclarecimento de dois conceitos básicos, pois que é necessário determinar se os direitos da personalidade são inerentes, ínsitos ao homem, ou se apenas adquirem sua fundamentalidade com sua previsão legal, quais sejam: o direito natural e o direito positivo.
A ideia da existência de valores, princípios e direitos inerentes ao homem independentemente de sua positivação, é a essência da corrente naturalista. Assim, o direito à vida, liberdade, intimidade são inerentes ao ser humano, fazem parte da sua configuração natural, e a sua não-positivação não lhes tiraria aplicabilidade.
Por seu turno, a corrente positivista defende a ideia de que a ordem jurídica se inicia com o nascimento da Constituição, e somente a partir de então se poderia falar em direitos previstos e protegidos pelo Estado. Não existindo a possibilidade da existência de “direitos” senão aqueles previstos pelo ordenamento legal específico. Deste modo, os direitos da personalidade somente existem porque estão inseridos nos textos legislativos (MARTINEZ, 2014).
Hodiernamente, tal discussão acerca da natureza jurídica dos direitos fundamentais perdeu a importância, uma vez que a Constituição e o Código Civil expressamente positivaram os direitos da personalidade (CRFB, art. 5°, § 2°).
Independentemente do embate quanto à origem dos direitos da personalidade, se de ordem jusnaturalista ou positivista, a construção da sua conceituação surge na ordem constitucional nacional como um desdobramento da cláusula geral da dignidade da pessoa humana, já que é considerada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (SARMENTO, 2002).
A consagração deste princípio, é o reconhecimento de que o fim é a pessoa, e o Estado seria apenas um meio de garantia e promoção dos direitos fundamentais do ser humano.
Seguindo esse entendimento, foi elaborado o novo Código Civil de 2002, que, superando a visão patrimonialista até então vigente, trazendo em seu bojo o capítulo “ Dos Direitos da Personalidade”, como também o que foi convencionado pela doutrina, em especial, pelo Conselho de Justiça federal (CJF) - como “cláusula geral da dignidade”.
Eis o Enunciado n. 274 da IV Jornada de Direito Civil:
Os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação. (grifo nosso)
Sendo assim, a consolidação da ideia de direitos da personalidade é uma construção histórica, que se traduz na valoração do ser humano como eixo central e fundamental do ordenamento jurídico.
Com o advento do Estado Democrático de Direito por meio do qual dentre outras garantias e direitos objetiva-se assegurar o respeito às liberdades civis, ou seja, o respeito aos direitos humanos e às garantias fundamentais, com o estabelecimento de uma proteção jurídica mínima, por exemplo da liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de informação e de expressão, que possui, inclusive, um viés de fundamentação constitucional de direito fundamental universalmente garantido.
Sob outra perspectiva, também agasalhada constitucionalmente, encontram-se os direitos da personalidade, pois que a personalidade é um atributo inerente ao ser humano e o acompanhará por toda a sua vida, ademais os direitos da personalidade são direitos considerados imprescindíveis à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade.
Hodiernamente o direito à privacidade não é mais apreendido como o direito de estar só, tendo seu conceito se estendido nos dias atuais, significando hoje, o controle sobre as próprias informações.
Deste modo, os direitos da personalidade que também podem ser compreendidos como aqueles direitos criados para dotar o Direito de mecanismos eficientes para tutelar três básicos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidariedade, por via de consequência tutelando-se os valores mais significativos do indivíduo, perante eles próprios, como também entre estes e terceiros ou até mesmo em relação ao próprio Estado.
Assim pode-se afirmar que, sob o prisma constitucional, os direitos da personalidade expressam o mínimo necessário e indispensável para se ter uma vida com dignidade.
Valendo-se dos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos e garantias fundamentais, a saber: direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, pode-se extrair, o chamado direito ao esquecimento, ou como é denominado pelos norte-americanos de “direito de ser deixado em paz”, originariamente criado para tutelar aqueles que já cumpriram pena por crimes decorrentes de fatos anteriormente ocorridos e, com mais razão, por aqueles que foram considerados inocentes, mas que tiveram suas vidas pessoais envolvidas em eventos muitas vezes com efeitos nefastos e, por tal motivo, não convém ou mesmo seja inadequado que tais fatos sejam relembrados e repetidos, trazendo à tona todos os malefícios superados, individual e socialmente (MARTINEZ, 2014).
