RESUMO: A conduta de adquirir e/ou portar substâncias psicotrópicas sem autorização para consumo pessoal consubstancia objeto de criminalização no Brasil. Este trabalho oferece uma análise da evolução do preconceito e da estigmatização dos usuários de drogas em nossa sociedade, perpassando pelas principais teorias legitimadoras da diferenciação, viabilizadoras, outrossim, da confecção de diversas leis proibitivas. Apesar do novel tratamento estabelecido pela Lei n.° 11.343 de 2006, o Estado ainda não reconhece e tutela dos direitos humanos, abstendo-se, por intermédio de políticas públicas, do tratamento do tema como questão de saúde pública. Defendemos, assim, a tese da descriminalização da conduta ora em comento, com respaldo em princípios constitucionais como os da igualdade, privacidade, lesividade e dignidade da pessoa humana, igualmente, considerando a moderna doutrina, e no panorama jurídico de países que evoluíram na defesa dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: CRIMINALIZAÇÃO – CONSUMO DE DROGAS – DIREITOS HUMANOS - INCONSTITUCIONALIDADE.
ABSTRACT: The conduct of purchasing and/or possessing psychotropic substances for personal consumption without authorization constitutes the object of criminality in Brazil. This paper offers an analysis of the evolution of prejudice and stigmatization of drug users in our society, passing by the main legitimating theories of differentiation, enablers, moreover, the construction of several laws forbidding. Despite the novel treatment established by Law 11.343 of 2006, the state still does not recognize and protect human rights by refraining, through public policy, the treatment of the issue as a public health issue. We argue, therefore, the thesis of decriminalization of conduct now under discussion, with support for constitutional principles like equality, privacy, lesividade and human dignity, also considering the modern doctrine, and legal landscape of developed countries in defense human rights.
KEYWORDS: CRIMINALIZATION – DRUG USE- HUMAN RIGHTS - UNCONSTITUTIONAL.
1 INTRODUÇÃO
O consumo de substâncias entorpecentes tem sido comum no decorrer da evolução histórica da humanidade. Desde os primórdios, há 20.000 anos, as drogas são utilizadas pelas pessoas pelos mais variados motivos, a exemplo de uma folha de papoula, folha de coca, folha de tabaco, tendo a possibilidade, inclusive, de serem cultivadas ou produzidas juntas ao nosso convívio.
Indubitavelmente podemos afirmar que todos já utilizaram algum tipo de droga, seja ela sintética ou natural. Esta constatação decorre dos mais diversos motivos, sejam provenientes de fins medicinais, culturais ou até mesmo por motivos religiosos, inserindo o presente assunto em um contexto irrefutavelmente multidisciplinar e ideológico.
A escolha do tema tratado na presente pesquisa se deve à constatação de um conflito entre princípios constitucionais e a deliberação política em criminalizar a conduta de portar/adquirir drogas para consumo pessoal. Assim também, e não menos importante, diz respeito ao discurso legitimador proibicionista, pois se fundamenta nos chamados crimes de perigo abstrato, consectários das incriminações de condutas vagas em que se protegem bens jurídicos coletivos, a exemplo da saúde pública.
Hoje, nos ordenamentos normativos mais modernos, frutos das diversas teorias que desaguaram no conteúdo garantista dos direitos fundamentais, os princípios e regras jurídicas servem de limite ao autoritarismo estatal, sobretudo em relação aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, destacando-se, decerto, a liberdade.
Em um Estado Democrático de Direito, a instrumentalização e o respeito aos anseios impostos pela Carta Superior de 1988 são as principais dificuldades impostas aos operadores do direito. Desta forma, já em seu preâmbulo, a Constituição Federal inaugura valores supremos de conteúdo social que se traduzem na busca de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias.
Nessa senda, o Direito Penal possui a função de tutelar apenas os bens jurídicos mais importantes para convivência harmoniosa dos seres humanos (devendo ser a ultima ratio) devido sua ingerência agressiva em um dos bens jurídicos mais importantes para os indivíduos que é a liberdade. Neste ponto, resta evidente o caráter “mínimo intervencionista” do estatuto repressivo, possuindo a incumbência de reprimir condutas apenas quando outros ramos do direito forem insuficientes para tal regulamentação.
Nesse diapasão, surge a seguinte questão: tendo em vista o modelo de estado Democrático de Direito que estamos insertos, justifica-se a intervenção penal para a regulamentação da conduta de porta/adquirir substâncias entorpecentes para consumo pessoal em face dos direitos e garantias fundamentais? Em caso afirmativo, tal fato tem por base a prevalência de um suposto direito coletivo de se ver livre das drogas contrapondo as liberdades individuais?
O presente trabalho parte da premissa de que a consequência de tal perquirição resultará na constatação da maior relativização dos direitos e garantias postos na Constituição Federal, fragilidade que decorre da escolha do modelo de estado beligerante. A nosso viso esse fundamento subverte a real necessidade das pessoas que se encontram envolvidas com as drogas, consistente em tratamento sanitário disponibilizado por interlúdio de políticas públicas.
Valores consagrados constitucionalmente são prescindidos devido o estado de tensão instituído pela ideologia de defesa social, como exemplos o princípio da lesividade (artigo 5°, inciso XXV), da autonomia individual, os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada previstos no art. 5°, inciso X. Logo, a dignidade humana - postulado fundamental do Estado Democrático de Direito - é posta em cheque, sendo o ser humano colocado como meio para consecução dos objetivos estatais, ao invés de ser o fim, reforçando a tese de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006.
Ante o exposto, buscar-se-á com o trabalho em voga: analisar de forma crítica e dogmática o artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006, delineando sua contextualização histórica a partir das principais ideologias por detrás de tal ingerência Estatal, objetivando investigar sua legitimação à luz dos grandes princípios Constitucionais inseridos em um Estado Democrático de Direito.
Partindo dessas premissas, será delineado o escorço histórico no Brasil da criminalização da conduta de adquirir ou trazer consigo drogas para consumo pessoal, chegando aos dias atuais em que a Lei n.° 11.343/2006, em seu artigo 28, mantém o discurso político-criminal proibicionista. Doravante, serão examinadas as teorias justificadoras da tipificação legal da conduta de adquirir/portar estupefacientes para consumo pelos usuários (por exemplo, a teoria da defesa social).
A importância desse trabalho é contribuir com a quebra de paradigmas dos quais transformam o Direito Penal em uma ferramenta deletéria para alguns acontecimentos sociais de grande relevância (inegavelmente), não obstante, estarem insertos na seara interna das pessoas, relativo a questões morais. Buscar-se-á apresentar alternativas para redução da utilização das drogas, e utilizar como contraponto o ultraje que é a pecha de criminoso em um tema assaz delicado.
Apesar dos avanços alcançados com a Lei n.° 11.343 de 2006, um dos quais não há mais previsão de pena privativa de liberdade, o ordenamento jurídico brasileiro precisa avançar nas discussões relativas ao tema. Em face disso, busca-se a aprovação do projeto de lei que descriminaliza a ação de adquirir ou trazer consigo drogas para consumo pessoal e, doravante, proporcionar mudanças de paradigmas, onde determinados valores e princípios estejam mais presentes na consciência coletiva.
2 POLÍTICA E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
2.1 O Discurso e a Transnacionalização do Controle
Para iniciarmos a exposição de motivos desse tópico, inevitável asseverar o entendimento que, no Brasil, existe uma política criminal das drogas. Inobstante, igualmente verdadeira é a afirmação de que o exercício desta função por intermédio do Estado está dissociado dos anseios Constitucionais. Trata-se de um sistema repressivo em consonância com o discurso criminalizador transnacional, onde, principalmente as camadas sociais mais vulneráveis são violadas em seus direitos e garantias fundamentais.
Digno de nota, não constitui nosso objetivo transcrever de forma inexorável os contornos históricos e ideológicos legitimadores do contexto atual que estamos insertos, até porque constitui tarefa inalcançável. A complexidade encontra-se na questão axiológica que permeia cada contexto histórico que se perfaz analisado, mormente em temas políticos-criminais e, igualmente, por entendermos que a regulamentação pelo direito penal das drogas consubstancia produto moralizador.
Enfim, pode parecer entranho, mas há aproximadamente 100 anos substâncias que hoje são proibidas eram permitidas, a cocaína, heroína, morfina, maconha, são exemplos de drogas que eram legais ao redor do mundo. Acontece que, com o passar do tempo, motivações políticas e sociais influenciaram na segregaram de várias substâncias.
A questão religiosa é determinante, o Cristianismo, cujas principais vertentes são o Catolicismo, a Ortodoxia Oriental e o Protestantismo, estabelece uma espécie de tolerância ao álcool, passando a ser utilizado não só para situações festivas, mas também em rituais sagrados. Não obstante, no século XIX há uma inversão de valores quando a doutrina Metodista, umas das vertentes do Protestantismo, fundada por John Wesley na Inglaterra, começa a instituir a ideia de que o álcool é em si mesmo pecaminoso.
Essa ideologia influência sobremaneira os Estados Unidos da América, vai ganhando espaço e se permeando na política quando, em 1920, é instituída a denominada Lei Seca, proibindo-se o comércio de qualquer tipo de substância alcoólica. Nesse ínterim, surgem pelas cidades americanas os chamados speakeasies[1], bares clandestinos que comercializavam destiladas fortíssimas, frequentados por pessoas influentes da sociedade o que gerou assaz dificuldade no cumprimento da lei.
O que aconteceu é o retrato atual da sociedade, surgiram pessoas que se beneficiavam com o contrabando das bebidas, os traficantes, a ilicitude aumentou a corrupção e a violência, os custos da política proibicionista cresceram significativamente. Em decorrência desse contexto social, a economia americana entrou em crise em 1929 e, depois disso, em 1933 a proibição do álcool foi abolida.
Apesar da legalização do consumo de álcool, a política belicista teve seus contornos delineados. Nessa senda, a prática e o uso relacionado a outras substâncias foram consideradas ilícitas, o aparato destinado à repressão foi revertido para estas drogas. Em 1945 é instituída a Organização das Nações Unidas e, como veremos adiante, três convenções sob o seu comando determinaram a linha de controle internacional das drogas.
Reportando-se à década de 50, apesar de se iniciar o discurso da periculosidade dos usuários de drogas, constituía arrefecida a importância dispensada à temática. De fato, a consumição se vinculava aos grupos marginais da sociedade e, por conta disso, estas pessoas foram vinculados às questões referentes à violência, pobreza e principalmente à delinquência. Em linhas gerais, Rosa Del Olmo (1990, p. 30) explica que inicia o discurso ético-jurídico, pois “havia o temor de que as drogas se tornassem atraentes. Difundia-se seu discurso em termos de “perversão moral” e os consumidores eram considerados degenerados ou criminosos viciados dados a orgias sexuais”.
Logo depois, na década de 60, o uso das drogas se vincula aos movimentos de contestação, aumentando a utilização da maconha e do LSD. Contra legem, ganha força o consumo de substâncias ilícitas o que provoca uma maior visibilidade internacional sobre o assunto, como resultado se instaura o pânico moral conducionista de diversas legislações penais. Surge, nesse ínterim, a Convenção Única sobre Estupefacientes em 1961, aprovada em Nova Iorque, representando a construção temerária da realidade quanto ao assunto, comprometendo-se muitos países no combate ao tráfico ilícito. Segundo Maria Lúcia Karam:
A Convenção Única de 1961, com suas quatro listas anexas em que elencadas as substâncias e matérias primas proibidas, embora ressalvando expressamente a reserva do que disposto na Constituição de cada uma das Partes, impôs a criminalização, inclusive de atos preparatórios, nas regras postas em seu artigo 36 (KARAM, 2009, p. 4).
O consumo nesse período já não é próprio dos guetos, mas também dos jovens brancos de classe média, o que faz insurgir uma guerra maniqueísta, ao passo que as drogas assumem o perfil do mal que atingira as pessoas benévolas. Com o discurso da transnacionalização do controle social, os países centrais buscam resolver o problema da entrada clandestina das substâncias proibidas por intermédio de suas fronteiras, logo, os países menos desenvolvidos, a exemplo do México, eram vistos como inimigos.
Nesse contexto, caracterizado pela figura vampiresca das drogas, maxime pela influência das superpotências mundiais, surge o Movimento de Defesa Social. Essa ideologia, nos dizeres de Rosa Del Olmo, corresponde:
[...] a uma ideología caracterizada por uma concepción abstracta y ahistórica de la sociedad donde se desacan fundamentalmente los principios del bien y del mal y la culpabilidad, necesaria em ese momento como centralizadora y unificadora de lãs normas universales que debían imponerse (OLMO, 1984, p. 90)[2].
Por conseguinte, o direito de escolha dos indivíduos e a peculiaridade de cada localidade passam a ser derrogados por interlúdio da repressão. É estabelecida a ideologia da diferenciação, sendo a toxicomania um perigo social e econômico para a humanidade. Nas lições de Salo de Carvalho:
Com a incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no sistema de seguridade pública a partir do Golpe de 1964, o Brasil passa a dispor de modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação/neutralização de inimigos. A estruturação da política de drogas requeria, portanto, reformulação: ao inimigo interno político (subversivo) é acrescido o inimigo interno político-criminal (traficante). Categorias como geopolítica, bipolaridade, guerra total, adicionadas à noção de inimigo interno, formam o sistema repressivo que se origina durante o regime militar e se mantém no período pós-transição democrática (CARVALHO, 2010, pp. 21-22).
Novos inimigos públicos não econômicos foram criados pelas agências repressivas, ad exemplum, a heroína e a cocaína na década de 70, valendo-se da ideia de repressão máxima e alargamento das leis incriminadoras (ideologia de lei e ordem). Nesse último período, merece registro a instituição em 1971 da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas em Viena, momento em que ganha forma a mutabilidade do discurso quanto aos usuários de drogas, vejamos as explicações de Rosa Del Olmo:
No início da década de setenta, e em parte como consequência da perseguição à maconha, surge a epidemia da heroína, a ponto de o presidente Nixon qualificá-la de primeiro inimigo público não econômico. Surge assim o estereótipo político-criminoso, que é reforçado pelo discurso jurídico-político ao lado do discurso médico que criou com maior ênfase o estereótipo da dependência, pelo lugar destacado que tem na época o problema do consumo (OLMO, 1990, p. 78).
Com o discurso transnacional de banimento das substâncias psicotrópicas na década de oitenta, o principal objetivo é controlar o comércio ilegal de drogas que se alastra pela sociedade, além disso, os usuários passam a ser considerados clientes dos traficantes e consumidores das substâncias ilícitas. O marco regulatório desse momento sociopolítico foi a Convenção de Viena de 1988 que, conforme delineia Maria Lúcia Karam:
A Convenção de Viena de 1988 nitidamente se inspira na política de guerra às drogas, lançada na década anterior e aprofundada naqueles anos 80 do século XX. Essa guerra, como já pude ressaltar, naturalmente, não é uma guerra apenas contra as drogas, dirigindo-se sim, como quaisquer guerras, contra pessoas, aqui contra as pessoas dos produtores, distribuidores e consumidores das substâncias e matérias primas proibidas (KARAM, 2003, pp. 4/5).
Os Estados Unidos da América passa a transferir a responsabilidade pelo alto consumo em seu território aos países marginais, potencializando a repressão bélica. Dessa maneira, na América latina, e, mas especificamente no Brasil, a Lei n.° 6.368/76 corrobora o modelo oficial jurídico-político belicista, prevendo no artigo 16 pena privativa de liberdade de 06 meses a 02 anos de detenção ao usuário.
Consoante expõe Denis Russo, os EUA, cujo presidente naquela época era Ronald Reagan, pronunciaram-se da seguinte forma:
A guerra contra as drogas não podia ser lutada apenas dentro de casa – cocaína era produzida na América do Sul, heroína vinha da Ásia, maconha chagava do México. Só seria possível acabar com as drogas se o mundo colaborasse. Em 1989, meses após o fim do governo Reagan, o Muro de Berlim caiu e os Estados Unidos viraram a única superpotência do mundo. O governo americano ameaçava com sanções econômicas os países que não colaborassem com aquela guerra justa (RUSSO, 2011, pp. 21/22).
Em artigo dedicado a análise do inimigo no Direito Penal, afirma Raúl Eugenio Zaffaroni:
La administración norteamericana también presionó a estas dictaduras para que declararan la guerra a la droga, en una primera versión vinculada estrechamente a la seguridad nacional: el traficante era un agente que pretendía debilitar la sociedad occidental, el joven que fumaba marihuana era un subversivo, se confundían e identificaba a los guerrilleros con los narcotraficantes (la narcoguerrilla), etc. A medida que se acercaba la caída del muro de Berlín, se necesitaba otro enemigo para justificar la alucinación de una nueva guerra y mantener niveles represivos altos. Para ello se reforzó la guerra contra la droga[3].
Na década de 1990 muitos países ampliaram os gastos orçamentários de seus órgãos repressivos. Sem dúvida, com o auxílio financeiro dos americanos, buscou-se erradicar as drogas do planeta e, com o fim de colocar em prática esse planejamento, direitos fundamentais foram violados, mormente o das partes mais vulneráveis da sociedade. Repisando as ilações precedentes, Vera Malaguti Batista (2003, p. 54) aduz que “o sistema penal está estruturalmente montado para que não opere a legalidade processual e para exercer seu poder com o máximo de arbitrariedade seletiva dirigida aos setores vulneráveis”.
Para entendermos o que a citada autora explica, basta nos recordarmos em 2011, quando começaram a ser instaladas no Rio de Janeiro as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s). Esse modelo de segurança pública, supostamente repressor do delito de trafico de drogas, legitimou o devassamento da intimidade das camadas mais pobres daquela cidade, a exemplo da entrada autoritária de diversos policiais nas residências dos moradores das favelas em busca de traficantes, ferindo flagrantemente o direito constitucional à privacidade.
Inquestionavelmente, observa-se empiricamente que no modelo de Segurança Pública ocorre um constante desenvolvimento da logística militarizada. Em outras palavras, existe uma constate reafirmação dos pseudoinimigos da sociedade, isso, é claro, com a imprescindível ajuda da sistemática de controle penal e o valioso papel da mídia. Nesse sentido, leciona Salo de Carvalho:
Dessa forma, a partir do final da década de setenta e início da década de oitenta ocorrerá a fusão de dois modelos ideológicos diferenciados (mas não dicotômicos ou exclusivos), cujo efeito será a formação do modelo repressivo que sustentará o proibicionismo nacional. No que diz respeito a estrutura normativa, a ideia de Defesa Social permeará o imaginário legislativo, adquirindo forte impacto em sua aplicação judicial; quanto ao sistema de segurança pública, o modelo de Segurança Nacional determinará lógica militarizada, a qual será transferida às agências civis de controle do desvio punível (CARVALHO, 2010, p. 23).
Logo, como resultado desses movimentos voltados pura e simplesmente à segurança nacional, as políticas armamentistas repressoras atingem seu ápice, estabelecendo, em segundo plano, a proteção dos direitos e garantias fundamentais. Além disso, Eugenio Zaffaroni (2011, p. 317) explica que “os atores políticos, procurando clientela eleitoral, elaboram leis repressivas, longe de qualquer contexto ideológico coerente, mesclando argumentos moralistas, perigosistas e de segurança nacional”.
