RESUMO: Com o escopo de analisar o controle jurisdicional de políticas públicas em saúde, o presente trabalho buscou, inicialmente, estudar o direito fundamental à saúde em seus aspectos teóricos. Sequencialmente, passou-se conceituação de políticas públicas, suas origens e modos de formulação. Notou-se que as políticas públicas, enquanto prestações positivas, devem ser formuladas e executadas pelo Executivo e Legislativo. Entretanto, diante da ineficiência destes, evidenciou-se um fenômeno constante de judicialização de demandas, em que os cidadãos buscam, no Judiciário, direitos que deveriam ser-lhes garantidos pelos outros poderes. Assim, focou-se em analisar formas e limites de atuação do Poder Judiciário quando intervém no campo das políticas públicas em saúde. Para tanto, foram estudados aspectos teóricos relativos à legitimidade democrática do Judiciário, a suposta ingerência indevida de um poder no outro e a aproximação do direito com outras ciências. Em seguida, passou-se a um enfoque prático, estudando-se precedentes jurisprudenciais sobre o tema. Concluiu-se que o direto à saúde não pode ser formal, mas sim efetivo, devendo-se proporcionar ao cidadão o acesso aos tratamentos médicos necessários para atender plenamente o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Palavras-Chave: Direito à saúde. Políticas Públicas. Controle Jurisdicional.
ABSTRACT:With the goal of analyze the jurisdictional control of public policy in health, the present work aimed, initially, to study the fundamental right to health in its theoretical aspects. Sequentially, it moved into the conceptualization of public policy, its origins and ways of development. It was noted that public policy, while positive benefits, should be formulated and implemented by the Executive and Legislative powers. However, due to the inefficiency of these, it was evidenced a constant phenomenon of judicialization of demands, in which citizens seek, in the judiciary, rights that should be guaranteed to them by other powers. Therefore, it focused on analyze forms and limits of the Judiciary actions while intervening in the field of health public policy. Thus, theoretical aspects of the democratic legitimacy of the Judiciary, the alleged undue interference of a power in the other and the approximation of the law and other sciences were studied. Then, it moved to a practical approach, by studying precedents on the subject. It was concluded that the right to health cannot be formal, but effective, and to citizens should be provided access to necessary medical treatments to fully meet the constitutional principle of human dignity.
Key Words: Right to Health. Public Policy. Jurisdictional Control.
As políticas públicas estão presentes no dia-a-dia dos cidadãos, nas mais diversas formas, pois configuram-se como diretrizes estatais que almejam garantir, através da atuação positiva do Estado, algum direito fundamental aos indivíduos.
Originalmente, a formulação e execução de políticas públicas deve partir do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Tais políticas, em geral, devem mostrar-se como prestações positivas de maneira a efetivar direitos sociais, como, por exemplo, o direito à saúde.
Contudo, o dia-a-dia tem demonstrado a ineficiência dos Poderes Executivo e Legislativo em efetivar tais direitos fundamentais: hospitais lotados, ausência de medicamentos, procedimentos cirúrgicos não disponibilizados são apenas alguns dos exemplos corriqueiros.
É nesse contexto que surge o fenômeno do controle jurisdicional de politicas públicas, em que identificamos um problema: os cidadãos buscam, no Judiciário, direitos que deveriam ser-lhes garantidos pelos outros poderes. Tal contexto tem levado a uma série de situações delicadas que serão analisadas no presente trabalho.
Inicialmente, partiremos para a análise dos aspectos teóricos do direito fundamental à saúde, tratando de sua fundamentalidade formal e material, além de sua integração com todas as dimensões dos direitos fundamentais e relação com demais direitos para, em seguida, analisarmos os princípios que lhe são peculiares: integralidade e universalidade.
Na sequência, estudaremos o ciclo de vida das políticas públicas, tentando conceituá-las e buscando ilustrar quais são os princípios aplicáveis nesta seara: máxima efetividade das normas constitucionais, vedação ao retrocesso social, reserva do possível e mínimo existencial.
Em seguida do estudo teórico e principiológico, passaremos à análise do controle jurisdicional de políticas públicas, traçando a problemática da legitimidade do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, na suposta ingerência indevida de um Poder no outro, além da aproximação do direito com as demais ciências e suas implicações em nosso cotidiano.
Por fim, serão também estudados três precedentes jurisprudenciais no âmbito do Supremo Tribunal Federal (ADPF 45, Suspensão da Tutela Antecipada nº 175 e RE 393175) e um precedente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (Agravo de Instrumento nº 111.994/CE), com o intuito de identificarmos questões salutares relativas ao direito à saúde e seu controle jurisdicional em cada um deles, sendo seguidos da conclusão acerca da problemática do controle jurisdicional de políticas públicas de saúde.