Diante desse contexto há um impasse entre valores igualmente acolhidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, tem-se, de um lado, a liberdade de imprensa, a liberdade de informação e de expressão, valores de índole constitucional, ínsitos da sociedade contemporânea, multifacetária e globalizada, os quais não podem estar submetidos a qualquer tipo de censura, e, de outro lado, os direitos da personalidade, dentre eles o direito ao esquecimento, como corolário do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, todos também dotados com status constitucional.
O tema ora questão: a colisão de direitos fundamentais, mais precisamente o conflito entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade sob a ótica do direito ao esquecimento e as suas respectivas consequências jurídicas práticas, da forma como será abordada neste artigo, ganhará uma nova roupagem, e será analisado sob outro prisma, com o intuito de almejar soluções e alternativas levando-se em consideração esta nova realidade social, pois que esquecer é tão importante quanto lembrar.
A memória humana, como sendo o bem jurídico protegido pelo direito ao esquecimento, conforme afirma Martinez (2014), é limitada e a sua capacidade de retenção de dados é proporcional ao interesse que se dá à informação, por meio da seletividade e do foco. Entretanto, a Internet, como sendo o veículo de propagação de informações em massa, ignorando a limitação inerente à condição humana, não possibilita atualmente a exclusão de qualquer dado que lá se tenha inserido, inviabilizando o esquecimento, que é mecanismo essencial de superação de fatos pretéritos com vistas ao futuro.
Em seguida, faz-se relevante analisar a sua importância no contexto social, ou seja, na forma com que são preservados os dados que são considerados relevantes e essenciais à coletividade. Observa-se, segundo Martinez (2014) baseado nas lições de Maurice Halbwachs (2004) que a memória coletiva é formada pelo somatório da memória individual dos membros da coletividade, e esta só se manterá forte e coesa se as informações forem importantes e necessárias para todos os membros nela inseridos. Pois que, se um membro deseja esquecer, o interesse pela informação passa a perder força e legitimidade.
Deste modo, da mesma maneira que a memória coletiva merece tutela jurídica por parte do Estado, corroborada pela liberdade de informação e expressão, a memória individual também merece, por meio do direito ao esquecimento.
É inerente ao ser humano é próprio da sua natureza o desejo incessante de ser lembrado. Durante toda sua história, o homem, de um modo geral, sempre lutou contra o ato de esquecer, tanto sob o viés de esquecer lembranças, as memórias, como também de ser esquecido, havia a necessidade de ser lembrado sempre por todos, de ser promovido e conhecido socialmente. Tais situações fáticas se deram por meio da linguagem, dos pergaminhos, da imprensa e das pinturas, buscaram eternizar a irrefreável ação do tempo.
Durante toda a trajetória de evolução e mudanças ocorridas na sociedade, o esquecimento tem sido a referência básica e a lembrança é tida como desafio, como bem assevera Martinez (2014, p. 58).
Entrementes, na atualidade o que se observa é uma verdadeira inversão desta lógica. O processo biológico e natural do esquecimento foi tolhido pelas mídias eletrônicas. A rede mundial de computadores possibilita a rememoração e reprodução imediata de qualquer fato ocorrido, independentemente de analisar a sua relevância em sociedade. O armazenamento, os chamados bancos de dados, transformaram a lembrança no estado-padrão do conhecimento, ao passo que o direito ao esquecimento tornou-se a exceção.
Deste modo assegura Schreiber:
Se os meios tradicionais de comunicação já possuíam características que dificultavam a aplicação efetiva de remédios jurídicos, tal dificuldade tem se intensificado imensamente com a Internet. A celeridade na difusão de imagens e notícias, a frequente impossibilidade de identificação do autor (muitas vezes, um usuário anônimo, que se vale de um computador de acesso público ou não rastreável) e imenso esforço necessário para se retirar da rede uma notícia falsa ou de conteúdo ofensivo são alguns dos obstáculos que vêm sendo enfrentados pelos tribunais neste campo (SCHREIBER,2013, p. 13).