Diante do exposto, denotam-se três pilares imprescindíveis para a manutenção da sistemática proibicionista relativo às drogas: o Movimento de Lei e Ordem, a Ideologia de Defesa Social e a Ideologia de Segurança Nacional. Dessa maneira, reunidos, se tornam em uma arma poderosa em face dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito.
A Ideologia de Defesa Social possui o objetivo de servir de esteio a disseminação de teorias consistentes na interpretação e tratamento do crime e da criminalidade. Seus princípios fundamentais caminham no sentido de que o Estado, como representante da sociedade, possui legitimidade de combater os fatos delitógenos por intermédio de suas instâncias oficiais.
Corrobora a ideia do bem e o mal (maniqueísmo), com o propósito de, quando da prática de um delito, este seja a expressão da culpabilidade dos indivíduos que atentam contra os valores e princípios sociais. Deveras, maquia os reais anseios de controle social por intermédio do penal, alicerçando o discurso de que a pena previne a prática de novos desvios (prevenção geral e especial), discurso evidentemente dissociado da realidade, onde o consumo de drogas cresce diariamente.
Constrói falsamente a concepção de que a lei penal se dirige a todos de uma forma igualitária, em sua vertente material. Na realidade, sabe-se que ocorre justamente o contrário do que se afirma, impõem-se o controle social dos grupos minoritários desviantes diante de uma ordem econômica vigente.
Em relação à Ideologia de Segurança Nacional, influenciada pelo Movimento de Defesa social, são reproduzidas ações rigorosas de combate aos fenômenos criminais. Assim sendo, Salo de Carvalho (2010, p. 38) explica que esses modelos pautados no sistema repressivo bélico “moldam intervenções punitivas que invertem os postulados legitimadores do Estado de Direito”.
Esta expansão do poder punitivo deságua no terceiro pilar do discurso proibicionista da política criminal de drogas no Brasil consistente no Movimento de Lei e Ordem. Esta ideologia enxerga o transgressor das leis como doença infecciosa para o convívio social, causador de perigo constante e iminente, apenas excluído pelas ferramentas do Estado e pelo Direito Penal Emergência.
Ocorre que tais teorias legitimam o chamado direito penal do autor. Conforme explica Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 110) “é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma forma de ser do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva”.
Quando a pessoa está adquirindo ou portando algum tipo de substância estupefaciente para consumo pessoal está lesando a própria saúde, colocando em risco sua autodeterminação em face de prazeres momentâneos. O Estado, por interlúdio de suas instituições oficiais, resolveu reprimir tal conduta com a utilização de sua ferramenta mais deletéria, isto é, o Direito Penal, obnubilando alternativas menos gravosas e mais eficazes de enfrentamento do tema.
2.2 Escorço Histórico Brasileiro
Traçar o histórico da criminalização do uso de substâncias entorpecentes não é tarefa fácil. Devido às mudanças no tratamento da matéria ao longo dos anos e os valores que permeavam cada época em que se produziram os diplomas legislativos, inevitável são desvios em qualquer tentativa de tracejar uma linha reta na história brasileira sobre as drogas.
Delinear com precisão os caminhos percorridos pelo homem em um dado momento histórico é tarefa inalcançável. As dificuldades sobre a missão de reconstruir o passado são tratadas por Francesco Carnelutti ao afirmar:
Quando se fala em história, o pensamento logo se detém nas dificuldades que envolvem a reconstrução do passado, mas, guardadas as devidas proporções, entre a grande e a pequena história, essas mesmas dificuldade são enfrentadas e precisam ser superadas no Processo Penal (CARNELUTTI, 2010, p. 66).
Deste modo, partindo da premissa de que o processo de criminalização da conduta em comento foi construído em decorrência da transnacionalização do controle de princípios moralistas, buscar-se-á sua historiografia sem austeridade. Como explica Salo de Carvalho (2010, p. 04), “se o processo criminalizador é invariavelmente processo moralizador e normalizador, sua origem é fluída, volátil, impossível de ser adstrita e relegada a objeto de estudo controlável”.
De fato, verificamos que a legislação brasileira que criminaliza o portar/adquirir drogas para uso pessoal remonta as Ordenações Filipinas. Em matéria penal este foi o estatuto que mais vigeu, ultrapassou mais de 200 anos no tempo, sendo criado pelo Rei Filipe II em 1603, vigendo até 1830.
O assunto era tratado no livro V do Código Filipino em seu Título LXXXIX que prescrevia: “que ninguém tenha em sua caza rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”[4]. Deste modo, naquela época a conduta de usar, portar e vender rosalgar, ou seja, sulfeto de arsênio, salvo se tivesse licença para tanto, constituía crime.
Em relação ao Código Penal Brasileiro do Império de 1930 que foi instituído por força do mandamento constitucional de 1824 (art. 179, § 18), nada foi tratado a respeito da proibição do consumo ou comércio de substâncias entorpecentes, retornando a proibição na Constituição da República.
No período republicado foram promulgados basicamente dois diplomas penais, o de 1890 e o de 1940. No primeiro, conforme explica Salo de Caravalho:
[...] passou-se a regulamentar os crimes contra a saúde pública, previsão que encontrou guarita no Título III da Parte Especial (Dos Crimes contra a Tranqüilidade Pública). Juntamente com a incriminação do exercício irregular da medicina (art. 156); da prática da magia e do espiritismo (art. 157); do curandeirismo (art. 158); do emprego de medicamentos alterados (art. 160); do envenenamento das fontes públicas (art. 161); da corrupção da água potável (art. 162); [...] o artigo 159 previa como delito “expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescriptas nos regulamentos sanitários”, submetendo o infrator à pena de multa (CARVALHO, 2010, p.11).
Extrai-se do excerto acima uma lacuna legislativa sobre o assunto, pois, até então, não havia previsão expressa da criminalização da conduta de portar/adquirir substâncias entorpecentes ilícitas para consumo pessoal. Após a publicação do diploma na década de noventa, ocorreram muitas alterações e leis esparsas regulando a matéria, em face disso, teve origem a Consolidação das Leis Penais em 1932, ocorrendo nova disciplina da temática e o acréscimo de doze parágrafos ao artigo 159 do Código Penal de 1890.
Não obstante, é com a edição do Decreto 780/36, modificado pelo Decreto n.° 2.953/38 e o Decreto-Lei n.° 891/38, que verdadeiramente o Brasil se insere na política proibicionista relativa às substâncias entorpecentes. Assim, tratando do assunto, expõe Salo de Carvalho que:
A edição do Decreto-Lei 891/38, elaborado de acordo com as disposições da Convenção de Genebra de 1936, regulamenta questões relativas à produção, ao tráfico e ao consumo, e, ao cumprir as recomendações partilhadas, proíbe inúmeras substâncias consideradas entorpecentes (CARVALHO, 2010, p.12).
É de se notar, que no final da década de trinta a política criminal de drogas adquire uma verdadeira roupagem repressiva. Dessarte, o legislador ordinário se abstém de tipificar condutas pontuais e ingressa com mais afinco no modelo internacional de repressão às drogas, tipificando a conduta de adquirir drogas para consumo pessoal.
Conforme descreve Vicente Greco e Rassi:
[...] foi criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, pelo Decreto-Lei n. 3.114, de 13 de março de 1941, alterado pelo Decreto-Lei n. 8.647, de 1946, com atribuições de estudar e fixar normas gerais sobre fiscalização e repressão em matéria de entorpecentes, bem como consolidar as normas dispersas a respeito (VICENTE; RASSI, 2008, p. 02).
Merece registro que o Decreto-Lei n.° 891/38 surge por imperativo da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, inspirado pela Convenção de Genebra de 1936, trazendo em seu bojo a relação das substancias consideradas ilegais. Igualmente restringiam a produção, tráfico e o consumo de drogas, vejamos os delitos definidos no art. 33 do Decreto-Lei supramencionado:
Facilitar, instigar por atos ou por palavras, a aquisição, uso, emprego ou aplicação de qualquer substância entorpecente, ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas no Art.1 ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no Art.2, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias - penas: um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000.
§ 1 - Se o infrator exercer profissão ou arte, que tenha servido para praticar a infração ou que tenha facilitado - penas: além das supra indicadas, suspensão do exercício da arte ou profissão, de seis meses a dois anos. § 2 - Sendo farmacêutico o infrator - penas: dois a cinco anos de prisão celular, multa de 2:000$000 a 6:000$000 - além da suspensão do exercício da profissão por período de três a sete anos. § 3 - Sendo médico, cirurgião-dentista ou veterinário o infrator - penas: de três a dez anos de prisão celular, multa de 3:000$000 a 10:000$000 - além da suspensão do exercício profissional de quatro a dez anos[5].”
A propósito, o novel disciplinamento das drogas no Brasil passa a possuir um sistema punitivo autônomo, além da pena de multa que já era aplicada, há imposição da prisão celular após o devido processo legal caso o agente fosse condenado. Com efeito, a expressão “substâncias entorpecentes” passar a substituir a palavra “veneno” que antes era utilizada no tipo legal.
Por outro lado, com a entrada em vigor do Código Penal de 1940 há uma recodificação da matéria, tipificando no artigo 281 o ilícito de comercializar, possuir ou usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica. Inobstante, posteriormente é publicado o Decreto-Lei n.° 4.720/42 que trata do cultivo de plantas entorpecentes e para extração, transformação e purificação de seus princípios ativo-terapêuticos, e a Lei n.° 4.451/64 que introduziu modificações no artigo 281 do Código Penal de 1940, acrescentando a conduta de plantar. Há, como se observa, uma descodificação da matéria, passando a ser regulamentada por leis extravagantes.
Com a Ditadura Militar há o ingresso definitivo do Brasil na ideologia internacional de combate às drogas, havendo a edição do Decreto-Lei n.° 54.216/64 que aprovara a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, diploma estabelecedor de medidas de controle e fiscalização no plano nacional contra o tráfico ilícito de entorpecentes e cooperação internacional. A Portaria de 08 de maio de 1967 do Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e Farmácia (SNFMF) adotou a lista de entorpecentes da referida convenção que era mais completa que a do Decreto-Lei n° 891/38.
Por conseguinte, instalou-se o discurso oficial ético-jurídico de combate aos produtos e substância determinados ilícitos. Sobressai, nesse ínterim, o estereótipo do usuário de drogas como um grupo desviante, degenerado, perturbador da paz e ordem social. Conforme preconizado pela Convenção Única o toxicômano constitui perigo social e econômico para convivência humana.
No ano de 1967 entra em vigor o Decreto-Lei n.° 159, ato normativo de suma importância para repressão do uso de substâncias que causem dependência física e/ou psíquica, trazendo em seu bojo outras substâncias capazes de determinar subordinação química ou física para fins de controle e fiscalização. Explicando os contornos históricos da matéria, Vicente Greco e Rassi expõem que:
Em 30 de janeiro de 1968, o SNFMF regulamentou a extração, produção, fabricação, transformação, preparação, manipulação, purificação, fracionamento, embalagem, importação, exportação, armazenamento, expedição, compra, venda, troca, oferta, cessão, prescrição e uso das substâncias capazes de determinar dependência física ou psíquica, trazendo em anexo a tabela com o rol das substâncias (VINCENTE; ROSSI, 2008, p. 03).
Com a publicação do Decreto-Lei n.° 385 em 1968, foi alterada a redação do artigo 281 do Código Penal igualando a pena do usuário ao do traficante. Posteriormente há nova regulamentação do artigo por intermédio da Lei n.° 5.726/71, restabelecendo a diferenciação entre traficante e usuário. Esse novo disciplinamento é considerado a iniciativa mais completa e válida na repressão aos tóxicos no âmbito mundial, trazendo medidas como internação em estabelecimento hospitalar para tratamento psíquico pelo tempo necessário à sua recuperação.
A Portaria do Ministério da Saúde n° 131 de 06 de abril de 1972 é publicada para aprovar o regulamento interno da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CONFEN), órgão orientador e disciplinador da fiscalização e controle de substâncias entorpecentes e equiparadas, com o fito de reprimir o tráfico e utilização ilícita. Esse órgão foi criado pelo Decreto n° 780 de 28 de abril de 1936, e mantido pelo Decreto-Lei n.° 891 de 1938.
A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes constituiu órgão consultivo do Ministério da Saúde para orientar o Governo em suas relações com a ONU e outras autoridades internacionais ou estrangeiras, visando o cumprimento de acordos e convenções sobre a matéria, sobretudo como instrumento de política sanitária relativa aos fármacos.
É mantido o discurso médico-jurídico com a publicação das Leis n.° 6.368/76 (substituindo a Lei 5.726/71) e n.° 10.409/2002, diferenciando o consumidor do traficante, mas ainda estabelecia a pena de prisão celular. A Lei nº 10.409/02 é promulgada com o fim de substituir aquela integralmente, contudo, tal diploma legislativo foi confeccionado de péssimo modo, sendo vetado integralmente o Capítulo III, “Dos Crimes e das Penas”. Vetou-se também o artigo 59 que previa a revogação por inteiro da n.° Lei 6.368/76, permitindo a vigência simultânea dos dois diplomas no que eram compatíveis.
Nessa feita, as substâncias consideradas ilícitas passaram a ser reguladas pelas Portarias da denominada Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), especialmente a Portaria SVS/MS n° 344, de 12 de maio de 1988. O Decreto n° 85.110 de 02 de setembro de 1980 instituiu o chamado Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização, e Repressão de Entorpecentes, integrante do Conselho Federal de Entorpecentes (órgão central).
No dia 22 de dezembro de 2000 entra em vigor o Decreto n.° 3.696 (substituindo o Decreto n° 85.110/80) que tratou do artigo 3° da Lei n.° 6.368/76, norma esta que dispunha sobre o Sistema Nacional Antidrogas (SISNAD). Doravante, o Decreto n.° 3.696/00 foi substituído pelo Decreto n° 5.912 de 27 de setembro de 2006, passando a regulamentar o SISNAD, criado posteriormente pela atual Lei Antidrogas.
Impende salientar que a Constituição Federal de 1988 ampliou o rol das penas (rol não taxativo), prevendo em seu inciso XLVI que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”[6]. Dessa forma, abriu espaço para uma nova regulamentação legislativa, estabelecendo ainda a criação dos Juizados Especiais Criminais para a conciliação, julgamento e execução de infrações de menor potencial ofensivo (Lei n.° 9.099 de 1995).
Na sequência evolutiva da legislação, o Projeto n° 7.134 de 2002 do Senado Federal - que lhe foi apensado o Projeto n° 6.108/2002 do Poder Executivo - foi reeditado pelo Senador Romeu Tuma e recebeu substituição na Câmara, voltando ao Senado onde recebeu emendas e se converteu na Lei n.° 11.343 de 2006. Com a entrada em vigor desse diploma, deixa-se de ser aplicada a pena de prisão ao usuário de drogas, não podendo em nenhuma hipótese o usuário ser submetido à prisão.
É de bom alvitre salientar que, sendo o agente incurso no artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006 poderá ser submetido às penas alternativas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestar serviço à comunidade ou medida socioeducativa. Caso seja reincidente, poderá sofrer admoestação verbal e/ou multa, conforme § 6°, do artigo 28 da Lei sobre Drogas, mas nunca ser conduzido à prisão.
2.3 Artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006
Tema de grande relevância no perímetro do Direito Penal e que merece ser tratado, mesmo que de forma sucinta, diz respeito ao conceito de crime. Para inteligibilidade dos contornos atinentes ao artigo 28 da Lei Antidrogas, imprescindível trazer à baila os elementos caracterizadores do delito e, doravante, perscrutarmos sobre o tipo legal ora em comento.
A doutrina, com o passar do tempo, foi amadurecendo e fornecendo elementos mais seguros sobre as condutas humanas consideradas desviantes, desenvolvendo-se teorias unitárias e estratificados (vários planos analíticos) acerca dos fatos delituosos. Conforme é cediço, uma das principais funções do Direito Penal consiste na sua finalidade preventiva, tentando, por intermédio de normas proibitivas e suas respectivas sanções, dissuadir as pessoas de cometerem transgressões ao ordenamento jurídico.
Basicamente, até chegarmos à moderna teoria geral do crime perpassamos por três fases distintas que não se excluem: o conceito clássico de delito, o conceito neoclássico de delito e o conceito finalista de delito. Dessa forma, espargindo brilhantismo, assenta Cesar Roberto Bitencourt em seu tratado de Direito Penal que:
A atual concepção quadripartida do delito, concebida como ação, típica, antijurídica e culpável (essa concepção pode ser definida como tripartida, considerando somente os predicados da ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), é produto de construção recente, mais precisamente, do final do século XIX. Anteriormente, o Direito comum conheceu somente a distinção entre imputatio facti e imputatio iuris. Como afirma Welzel, “a dogmática do Direito Penal tentou compreender, primeiro (desde 1884), o conceito do injusto, partindo da distinção: objetivo-subjetivo. Ao injusto deviam pertencer, exclusivamente, os caracteres externos objetivos da ação, enquanto que os elementos anímicos subjetivos deviam constituir a culpabilidade (BITENCOURT, 2007, p. 205).
Hodiernamente, como apontado pelo preclaro doutrinador, o critério majoritariamente circundado no Brasil se refere ao conceito “analítico de crime” que, nos dizeres de Francisco de Assis:
[...] dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera as três notas fundamentais do fato-crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica e culpável (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpável (TOLEDO, 1994, p. 80).
Sobre o tema continua Cezar Roberto ao afirma:
O próprio Welzel, na sua revolucionária transformação da teoria do delito, manteve o conceito analítico de crime. Deixa esse entendimento muito claro ao afirmar que “o conceito de culpabilidade acrescenta ao da ação antijurídica – tanto de uma ação dolosa como não dolosa – um novo elemento, que é o que a converte em delito”. Com essa afirmação Welzel confirma que, para ele, a culpabilidade é um elemento constitutivo do crime, sem a qual este não se aperfeiçoa (BITENCOURT, 2007, p. 210).
Desses entendimentos acima esposados podemos inferir que, em relação à concepção analítica, para a existência de um fato criminoso se faz necessária uma conduta típica, antijurídica e culpável. Sem a existência desses três elementos o crime, em sua vertente jurídica, pode não existir. Como a proposta desse tópico é analisar a conduta de trazer consigo ou adquirir drogas para consumo pessoal, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ou seja, a figura prevista do art. 28 da Lei n.° 11.343 de 2006, nos ateremos a perquirir as nuances do elemento denominado de “fato típico”.
2.3.1 O Tipo Criminoso
O Direito Penal regula as condutas humanas que se ajustam aos seus dispositivos legais, ou seja, ações ou omissões especificadas nos denominados tipos penais. Destarte, por interlúdio dessas descrições normativas, busca-se tutelar os valores mais nobres dos seres humanos, a exemplo da liberdade, à vida, dentre outros bens jurídicos.
Nessa senda, os elementos insertos nos textos normativos possibilitam a diferenciação entre os atos de vontade proibidos dos permitidos, isto é, quando uma pessoa pratica uma ação ou omissão que se ajuste a um desses comandos descritivo-normativos, diz-se que fora praticada um fato típico. Consoante explicita Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 387), “obtivemos já duas características do delito: uma genérica (conduta) e outra específica (tipicidade), ou seja, que a conduta típica é uma espécie do gênero conduta”.