O direito a saúde está constitucionalmente assegurado na Carta Magna de 1988, em diversos momentos. Possui intrínseca relação com o direito à vida, previsto no art. 5º, caput, da CRFB/88, além de ser parte indissociável do princípio da dignidade da pessoa humana, visto enquanto fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CRFB/88).
Outrossim, o art. 6º da Lei Maior aponta que, dentre tantos, o direito à saúde é de natureza social de modo que, mais à frente, o art. 196 da Constituição Federal assevera que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Desta forma, evidencia-se a importância da saúde para proteger a vida, devendo-se ressaltar que, enquanto direito de cunho fundamental, possui fundamentalidade formal e material.
A fundamentalidade formal está relacionada ao direito constitucional positivo, desdobrando-se em três elementos: 1) ao passo em que integra a Constituição escrita, o direito à saúde está no topo de todo o ordenamento jurídico, sendo norma de hierarquia superior; 2) encontra-se submetida aos limites procedimentais para a reforma da constitucional, além de fazer parte do núcleo intangível da Carta Magna, pois é cláusula pétrea; 3) é norma diretamente aplicável e vincula diretamente o Estado e os particulares.
A fundamentalidade material relaciona-se à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional, diante a inquestionável importância da saúde para a vida, maior bem jurídico tutelado pelo ordenamento pátrio, além de estar intrinsecamente relacionada à dignidade humana.
Nessa esteira, destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2002)[1]:
Por tudo isso, não há dúvida alguma de que a saúde é um direito humano fundamental, aliás fundamentalíssimo, tão fundamental que mesmo em países nos quais não está previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da saúde como um direito fundamental não escrito (implícito), tal como ocorreu na Alemanha e em outros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção prevista para a vida e integridade física.
Além disso, o direito a saúde possui a peculiaridade de integrar todas as dimensões dos direitos fundamentais.
É que, enquanto ligado ao direito à vida, a saúde pode ser vista numa vertente negativa, no sentido de que o Estado (eficácia vertical) e terceiros (eficácia horizontal) devem se abster de praticar atos que prejudiquem a saúde do indivíduo titular do direito, o que revela a subsunção à categoria da 1ª dimensão, diante do status negativo.
Igualmente, enquanto direito social (art. 6º), mostra-se imperioso o dever do Estado de prover condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Aponta, por conseguinte, a necessidade de uma atuação positiva do Estado no sentido de implementá-lo. Possui status positivo.
Os direitos de terceira dimensão, por sua vez, se mostram através da titularidade difusa ou coletiva, sendo concebidos para a proteção de toda uma coletividade. Possuem natureza transindividual, sendo esta notada, no que diz respeito ao direito à saúde, no dispositivo do art. 196 da Carta Magna, quando este ressalta que é “direito de todos e dever do Estado”.
É importante destacar também que o direito à saúde possui forte interdependência com outros direitos e deveres como, por exemplo, alimentação, moradia, trabalho, dentre outros. Assim, existem medidas de proteção, garantia e promoção da saúde em uma verdadeira rede normativa.
Como exemplo, pode ser citada a forte relação do direito à saúde com o direito à informação. Nesse sentido, leciona o doutrinador espanhol Guillermo Escobar Roca (2012, p. 586):
Entre las garantias objetivas del derecho a la salud se encuentra la información, concepto que recorre, en múltiples y variadas manifestaciones, toda nuestra legislacion sanitaria. Dejando de lado el derecho al diagnostico y el derecho a la informacion sobre la propria enfermedad, como instrumento para el mejor ejercicio de la libertad de opcion incluida en la faceta defensiva del derecho a la salud [...] el derecho a la información como garantía objetiva tiene dos manifestaciones em nuestro ordenamento: 1) derecho a la información sobre los servicios sanitários, como instrumento para la mejor solicitude de los contenidos prestacionales del derecho a la salud [...] 2) informacion recopilada por el SNS, como medio necessário para la mejora de la normativa y de la política sanitária [...][2]
Ademais, é oportuno ressaltar que a CRFB/88, ao apontar que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”, em seu art. 198, implementou o Sistema Único de Saúde (SUS), cuja estrutura é marcada pela descentralização das ações e do federalismo cooperativo, através da colaboração técnica e financeira entre os entes federativos.
Em verdade, uma de suas diretrizes organizadoras caminha para o atendimento integral do cidadão, com prioridade para as atividades preventivas, além de ter como atributo a participação da comunidade, o que reflete, sobretudo, o caráter democrático que informa toda a seguridade social.
Em viés teórico, com as diretrizes esposadas pela Constituição e pela Lei Orgânica da Saúde, o SUS é considerado um modelo de referência para toda a América Latina, mas, na prática, padece de muitas deficiências que impedem a plenitude do acesso à saúde como, por exemplo, o seu subfinanciamento e mau gerenciamento.