Assim assevera e critica Rodotá (2009): “Quem eu sou? Até ontem, mesmo que entre muitas cautelas, podia-se dizer ‘eu sou aquele que digo ser’. Mas já entramos em um tempo em que sempre mais se deverá admitir: ‘eu sou aquilo que o Google diz que eu sou’”.
Deste modo, se mostra incontroverso que ao analisar-se a excessiva possibilidade de difusão de informações pretéritas, somada com a capacidade ilimitada de armazenamento de dados pela rede mundial de computadores, ensejou a um novo campo de proteção e tutela jurídica, qual seja a memória individual. Esta se conceitua como aspecto integrante da dignidade humana, que não pode ser fragmentada do indivíduo, na qual a proteção da memória individual se consubstancia no denominado direito ao esquecimento.
De acordo com Martinez (2014) o direito ao esquecimento corresponde a uma nova espécie dos direitos da personalidade, repercutindo em outros direitos consagrados na Carta Magna, tais como a privacidade, a honra, a imagem e o nome. Apesar de proteger e alcançar em casos específicos, isolada ou simultaneamente, os mencionados direitos, tem caráter autônomo: decorre dos direitos da personalidade, mas se trata de nova figura de proteção.
Em última análise, o direito ao esquecimento é o direito de não ter a memória pessoal revirada e rememorada a todo e qualquer instante, por força alheia a sua vontade, sem o seu devido consentimento, fazendo imperar na prática à vontade de terceiros que não se preocupam com a memória individual daqueles que estão a todo o momento sendo relembrados sem a devida contemporaneidade da informação. Não se trata, em suma, de uma descoberta recente, mas que, em virtude dos avanços tecnológicos, vem adquirindo novos rumos e contornos inéditos.
3.2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO E A SUA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL
O direito ao esquecimento decorre dos já então notórios direitos à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, direitos da personalidade estes, resultantes da proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana. Sendo assim, consiste, por sua vez, na vontade que o indivíduo possui de não ser lembrado contra a própria vontade, no que impinge a fatos ou eventos trágicos, que de alguma forma lhe acarretaram algum tipo de abuso ou ofensa.
A priori, a construção do conceito jurídico do direito ao esquecimento, também denominado entre os norte-americanos de the right o bel et alone (direito de ser deixado em paz ou o direito de estar só), originou-se tendo em vista a ressocialização dos autores que por ora cometeram atos delituosos, isto é, beneficiando àqueles que já pagaram por crimes cometidos e, como mais razão, aqueles que foram considerados inocentes, mas que tiveram suas vidas pessoais envolvidas em eventos muitas vezes com efeitos nefastos e que, por tal razão, não convém serem relembrados, trazendo à tona todos os malefícios que, com muito esforço, foram superados.
Vivemos hoje em uma era do hiperinformacionismo, na qual inexiste uma linha nítida que separa o que pertence a esfera privada e a pública, pois que os diversos meios de comunicação, em seu sentido amplo, em uma acentuada exploração midiática e com vistas direcionadas para a aquisição de lucro, inundam o espaço público com questões estritamente privadas, invadindo, na maioria das vezes, a intimidade contra a própria vontade do titular desses direitos, o que deverá ser rechaçado em sua totalidade.
Seguindo esse entendimento, Paulo José da Costa Júnior, dissertando acerca do assunto, assim assevera:
Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas. O conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente, na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade, contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas (JUNIOR, 2007, p. 16).
Tendo em vista a situação ora vislumbrada, deparamo-nos, frequentemente, com a divulgação de fatos passados com ausência total de contemporaneidade, que terminam por reabrir antigas feridas já superadas pelo autor do fato delituoso, reacendendo, por conseguinte, a desconfiança, o medo, novamente, da sociedade quanto à sua índole.
Desse modo, objetiva-se com o direito ao esquecimento o direito de não ser lembrado contra a vontade do titular, especialmente no que diz respeitos aos fatos desabonadores de conduta, principalmente de natureza criminal, nos quais anteriormente se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado.