Assim sendo, são modelos absortos de comportamentos que, se forem realizados, haverá responsabilização penal. Ainda sobre o tema, expõe Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 388) que “os tipos penais são instrumentos legais, logicamente necessários e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes”.
A conduta que ora se analisa e seus demais delineamentos estão expressos no artigo 28 da Lei de Drogas, segue a redação:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1° Às mesmas medidas submeti-se quem, para consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substâncias ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2° Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. § 3° As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. § 4° Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. § 5° A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6° Para garantia das medidas a que se refere o caput, nos incisos I, II, III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II – multa. § 7° O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado[7].
Merece ser dito que essa norma pode ser visualizada de acordo com os seus elementos: os objetivos-descritivos, os normativos (expressões que necessitam de uma verificação cognitiva para extrair seus sentidos) e os subjetivos. É preciso verificar cada uma dessas informações para entendermos de forma clara e precisa quais comportamentos humanos que se amoldam ao tipo em comento.
Os verbos - elementos objetivos - são os núcleos do tipo penal alocados no texto, consubstanciando em ações penalmente relevantes. Pela redação do artigo retrotranscrito, verifica-se que foi promovido um alargamento na criminalização do usuário de drogas. Antes, o artigo 16 da Lei n.° 6.368 de 1976 previa apenas as condutas de adquirir, guardar e ter em depósito, sendo acrescido pela nova lei os verbos transportar ou trazer consigo substâncias ou produtos proscritos pela lei brasileira, ocorrendo à chamada novatio legis incriminadora.
Praticar a conduta constante no verbo adquirir significa comprar, angariar mediante o pagamento ou de forma gratuita. Em relação à expressão guardar, possui o sentido de conservar para utilização em curto período, proteger. Ademais, trazer consigo denota a ideia de ter junto ao corpo, na carteira, bolso, ou outro meio. Ter em depósito significa maior perpetuidade e quantidade relacionada às substâncias psicotrópicas. Por fim, transportar significa levar de um lugar para outro por intermédio de veículos, sacolas, malas, e etc.
A posteriori, em seu parágrafo primeiro, o artigo também prevê os comportamentos de semear (propalar), cultivar (amanhar) ou colher (recolher) substâncias ou produtos que possam causar dependência física ou psíquica, não havendo maiores controvérsias quanto ao sentido desses verbos.
Importante destacar que as condutas de usar ou consumir não configuram ilícito penal por falta de previsão normativa (em consonância com o princípio da legalidade). Basta imaginarmos uma pessoa sendo flagrada após a utilização de alguma substância estupefaciente, a saber, a maconha, a cocaína, o crack, dessa forma, terminantemente este indivíduo não terá praticado qualquer conduta ilícita (ou antijurídica).
Em outro giro, o elemento subjetivo do crime se consubstancia no dolo, ou seja, na vontade livre e consciente de praticar alguma conduta descrita como delito. Traçando os contornos do tema, Moraes e Capobianco afirmam que o crime doloso:
É aquele praticado pelo agente que objetiva o resultado ou que, no mínimo, assume o risco de produzi-lo, isto é, tem consciência da conduta que pratica. Dolo é a vontade livre e consciente de praticar a ação ou omissão, de executar o fato definido como crime pela letra da lei (MORAIS; CAPOBIANCO, 2010 p.150).
In casu, seria a vontade livre e consciente de adquirir ou trazer consigo substância entorpecente na forma prevista no artigo 28 da Lei de Drogas. Não menos importante, porém, que a assunção do risco de produzir o resultado desejado (dolo), é impreterível à vontade “específica” de obter a droga para uso pessoal. Sem a presença desse elemento específico da redação legal, o autor terá praticado crime diverso ou o fato será irrelevante para o Direito Penal.
Corroborando o exposto, verbi gratia, na hipótese de alguma pessoa trazer consigo algum tipo de substancia estupefaciente (o crack, por exemplo) com o objetivo de vendê-la, ao invés de consumi-la, estará inserto na figura prevista no art. 33 da Lei n.° 11.343 de 2006, praticando o tráfico ilícito de drogas.
Nesse ponto, com o fito de diferenciar o usuário do traficante de drogas - isso porque as cinco condutas que estão previstas no artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006 também aparecem em seu artigo 33 que dispõe sobre a figura do tráfico de drogas - o § 2° traz critérios objetivos e subjetivos de diferenciação. Desta maneira, os operadores do direito como os Delegados de Polícia, Promotores e Juízes deverão se atentar à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoas, bem como à conduta e aos antecedentes do agente[8].
2.3.2 Descriminalização, legalização e despenalização
Consoante tratado no tópico destinado ao escorço histórico, com a publicação da Lei n.° 11.343 de 2006 foram revogadas as Leis n.° 6.368 de 1976 e n.° 10.409 de 2002. Dessa maneira, houve à abolição do ordenamento jurídico brasileiro da pena de prisão para o agente incurso no artigo 28 da Lei Antidrogas. Antes, o agente era tratado com mais rigor, havendo previsão de detenção celular de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa, conforme artigo 16 da Lei n.° 6.368 de 1976.
Hodiernamente, só para ilustrar, caso alguém seja detido trazendo consigo a inflorescência da cânnabis sativa, que é responsável pelos efeitos psicotrópicos originados pelo seu consumo em decorrência do Tetraidrocanabinol (THC), uma das diversas substâncias produzidas pela planta, jamais poderá ser levada à prisão.
Para averiguação da conduta do usuário de entorpecentes não haverá instauração de Inquérito Policial, e sim de um Termo Circunstanciado, consistindo em um documento sucinto que contém informações básicas acerca do fato criminoso, o nome do autor, o nome da vítima, e o rol de testemunhas. Outrossim, aplicar-se-á o procedimento previsto na Lei dos Juizados especiais (Lei 9.099/95), ante o comando inserto no artigo 48, § 1°, da Lei n.° 11.343 de 2006, determinando que:
O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado na forma dos arts. 60 e seguites da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais[9].
O autor do fato, segundo o artigo 48, § 2° da mesma lei, deverá ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, por intermédio da assinatura do “Termo de Comparecimento em Juízo”, lavrando-se, em seguida, o Termo circunstanciado e providenciando-se as requisições e perícias necessárias. Vale ressaltar que, mesmo que haja recusa por parte do agente em assinar o Termo de Comparecimento em juízo, ele não poderá ser conduzido à prisão celular.
Deflagrou-se, então, na doutrina e jurisprudência nacional, intensa discussão se com a nova figura típica houve descriminalização, legalização ou despenalização da conduta do usuário de drogas. Isso porque, de acordo com o novel tratamento, poderá ser aplicado agente, isolada ou cumulativamente, as penas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Caso haja descumprimento destas medidas, haverá aplicação das penas de admoestação verbal e/ou multa, não havendo possibilidade de cominação da pena de prisão.
Merece ser explicado, mesmo que de forma perfunctória, que descriminalizar consiste em expungir de determinada conduta o seu caráter criminoso. Na legalização, o fato fica eximido de qualquer espécie de sanção, logo, podemos adiantar que este fenômeno não se coaduna com as mudanças na matéria. E, por final, consoante à doutrina, despenalizar significa a existência de regulamentação penal do fato delitógeno, contudo, evita-se ou é mitigado o uso da pena de prisão celular.
Teses defensivas da descriminalização se baseavam no fato de que o artigo 28 da Lei de Drogas não se enquadrava na definição das infrações penais do artigo 1° da Lei de Introdução ao Código Penal, que se subdividem em crimes e contravenções. Os primeiros seriam as infrações penais cuja lei comine pena de reclusão ou detenção, com aplicação de multa cumulativamente, alternativamente ou isoladamente. Nas contravenções aplicar-se-ia pena de prisão simples, com multa cumulativa, alternativa ou isoladamente.
No entender de Luiz Flávio Gomes, um dos primeiros doutrinadores a enfrentar o tema, a conduta prevista no artigo 28 da Lei de Antidrogas não seria infração penal, diferindo do crime e da contravenção penal, assim sendo, segundo o jurista:
Ora, se legalmente (no Brasil) “crime” é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativamente ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova Lei) deixou de ser ‘crime’ porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou a conduta de posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de ‘infração penal’ porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração ‘penal’ no nosso País (GOMES; BIANCHINI; CUNHA; OLIVEIRA, 2006, p. 110).
Em conclusão, o doutrinador afirma que o artigo em comento seria uma infração penal sui generis, não constituindo nem crime e nem contravenção, sublimando uma nova classificação tricotômica do delito. Sobre a ocorrência da abolitio criminis, Luiz Flávio Gomes retrata-se na edição de sua obra Lei de Drogas anotada, 2. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 110.
Todavia, houve quem defendesse a tese de que a lei não descriminalizou nem despenalizou a conduta de trazer consigo ou adquirir drogas para consumo pessoal. Nesse sentido foram os ensinamentos de Vicente Greco e Rassi:
A lei NÃO DESCRIMINALIZOU NEM DESPENALIZOU (caixa alta e negrito texto original) [...] Houve alterações, abrandamento, como adiante se comentará, mas a conduta continua incriminada. A denominação do capítulo é expressa. As penas são próprias e específicas, mas são penas criminais. Não é porque as penas não eram previstas na Lei de Introdução ao Código Penal de 1941, e, portanto, não se enquadram na classificação prevista em seu art. 1° que lei posterior, de igual hierarquia, não possa criar penas criminais ali não previstas (VICENTE; RASSI, 2208, p. 44).
Inobstante os entendimentos acima apontados, não foi essa a compreensão do Supremo Tribunal Federal. Devido à importância do acórdão proferido pela 1ª Turma do Supremo que tratou do assunto no dia 13 de fevereiro de 2001, analisando o RE 430105/QO/RJ, tendo como relator o Ministro Sepúlveda Pertence, imperioso a transcrição do excerto do texto:
“A Turma resolveu questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias consequências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1° do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que este dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem que qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em consequência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário (STF, 1ª Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007)[10].”
Por tais motivos, a orientação do Supremo Tribunal Federal é no sentido que a conduta do artigo em comento continua sendo crime. Não existe mais previsão da prisão celular para o usuário de substâncias entorpecentes, é verdade, no entanto, tal descrição normativa se encontra no rol da Lei n.° 11.343/06 que diz respeito aos “crimes e das penas”, continuando a ser crime por desiderato do legislador ordinário.
Igualmente, utilizou-se o argumento que a Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso XLVI, não limita o rol de penas, especificando que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”[11].
Infere-se, nesse diapasão, que a Carta Maior fornece um rol exemplificativo de medidas correcionais, concedendo ao legislador infraconstitucional a opção de utilizar outro tipo de pena que ali não esteja conjecturada. Assim, há possibilidade de criação de uma nova reprimenda, respeitando, diga-se de passagem, os limites impendidos no inciso XLVII, do artigo 5°, da Constituição, quais sejam: a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis[12].
Nesta senda, com a publicação e vigência da Lei de Drogas, houve, conforme grande parte da doutrina e o Supremo Tribunal Federal registram, a despenalização do crime de trazer consigo ou adquirir substâncias psicotrópicas para uso pessoal, em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Nesse sentido, são as conclusões de Davi André Costa Silva em seu artigo sobre o tema:
Nesse contexto, a Lei 11.343/06 apresenta o artigo 28 como uma medida despenalizadora mista, pois as hipóteses dos incisos I e III (advertência sobre os efeitos das drogas e comparecimento a programa ou curso educativo) configuram medidas despenalizadoras próprias ou típicas, pois afastam, por completo, a aplicação de uma pena - aplica-se uma medida educativa, e a hipótese do inciso II configura medida despenalizadora imprópria ou atípica, pois apesar de evitar a prisão, não afasta a aplicação de uma pena prevista na Constituição da República (art. 5°, XLVI, “d”) e no Código Penal (art. 32, II, c/c art. 43, IV, CP) – prestação de serviços à comunidade (SILVA, 2006, p.1).
É preciso, porém, fazer uma ressalva nesse ponto relativo à matéria. Terminantemente, a doutrina e jurisprudência adotaram a expressão “despenalização” para fundamentar as mudanças introduzidas pela lei de combate às drogas. Acontece que tal sustentáculo conceitual destoa da técnica jurídica, pois, segundo a Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso XLVI, a coerção penal não se resume a privação da liberdade, em sendo assim, as medidas correcionais previstas no artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006 são verdadeiras penas.
Logo, admoestação verbal, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a cursos sobre os efeitos das drogas, e outras previstas no dispositivo legal, consubstanciam retribuições penais em consonância com a Constituição Federal. Inopinadamente resta evidente a imprecisão técnica quando afirma a doutrina e jurisprudência a despenalização da matéria, em contraposição, ocorreu, indubitavelmente, a descarcerização do autor do fato, não podendo o usuário de drogas ser levado à prisão (nesse sentido Salo de Carvalho).
Diante do exposto, o legislador ordinário optou pela tipificação da conduta de adquirir/portar substâncias entorpecentes para consumo pessoal, não obstante a inexistência de previsão de aplicação da pena privativa de liberdade. Aproveitando a oportunidade, apesar da sublimação da tese de inconstitucionalidade do artigo ora perscrutado, essa mudança no tratamento da matéria consubstancia, sem sombra de dúvidas, um grande avanço legislativo que caminha para descriminalização.
3 DROGAS E QUESTÕES ATINENTES
3.1 Conceito
A abordagem e definição das drogas exigem uma análise multidisciplinar, abarcando cognições históricas, econômicas, científicas e morais. Verifica-se que não se trata de um conceito unicamente jurídico, podendo ser perscrutado de diversas maneiras, diferentes vertentes que, a depender do contexto social que se encartam, sobrepujam a complexidade do tema quando o assunto são as drogas.
Assim é que, em consonância com a abordagem histórica que será realizada no tópico posterior, com a entrada em vigor da Lei n.° 11.343/06 foram adotadas as expressões “drogas” e “drogas que causem dependência”, em contraposição aos aspectos “toxicomania”, “hábito” e “entorpecentes”, utilizados nas legislações anteriores. Nesse sentido, o artigo 28 da Lei de Antidrogas passa a descrever a conduta de trazer consigo ou adquirir “drogas” que causem “dependência” para consumo pessoal. Expondo o porquê dessas alterações segue a lição de Vicente Greco e Rassi:
[...] a Organização Mundial de Saúde considerou os termos “toxicomania”, “hábito” e “entorpecentes” como impróprios e preferiu adotar as expressões “dependência” e “drogas que determinam dependência” – dependence e dependence producting drugs – classificando a dependência pelo tipo de substância consumida: dependência morfínica, dependência afetamínica, dependência cocaínica etc (GRECO; RASSI, 2008, p.12).
Por questões didáticas, conceituaremos as expressões que caíram em desuso com a entrada em vigor do novel diploma. Destarte, toxicomania, segundo a Organização Mundial da Saúde, consiste em um estado de intoxicação periódico ou crônico, nociva ao indivíduo e à sociedade, pelo consumo de uma droga natural ou sintética. Constitui um vício desenfreado que tende ao aumento do uso da droga, causando desordem psíquica ou física em decorrência de seus efeitos.
Ao passo que entorpecente, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), consiste na substância que pode determinar dependência física ou psíquica relacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Convenção Única sobre entorpecente[13]. Assim, são as substâncias que agem sobre o córtex cerebral, capazes de gerar estados de necessidade tóxica, distúrbios de abstinência, dentre outros efeitos.
Realizado tais considerações, passemos, nesse momento, a tentativa de definição acerca do conceito de drogas. Conforme o Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas, no site do Ministério da Justiça, a origem etimológica da palavra advém de drogg, que provem da Holanda antiga e tem o significado de folha seca. Certamente, muito dos medicamentos daquela época utilizavam vegetais em sua constituição[14].
Sobre o assunto, Sérgio Nicastri (2011, p.61) não as considera boas ou más por si só, asseverando que sofrem influência ideológica do momento histórico e cultural que se encartam e da forma como são utilizadas. Dependendo do modo de seu aproveitamento, tais produtos ou substâncias podem ser considerados benéficos, ad exemplum, em tratamento de alguma enfermidade, como também podem constituir malefícios para saúde, nas hipóteses dos venenos e/ou tóxicos.
No mesmo sentido delineando as dificuldades na definição das substâncias psicotrópicas, Eduardo Didonet afirmar que:
[...] não existe um sentido real para “droga”; não há o sentido de droga em si mesma, um conceito consensuado ou científico. O que se pode mensurar são os efeitos que elas [as drogas] provocam nos indivíduos, bem como os prejuízos financeiros de uma verdadeira guerra ao narcotráfico (DIDONET, 2007, p.19)[15].
Denota-se em face dos contornos acima esboçados uma abordagem utilitarista das substâncias entorpecentes. Dependendo do modo que são utilizadas e as consequências carreadas aos indivíduos, elas podem ser boas ou más, não obstante, essa constatação depender igualmente de outros fatores, como os culturais, o contexto socioideológico que estão inseridas, podendo, sob a influência desses aspectos, serem aceitas ou não.
Hodiernamente, a definição das drogas segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) consubstancia-se em qualquer substância que não seja produzida pelo organismo e que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, causando alterações em seu funcionamento[16]. Necessário, pois, afirmar, que este conceito decorre da toxicologia, vertente da farmacologia que se atém aos efeitos decorrentes do contato das pessoas com as substâncias psicotrópicas.
As pesquisas realizadas por esse ramo científico demonstram que, dependendo da forma com que são utilizadas, todas as substância podem causar danos. Essa afirmativa se baseia nos efeitos decorrentes da sua utilização no sistema nervoso central (SNC), assim, em decorrência dessas alterações no comportamento e na mente das pessoas, podem ser classificadas em drogas depressoras, estimulantes e perturbadoras da atividade mental.
As drogas depressoras da atividade mental causam diminuição da atividade global ou de setores específicos do Sistema Nervoso Central. Reduz a atividade motora, a reação relacionada às sensações de dor e ansiedade. Certamente, são exemplos dessas substâncias o álcool etílico, os barbitúricos (derivados do ácido barbitúrico), os benzodiazepínicos, os opioides (morfina, heroína, codeína), os solventes ou inalantes (éter etílico e o clorofórmio).
Ademais, em relação às drogas estimulantes da atividade mental, estas aumentam o exercício de determinados sistemas neuronais, havendo como consequência a potencialização do estado de atenção, insônia e aceleração dos processos psíquicos. Encontram-se insertos nessa categoria, o tabaco, que é lícito e regulamentado no Brasil, causador de doenças cardiovasculares, respiratórias, dentre outras, a cafeína, as anfetaminas (substâncias sintéticas, ou seja, produzidas quimicamente), e a cocaína que é extraída de uma planta nativa da América do Sul, coloquialmente conhecida como “coca” (Erythroxylon coca).
Finalmente, as drogas perturbadoras da atividade cerebral, em linhas gerais, causam alterações no funcionamento cerebral e, por tal motivo, denominadas de alucinógenas (as pessoas veem, ouvem ou sentem algo que não condiz com a realidade). Está enquadrada nesta espécie a maconha cujo nome cientifico é Cânnabis sativa, a qual possui como principal substância motivadora dos efeitos psíquicos o tetraidrocanabinol (THC). Igualmente, estão alocados nesta categoria os alucinógenos, como por exemplo, o ecstasy, a dietilamina do ácido lisérgico (LSD), e cogumelos que produzem psilocibina.
Enfrentado do tema com base na toxicomania, doravante, perscrutar-se-á a definição das drogas em sua vertente jurídica. Assim sendo, do ponto de vista legal, estas podem ser lícitas ou proibidas. As primeiras são aquelas - regulamentadas ou não - comercializadas em conformidade com a lei, em contrapartida, as substâncias ilícitas são as proscritas pelo ordenamento jurídico.
Só para ilustrar, o álcool, modelo de substância permitida, que a depender do nível no sangue pode causar morte por parada respiratória, apenas pode ser vendido para os maiores de 18 anos, outro exemplo, seriam alguns medicamentos que só podem ser utilizados mediante prescrição médica. Pelo contrário, o crack, a cocaína, a maconha, dentre outros entorpecentes, são proibidos pelas normas brasileiras.
A Lei n.° 11.343 de 2006 traz um conceito genérico em seu artigo 1°, parágrafo único, qual seja: “consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência física, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”[17]. Nesta feita, consoante exposto pela lei a definição engloba tanto substâncias (base ou matéria-prima), quanto produtos (resultado da manipulação da base ou matéria-prima) que possam causar dependência.
Necessário ser dito que, as substâncias proscritas pela lei brasileira, a saber, ilícitas, são as constantes na Portaria Federal n° 344 de 12 de maio de 1988 (e posteriores atualizações), expedida pelo Ministério da Saúde (MS), por intermédio de sua Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS). A partir dessa previsão e, após o estudo do dispositivo supramencionado, podemos chegar à conclusão de que a referida descrição normativa se insere na classificação de norma penal incriminadora em branco, a qual, nos dizeres de Djalma Eutímio:
São disposições cuja sanção é determinada, permanecendo indeterminado seu conteúdo, ou seja, os elementos de definição do crime não são completos. Elas são subdivididas em: a) lato sensu: o complemento é uma norma de idêntica fonte legislativa. A relação é, p. ex., entre uma lei extraordinária x lei ordinária, cuja fonte é o Congresso Nacional [...] b) stricto sensu: o complemento é uma norma de fonte diversa. As fontes são heterogêneas (EUTÍMIO, 2007, p.35).
Há que se atentar, no entanto, sobre a inconstitucionalidade de tais normas penais em branco em face da flagrante agressão a Carta Maior. Nesse diapasão, infringem o princípio da legalidade, inserido na Constituição Federal em seu art. 5°, inciso XXXIX, que determina: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”[18]. Digno de nota são os ensinamentos de Fernando Capez:
[...] nenhuma outra fonte subalterna pode gerar a norma penal, uma vez que a reserva de lei proposta pela Constituição é absoluta, e não meramente relativa. Nem seria admissível que restrições a direitos individuais pudessem ser objeto de regramento unilateral pelo Poder Executivo. Assim, somente a lei, na sua concepção formal e estrita, emanada e aprovada pelo Poder Legislativo, por meio do procedimento adequado, pode criar tipos e impor penas (CAPEZ, 2004, p. 43).
É de se notar, pois, devido seu conteúdo volátil, essas normas penais homogêneas podem ser modificadas sem as devidas formalidades legais de discussão legislativa mais aprofundada sobre o tema. Por consequência, geram insegurança jurídica e ingerência na esfera individual, como também, por intermédio de interesses políticos, confere possibilidade das mais perigosas substâncias serem consideradas lícitas.
3.2 Uso, Experimentação, Abuso e Dependência
A evolução humana ocorreu paralelamente às substancias psicoativas, remontando aos tempos antigos e, indubitavelmente, acompanhará a história da sociedade. Essa ligação entre as drogas e os seres humanos ocorre por diversos motivos podendo, a depender da maneira que forem utilizadas, ser inócua ou arrefecida quanto aos riscos, mas também possibilitar prejuízos biopsicológicos e sociais.
Por esse motivo, justifica-se a união de esforços para difusão de informações acerca dos problemas atinentes a saúde pública. Conforme expões Cláudio Elias e Rogério Shigueo (2011, p. 93) “os aspectos associados à saúde só foram mais estudados e discutidos nos últimos dois séculos, predominando, antes disso, visões preconceituosas dos usuários”.
O álcool, sem dúvida a droga mais antiga e difundida, influenciou sobremaneira os contornos e definições sobre as substâncias psicoativas. Assim, nos últimos anos, mormente em 1960, por intermédio da Organização Mundial de Saúde, buscou-se com muito esforço estudar e divulgar os efeitos decorrentes dos entorpecentes, com o fito, claro, de auxiliar na resolução do problema sobre os usuários.
Dessa forma, em 1976, Edwards e Gross traçam o conceito da Síndrome da Dependência do Álcool, consubstanciando um grande marco teórico sobre o tema, já que dissociado dos ideais moralistas da época. Ressaltando a importância desses diagnósticos, afirma a médica Ana Cecilia Petta Roselli Marques:
Em 1970, Edwards e Gross propuseram o conceito de Síndrome de Dependência do Álcool, ampliando a visão anterior, que considerava o alcoolismo como um fenômeno do tipo tudo ou nada, isto é, o indivíduo era reconhecido como alcoólatra ou não alcoólatra. A dependência de álcool passou a ser definida como um conjunto de sintomas e sinais decorrentes do uso disfuncional da substância (ROSELLI, 2001, p. 74)[19].
Nesse diapasão, os referidos cientistas tracejaram os principais sinais e sintomas da dependência alcoólica, possibilitando com o estudo, in futurum, a sistematização mais próxima da realidade dos padrões de consumo das drogas. Esses aspectos da dependência consideram que, quando as situações de consumo se estreitam, passando o sujeito a planejar sua vida cotidiana em torno da bebida, desejando-a compulsivamente, até em virtude da tolerância aos efeitos da substância, esta pessoa está dependente.
Outros sinais apontados com o estudo são: abstinência, paralela a tolerância, apresenta sintomas não aprazíveis com a interrupção ou diminuição da dose habitual; o alívio dos efeitos desagradáveis decorre do aumento do consumo do álcool; estando sujeito o indivíduo à reinstalação da síndrome de dependência, pois, o antigo padrão de consumo pode se restabelecer rapidamente.
Logo, diferente do uso experimental, recreativo ou controlado que, de acordo com a OMS se identificam, respectivamente, com a escassa frequência ou persistência na utilização, a manutenção do uso em circunstâncias sociais recreativas ou o sustento do uso regular não compulsivo, a dependência possui efeitos nocivos aos indivíduos[20]. Em 1980 a OMS estabelece esta distinção no Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais – DSM III, tanto em relação ao álcool como para outras substâncias psicotrópicas, sendo corroborado pelos instrumentos de diagnósticos subsequentes como o DSM-IV e a Classificação Internacional de Doenças (CID-10).
A administração de alguma substância psicoativa, seja ela lícita ou ilícita, também pode ser entendida e classificada como abusiva. Esse modo de utilização, apesar de algumas dissonâncias conceituais trazidas pela CID-10 e a DSM-IV e que serão apresentadas abaixo, pode ser entendido como transtorno nos padrões de uso, oportunizando o aumento dos riscos à saúde do usuário.
Nessa senda, uso abusivo para saúde, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais[21], consiste em um padrão de autoadministração que interfere nos afazeres diários, como obrigações resultantes de trabalho, sem preencher, contudo, os critérios da dependência. Igualmente, sua utilização acarreta perigos físicos em face da utilização contínua, transtornos relacionados às instâncias oficiais de controle, exacerbando os problemas sociais e interpessoais.
Em relação à Classificação Internacional de Doenças[22], o uso nocivo ocasiona danos físicos e/ou psicológicos por consequência da utilização dos psicotrópicos, englobando a capacidade de julgamento e comportamento. Nesse ponto, a natureza do dano é patentemente identificável, interligando-se os efeitos ao padrão de uso das substâncias e/ou produtos.
Como resultado do exposto acima, podemos chegar à conclusão de que existem níveis diferentes de efeitos decorrentes da utilização das substâncias estupefacientes, sendo de suma importância para os aplicadores do direito que lidam diariamente com as pessoas envolvidas com as drogas conhecerem essas implicações práticas. Inegavelmente, a conceituação dos sintomas da dependência e não dependência constitui ferramenta de grande valia, pois, conforme ressalva Nicastri e Laranjeira (1996, p. 192) “nem todo uso de drogas é devido à dependência, e a maior parte das pessoas que apresentam uso disfuncional de alguma droga não são dependentes”.
Em resumo, partindo da premissa de que os transtornos atinentes às drogas, ex abrupto, constituem problema de saúde pública, imperioso o conhecimento das diferentes nuance sobre o tema. Por conta disso, para o estabelecimento dos melhores programas de tratamento desses indivíduos, com diagnósticos modernos e aprimorados, a determinação e conhecimento das diversas formas de uso das substâncias psicotrópicas são imprescindíveis.
3.3 Programas de Redução de Danos
Conforme será explanado em tópico específico, analisar o artigo 28 da Lei de Antidrogas a partir dos preceitos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, diploma legitimador do Estado Democrático de Direito, nos direciona a viabilizar a descriminalização do adquirir/ portar para consumo pessoal de entorpecentes. Não obstante, entendendo o problema como questão de saúde pública, faz-se necessária a criação de mecanismos destinados à preservação dos direitos fundamentais dos indivíduos, ao passo que, de modo eficaz, reduza os danos ocasionados pelos efeitos dos psicotrópicos no organismo das pessoas.
A experiência internacional relacionada ao tema nos mostra a viabilidade empírica da política de redução de danos, corroborando, por consequência, o Direito Penal Mínimo. Para tanto, ou seja, haver a descriminalização, Salo de Carvalho afirma que as estratégias se condensam em duas dimensões:
Embora seja absolutamente viável, pela experiência do direito penal interacional das drogas, pensar na viabilidade da descriminalização do consumo pessoal, as estratégias concentram-se, na atualidade, em nossa realidade periférica, em duas dimensões: (a) plano da dogmática penal crítica, com a proliferação de julgados que deslegitimam a intervenção penal na esfera da vida privada e da intimidade; (b) plano político-criminal, com a proposição de políticas de redução de danos que respeitem a autonomia do usuário e as necessidades dos dependentes (CARVALHO, 2010, p. 171).
Hipóteses do primeiro estratagema apontado acima podem ser encontradas na jurisprudência pátria, nesse sentido o Desembargador Milton dos Santos Martins, apesar de ter sido voto vencido em Recurso de Apelação perante o Tribunal de Justiça no Rio Grande do Sul, delineia:
Não é lícito ao Estado, dentro do sistema de liberdade democrática, punir o viciado, que é, antes de tudo uma vítima. O art. 16 da Lei 6.368/76, punindo como infrator o viciado e doente, afronta a Constituição Federal, no que respeita à liberdade individual quanto ao uso de estupefaciente (Recurso de Apelação N° 686062340, Tribunal de Justiça, Relator: Milton dos Santos Martins, Julgado em 14/12/1988).
Em relação à segunda dimensão referente às políticas de redução de danos, a Lei n.° 11.343 de 2006, no Título III, as denominou de atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social, prescrevendo no artigo 18 que: “Constituem atividades de prevenção do uso indevido de drogas, para efeito desta Lei, aquelas direcionadas para redução dos fatores de vulnerabilidade e risco e para promoção e o fortalecimento dos fatores de proteção”[23]. Os princípios e diretrizes desses programas vêm expressos no artigo subsequente da mesma lei, assim:
Art. 19. As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes: I - o reconhecimento do uso indevido de drogas como fator de interferência na qualidade de vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade à qual pertence; II - a adoção de conceitos objetivos e de fundamentação científica como forma de orientar as ações dos serviços públicos comunitários e privados e de evitar preconceitos e estigmatização das pessoas e dos serviços que as atendam;
III - o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas; IV - o compartilhamento de responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias; V - a adoção de estratégias preventivas diferenciadas e adequadas às especificidades socioculturais das diversas populações, bem como das diferentes drogas utilizadas; VI - o reconhecimento do “não-uso”, do “retardamento do uso” e da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza preventiva, quando da definição dos objetivos a serem alcançados; VII - o tratamento especial dirigido às parcelas mais vulneráveis da população, levando em consideração as suas necessidades específicas; VIII - a articulação entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e a rede de atenção a usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares; IX - o investimento em alternativas esportivas, culturais, artísticas, profissionais, entre outras, como forma de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida; X - o estabelecimento de políticas de formação continuada na área da prevenção do uso indevido de drogas para profissionais de educação nos 3 (três) níveis de ensino; XI - a implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas instituições de ensino público e privado, alinhados às Diretrizes Curriculares Nacionais e aos conhecimentos relacionados a drogas; XII - a observância das orientações e normas emanadas do Conad; XIII - o alinhamento às diretrizes dos órgãos de controle social de políticas setoriais específicas.Parágrafo único. As atividades de prevenção do uso indevido de drogas dirigidas à criança e ao adolescente deverão estar em consonância com as diretrizes emanadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda.
Doravante, no dispositivo que subsegue (art. 20) são erigidas as atividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, consistindo naquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas. Além disso, no artigo 21 são previstas as atividades de reinserção social do usuário ou do dependente de drogas e respectivos familiares, sendo aquelas direcionadas para sua integração ou reintegração em redes sociais.
Inobstante os princípios e diretrizes acima apontadas – e pertinentes, diga-se de passagem – consubstanciam verdadeiro engodo da ideologia belicista. Acontece que, a partir do momento em que são traçadas as retilíneas diretrizes de redução de danos sem a criação clarividente das instituições administrativas responsáveis pelas ações, o esvair dos programas atinentes aos direitos sociais é incontornável.
Nesse sentido, verifica-se a falácia carreada pela Lei n.° 11.343 de 2006 por intermédio da política criminal das drogas. Destarte, Salo de Carvalho (2010, p. 173) “visualiza verdadeira inversão ideológica no discurso de redução de danos ao utilizar sua base conceitual e principiológica para legitimar políticas e intervenções proibicionista”. Diametralmente oposto ao que propõem a lei - como o exemplo do art. 19, inciso III - não há coexistência e respeito aos direitos fundamentais com a convicção belicista. O aumento da criminalidade e os custos dessa política corroboram esta ideia.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais traz a seguinte constatação:
No Brasil, em especial, a espiral de crescimento da violência está intimamente relacionada com o aumento da repressão ao tráfico de drogas, e à alta lucratividade do comércio ilícito. Nos países em desenvolvimento, onde o mercado ilícito é marcado pela violência e pela exclusão social em níveis alarmantes, os efeitos perversos são ainda mais visíveis: as prisões estão cheias de dependentes de drogas que se transformam em criminosos para sustentar seu vício, e a violência na resolução dos conflitos ligados ao tráfico é generalizada[24].
A opção pela criminalização produz obnubilação no fitar resolutivo do problema, até porque o sistema penal tem demonstrado sua inutilidade na questão. Ao contrário, a política criminal proibicionista que está posta nos dias atuais causa efeitos colaterais, que, nos dizeres de Maria Lúcia Karam:
Não são, portanto, as drogas que geram criminalidade e violência, nem são os consumidores os responsáveis pela violência de “traficantes”. Consumidores são responsáveis apenas pela existência do mercado, como o são consumidores de quaisquer produtos. Responsável pela violência é sim o Estado, que cria a ilegalidade e, consequentemente, gera criminalidade e violência (KARAM, 2009, p. 41).
Inquestionavelmente, a manipulação do discurso incriminador não contribui em nada com a política de redução de danos, favorecendo o aumento da corrupção, instigando a violência, principalmente em setores vulneráveis da população, estigmatizando, outrossim, o usuário. Em brilhante arremate, Rosa Del Olmo (1990, p. 77) expõe que “com isto se escondem o alcance e suas repercussões econômicas e políticas atrás de um discurso único de caráter universal, atemporal e a-histórico que só contribui para consolidação do poder das transnacionais que manejam o negócio”.
As drogas realmente demandam alto custo para sociedade e, mormente em decorrência da marginalização dos seus dependentes e comerciantes, esse panorama não tende a melhorar. Traçando as estratégias de redução de danos, Marcelo Santos Cruz aduz:
Redução de Danos (RD) constitui uma estratégia de abordagem dos problemas com as drogas que não parte do princípio de que deve haver imediata e obrigatória extinção do uso de drogas, seja no âmbito da sociedade, seja no caso de cada indivíduo, mas que formula práticas que diminuem os danos para os usuários de drogas e para os grupos sociais com que convivem (SANTOS, 2011, p. 273).
Pensar em um mundo livre das drogas nada mais é do que uma utopia, dessa maneira, em havendo real integração dos toxicômanos na sociedade sobreleva, de forma significativa, o desapego às drogas, contrapondo a situação daqueles que estão situados à margem da comunidade. Assumir de forma definitiva esse modo de pensar significa o respeito e o aprimoramento dos direitos fundamentais dos cidadãos e, igualmente, esfria o ardor ocasionado pela criminalização.
Em consonância com esta perspectiva, é possível definir estratégias de terapia e tratamento dos dependentes, fomentar a participação do usuário, implementar programas interdisciplinares com o auxílio de médicos, psicólogos, sociólogos, dentre outras medidas. Nessa senda, encontra-se Portugal instituidor da chamada Comissão de Dissuasão da Toxicodependência que, nos dizeres de Denis Russo:
Cada CDT é formada por três membros, cada um de uma área, em geral um jurista, um psicólogo ou médico e um assistente social ou sociólogo [...] O usuário chega à CTD de manhã e é entrevistado por um dos membros da equipe técnica, normalmente um terapeuta ou assistente social [...] O objetivo é entender com profundidade os problemas que afetam a pessoa, o papel que a droga tem em sua vida, quando o consumo é problemático, o contexto familiar, social, profissional (RUSSO, 2011, pp. 201/202).
Salo de Carvalho (2010, p. 174) afirma que com a descriminalização torna-se possível “pensar políticas públicas eficazes à prevenções sustentadas na informação e no ensino, no incentivo agrícola de culturas alternativas e na regulamentação e controle do comércio das substâncias pelos órgãos estatais”. Recentemente, podemos citar os vizinhos uruguaios e argentinos que optaram pela descriminalização do uso de entorpecentes.
Países como a Holanda possuem políticas públicas que disponibilizam locais junto ao governo onde os doentes (usuários de drogas) recebem seringas para que não compartilhem com outras pessoas, evitando a transmissão de vírus como o HIV e a hepatite C. Da mesma forma, disponibilizam a substância chamada de metadona que ameniza os efeitos da heroína, ou seja, utiliza-se uma droga substitutiva sem efeitos psicoativos para combater a abstinência e possibilitar uma vida mais saudável.
Vale salientar que o governo holandês também disponibiliza heroína para os dependentes dessa substância, gerando a consequente aproximação do paciente ao braço do Estado, possibilitando sua recuperação e a segregação do traficante. Independente de qualquer juízo de valor acerca dessa medida, certa ou errada, o ponto positivo consiste na mudança de ideologia referente às drogas, buscando alternativa a criminalização.