De igual forma, os condenados em processo de ressocialização e os que se envolveram na prática de delitos, mas foram consequentemente absolvidos, o direito ao esquecimento também alberga as vítimas de crimes e seus familiares, caso desejem, visando impedir, assim, que em virtude da publicidade de antigos fatos trágicos, sem nenhuma contemporaneidade e interesse público, sejam novamente submetidas a desnecessárias lembranças que tais acontecimentos lhe causaram, trazendo à tona dores inesquecíveis e reabrindo feridas já superadas com o tempo.
Com o direito ao esquecimento não se pleiteia a imposição de apagar fatos ou de reescrevê-los, mas apenas a possibilidade de se regular o uso que se faz de fatos pretéritos, mais precisamente o modo e a finalidade com que tais fatos são relembrados, evitando que os meios de comunicação e informação se enriqueçam mediante a imensurável exploração das desgraças privadas.
Não seria justo para os autores de atos delituosos que estejam em processo de ressocialização, para os absolvidos em procedimentos criminais, tampouco para as vítimas e seus familiares, que fatos pretéritos sejam continuamente relembrados, isto é, que o passado seja convertido em um presente contínuo, por vezes, perpétuo.
René Ariel Dotti (1980, p. 82), ao comentar sobre a decisão do Tribunal de Paris acerca do caso Marlene Dietrich, o qual, segundo o autor, foi uma pedra fundamental na construção do direito ao esquecimento, afirma que “as recordações da vida privada de cada indivíduo pertencem ao seu patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a vida”.
4 DIREITO AO ESQUECIMENTO: TRATAMENTO LEGAL E JURISPRUDENCIAL NACIONAL E COMPARADO
Resta cristalino, que o direito ao esquecimento é um instituto que advém do regramento constitucional que tutela a proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assim como assegura o princípio de proteção à dignidade da pessoa humana. Assim, em razão de ser considerado uma decorrência dos direitos da personalidade e da dignidade humana, pode-se afirmar que o direito ao esquecimento possui assento constitucional e legal, assegurado pela Constituição Federal (arts. 1º, III, e 5º, X) e pelo Código Civil (art. 21).
A tese do direito ao esquecimento vem ganhando força na doutrina jurídica brasileira, tendo sido aprovado, recentemente, o Enunciado n. 531 da VI Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF/STJ, cujo teor e justificativa ora se transcrevem:
ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.
O tema ora em comento já fora objeto de discussão na jurisprudência pátria, onde o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento dos Recursos Especiais nº 1.334.097 – RJ e nº 1.335.153 – RJ, ambos da relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, que tivera a oportunidade de se manifestar acerca da aplicabilidade do direito ao esquecimento. O caso analisado, e a título exemplificativo do presente artigo, no REsp nº 1.334.097 – RJ versava sobre a história de um dos acusados que teria participado do trágico episódio conhecido como a Chacina da Candelária, ocorrido no Rio de Janeiro em 1993, e que ao final do processo-crime fora inocentado.
Ocorre que, tempos depois da absolvição do suposto envolvido, uma emissora de televisão produziu documentário sobre o referido episódio, apontando novamente o seu nome como uma das pessoas que haviam participado do crime. O indivíduo ingressou, então, com Ação de Indenização por Danos Morais, alegando, em suma, que sua exposição no programa, para milhões de telespectadores, em rede nacional, reacendeu na comunidade onde reside a imagem de que ele seria um assassino, violando seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal. Aduziu, ainda, que fora obrigado a sair do local onde morava visando preservar a sua segurança e a de seus familiares.
No entanto, apesar de ser uma temática recente na doutrina e jurisprudência brasileiras, o tema direito ao esquecimento há muito tempo vem sendo discutido na Europa e E.U.A., sendo objeto de diversos julgados de Tribunais Constitucionais estrangeiros. Um destes casos merece atenção é o intitulado Lebach, no qual se discutiu a problemática concernente à liberdade de imprensa face aos direitos da personalidade, sob a alegação de que, além de lesar os seus direitos de personalidade, a divulgação do filme, no qual era citado nominalmente, dificultava a sua ressocialização.
Ascendendo o caso até o Tribunal Constitucional alemão, a Corte decidiu, naquela oportunidade, que a proteção constitucional da personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, a imagem da pessoa do criminoso e de sua vida privada, especialmente se esse fato for um óbice à sua ressocialização.