Outros países vêm obtendo êxito na tentativa de recuperação dos seus dependentes, assim, na Suíça, o número de usuários de drogas injetáveis portadores de HIV foi reduzido em mais de 50% nos últimos dez anos, a taxa de mortalidade por overdose caiu em mais de 50% no mesmo período. Enfim, a maneira de lidar com as substâncias estupefacientes está mudando no mundo, nesse sentido, países como Portugal, Espanha e República Tcheca descriminalizaram a posse de drogas para consumo pessoal.
A propósito, vale chamar atenção que descriminalizar difere de liberalizar. Em sendo assim, o primeiro diligencia a confecção de ferramentas fora do sistema penal de controle sobre o consumo de drogas, como o exemplo do estabelecimento de sanções administrativas. Acreditamos que, dessa maneira, são evitados os degradantes efeitos antidemocráticos do sistema belicista e, outrossim, possibilitará a confecção de um sistema ideológico mais racional.
3.4 A Sandice das Medidas Alternativas à Prisão
Em uma sociedade imantada pelo Estado Democrático de Direito, o estatuto Penal consubstancia em garantia do cidadão contra as arbitrariedades estatais. Em contraposição as políticas repressivas de lei e ordem instituidoras do direito penal do terror, os direitos e garantias fundamentais são assegurados por intermédio do sistema normativo supracitado. Corroborando o quanto exposto, Luigi Ferrajoli tece ilações sobre o tema:
A unidade do sistema, que ressaltarei mais adiante no parágrafo 6, mediante sua formalização, depende, segundo meu modo de ver, do fato que diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade. (FERRAJOLI, 2002, p. 30).
A constituição Federal de 1988 traz em seu bojo regras e princípios humanitários de imperiosa efetividade empírica, indo de encontro às iniquidades que por ventura sejam legitimadas socialmente, como o exemplo do tratamento indigno nos presídios brasileiros. Desse modo, a grande dificuldade hodierna é dar eficácia as garantias individuais e coletivas previstas na Carta Maior.
Assim, o Direito Penal é vistos nos dias atuais como instrumento para efetivação de garantias mínimas. Não obstante, indubitavelmente, tal instituto exerce outras funções no seio da sociedade, e quais seriam estas funções?
Há muito se sabe que o Estado, por intermédio de suas instituições, retirou das mãos dos indivíduos a vingança privada contra violações dos direitos dos homens. Avocou para si a proteção contra as transgressões aos bens jurídicos alheios, socorrendo as vítimas dos crimes perpetrados no seio social, prevenindo, outrossim, a prática de novos desvios puníveis.
Deste modo, após a violação de um bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, surge para o Estado uma pretensão acusatória para se condenar, ao final do processo, à aplicação de uma sanção como consequência do desvalor da ação delituosa. Prevista no tipo normativo, a pena para ser aplicada como medida coercitiva necessita para tanto do devido processo legal, garantia constitucional de inestimável relevância. Em artigo dedicado ao tema explica Aury Lopes Júnior:
Mas o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do Direito Privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente (negrito conforme texto original). Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto típico, mas também que exista previamente o devido processo penal[25].
No mesmo sentido são as palavras de Cintra, Ada Pellegrini e Dinamarco:
Em certas matérias não se admitem exceções à regra da proibição da autotutela, nem é, em princípio, permitida a autocomposição para a imposição da pena. É o que sucedia de modo absoluto em matéria criminal (ordem jurídica brasileira anterior à lei 9.099, de 26.9.1995) [...] Em casos assim, o processo é o único meio de obter a efetivação das situações ditadas pelo direito material (imposição da pena, dissolução do vínculo etc.) (CINTRA; PELLEGRINI; DINAMARCO, 2009, p. 37).
Destarte, extrai-se dos excertos acima uma impreterível relação processo-pena, exercendo o Direito Processual Penal uma função especifica e complementar para funcionalidade do Direito Penal, assim é que, nos dizeres de Aury Lopes Júnior em outra passagem:
Existe uma íntima e imprescindível relação entre o delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para delimitar o delito e impor uma pena. Assim, fica estabelecido o caráter instrumental do processo penal com relação ao Direito Penal e à pena, pois o processo é o caminho necessário para a pena (AURY, 2006, p. 04).
Nesse ponto, podem ser visualizadas as funções do Direito Penal que, por intermédio da fixação da pena, exerce a ressocialização, a repressão e a prevenção (seja ela geral ou especial) por interlúdio do Processo Penal (caráter instrumental). Para o Estado-Juiz aplicar uma sanção contrária a um interesse individual (do transgressor), necessário a existência de um processo para a efetividade das garantias constitucionais conquistadas com o passar do tempo, proibindo-se a justiça com as próprias mãos.
Denota-se, desse modo, uma autolimitação Estatal, pois, ao mesmo tempo em que exerce o poder de legislar as hipóteses de crimes e suas respectivas penas, ele determina que estas só possam ser aplicadas mediando o devido processo penal por meio do Poder Judiciário. Trata-se, pois, de um instrumento estabelecido pela Constituição Federal que, nos ensinamentos de Eugênio Pacelli: (2007, p. 07)
A mudança foi radical. A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado (PACELLI, 2007, p. 07).
Nessa feita, partindo dos delineamentos supracitados, o Estado, mantenedor da harmonia das pessoas sob sua égide, objetivando a chamada pacificação com justiça, tipificou as condutas criminosas e suas respectivas sanções. O processo consubstancia uma concatenação de atos imantados por uma relação jurídica regida pela ampla defesa e o contraditório, cujo objetivo maior é servir de instrumento para aplicação dos preceitos estabelecidos no direito material.
Merece ser destacado, porém, que este controle jurisdicional carreta sérias consequências aos indivíduos a ele submetidos. Sem dúvidas, a demanda judicial gera uma estigmatização social (basta vermos os programas jornalísticos locais), assim, até mesmo o inocente que esteja sendo investigado erroneamente sofrerá com a possibilidade, mesmo que remota, de lhe ser aplicado uma pena. Nesse sentido são as célebres palavras de Carnelutti:
Devo dizê-lo mais uma vez: Não é preciso protestar contra a realidade, basta torná-la conhecida, ou seja, pelo conhecimento atual da realidade criminal, chega-se à conclusão de que as pessoas creem que o processo penal termina com a condenação do acusado, o que não é verdade; pensam que para o prisioneiro a pena termina com a saída do cárcere, o que tampouco é realidade, e acreditam que a única prisão que se estende por toda a vida é a prisão perpétua, eis aí mais uma irrealidade. Senão para todos, pelo menos para nove entre dez dos detentos que deixam o cárcere a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Deus pode perdoá-los, os homens não (CARNELUTTI, 2010, p. 119).
Tratando mesmo que de forma tangencial sobre o tema, até porque se referia sobre as condições da ação e defendia ser a justa causa um dos seus requisitos, em decorrência, claro, dos efeitos nefastos aos que são submetidos a uma demanda penal, afirma Afrânio Silva Jardim que:
[...] a realidade nos mostra que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do acusado, motivo pelo que, antes mesmo do legislador ordinário, deve a Constituição Federal inadmitir expressamente qualquer ação penal que não venha lastreada em um suporte probatório mínimo (AFRÂNIO, 2001, p.323).
Logo, os diplomas repressivos, impreterivelmente, devem ser manejados com estrema responsabilidade e cautela, evitando, desnecessariamente, potencializar as mazelas carreadas as pessoas. A função jurisdicional, essencialmente, deve servir de instrumento para se aferir por intermédio da sentença proferida pelo juiz natural, se o réu é inocente ou culpado de um fato determinado e, nesse último caso, realizar os fins colimados pela Ciência Jurídica.
Decerto, no caso do Direito Penal ser utilizado de forma ineficaz, injusta, potencializará uma degradação moral interna e externa, e por que não dizer patrimonial, derivada da censura social. Vale repisar, esse instituto não pode se resumir à previsão de crimes e suas respectivas penas, servindo, indispensavelmente, como instrumento de respeito e efetivação das garantias fundamentais insertas na Constituição Federal de 1998.
Nesse contexto, apesar de abolir a pena de prisão em decorrência da vigência do artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006, a instauração de uma demanda judicial para aplicação das medidas descarcerizadoras, a nosso viso, consubstancia pena em si mesmo. A utilização do aparato estatal para aplicação, por exemplo, de uma advertência sobre os efeitos das drogas ou admoestação verbal, evidencia, que a tipificação de tal conduta decorre de ideologias legitimadoras de incriminações verdadeiramente morais. Espargindo clarividência de ideias Eugênio Pacelli de Oliveira aduz:
[...] Do ponto de vista do exercício do Poder público, não se deve, com efeito, admitir o desenvolvimento de atividade jurisdicional inútil (itálico conforme texto original), ou útil apenas em relação a determinados fins e interesses. Não há um direito subjetivo do acusado em ver julgado o mérito da ação penal, sobretudo quando o único fundamento a legitimar tal pretensão seja a inadequação da iniciativa persecutória (PACELLI, 2007, p. 94).
Assim, o Direito Penal mínimo tem por função regular os fenômenos sociais assaz relevantes para harmonia social. O fato social que for descrito nos tipos normativos deve afetar bens jurídicos de elevada importância, já definia Claus Roxin no livro “a proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal”:
[...] em um Estado Democrático de Direito, modelo teórico de Estado que eu tomo por base, as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos. Por isso, o Estado deve garantir, com os instrumentos jurídico-penais, não somente as condições individuais necessárias para uma coexistência semelhante (isto é, a proteção da vida e do corpo, da liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.), mas também as instituições estatais adequadas para esse fim (uma administração de justiça eficiente, um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma administração livre de corrupção etc.) sempre e quando isso não se possa alcançar de outra forma melhor (ROXIN, 2009, p. 17-18).
Tecendo considerações sobre o tema Bitencourt (2007, p. 01) afirma que o “fato social que contrariar o ordenamento jurídico constitui ilícito jurídico, cuja modalidade mais grava é o ilícito penal, que lesa os bens mais importantes dos membros da sociedade”. Verifica-se dessa ilação uma das mais importantes características do estatuto em comento, o seu caráter fragmentário, sendo assim, deve ter como pressuposto proteger os interesses mais importantes das pessoas em comunhão, não devendo intervir quando outros ramos do direito são suficientes para resguardá-los.
No caso do crime em análise, foi tipificada uma conduta que lesa apenas a pessoa que a realiza, não ferindo bens jurídicos de terceiros, golpeando, isso sim, a autonomia individual, a igualdade e a inviolabilidade da vida privada. Infundadamente é disseminada a ideia de que pessoas que utilizam drogas praticam crimes contra o patrimônio, contra a vida, objeta à hora dos indivíduos. Acontece que nesses casos existe regulamentação específica, devendo os transgressores responder pelos delitos de furto, roubo, homicídio e etc.
Deste modo, a utilização de diplomas como o direito penal e processual penal para ao final do processo, por intermédio da sentença, aplicar uma medida que não seja eficaz (exemplo, admoestação verbal art. 28, § 6°, I, Lei n.° 11343/06), demonstra sua total inutilidade empírica, revelando o caráter ideológico da criminalização (moralismo criminalizador). Como diz Vicente Greco e Rassi (2008, p. 53-54) “para garantia do cumprimento das medidas previstas no artigo, o juiz pode submeter o condenado, sucessivamente, a admoestação verbal, também de pouca ou nenhuma eficácia”.
Agora analisemos a situação: Uma pessoa é detida portando uma substância degenerativa como o crack e é submetida a curso orientador sobre os efeitos das drogas ou presta serviços à comunidade. Este indivíduo é dependente desta deletéria substância, isto é, possui forte compulsão para consumi-la, comprometendo a capacidade de controlar o início, término ou níveis de uso. Indubitavelmente, não será por intermédio de tais medidas alternativas à prisão que se evitará a prática de um novo crime (salvo as raras exceções).
Estas pessoas que abusam e dependem das drogas necessitam de um tratamento dos sintomas de intoxicação e da abstinência, avaliação conjunta de equipes interdisciplinares, compostas por psiquiatras, sociólogos, médicos. Não precisam, evidentemente, da pecha do Direito Penal para se reerguerem, de serem vistos preconceituosamente como as “forças do mal”, não possuidores de direitos.
Inegavelmente, quando são preteridos os fundamentos constitucionais, o aparato do Estado passa a ser utilizado como punição antecipada, utensílio de perseguição política, constrangimento processual, causador de estigmatização social, legitimando o denominado Direito Penal do inimigo. Nesta teoria, conforme assenta seu próprio autor Günther Jakobs (2005, p. 42) “quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa [...]”.
Hoje, em consonância com a visão liberal da jurisdição firmada por Rangel Dinamarco (1990, p. 105) o estatuto repressivo “serve como veículo de tutela do indivíduo frente aos possíveis abusos ou desvios de poder dos agentes estatais, sendo o equilíbrio entre os valores poder e liberdade”. Deve tutelar e garantir a efetividade dos direitos constitucionalmente existentes, como a liberdade individual, a intimidade, delimitando a ingerência estatal.
Inobstante, é sabido que o Direito Penal conforme expõe Nilo Batista (2007, p. 17) “vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que se organiza de determinada maneira”. Exsurge para consecução do denominado controle social, igualmente, inclinado aos objetivos e finalidades valorados pelos pseudorrepresentantes do povo. Continua Nilo Batista:
A função do direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica e social, à qual estamos nos referindo, é habitualmente chamada de função “conservadora” ou de “controle social”. O controle social, como assinala Lola Aniyar de Castro, “ Não passa da predisposição de táticas, estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles que não se integram à ideologia dominante”. É fácil perceber o importante papel que o direito penal desempenha no controle social. Sob certas condições, pode o direito desempenhar outras funções (como, por exemplo, a “educativa” e mesmo a “transformadora” – esta, oposta à conservadora). A preponderância da função de controle social é, contudo, inquestionável (BATISTA, 2007, p. 22).
É clarividente o significado político de tal criminalização, consubstanciando técnica de controle social legitimadora do direito penal máximo que, na lição de Luigi Ferrajoli (2002, p. 83) “são os modelos autoritários que se caracterizam pela debilidade ou ausência de algum ou alguns desses limites à intervenção punitiva estatal”. Certamente, a Ciência Jurídica é modelada pela sociedade, igualmente, a recíproca é verdade, a sociedade também é lapidada pelo Direito, havendo uma relação entre o Estado e os anseios do Direito Penal, logo, por conta disso, podemos vivenciar hodiernamente galhofas ao Estado Democrático de Direito.
4 PANORAMA JURÍDICO
4.1 Questão Principiológica
A criminalização da conduta de obter substância entorpecente para consumo pessoal entra em colisão com princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, para compreensão do campo de aplicação e efetividade dos princípios consagrados em nosso ordenamento jurídico, passemos à sua análise, verificando seus conceitos e desmembramentos doutrinários, investigando cada uma das normas que se relacionam com a temática em comento.
Destarte, inegável a importância de tais proposições genéricas na elaboração e aplicação das leis do ordenamento jurídico. Quando da regulamentação de determinado interesse social, as autoridades competentes devem se basear na seleção das cargas valorativas que fundamentem tal ingerência estatal, assim explicita Paulo Nader:
Quando se vai disciplinar uma determinada ordem de interesse social, a autoridade competente não caminha sem um roteiro predelineado, sem planejamento, sem definição prévia de propósitos. O ponto de partida para composição de um ato legislativo deve ser o da seleção dos valores e princípios que se quer cosagrar, que se deseja infundir no ordenamento jurídico (NADER, 2007, p. 200).
Toda legislação pressupõe a existência de normas jurídicas que a norteia e delimita. E não apenas isso, a legitimidade destas mesmas leis depende, dentre alguns outros fatores, da observância dos princípios fundamentais em consonância com a Constituição Federal, diploma regulador de todo sistema de normas. Com clareza de ideias Nilo Batista afirma que:
Tais princípios básicos, embora reconhecidos ou assimilados pelo direito penal, seja através de norma expressa (como, por exemplo, o princípio da legalidade – art. 1° CP), seja pelo conteúdo de muitas normas a eles adequadas (como, por exemplo, a inexistência de pena de morte ou mutilações – art. 32 CP – e o objetivo de integração social na execução da pena – art. 1° LEP – com relação ao princípio da humanidade), não deixam de ter um sentido programático, e aspiram ser a plataforma mínima sobre a qual possa elabora-se o direito penal de um estado de direito democrático (BATISTA, 2007, p. 61-62).
Inegavelmente, estes comandos valorativos que permeiam o ordenamento jurídico brasileiro possuem papel de extrema importância para consecução da justiça no caso concreto. Por conta disso, passemos, neste momento, a perquirir sobre sua definição, começando a partir do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa:
Princípio. (latim principium, -ii) S. m. 1. O primeiro impulso dado a uma coisa. 2. Ato de principiar uma coisa. 3. Origem. 4. Causa primária. 5. O que constitui a matéria. 6. O que entra na composição de algo. 7. Opinião. 8. Frase que exprime uma conduta ou um tipo de comportamento. 9. Aquilo que regula o comportamento ou a ação de alguém; preceito moral. 10. Frase ou raciocínio que é base de uma arte, de uma ciência ou de uma teoria[26].
No mesmo dicionário podemos obter o significado de princípios – no plural – consubstanciando o seguinte: “Princípios. (...) 11. O princípio da vida, as primeiras épocas da vida. 12. Antecedentes. 13. Educação, instrução. 14. Opiniões, convicções. 15. Regras ou conhecimentos fundamentais e mais gerais”[27].
De tais acepções, conseguimos extraídas conotações que nos remetem ao começo de algo, o que está a princípio, premissas iniciais de alguma ciência, teoria, de onde emana algo, nascente. Chega-se à conclusão que nos vários campos de cognição, sejam relacionados com uma ciência, teoria etc., princípios designam ideias iniciais que lhes servem de arrimo, não sendo outro o sentido conferido à Ciência Jurídica. Posicionando-se sobre o tema, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald trazem a seguinte proposição:
[...] Os princípios revestem-se de grade relevância porque marcam, basicamente, todo sistema jurídico. São proposições genéricas que informam uma ciência. Sua base valorativa. [...] São, portanto, as bases sobre as quais se constrói o sistema jurídico. Em outras palavras: constituem as proposições genéricas que servem de substrato para organização de um ordenamento jurídico. Daí sua induvidosa importância no estudo das ciências jurídicas (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 35-36).
Para José Afonso da Silva (2005, p. 92) os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas. Igualmente, Luiz Flávio Gomes (2005, p. 01) afirma em seu artigo que “princípios são diretrizes gerais de um ordenamento jurídico (ou de parte dele)”[28].
Conforme demonstrados pelos brilhantes autores supramencionados os princípios possuem inestimável relevância para ciência jurídica, por tal razão, faz-se imperioso esquadrinhá-los para compreensão da matéria. Alertando sobre esta necessidade, o autor Chade Rezek Neto citado por Djalma Eutímio em seu Curso de Direito Penal aduz:
Desnecessário sublinhar, por evidente, sua importância na interpretação e aplicação do direito, pois “com o auxílio dos Princípios Jurídicos, a interpretação do Direito se modifica para melhor, enfocando ao aplicador do Direito não apenas a localização de uma regra para sua aplicação imediata, mas, sim, a construção da norma jurídica aplicável ao problema jurídico. Portanto, os Princípios Jurídicos se caracterizam por serem de importância fundamental, em relação à evolução do direito positivo, para a regulação de novos fenômenos sociais” (REZEK, 2004, p. 44 apud DJALMA, 2007, p. 53).