Assim sendo, a proteção da personalidade não autoriza, porém, que a Televisão se ocupe, fora do âmbito do noticiário sobre a atualidade, com a pessoa e esfera íntima do autor de um crime, ainda que sob a forma de documentário. A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente no que tange a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identifica o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de seu livramento condicional ou mesmo após a sua soltura ameaça seriamente o seu processo de reintegração social.
Deste modo, verifica-se que o direito ao esquecimento, a partir de uma nova realidade social que se vive nos dias atuais, sob a tônica da modernidade e ancorada na informação massificada, voltou a ser um tema atual e de inegável importância, em virtude dos danos causados por fatos e acontecimentos, falsos ou até mesmo verdadeiros, veiculados pelos diversos meios de comunicação, com o seu alto poder de propagação da informação, que inundam a esfera pública com episódios relacionados apenas à vida privada dos noticiados, que, muitas vezes, não possuem mais nenhuma relevância jornalística ou histórica e nenhum interesse social.
5 COLISÃO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS: DIREITO AO ESQUECIMENTO VERSUS LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E AS TÉCNICAS DE PONDERAÇÃO
O tema por ora conflitante, a saberos direitos fundamentais, mais precisamente o conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade, não é fato novo, tendo os tribunais pátrios já se deparado com inúmeros casos. Contudo, tal conflito, da forma como posta neste trabalho, ganha uma nova roupagem, devendo ser analisado sob outro prisma e solucionado levando-se em consideração uma nova realidade social, na qual a informação se difunde de forma massificada, por meio de diversos veículos de comunicação, dentre eles a internet, ambiente que, por natureza, não “esquece” o que nele se divulga e pereniza tanto informações boas quanto insultuosas da pessoa noticiada, bem como o alcance potencializado de sua divulgação.
Conforme destacado, tem-se de um lado o direito ao esquecimento, como decorrência dos direitos da personalidade à honra, à privacidade, à intimidade e à imagem, resultantes de proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana, e, de outro, as liberdades de informação, de expressão e de imprensa, todos tutelados da mesma forma pelo Texto Constitucional de 1988.
O conflito em destaque emerge da própria opção constitucional pela proteção de valores quase sempre antagônicos, os quais representam, se um lado, o legítimo interesse de “querer ocultar-se” e, de outro, o também legítimo interesse de se “fazer revelar”.
Por colisão de direitos fundamentais deve-se entender a diversidade de interesse sobre direitos fundamentais de diferentes titulares referentes ao mesmo objeto, de tal forma que o exercício de uns venha a opor-se com o de outros, fazendo com que o intérprete, diante de duas regras ou de dois princípios constitucionais, sinta-se em dúvida acerca de qual deva prevalecer no caso concreto.
No caso ora em análise, temos o direito ao esquecimento, como espécie dos direitos da personalidade, que orienta no sentido da proteção da esfera privada, do sigilo, da tranquilidade, do segredo, da não divulgação de informação pessoal, da não exposição da imagem; já as liberdades de informação, de expressão e manifestação do pensamento jornalístico seguem o caminho da transparência, da publicidade, da livre circulação de informação. Como se denota, têm-se direitos que caminham em sentido completamente antagônico.
Assim, levando-se em consideração as premissas anteriormente citadas (natureza principiológica dos direitos fundamentais, princípio da unidade da Constituição, ausência de hierarquia entre normas constitucionais), quais os meios de solução que deve o intérprete utilizar ao se deparar com um conflito dessa espécie?
É cediço que o intérprete, no caso de eventuais antinomias verificadas no ordenamento jurídico, também tem ao seu dispor três critérios tradicionais de solução: cronológico, hierárquico e especialização. Segundo o critério cronológico, a norma posterior prevalece sobre a norma precedente. Para o critério hierárquico, a norma de grau superior prevalece sobre aquela de grau inferior. O silogismo é um raciocínio que se pauta na dedução, composto basicamente por duas premissas ou preposições (maior e menor), a partir das quais se alcança uma conclusão inferior). E por fim, o critério de especialidade, o qual estabelece que a norma especial prevalece sobre a geral).
Assim, diante de normas em rota de colisão e da impossibilidade de utilização os métodos clássicos de solução para os conflitos entre as regras, a intepretação constitucional se viu-se na obrigação de desenvolver técnicas capazes de produzir uma solução pautada pela racionalidade e controlabilidade. A técnica a ser desenvolvida deverá ter uma estrutura diversa, com capacidade de operar em todas as direções, sempre em busca da regra concreta que vai reger a espécie, considerando os múltiplos elementos em jogo na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto. (BARROSO, 2012, p. 358).
Trata-se da técnica que a doutrina constitucionalista convencionou-se a intitular de ponderação, esta consiste em uma técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, sobretudo quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas, conflitos esses insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais.
George Marmelstein, nesse sentido, expõe:
A ponderação é uma técnica de decisão empregada para solucionar conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticas, em relação aos quais as técnicas tradicionais de hermenêutica não se mostram suficientes. É justamente o que ocorre com a colisão de normas constitucionais, pois, nesse caso, não se pode adotar nem o critério hierárquico, nem o cronológico, nem a especialidade para resolver uma antinomia entre valores ( MARMELSTEIN, 2013, p.378)
Outro elemento de essencial utilidade e que sempre deve ser o fio condutor do intérprete, ao solucionar a colisão entre direitos fundamentas, é o princípio da proporcionalidade. Tal princípio se faz essencial e imprescindível, principalmente no apoio e na proteção dos direitos fundamentais, pois fornece critérios para as limitações a esses direitos. (PINHO, 2003, p. 153).
Não se pode deixar de destacar que, no Brasil, a história da liberdade de expressão e de informação é uma história sombria, marcada por sucessivos golpes, e duas extensas ditaduras. Superada essa fase nefasta, as liberdades de informação e de expressão foram devidamente albergadas pela Constituição Federal, exercendo a imprensa, nos dias atuais, um papel de suma importância no desenvolvimento e fortalecimento de qualquer Estado de Direito que tenha a pretensão de se auto afirmar como Democrático. Não é à toa que a imprensa, hodiernamente, ostenta a denominação de um “quarto Poder do Estado”, exercendo, por vezes, papel de definir o que é importante para a opinião pública.
Ademais, o Texto Constitucional também é categórico ao afirmar, em seu art. 5º, inciso X, que “são invioláveis à intimidade, à vida privada, à honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Alberga-se, assim, os direitos da personalidade, direitos estes que derivam da própria dignidade da pessoa humana, tutelando os valores mais significativos do indivíduo e caracterizando um mínimo necessário e imprescindível para uma vida com dignidade.
Salta a luz dos olhos que, pela redação do dispositivo acima mencionado, a intenção do constituinte é estabelecer como regra a inviolabilidade dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, e não assegurar apenas eventual direito de reparação ao dano causado, sinalizando assim que, em uma eventual ocorrência de conflitos entre esses bens jurídicos, em tese, para uma inclinação no sentido de privilegiar as soluções protetivas da pessoa humana.
Ao se observar as particularidades da hipótese em colisão apresentada no presente trabalho, o mesmo entendimento se faz notório.
Vale ressaltar que, a imprensa nem sempre age com o nobre propósito de informar o público de forma neutra e ética, pois, sob uma lógica empresarial, está mais interessada na obtenção de lucros e em obter índices de audiência mais elevados, pautado seus editoriais em decisões políticas, transmitindo não a verdade, mas apenas uma versão dos fatos que melhor lhe convém, bem como as mazelas da sociedade são consideradas um verdadeiro espetáculo e atrativo de ibope, servindo de óbice à exploração midiática.
Assim, não há como negar que a utilização pela mídia de acontecimentos trágicos, de caráter criminal, seja em programas televisivos ou reportagens, com ausência total de contemporaneidade e desprovidos de interesse público e historicidade, podem causar para os envolvidos sérios danos e prejuízos, bem como abalos de ordem moral.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Restou cristalino que atualmente vivemos em uma sociedade marcada pela hiperinformação, na qual há cada vez menos espaço entre a esfera da privacidade e a esfera pública, muitas vezes com a expropriação da intimidade contra a própria vontade do titular. Nesse ambiente, os meios de comunicação, sob uma falsa permissão ampla e irrestrita, retratam fatos e eventos indefinidamente no tempo, tornando o passado em um presente contínuo.