Vale salientar que a Ciência Jurídica se localiza no campo da cultura, então, possui como característica a mutabilidade, onde as teorias e ideologias mudam em conformidade com os discursos que a corroboram. Bem assim, possui uma linguagem plurívoca, discursos polivalentes destinados a prescrever modelos de conduta social a serem seguidas.
Não restam dúvidas que a gama de ideias que fundamentam tal ciência traduzem uma peculiaridade ao conceito de princípios jurídicos, qual seja, várias designações. No livro dedicado ao tema, “Conceito de Princípios Constitucionais”, Ruy Samuel Espíndola expõe a seguinte ilação:
Assim, na Ciência Jurídica, tem-se usado o termo princípio ora para designar a formulação dogmática de conceitos estruturados por sobre o direito positivo, ora para designar determinado tipo de normas jurídicas e ora para estabelecer os postulados teóricos, as proposições jurídicas construídas independentemente de uma ordem jurídica concreta ou de institutos de direito ou normas legais vigentes. Essa polissemia não é benéfica neste campo do saber, em que a confusão de conceitos e ideias pode levar à frustração da práxis jurídica ou à sonegação, por uma prática equívoca, de direitos ou de situações protegíveis pelo sistema jurídico posto (ESPÍNDOLA, 2002, p. 55).
Nesse diapasão, dependendo do contexto em que se encartam, aos princípios são conferidas pela Ciência do Direito diferentes funções e modos de aplicação. Repisando este raciocínio continua Ruy Samuel Espíndola:
Ao se tratar de princípios, neste campo das ciências humanas, deve-se distinguir claramente entre a norma e o texto que a contempla; a norma do discurso sobre a norma; as categorias de normas que veiculam princípios. E mais: os princípios constantes nas normas devem distinguir-se dos princípios próprios à interpretação das normas. E ao se realizar esse exercício de distinção, chega-se à conclusão de que a noção de princípio antes apontada é apenas o primeiro momento de uma indagação teórica tendente a dar conta dos grandes problemas que são colocados aos operadores do Direito, no momento de lidarem com os “princípios no Direito” (ESPÍNDOLA, 2002. p. 56).
Diante da supramencionada polissemia conceitual, surge a incontornável necessidade de distinguir os princípios jurídicos das regras de direito. Traçando este perfil exegético e ressaltando obrigatória distinção acima apontada aduz José Afonso da Silva:
Há, no entanto, quem concebe regras e princípios como espécies de normas, de modo que a distinção entre regras e princípios constitui uma distinção entre duas espécies de normas. A compreensão dessa doutrina exige conceituação precisa de normas e regras, inclusive para estabelecer a distinção entre ambas, o que os expositores da doutrina não têm feito, deixando assim obscuro seu ensinamento (AFONSO, 2005, p. 92).
Nessa sistemática, sendo o Direito preponderantemente dogmático, pois objetiva resolver as pretensões com a menor insegurança social possível, necessita de mecanismos para este arrefecimento da realidade fática. As normas, nesse contexto, seriam a forma com que se identificaria o direito. Alguns doutrinadores, a exemplo de Hans Kelsen, desenvolveram teorias que colocavam a norma como objeto central, senão exclusivo, da Ciência Jurídica. Nesse sentido explica Tércio Sampaio Ferraz Jr:
[...] Kelsen afirma que os comportamentos humanos só são conhecidos mediatamente pelo cientista do direito, isto é, enquanto regulado por normas. Os comportamentos, a conduta de um ser humano perante outro, diz ele, são fenômenos empíricos, perceptíveis pelos sentidos, e que manifestam um significado. Por exemplo, levantar o braço numa assembleia é uma conduta. Seu significado tem um aspecto subjetivo e outro objetivo. O significado subjetivo desse ato pode ser, conforme a intenção do agente, um simples movimento de preguiça, o ato de espreguiçar-se. Entretanto, no contexto, esse ato pode ter um significado objetivo: manifestou-se, ao levantar a mão, um voto computável para tomar uma decisão. Esse significado objetivo é constituído por uma norma, a norma segundo a qual o ato de votar será contado pelo erguimento do braço (SAMPAIO, 2007, p. 98).
Nas próprias palavras de Hans Kelsen:
O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o seu objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma (KELSEN, 1998, p. 03).
Essa teoria, chamada de pura, sofreu diversas críticas devido a sua abordagem extremista, isso porque, o autor isolou a norma de suas intenções subjetivas, sociais e etc. Não obstante, deve-se mencionar que a teoria em comento foi desenvolvida em um momento histórico denominado de fenômeno da positivação, onde o direito era entendido basicamente como disposto por atos humanos, atos de legislar.
É certo, porém, que as normas se referem a enunciados verbais abstratos que projetam como deve ser o comportamento, por isso consisti em um dever-ser. Constituem em imperativos a ser observados, ou seja, caso haja descumprimento se impõe sobre a vontade das pessoas por intermédio de uma sanção. Trançando estes contornos Paulo Nader aduz:
[...] instrumento de definição da conduta exigida pelo Estado. Ela esclarece ao agente como e quando agir. O Direito Positivo, em todos os sistemas jurídicos, compõe-se de normas jurídicas, que são padrões de conduta social impostos pelo Estado, para que seja possível a convivência dos homens em sociedade (NADER, 2007, p. 83).
Decorre disso que as normas seriam o gênero do qual derivam as espécies regras e princípios jurídicos. Robert Alexy expõe esta diferenciação:
Trata-se de dois tipos distintos de norma. Regras são "mandamentos definitivos", quer dizer, que ordenam fazer uma coisa numa medida previamente definida. Princípios, por outro lado, são "mandamentos de otimização", ou seja, ordenam fazer uma coisa na máxima medida possível. Assim, regras são normas cuja medida de aplicação já vem previamente definida, enquanto princípios são normas cuja medida de aplicação deve ser definida, pelo julgador, em cada situação de aplicação (ALEXY, 2001, p. 202).
Repisando o quanto exposto Inocêncio Mártires Coelho explica:
Noutras palavras, em se tratando de regras de direito, sempre que a sua previsão se verificar numa dada situação de fato concreta, valeta pata essa
situação exclusivamente a sua conseqüência jurídica, com o afastamento de quaisquer outras que dispuserem de maneira diversa, porque no sistema não podem coexistir normas incompatíveis.[...] No campo da aplicação dos princípios, ao contrário, a maioria entende que não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas espécies normativas — por sua própria natureza, finalidade e formulação — parece não se prestarem a provocar conflitos, criando apenas momentâneos estados de tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do Direito (MENDES; MÁRTIRES; GONET, p. 53-55).
Visto a diferenciação entre as espécies de normas jurídicas, torna-se imprescindível ressaltar que, nos dias atuais, a doutrina majoritária reconhece o excessivo grau de juridicidade dos princípios. Assim, afirma Alexy (2001, p. 86) que “Los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas existentes. Por lo tanto los principios son mandatos de optimización”[29].
Estes mandamentos valorativos são normas, obrigam, possuem eficácia jurídica com relação aos comportamentos humanos, independente da separação conceitual entre Princípios Gerais do Direito e Princípios Positivos do Direito. Nesse ponto, traçando as principais características desses dois institutos, Eberhard Grabitz delineia o seguinte:
Repartem-se os princípios, numa certa fase da elaboração doutrinária, em duas categorias: a dos que assumem o caráter de ideias jurídicas norteadoras, postulando concretização na lei e na jurisprudência, e a dos que, não sendo apenas ratio legis, mas, também, lex, se cristalizam desse modo, consoante Larenz assinala, numa regra jurídica de aplicação imediata (1973, p. 240-241 apud BONAVIDES, 2000, p. 272).
A partir daí, os princípios gerais do direito podem ser valorados a partir de premissas falsas ou verdadeiras, em consonância com as descrições normativas da Ciência Jurídica. De outra parte, os princípios positivos do direito são estimados conforme o válido ou inválido, vigente ou não, eficaz ou ineficaz, enquanto sistema lógico de normas positivas.
Inegável é, porém, a normatividade que os acobertam, independente das diferenciações supracitadas. Sendo assim, o artigo 4° da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro corroborando esta tese, prevendo estarem insertos os primeiros na locução que os descrevem, e o segundo, no vernáculo “lei”. Ruy Samuel Espíndola (2002, p. 61) vai além, conferindo normatividade não só aos princípios que são expressa e explicitamente contemplados no âmago da ordem jurídica, mas também aos que, defluentes de seu sistema, são enunciados pela doutrina e descobertos no ato de aplicar o Direito.
Enfim, feito tais considerações, passemos agora a análise principiológica na perspectiva Constitucional, vertente esta de inestimável relevância para consecução dos objetivos desse trabalho acadêmico. Como assenta Luís Roberto Barroso (2009, p. 203) “os princípios – notadamente os princípios constitucionais – são a porta pelo qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico”.
4.2 Perspectiva Constitucional
O Estado de Direito se consolidou ao longo do século XIX na Europa, modelo que separa os poderes e protege os direitos individuais, ideologia esta sublimada pela Revolução Francesa. Na segunda metade do século XX com o fim da Segunda Guerra Mundial erguem-se as Constituições Normativas, sobrepujando o valorativo papel do Direito nessas mudanças sociais.
Nesse novo panorama, para que uma norma jurídica possua validade terminantemente deve estar em conformidade com a Constituição, norma fundamental de todo o sistema jurídico. Tecendo ilações sobre o exposto, Luiz Roberto Barroso dar por certo que:
A validade das leis já não depende apenas da forma de sua produção, mas também da efetiva compatibilidade de seu conteúdo com as normas constitucionais, às quais se reconhece a imperatividade típica do Direito. Mas que isso: a Constituição não apenas impõe limites ao legislador e ao administrador, mas lhes determina, também, deveres de atuação (BARROSO, 2009, p. 244-245).
O grande marco no Brasil desse novo direcionamento foi a Constituição Federal de 1988. É estabelecido, incontroversamente, o caráter humanitário com esteio na nova tábua axiológica idealizada pela justiça distributiva e igualdade substancial, paralelo aos dois postulados fundamentais: dignidade humana e solidariedade social. Nesse contexto, a Carta Magna em seu preâmbulo estabelece que:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL[30].
Deste modo, a Carta Superior não é mais vista como um simples documento essencialmente político, passando a carrear status de norma jurídica inaugural de uma nova era para os direitos humanos. Assim, nos dizeres de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
[...] é certo e induvidoso que a Constituição é a norma suprema do sistema jurídico brasileiro, devendo-lhe obediência, formal e material, todos os demais atos normativos, sob pena de se lhes reconhecer a inconstitucionalidade, com a consequente expulsão do sistema (CRISTIANO; ROSENVALD, 2007, p. 20-21).
Certamente, os princípios estabelecidos no cume mais alto do ordenamento, ou seja, em âmbito Constitucional, são as diretrizes supremas do sistema jurídico brasileira. Tamanha importância é explicada pelo doutrinador Paulo Bonavides:
A inserção constitucional dos princípios ultrapassa, de último, a fase hermenêutica das chamadas normas programática. Eles operam nos textos constitucionais da segunda metade deste século uma revolução de juridicidade sem precedente nos anais do constitucionalismo. De princípios gerais se transforma, já, em princípios constitucionais. [...] Impossível deixar de reconhecer, pois, nos princípios gerais de Direito, conforme veremos, a base e o teor da eficácia que a doutrina mais recente e moderna, em voga nas esferas contemporâneas da Ciência Constitucional, lhes reconhece e confere, escorada em legítimas razões e excelentes argumentos (BONAVIDES, 2009, p. 259).
Compactuando das mesmas ideias são os argumentos de Ruy Samuel Espíndola:
Sem dúvida, a teoria dos princípios é, antes de tudo, um capítulo deveras rico e inovador na teoria jurídica contemporânea, na era do pós-positivismo. [...] A distinção entre regras e princípios como espécie do gênero norma, bem como as demais problematizações dela decorrentes, formam o alicerce para sólida compreensão da atual natureza principialista do Direito Contemporâneo. [...] Assim, é no Direito Constitucional que a teoria dos princípios ampliou o seu raio de circunferência científica, ganhando maior vigor, latitude e profundidade para desenvolver-se, pois seu campo, agora, é o universo das constituições contemporâneas, é o estalão das normas constitucionais, é o da explicitação conceitual e iluminação das positivações normativas de realidades jurígenas mais vastas e complexas, reflexos da estatuição jurídica do político (ESPÍNDOLA, 2002, p. 75-76-77).
Em preciosa análise do tema, Cezar Roberto Bitencourt arremata dizendo:
Poderíamos chamar de princípios reguladores do controle penal princípios constitucionais fundamentais de garantia do cidadão, ou simplesmente de Princípios Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito (itálico conforme texto original). Todos esses princípios são de garantias do cidadão perante o poder punitivo estatal e estão amparados pelo novo texto constitucional de 1988 (art. 5°). [...] Todos esses princípios, hoje insertos, explícita ou implicitamente, em nossa Constituição (art. 5°), têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, um Direito Penal mínimo (itálico conforme texto original) e garantista (BITENCOURT, 2007, p. 10).
Eis o ponto nevrálgico que pretendíamos chegar com o presente artigo: analisar a criminalização da conduta de adquirir substâncias entorpecentes para consumo pessoal imanizada pela luz irradiante dos princípios constitucionais. Até porque, conforme assenta Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2011, p. 125) “a Constituição Federal constitui a primeira manifestação legal da política penal, dentro de cujo âmbito deve enquadrar-se a legislação penal propriamente dita, em face do princípio da supremacia constitucional”.
4.2.1 Princípio da Igualdade ou Isonomia
Consoante exposto anteriormente, a Constituição Federal de 1988 angariou diversos avanços nas proposições relativas aos direitos e liberdades individuais em comparação com as Constituições precedentes. Sem sombra de dúvidas, o princípio da igualdade constitui um dos pilares do direito penal do Estado de Direito ou, se preferir, do direito penal liberal, carreando valores fundamentais da Democracia.
A Carta Maior prevê o princípio da igualdade em seu artigo 5°, caput, prescrevendo:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes[31]:
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em seu artigo 1° também cunhou o referido princípio afirmando que os homens nascem e são livres e iguais em direitos, sendo que as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum[32].
Assim, em sentido formal (isonomia possui intrínseca relação com o princípio da legalidade), poderia ser externalizado pela expressão: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Em apressada interpretação - separada do sentido empírico – poder-se-ia chegar à conclusão de que igualdade seria visualizada apenas em relação à lei (indistinção subjetiva), ou seja, deveria ser aplicada sem levar em consideração as pessoas sob sua égide. Maurício Antônio Ribeiro Lopes explica que:
Entendia-se, por tradição, que a igualdade de todos perante a lei se referia, fundamentalmente, à exigência de igualdade na aplicação da lei. As leis deveriam ser cumpridas sem que se levassem em conta as pessoas que viessem a ser por elas alcançadas (RIBEIRO, 1999, p. 279).
No entanto, qualquer interpretação e aplicação da referida norma desconexa de sua vertente material desaguariam, indubitavelmente, na inconstitucionalidade. Sem hesitação, deve-se buscar a igualdade material e, corroborando o exposto, Pedro Lenza aduz:
Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente dos desiguais, na medida de suas desigualdades. Isso porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei (LENZA, 2008, p. 595).
Essa dissonância interpretativa levou a algumas classificações doutrinárias que se tornaram desnecessárias diante da orientação já delineada pela jurisprudência e doutrina, na qual se busca o tratamento desigual aos desiguais visando à isonomia substancial. Ensina, dessa maneira, Inocêncio Mártires Coelho:
Como, por outro lado, no texto da nossa Constituição, esse princípio é enunciado com referência à lei — todos são iguais perante a lei —, alguns juristas construíram uma diferença, porque a consideram importante, entre a igualdade na lei e a igualdade diante da lei, a primeira tendo por destinatário precípuo o legislador, a quem seria vedado valer-se da lei para fazer discriminações entre pessoas que mereçam idêntico tratamento; a segunda, dirigida principalmente aos intérpretes/aplicadores da lei, impedir-lhes-ia de concretizar enunciados jurídicos dando tratamento distinto a quem a lei encarou como iguais (MENDES; MÁRTIRES; GONET, 2009, p. 179).
Em diversos momentos a Constituição apregoa esta isonomia material, exempli gratia, estabelecendo a igualdade entre os homens e mulheres em direito e obrigações, conferindo às presidiárias condições de permanecerem com seus filhos durante o período de amamentação (artigo 5°, L, da CF). Em outras passagens, o sentido desse princípio deve ser extraído do conjunto sistêmico da Lei Superior, tendo por objetivo a igualdade de oportunidades entre as pessoas.
Indubitavelmente, os seres humanos são desiguais por diversos aspectos, mas, por essência, também podemos ser descritos como criaturas iguais, pois, em cada um de nós existe um sistema biopsicológico destinado a nos proporcionar a existência. Essa pluralidade de ângulos que nos diferem um dos outros constitui a riqueza humana, sendo extremamente salutar. Todavia, nefastos são os efeitos decorrentes das diferenças econômicas e sociais, inviabilizadoras de uma vida saudável e justa.
Enxergando o referido valor na área penal, podemos chegar à conclusão de que as leis estarão sendo aplicadas corretamente quando, pessoas de diferentes níveis sociais e econômicos, depois de realizarem uma conduta típica, serão responsabilizadas de maneira semelhante pelo estatuto correcional. Assim, a Constituição prevê no próprio texto do artigo 5°, caput, a igualdade sem distinção de qualquer natureza, devendo a lei penal ser aplicada de forma equânime independente das distinções acima apontadas.
Realizadas tais considerações, passemos agora a analise do artigo 28 da Lei de Drogas em consonância com o referido princípio. Conforme ficou estabelecido anteriormente, a Lei n.° 11.343/2006 prevê a figura típica do crime de adquirir drogas para consumo pessoal, sedimentando quais as substâncias são consideradas ilícitas por intermédio da Portaria do Ministério da Saúde.
Ora, senão extremamente incongruente, pelo menos deveria causar espanto perante nossos olhos tal descrição ilícita analisada em consonância com o princípio da igualdade. Isso porque, por interlúdio de uma norma penal em branco, determinam-se quais as drogas que são permitidas para consumo e as proibidas, em outras palavras, o que é lícito ou ilícito, quando ambas possuem potencialidade lesiva ao consumidor. Nesse sentido afirma Salo de Carvalho:
A ofensa ao princípio da igualdade estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não-penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias, tendo ambas potencialidade de determinar dependência física ou psíquica. A variabilidade da natureza do ilícito tornaria, portanto, a opção criminalizadora essencialmente moral (CARVALHO, 2010, p. 270).
Não restam dúvidas que, quando se proíbe determinadas drogas com o discurso de que causam danos para quem às utiliza, mas se permite outras substâncias que também causam prejuízos para integridade das pessoas, claramente faz-se sangrar a Constituição notadamente em relação ao princípio da isonomia. O álcool, exemplo de substância lícita, é indutor de tolerância e síndrome de abstinência, em níveis elevados no sangue pode causar náuseas e vômitos, diplopia, coma, hipotermia e morte por parada respiratória.