Considerando essa nova realidade social, na qual a informação se difunde de forma massificada, por meio de diversos veículos de comunicação, dentre eles a internet, ambiente que, por natureza, não “esquece” o que nele se divulga e pereniza tanto informações boas quanto injuriosas da pessoa noticiada, observou-se que a disseminação de informações de forma desmedida e absoluta invoca a criação de novos direitos, tal como o direito de ser esquecido ou o direito de ser deixado em paz.
O direito ao esquecimento surge como um instrumento de salvaguarda daquele indivíduo que se depara, comumente, com a divulgação de fatos pretéritos, com ausência total de contemporaneidade e de interesse público que justifiquem a reiterada transmissão, reacendendo a desconfiança da sociedade quanto à índole do autor do crime, que já quitou sua dívida com a justiça e com a própria sociedade, assim como daquele indivíduo que fora devidamente considerado inocentado. Alberga, também, as vítimas de crimes e seus familiares, caso desejem, visando impedir, assim, que em virtude da publicidade de antigos fatos trágicos sejam novamente submetidas a desnecessárias lembranças que tais acontecimentos lhe causaram, trazendo à tona dores inesquecíveis e reabrindo feridas já superadas com o tempo.
Surge, assim, como se observou, um conflito entre direitos fundamentais, pois de um lado estão as liberdades de informação, de expressão e de imprensa, valores de índole constitucional, ínsitos de uma sociedade contemporânea, multifacetária e globalizada, os quais não podem estar submetidos a qualquer tipo de censura, e, de outro lado, os direitos da personalidade, dentre eles o direito ao esquecimento, como corolário do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem, todos também com status constitucional.
Apesar da importância que a garantias constitucionais de informação e de expressão possuem, bem como a essencialidade da função desempenhada pela imprensa na sociedade contemporânea, principalmente pelo cenário de perseguição e censura pelo qual passou nas sombrias eras da ditadura, não se pode conceber, de forma alguma, que tais liberdades sejam efetivadas totalmente desprendidas de regras e princípios a todos impostos.
O cenário constitucional protetivo da atividade informativa converge para a liberdade de “expressão, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX), mas também para a inviolabilidade da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, inciso X).
Ademais, a Constituição Federal, a despeito de tutelar o direito à informação livre de censura, mostra sua vocação antropocêntrica quando estabelece em seu art. 1º o respeito à dignidade da pessoa humana como fundamento da República, pela qual os demais direitos devem ser interpretados, garantindo-se, assim, que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera aos demais, edificando um núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância que legitima algum sacrifício a ser suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos.
Assim, não se vê com bons olhos que acontecimentos, criminosos ou não, sejam reproduzidos de forma desmedida no tempo, permanecendo eternamente na memória da sociedade, apesar de verdadeiros. Não há como deixar de considerar que a utilização pela mídia de acontecimentos trágicos, com ausência total de contemporaneidade e desprovidos de interesse público e historicidade, pode causar para os envolvidos sérios danos e abalos de ordem moral.
Posto isso, diante da colisão entre o direito ao esquecimento e a liberdade de informação, de expressão e de imprensa, da forma como apresentada neste trabalho, ou seja, no caso da divulgação de fatos pretéritos, sem contemporaneidade, historicidade e interesse público que justifiquem serem relembrados, buscando-se uma harmonização entre a “liberdade de imprensa” e a “honra” da pessoa envolvida, onde ambos os valores seriam preservados em sua plenitude, pode-se afirmar que a melhor solução para o conflito seria a utilização da ponderação.
Deste modo, pode-se verificar que a aplicação do juízo de ponderação faz-se imprescindível para tentar solucionar, ou ao menos para sopesar tal conflito que evidencia-se indiscriminadamente nesta sociedade considerada como hiperinformada.
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[1]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Direito, Memória e Justiça de Transição do VI Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Estadual da Bahia, Vitória da Conquista, 23 a 27 de agosto de 2016
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GONDIM, Andréa Nayane Guanais Aguair. Direito ao esquecimento versus liberdade direito de informação: a tutela de um direito constitucional da personalidade em face da sociedade da informação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47604/direito-ao-esquecimento-versus-liberdade-direito-de-informacao-a-tutela-de-um-direito-constitucional-da-personalidade-em-face-da-sociedade-da-informacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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