Em sendo o real objetivo com a proibição de certas drogas a preocupação com a saúde pública, congruente seria também a decisão de vedar todas as substâncias que de uma forma ou de outra causassem efeitos deletérios para o organismo humano. Como pensamos que a resposta para essa afirmativa é negativa, dever-se-iam possibilitar o consumo de todas aquelas substâncias que provoquem efeitos equivalentes às permitidas, só assim estaria respeitando a tão obnubilada isonomia constitucional. Nesse ponto, são precisas as lições de Lycurgo de Castro Santos:
Desse modo, cremos que ou o legislador proíbe a utilização de todos os tipos de estupefacientes que cientificamente comprovados prejudicam de maneira mais ou menos uniforme a saúde, ou permite o uso e o consumo de todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, provocam em quem os utiliza situações em certo grau equivalentes. O que não pode ocorrer, desde uma perspectiva penal, é uma diversidade de tratamento que compromete seriamente esse princípio constitucional (LYCURGO, Tóxicos, pp. 123/124 apud CARVALHO, 2010, p. 270).
Aduz-se, então, a patente inconstitucionalidade da criminalização da conduta de adquirir/portar drogas para consumo pessoal em face do princípio da igualdade, realizando, isto sim, uma discriminação legislativa. Merecem serem destacadas as ilações proferidas por Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1999, p. 279) no sentido que “o referido princípio não proíbe que a lei estabeleça distinções, mas que estas não sejam discriminatórias dando tratamento desigual fundado em categorias meramente subjetivas”.
A partir dessa circunspecção é insustentável juridicamente a referida proibição legal prevista no artigo 28 da Lei Antidrogas. Imiscuindo-se no tema sobre o manto do princípio da igualdade, inquestionavelmente situações similares em consequências advindas com a utilização das drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, são arbitrariamente cuidadas pelo poder legiferante, consubstanciando um verdadeiro moralismo criminalizador.
4.2.2 Direito à Privacidade
Previsto como um direito dos cidadãos, a privacidade vem expressa no artigo 5°, inciso X, da Constituição Federal, consubstanciando um mínimo de garantia contra as ingerências ilegais na vida íntima das pessoas. Dessa forma, o referido artigo aduz o seguinte:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação[33];
Igualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XII, regulamenta a matéria:
XII - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques[34].
Imperioso observar que a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, regulou expressamente o referido princípio. A doutrina e a jurisprudência inferem dos artigos acima mencionados uma diferenciação entre o direito a intimidade e o relativo à vida privada. Não obstante, ambos se assemelham e, quanto se tem o desiderato de distingui-los, verifica-se uma maior ou menor amplitude das referidas normas jurídicas. Delineando essa variabilidade terminológica sustenta Manuel Gonçalves Ferreira Filho que:
Os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada (itálico conforme texto original) apresentam grande interligação, podendo, porém, ser diferenciados por meio da menor amplitude do primeiro, que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto vida privada envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo etc. (GONÇALVES, 1997, p. 35).
No mesmo sentido são os ensinamentos de Paulo Gustavo Gonet Branco:
Embora a jurisprudência e vários autores não distingam, ordinariamente,entre ambas as postulações — de privacidade e de intimidade —, há os que dizem que o direito à intimidade faria parte do direito à privacidade, que seria mais amplo. O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas (MENDES; MÁRTIRES; GONET, 2009, p. 420).
Inobstante a clareza de opiniões acima proferidas, alguns autores preferem se referir aos princípios da intimidade e da vida privada como espécies do gênero direito à privacidade. Este, na hipótese ventilada, seria uma norma jurídica prenhe de significados, assim, não é outro o entendimento de José Afonso da Silva:
De fato, a terminologia não é precisa. Por isso, preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido genérico amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou (AFONSO, 2005, p. 206).
Em convergência de entendimentos afirma Dirley da Cunha Júnior:
A novel ordem constitucional oferece, expressamente, guarida ao direito à privacidade, que consiste fundamentalmente na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida particular e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade e intimidade de cada um, e também proibir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial humano (JÚNIOR, 2008, p. 636).
Tércio Sampaio Ferraz com clarividência de ideias explicita sua opinião:
Um direito subjetivo fundamental, cujo titular é toda pessoa, física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente ou em trânsito no país; cujo conteúdo é a faculdade de constranger os outros ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que, por só a ele lhe dizerem respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão; e cujo objeto é a integridade moral do titular (SAMPAIO, 1992, p. 77).
A intimidade constitui uma esfera intangível das pessoas (salvo algumas exceções), legitimadora, só para ilustrar, dos segredos que escolhemos não compartilhar. Em havendo transgressões a esse direito fundamental, incidirão sanções cíveis e criminais sobre o autor do fato, até porque se trata de uma prerrogativa imprescindível para o desenvolvimento da personalidade das pessoas.
Com relação à vida privada, esta seria um garantia de independência dos indivíduos de viverem sua existência da forma que bem entenderem. Nesse sentido, são precisas as palavras de José Afonso da Silva:
[...] como conjunto de modo de ser e viver, como direito de o indivíduo viver sua própria vida. Parte da constatação de que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro voltado para o interior. A vida exterior, que envolve as pessoas nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública. A vida interior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus amigos, é a que integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da Constituição (AFONSO, 2005, p. 208).
Evidente, pois, que apesar das diferenciações terminológicas, o direito à privacidade abrange todos aqueles atributos pessoais garantidores de uma vida íntima e digna. Dessa maneira, constitui o gênero do qual decorrem direitos como a imagem, segredos de trabalho, hábitos, o nome, as relações familiares, os pensamentos e etc.
Para realizar na prática os anseios apregoados em um Estado Democrático, necessário honrar e valorizar os fatores subjetivos dos seres humanos, percorrendo, dessa maneira, na direção do progresso, limitando a ingerência estatal em vista do desenvolvimento dos indivíduos. Em consonância com essa extensão ideológica, a criminalização da conduta de consumir substância modificadora dos sentidos humanos, a nosso viso, constitui intervenção indevida na vida privada e íntima das pessoas.
As legislações proferidas em âmbito nacional e internacional criminalizadoras da referida conduta não subsistem a partir da análise do texto constitucional. Repisando essa afirmação são as conclusões de Maria Lúcia Karam:
A desautorizada interferência na vida privada manifesta-se claramente em legislações nacionais que, como a brasileira, reproduzem a imposição explicitamente criminalizadora da Convenção de Viena. Observa-se que as regras do artigo 28 da Lei 11.343/2006 mantêm a criminalização da posse para uso pessoal das drogas tornadas ilícitas, apenas afastando a imposição de pena privativa de liberdade, para cominar a tal conduta as penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, admoestação e multa (KARAM, 2009, p. 30).
Aliás, aproveitando o ensejo, pretensões surgiram objetivando dar fé a fantasia de que a partir da entrada em vigor do novel diploma (Lei n.° 11.343/06) os consumidores de drogas não iriam mais à prisão, como forma de nos conformar com a nova legislação interventiva. Ledo engano, isso porque o não encarceramento já ocorria com a Lei n.° 6.368/76 que cominava pena de 06 meses a 02 anos e, por causa daquela pena máxima, a conduta se enquadrava como de menor potencial ofensivo aplicando-se a Lei n.° 9.099/95 (Juizados Especiais), introdutora da transação penal e da suspensão condicional do processo.
Outra questão a ser abordada em relação ao princípio ora analisado, diz respeito à separação entre o que faz parte do Direito e o que não esta compreendida nesta esfera. Assim, salienta Salo de Carvalho que um dos grandes fundamentos da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas reside nessa questão:
Os direitos à intimidade e à vida privada instrumentalizam em nossa Constituição o postulado da secularização que garante a radical separação entre direito e moral. Neste aspecto, nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervir nas opções pessoais ou se impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralismo, da tolerância e do respeito à diversidade, blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera da interioridade (CARVALHO, 2010, p. 270).
Vale repisar que na atual conjuntura em que vivemos, qual seja, sobre a égide de um direito penal liberal, não podemos nos resignar com a definição pelo Estado de padrões de comportamento pertencentes à esfera privada das pessoas. Mesmo que a conduta em comento interfira na saúde dos indivíduos que a realizam, não deve ser objeto de regulamentação pelo Direito Penal, ingerência esta inadmissível em um Estado Democrático de Direito.
Destarte, em consonância com o quanto exposto, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu o seguinte acórdão:
[...] O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.
Parece-nos, pois, que os aplicadores do direito começam a observar os equívocos perpetrados pela atual ordem jurídica, indubitavelmente, pela função interpretativa conferida pelos princípios, possibilitando a correção de eventuais enganos perpetrados pelo legislador em sua função político-criminal. Ressaltando o valor desta garantia fundamental, Salo de Carvalho em livro dedicado ao debate das reformas penais afirma:
Os princípios da inviolabilidade da intimidade e do respeito à vida privada (art. 5°, inciso X), aliado a outros dispositivos análogos [...] representam verdadeira pedra angular de um sistema jurídico democrático, pois fornecem, no aspecto processual, uma ferramenta pródiga de legitimação/deslegitimação da ação (ou omissão) do poder estatal (atividade legiferante, administrativa e/ou judicial) em sua relação com o “ser” do cidadão. Ou seja, por serem princípios diretamente ligados aos direitos de personalidade, determinam a esfera de não intervenção dos Poderes Públicos. Lembre-se que o respeito destes princípios possibilita não apenas a averiguação dos níveis de legitimidade do sistema, mas os graus de justiça e validade de toda estrutura jurídica infraconstitucional (BUENO; CARVALHO, 2005, p. 153).
Segundo Maria Lúcia Karam (2009, p. 33) “condutas desta natureza dizem respeito tão somente às escolhas pessoais, ao campo em que a liberdade do indivíduo é absoluta não podendo ser objeto de qualquer intervenção”. Portanto, a liberdade individual conferida às pessoas possibilita, da forma como elas bem entenderem, o desenvolvimento da esfera íntima (desde que não interfiram em outras pessoas), logo, a contumácia ingerência por parte do Estado nesse direito fundamental constitui patente inconstitucionalidade.
4.2.3 Princípio da Lesividade ou Ofensividade
Questão imprescindível para compreensão desde princípio e da própria Ciência Jurídica diz respeito ao Direito e a Moral. Em primeiro momento, até por conta da inteligibilidade do assunto, teremos que salientar as discussões acerca do que podemos inserir dentro do âmbito dogmático-jurídico e o que está fora desse contexto.
A princípio, o Direito e a Moral possuem algumas similaridades, pois, nos dizeres de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2007, p. 370) “ambos têm caráter prescritivo, vinculam e estabelecem obrigações numa forma objetiva, isto é, independentemente do consentimento subjetivo individual”. Não obstante, eles não se confundem, e traçar essas desigualdades não é tarefa das mais simples.
Desta forma, uns dos critérios diferenciadores aceitos pela doutrina correspondem à exterioridade e alteridade do direito. Como restará demonstrado, podemos colimar uma grande dessemelhança entre os preceitos morais e as normas jurídicas muito em decorrência daquelas duas características.
A saber, fatos sociais possuirão importância jurídica se causarem algum tipo de lesão (ou perigo concreto de lesão) a bem jurídico de outrem, ao passo que comportamentos internos estão fora dessa análise. Nessa feita, para que as manifestações humanas obtenham pertinência jurídica, deveras transpassar as introspecções pessoais (exterioridade) lesando direito de outrem (alteridade). Esse desiderato é corroborado por Nilo Batista:
No direito penal, à conduta do sujeito autor do crime deve relacionar-se, como signo do outro sujeito, o bem jurídico (que era objeto da proteção penal e foi ofendido pelo crime – por isso chamado de objeto jurídico do crime). [...] À conduta puramente interna, ou puramente individual – seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente – falta a lesividade (itálico conforme texto original) que pode legitimar a intervenção penal (BATISTA, 2007, p. 91).
Curial ressaltar que a diferenciação acima apontada não pode ser vista como verdade inconteste, de fato, motivos e intenções são proeminentemente relevantes para o Direito Penal, basta rememorarmos as questões atinentes aos elementos subjetivos do crime consistentes no dolo e na culpa. Do mesmo modo, a moral não é alheia à exterioridade da conduta, até mesmo quando a intenção é boa pode ser pranteada. Explicando estas características, Tércio Sampaio Júnior aduz:
A despeito da objeção apontada, há uma diferença importante entre a norma jurídica e o preceito moral. Enquanto aquela admite a separação entre a ação motivada e o motivo da ação, o preceito moral sempre os considera solidariamente. Isto é, o direito pode punir o ato independentemente dos motivos - por exemplo, nos caso de responsabilidade objetiva – mas isto não ocorre com a moral, para a qual a motivação e ação motivada são inseparáveis (TÉRCIO, 2007, p. 371).
Por consequência - inobstante a advertência realizada no parágrafo anterior - questões que não ultrapassem o âmago dos indivíduos, terminantemente devem ficar restritas à moral. Nessa dimensão ideológica, a partir do momento que nós, seres humanos, pudermos resolver nossos problemas sem afetar bem jurídico alheio por intermédio do dano (ofensividade), o direito não deve intervir. Repisando esse raciocínio, Roxin infere a seguinte ilação:
[...] só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direito de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral [...] o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos (1981, p. 25 e 28 apud BATISTA, 2007, p. 91).
Outro argumento assaz utilizado diz respeito aos efeitos decorrentes da inobservância das regras jurídicas, nesse caso, será infligida ao contraventor uma sanção expressamente prevista na lei (coerção). Diferentemente, os preceitos morais podem ser realizados espontaneamente ou não por estar inserido no íntimo das pessoas e, em havendo vitupério, o castigo não advém de seu conteúdo.
Inobstante as características acima esposadas, os institutos convergem em algumas situações, até porque a Justiça enquanto fim almejado pelo direito nada mais é do que um princípio moral regulativo (e não constitutivo). Doravante, passemos a análise do crime de adquirir/trazer consigo drogas para consumo pessoal, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, em face do princípio da lesividade.
O pressuposto lesividade, altaneiro para constituição de crimes, evidencia o porquê da diferenciação supramencionada. Nos dizeres de Rogério Greco (2008, p. 53) “remonta ao período iluminista, que por intermédio do movimento da secularização, procurou desfazer a confusão que havia entre direito e moral”. Extraído do artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, explicita que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”[35].
Alguns doutrinadores preferem discorrer acerca do escopo fundamental do Estado Democrático de Direito, a saber, a Dignidade Humana, para referendarem o referido princípio. A norma jurídica da lesividade apregoa que, para o legislador erigir uma conduta humana a crime, faz-se imperioso que haja efetiva lesão ou, ao menos, um perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado.
Nessa senda, bem jurídico nos dizeres de Cezar Roberto Bitencourt (2007, p. 07) pode ser definido “como o valor da vida humana protegido pelo Direito, e, como o ponto de partida da estrutura do delito é o tipo de injusto, representa a lesão ou perigo de lesão do bem juridicamente protegido”. Prenhe de significados, este conceito revela ser imanente ao fato delitógeno a ofensa ou ameaça concreta de dano a um valor relevante ao Direito.
Constata-se, nesses termos, consoante expõe Fernando Capez (2004, p. 25) que “não há crime quando a conduta não tiver oferecido ao menos um perigo concreto, real, efetivo e comprovado de lesão à bem jurídico”. Trazendo à baila as principais funções do princípio da ofensividade, Nilo Batista ensina que:
Podemos admitir quatro principais funções do princípio da lesividade. Primeira: proibir a incriminação de uma atitude interna [...] Segunda: proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor [...] Terceira: proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais [...] proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico (BATISTA, 2007, pp. 92, 93 e 94).
Merece ser dito o reflexo deste princípio em dois planos distintos: um direcionado ao legislador, delimitando as condutas que podem ser proibidas, e o outro destinado ao operador do direito na sua função interpretativa, adequando as normas aos princípios norteadores do Estado de Direito.
Acontece que, a semelhança do flutuar da areia entre os dedos sob a forte influência de uma ventania, o discurso legitimador do delito previsto no artigo 28 da Lei de Drogas degenera a teoria criminal acima coligida. Esta criminalização se atrela aos seguintes fundamentos: a) consistir em um crime de perigo abstrato e; b) tutelar o bem jurídico saúde pública. Nas instruções de Rogério Greco crime de perigo abstrato:
[...] também reconhecido como de perigo presumido, em que basta a prática do comportamento previsto pelo tipo para que a infração penal reste consumada, independentemente da produção efetiva de perigo ao bem juridicamente tutelado, a exemplo do que ocorre com a posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 14 da Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003), bem como o art. 306 do Código de Trânsito brasileiro que, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei n° 11.705, de 19 de junho de 2008, que presume o perigo do comportamento daquele que é surpreendido conduzindo veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (GRECO, 2012, p. 39).
Nesse ponto, torna-se irrelevante para configuração de um crime de perigo abstrato um dano real, concreto, ao valor que se pretende tutelar com a norma, visto que, na maioria das vezes não são bens jurídicos palpáveis, como o exemplo da saúde pública. Esses bens coletivos justificam a intervenção estatal sobre o fundamento de que, nesses casos, os indivíduos não podem dispô-los sem afetar os demais titulares.
Denominados de crimes vagos, não possuem vítimas determinadas. Dessa maneira, na lição de Damásio de Jesus (1994, p. 184) “são os que têm por sujeito passivo entidades sem personalidade jurídica, como a família, o público ou sociedade. Ex: ato obsceno (CP, art. 233)”.
Eis julgado da Turma Recursal do Rio Grande do Sul que corrobora as teorias legitimadoras do crime previsto no artigo 28 da Lei Antedrogas:
POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI 11.343/2006. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA.POSSE DE ENTORPECENTES. Constitucionalidade do art. 28, da Lei de Drogas. A quantidade de entorpecente apreendida com o acusado já presume ameaça a bem jurídico que extrapola a individualidade estrita do agente possuidor. Conduta típica. Absolvição. Prova judicialmente produzida se mostra insuficiente a dar suporte à sentença condenatória. Art. 386, inc. VII, do CPP.RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71002404556, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Newton Luís Medeiros Fabrício, Julgado em 22/02/2010).
No mesmo sentido, podemos visualizar outro julgado proferido pela Turma Recursal Criminal do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI Nº. 11.343/2006. CONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO. Inexiste inconstitucionalidade, porquanto o art. 28 da Lei de Drogas tenha como objetivo tutelar a saúde pública, que se reveste do caráter de direito coletivo, sobrepondo-se ao direito individual daquele que utiliza substância entorpecente. A conduta de quem porta substância entorpecente, mesmo que ínfima a quantidade, afigura-se típica, o que se constitui em característica do delito em questão. Não se cogita quanto à descriminalização da conduta em face do advento da lei nº. 11.343/06. A infração tipificada no artigo 28 da Lei de Drogas se caracteriza como de menor potencial ofensivo, comportando a aplicação de penas mais brandas, dentre as quais não se insere a privação de liberdade, o que não significa a descriminalização da conduta. Jurisprudência majoritária que vê no cometimento do delito em questão dano à saúde pública, bem jurídico tutelado, não se abrindo espaço, portanto, para a aplicação do Princípio da Insignificância (Recurso Crime N° 71003823838, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Fábio Vieira Heerdt, Julgado em 07/08/2012).
Data vênia, tal linha ideológica não encontra mais espaço diante do contexto teórico que estamos encartados. Em uma ordem jurídica pautada pelo Estado Democrático de Direito, somente na hipótese (salvo algumas exceções) de efetiva e concreta investida contra interesse social relevante, estar-se-ia justificada alguma repressão penal (salvo hipóteses excepcionais, como o porte de arma de fogo de forma irregular). Não é outro o motivo que, no entender de Cezar Roberto Bitencourt:
Por essa razão, são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado. Em outros termos, o legislador deve abster-se de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar e perigo concreto o bem jurídico protegido pela norma penal. Sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal (BITENCOURT, 2007, p. 22).
Objetivando impedir que a soberania do Estado, na sua mais alta expressão, a da Justiça, reduza-se a arbitrariedades, e traçando os contornos necessários para mínima garantia dos direitos fundamentais, evidenciando a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, aduz Luigi Ferrajoli:
O mesmo pode-se dizer dos denominados “delitos de perigo abstrato” ou “presumido”, nos quais tampouco se requer um perigo concreto, como “perigo” que corre um bem, senão que se presume, em abstrato, pela lei; dessa forma, nas situações em que, de fato, nenhum perigo subsista, o que se castiga é a mera desobediência ou a violação formal da lei por parte de uma ação inócua em si mesma. Também estes tipos deveriam ser reestruturados, sobre a base do princípio da lesividade, como delitos de lesão, ou, pelo menos, de perigo concreto, segundo mereça o bem em questão uma tutela limitada ao prejuízo ou antecipada à mera colocação em perigo (FERRAJOLI, 2002, p. 383).
Corroborando a opinião do doutrinado contrária ao denominados crimes de perigo abstrato instituidores de presunções dentro do Direito Penal, Luiz Flávio Gomes afirma:
Em virtude do princípio da ofensividade, de outro lado, está proibido no direito penal o perigo abstrato. Porte de arma de fogo quebrada ou desmuniciada: para quem não considera o princípio da ofensividade, há crime. Essa concepção, entretanto, segundo nosso ponto de vista, é inconstitucional (não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais) [...] O aspecto valorativo da norma fundamenta o injusto penal, isto é, só existe crime quando há ofensa concreta a esse bem jurídico. Daí se conclui que o crime exige, sempre, desvalor da ação (a realização de uma conduta) assim como desvalor do resultado (afetação concreta de um bem jurídico). Sem ambos os desvalores não há injusto penal (não há crime). Contrariando praticamente toda doutrina do século XX, essa é a nossa clara posição a respeito do assunto (GOMES, 2006, p. 116).
Não se podem punir os seres humanos por intermédio de fatos que aos olhos de outrem constitua mera imoralidade, ainda mais com a utilização de uma ferramenta causadora de transtornos irreversíveis como é o caso do Direito Penal. Inconcebível, pois, por meio de interposto conjunto de frases se legitimarem o entendimento de que o ato de adquirir/portar substâncias entorpecentes para consumo pessoal causaria riscos por si só a coletividade. Inconformado quanto a isso, Salo de Carvalho faz a seguinte ilação:
O discurso da periculosidade presumida do ato (expansividade) e do escopo da Lei em tutelar interesses coletivos e não individuais permite, inclusive, que a posse de pequena quantidade de droga seja objeto de incriminação. A impossibilidade de constatação empírica das teses de legitimação do discurso criminalizador, decorrente sobretudo da intangibilidade do bem jurídico, por si só desqualifica a manutenção da opção proibicionista (CARVALHO, 2010, p. 267).
Como o próprio dispositivo especifica, a conduta prevista no artigo 28 da Lei de Drogas se destina a consumo pessoal, logo, poderá haver danos à saúde do próprio consumidor. Fato esse que evidencia a inexistência de expansividade do perigo, não existindo ofensa à saúde pública quando o único afetado é o usuário de drogas.
Nessa linha ideológica, não há como negar a contraposição entre ofensa ao bem jurídico abstrato “saúde pública” e a aquisição ou posse para uso pessoal de drogas, isso porque, a dilatação do perigo é incompatível com a destinação individual. Com identidade de raciocínio afirma com clarividência de ideias Maria Lúcia Karam:
A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal (KARAM, 1991, p. 126).
O Estado por interlúdio dos direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição Federal se autolimitou, freando o ímpeto intervencionista que por ventura tenha existido em um dado momento histórico. Sem sombra de dúvidas a conduta que tem como fim a utilização de drogas consubstancia autolesão que, a exemplo do suicídio, não deve ser erigida a crime, decerto, a única lesão ocasionada se direciona ao próprio autor, nesse sentido Maria Lúcia Karam:
A simples posse das drogas tornadas ilícitas para uso pessoal, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros, são condutas que dizem respeito unicamente ao indivíduo, à sua intimidade e às suas opções pessoais. Não estando autorizado a penetrar no âmbito da vida privada, não pode o Estado intervir sobre condutas de tal natureza [...] (KARAM, 2009, p. 29).
Em arremate, salientando a imprescindibilidade do princípio em comento, até porque constitui limite à intervenção na esfera privada das pessoas, pugna Guilherme de Souza Nucci:
Defendemos, portanto, que a ofensividade ou lesividade deve estar presente no contexto do tipo penal incriminador, para avaliá-lo, legitimá-lo, sob pena de se esgotar o Direito Penal em situações inócuas e sem propósito [...] a ofensividade é um nítido apêndice da intervenção mínima ou subsidiariedade do Direito Penal Democrático (NUCCI, 2007, p. 74/75).
O princípio da lesividade constituiu qualitativamente umas das maiores conquistas dos indivíduos em sociedade, ao passo que constitui óbice à intervenção Estatal nas liberdades de pensamento, ideologias políticas, filosóficas, de crença, e etc. Em outras palavras, conforme esclarece Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 26), “essas liberdades constitucionais individuais devem ser objeto da maior garantia positiva como critério de criminalização e, inversamente, da menor limitação negativa como objeto de criminalização por para do Estado”.
Como explicita Salo de Carvalho (2010, p. 268) “mecanismos retóricos abstratos de legitimação da punição aos usuários produz significativa violência ao núcleo constitucional que deveria sustentar o direito penal”. Menoscabar o trato com a saúde das pessoas e criminalizar a conduta com a justificativa de uma pseudo tutela de interesses coletivos, consubstancia assinar atestado de incompetência referente às políticas públicas de redução dos danos. Com o atual sistema criminal de drogas vivenciamos o modelo de direito penal do autor, onde todo o usuário poderia se tornar em algum momento traficante.
4.2.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
É sabido por todos que a Constituição Federal de 1988 sistematizou regras jurídicas referentes à forma de Estado, à forma de Governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, bem como ao estabelecimento de seus órgãos e aos limites de suas ações. Aquela, também chamada de Constituição-Garantia, visa garantir a liberdade dos seus governados por meio da limitação do próprio poder. Dessa maneira, vivemos sob a égide da democracia que, conforme assenta Inocêncio Mártires Coelho:
[...] no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurara aos cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos (MENDES; MÁRTIRES; GONET, 2009, p. 171).
Extraída do texto constitucional, a Dignidade Humana evidencia um dos grandes pilares do nosso corpo jurídico de normas, arrimando, fundamentalmente, o Estado Democrático de Direito. Dessa forma, delineando os contornos da República Federativa do Brasil, aduz o artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal que, dentre os seus princípios democráticos a dignidade da pessoa humana estabelece garantia de incomensurável importância, destinada a assegurar uma ordem social equânime e pacífica.
O primeiro reconhecedor do princípio ora esboçado foi o filosofo de Königsberg, Immanuel Kant, um dos maiores expoente na seara da Ciência Ética. Em artigo dedicado ao tema, Victor Santos Queiroz (2005, p. 1) afirma que “Kant foi o primeiro a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor (preço), devendo ser considerado um fim em si mesmo e em função da sua autonomia enquanto ser racional”[36].
Destarte, o conjunto sistemático de ideias sobre os direitos humanos, construído posteriori à Segunda Guerra Mundial, consubstancia resposta aos regimes totalitários (grande parte responsáveis pelos conflitos) cuja ideologia prescinde os direitos e ressalta os deveres diante do Estado. Kant foi o defensor da liberdade inerente aos indivíduos, seres racionais e submetidos às leis morais, fundamentando todo o sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
Immanuel é taxativo ao afirmar a impossibilidade de conceber qualquer coisa no mundo, ou mesmo fora dele, que possa ser considerada boa sem qualificação, exceto uma boa vontade, aquela dirigida pelo imperativo categórico. Por conta disso, fundamenta que os seres humanos são fins em si mesmo, pois não se concebe a sua vinculação como meio destinado a alcançar outros fins que não sejam os endomorais.
Dessa maneira, a Dignidade Humana se identifica como uma meta geral a ser alcançada fundamentando o Estado Democrático de Direito. Luiz Flávio Gomes inscreve de modo seguro que:
[...] esse princípio é a base de todos os demais, assim como do próprio modelo de estado que adotamos (Estado Constitucional e Democrático de Direito – CF, art. 1°, III). De qualquer maneira, no âmbito penal, cabe destacar o seguinte aspecto da sua força normativa: nem a lei e muito menos a pena pode ser ofensiva à dignidade humana sob pena de inconstitucionalidade patente (GOMES, 2006, p. 120/121).
Para Alexandre de Morais o referido princípio:
[...] concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das funções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estado jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAIS, 2008, p. 22).
Destacam-se, desta maneira, duas funções exercidas pelo princípio in concreto, enquanto direito pertencente a indivíduos determinados e como um valor absorvido por toda uma ordem social. As pessoas devem ser consideradas dignas seja qual for o objetivo colimado, somos sujeitos de direitos e não meros objetos.
A tipificação penal e o tratamento criminal dispensado ao adquirente/portador de drogas para consumo pessoal caminham na contramão dos preceitos estabelecidos acima, desrespeitando diretos imanentes aos seres humanos. Assim sendo, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana constitui a viga mestra de todos os direitos constitucionalmente consagrados, como a liberdade, igualdade, intimidade, a privacidade, dentre outros.
Claramente, quando o legislador delibera em criminalizar condutas prenhes de significados pessoais, mesmo que questionados a partir da moralidade, abnega-se o referido fundamento constitucional. Consoante insta Mauricio Antônio Ribeiro Lopes:
[...] somente as infrações mais graves da ordem social devem ser eleitas pelo Direito Penal como objeto de sua incidência [...] a importância da lesão do ordenamento jurídico (fundamentalmente a hierarquia do bem jurídico lesado) é codeterminante da gravidade do fato. Portanto, fatos que afetem bens jurídicos de pouco valor ou que importam lesões de pouca significância não poderão ser reprimidos [...] (RIBEIRO, 1999, pp. 254/256).
Continua o supracitado autor afirmando que (1999, p. 243) “muito embora a tutela dos direitos fundamentais do homem tenha sido expressa na Constituição, a nosso ver, carece de maior amplitude e pormenorização aos direitos preservados”. Nesse diapasão, respeitar a dignidade da pessoa humana pressupõe a proteção dos direitos e garantias fundamentais. A liberdade não pode ser vista como um simples direito de existência, devendo ser intangível às escolhas individuais, seja lá qual o fator determinante para tal, desde que, evidentemente, sejam respeitados os bens jurídicos alheios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hodiernamente, mesmo que de forma vagarosa, podemos enxergar mudanças em várias partes do mundo na forma de conviver com as drogas. Ao longo dos tempos, observa-se que o debate acerca da questão tem ganhado contornos moralistas, maniqueísta, soando esdrúxula a dificuldade de nos relacionarmos com o tema quando verificamos que o uso das substâncias estupefacientes remonta aos tempos pré-históricos, onde os indivíduos buscavam alimentos e descobriam plantas psicoativas.
Nota-se que alguns comportamentos sociais que antes não eram tolerados e, por consequência, criminalizados, passam a ser aceitos pela comunidade como uma forma de adequação social da conduta, como exemplo pode ser citado o álcool na década de 30. O legislador, ao visualizar a malversação na manutenção do tipo criminal no ordenamento jurídico, cassa sua previsão como delito ocorrendo a denominada abolitio criminis.
Sem sombra de dúvidas, de igual importância é o papel do operador do direito na perspectiva de minimizar a criminalização e efetivar a Constituição Federal, especialmente devido à densificação do constitucionalismo no século XX. A partir daí, aquele diploma altera a percepção do ordenamento jurídico, passando a servir de filtro a produção legislativa infraconstitucional, ou seja, exercendo seu papel em um Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, no sentido de proceder à máxima efetividade das regras e dos princípios constitucionais, inicia-se o desprendimento acerca da legalidade estrita, criticando-se o saber derivado do positivismo dogmático. Merece ser dito o excelso papel da criminologia crítica nos sintomas sociais contemporâneos, mormente em relação às drogas, cujo campo de estudo desemboca nas questões atinentes aos desvios puníveis.
As normas legais têm de ser, imperiosamente, interpretadas à luz da Constituição Federal de 1988 e, no caso do crime em tela deve ser reinterpretado para se adequar ao desiderato do Estado Democrático. Consoante fora construído nesse trabalho, a criminalização do adquirir/portar estupefacientes para uso pessoal não resiste após sua análise crítica com base nos princípios constitucionais da igualdade, da privacidade e intimidade, da lesividade e da dignidade humana.
No caso em tela, justificar a intervenção penal sob o fundamento de tutelar a saúde pública, discurso retórico legitimador da repressão aos usuários, faz sangrar a núcleo constitucional que deveria dar sustentáculo ao Direito Penal. Sobrepor suposto interesse coletivo em detrimento à saúde individual constitui exclusão social e violência, principalmente nas camadas mais vulneráveis da sociedade.
A descriminalização possibilita estudar políticas públicas mais eficientes e racionais para controlar o uso de substâncias psicoativas. Deve-se buscar trazer para perto do Estado os diretamente envolvidos com o problema para que, por intermédio de uma relação de confiança, o consumidor se sinta seguro em abolir as drogas de suas vidas.
Aliás, aproveitando o ensejo, vale ressaltar a existência do requerimento n° 756/2011, combinado com o requerimento n° 1.034/2011, que objetiva instituir um novo Código Penal que regulamentará, dentre várias matérias, as questões atinentes às drogas. Assim, há previsão de descriminalizar as condutas de plantar, adquiri ou trazer consigo drogas, desde que para consumo pessoal, sendo este caracterizado pela quantidade média da substância para consumo em cinco dias, sendo criada uma presunção legal.
Para respeitarmos o Estado Democrático de Direito, deve-se promover uma sociedade equânime que prime pelo reconhecimento da diversidade de valores e comportamentos, ora, democracia é justamente isso, tratar de forma igual e garantir o respeito às minorias ideológicas, até porque todos os seres humanos estão imantados pela dignidade humana.
Não obstante o adquirir/portar drogas para consumo pessoal ainda ser considerado crime pelo Supremo Tribunal Federal, ressalta-se que a Corte Superior se debruça sobre o Recurso Extraordinário (RE) 635659 em que se discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Pedido de vista do ministro Teori Zavascki suspendeu o julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral.
Em voto-vista apresentado ao Plenário, o ministro Fachin se pronunciou pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, que criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal, restringindo seu voto à maconha, droga apreendida com o autor do recurso. O ministro explicou que, em temas de natureza penal, o Tribunal deve agir com autocontenção, “pois a atuação fora dos limites circunstanciais do caso pode conduzir a intervenções judiciais desproporcionais”.
O ministro Roberto Barroso também limitou seu voto à descriminalização da droga objeto do RE e propôs que o porte de até 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis plantas fêmeas sejam parâmetros de referência para diferenciar consumo e tráfico. Portanto, sinaliza a Suprema Corte de considerar inconstitucional o portar/adquirir drogas para consumo pessoal seguindo uma tendência mundial em considerar a derrocada da guerra contra as drogas, causadora de milhares de mortes a cada ano no Brasil e no mundo.
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[1] Expressão entendida como “fale baixo”.
[2] [...] a uma ideologia caracterizada por uma concepção abstrata e ahistórica da sociedade onde se destacam fundamentalmente os princípios do bem e do mal e da culpabilidade, necessária nesse momento como centralizadora e unificadora das normas universais que ser impostas.
[3] O governo dos EUA também pressionou essas ditaduras para declarar guerra à droga, em uma primeira versão intimamente ligada à segurança nacional: o comerciante era um agente que visa enfraquecer a sociedade ocidental, o jovem que fumou maconha era um subversivo, é confuso e identificou os guerrilheiros com traficantes de drogas (narcoguerrilla), etc Quando ele se aproximou da queda do Muro de Berlim, um outro inimigo era necessário para justificar a alucinação de uma nova guerra e manter altos níveis de repressão. Isto foi reforçado pela guerra contra as drogas.
[4] Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1240.htm>. Acesso em 25 Agost. 2012.
[5] Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/legis/decreto_lei/891_38.htm>. Acesso em 28 Agost. 2012.
[6] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 30 Agost. 2012.
[7] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 01 Set. 2012.
[8] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 05 Set. 2012.
[9] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 05 Set. 2012.
[10] Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo456.htm>. Acesso em: 15 Set. 2012.
[11] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 15 Set. 2012.
[12] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 15 Set. 2012.
[13] Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/legis/portarias/344_98.htm>. Acesso em 05 Agost. 2012.
[14] Disponível em: . Acesso em 05 de Agost. 2012.
[15] Disponível em: . Acesso em 07 Agost. 2012.
[16] Disponível em: <http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11250&rastro=INFORMA%C3%87%C3%95ES+SOBRE+DROGAS/Defini%C3%A7%C3%A3o+e+hist%C3%B3rico>. Acesso em 10 Agost. 2012.
[17] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 15 Agost. 2012.
[18] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 16 Agost. 2012.
[19] Disponível em: . Acesso em 08 nov. 2012.
[20] Disponível em: <http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11251&rastro=INFORMA%C3%87%C3%95ES+SOBRE+DROGAS/Padr%C3%B5es+de+uso>. Acesso em 08 nov. 2012.
[21] Disponível em: <http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm.php>. Acesso em 08 nov. 2012.
[22] Disponível em: . Acesso em 08 nov. 2012.
[23] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 25 Out. 2012.
[24] Disponível em: . Acesso em: 25 Out. 2012.
[25] Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/1060/o-fundamento-da-existencia-do-processo-penal>. Acesso em 24 setem. 2012.
[26] Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=princ%C3%ADpio>. Acesso em 26 Set. 2012.
[27] Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=princ%C3%ADpio>. Acesso em 26 Set. 2012.
[28] Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/7527/normas-regras-e-principios>. Acesso em 27 Set. 2012.
[29] “Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas existentes. Portanto os princípios são mandamentos de otimização”.
[30] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 02 Out. 2012.
[31] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 03 Out. 2012.
[32] Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em 04 Out. 2012.
[33] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 05 Out. 2012.
[34] Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 05 Out. 2012.
[35] Disponível em: . Acesso 10 Out. 2012.
[36] Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/7069/a-dignidade-da-pessoa-humana-no-pensamento-de-kant>. Acesso em 24 Out. 2012.
Advogado, formado na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Pós-graduado em ciências criminais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Dark Blacker de. Análise crítica e dogmática do artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49089/analise-critica-e-dogmatica-do-artigo-28-da-lei-n-11-343-de-2006. Acesso em: 22 nov 2024.
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