Destarte, estando esposadas as diretrizes teóricas fundamentais acerca do direito à saúde, passaremos à análise de alguns princípios intrinsecamente relacionados ao direito em apreço.
O princípio da universalidade nas ações relativas à saúde pode ser extraído do art. 196 da Constituição Federal:
Art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
O princípio em apreço é depreendido da necessidade de “acesso universal e igualitário” previsto na Carta Magna, o que em muito se relaciona, inclusive, com o que dispõe o art. 194, I, da Constituição:
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
Assim, se extrai que a saúde é compreendida dentro da seguridade social, sendo que um dos semblantes desta é a universalidade da cobertura e do atendimento, posteriormente reproduzida mais a frente quando trata especificamente do direito à saúde, no art. 196 acima reproduzido.
Portanto, podemos entender que o princípio constitucional da universalidade é uma feição do perfil da seguridade social no país, da qual a saúde faz parte. Em verdade, o princípio da universalidade está ligado à destinação do serviço de saúde pública, bem como a gratuidade no acesso aos referidos serviços, o que esta expressamente atribuído à politica pública formulada através do Sistema Único de Saúde.
Com relação aos destinatários do serviço de saúde, núcleo do princípio da universalidade, temos que o acesso ao direito constitucional à saúde é estendido a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país (art. 5º, caput, da CRFB/88), eis que estes são titulares de direitos fundamentais, dentre os quais se insere o direito social à saúde.
Nesse interim, é oportuno destacar que a universalidade prestigia critérios de coesão social, não buscando atender apenas os mais pobres, por exemplo, mas destacando que, independentemente da condição social, todos os titulares do direito fundamental podem partilhar do serviço de saúde pública que é igualmente oferecido a todos.
Por outro lado, a despeito de fornecido à todos, é imperioso salientar também que o serviço de saúde publica não deve ser prestado de idêntica maneira a todos os indivíduos. Esta é uma outra feição do princípio em apreço, pois também considera a diversidade social com o intuito de prestar um serviço mais eficiente.
É o que dispõe o magistrado federal Roger Rios (2009):[3]
[...] Numa sociedade plural e diversa, cumprir a obrigação de propiciar acesso universal igualitário significa, na medida do possível, considerar a diversidade cultural, social, econômica, geográfica, etc., presente nos indivíduos e grupos destinatários das políticas públicas de saúde, tornando o sistema de fornecimento de bens e serviços pertinentes à saúde capaz de atendê-los. Nesta linha, pode se falar num direito difuso a um sistema de saúde que conjugue medidas genéricas e medidas específicas (que consideram a especificidade de cada grupo) de prevenção e promoção da saúde, como aponta, por exemplo, a ideia de redução de danos entre usuários de drogas. Outras situações também podem ilustrar esta realidade, como também demonstram campanhas dirigidas a profissionais do sexo e a homossexuais.
No mais, cabe destacar que o princípio da universalidade está intrinsecamente relacionado ao princípio da universalidade, conforme será visto abaixo.
Com igual feição constitucional, o princípio da integralidade pode ser extraído do art. 198 da Carta Magna:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade
Notadamente, do texto do inciso II do art. 198, podemos extrair o princípio da integralidade. Tal princípio busca demonstrar que as políticas públicas fomentadoras do direito à saúde não devem estar isoladas de outros importantes serviços, mas trabalhando conjunta e coordenamente.
Claros são os ensinamentos de FAGUNDES e NOGUEIRA (2009)[4]:
O princípio da integralidade, pelo qual se percebe a pessoa dentro de um contexto histórico e complexo, como pertencente a uma sociedade, pressupõe também a articulação das políticas setoriais, como forma de garantir uma atuação intersetorial institucionalizada não só no nível discursivo como também no da ação. Somente assim se poderá promover a equidade e a integralidade do atendimento ao cidadão. Assinala-se que unicamente garantindo a integralidade e a intersetorialidade das políticas sociais e reduzindo a fragmentação, existem possibilidades efetivas de redução de problemas complexos como a pobreza e as desigualdades sociais.
Destarte, podemos observar que o princípio da integralidade almeja uma efetividade do direito à saúde, conjugando as políticas públicas inerentes à saúde a outras áreas correlatas, à exemplo da assistência social.
Em outras palavras, o princípio da integralidade busca não apenas prever medidas de saúde que visem recuperá-la, mas igualmente almeja que tais medidas promovam-na e protejam-na. Para tanto, as políticas públicas de saúde não se limitam a prever o fornecimento de medicamentos ou procedimentos cirúrgicos, por exemplo, mas também visam evitar que tais necessidades surjam.
É nesse contexto que a intersetorialidade se vislumbra, na tentativa de articulas as ações do SUS em suas diversas complexidades e humanizar o serviços, numa tentativa de aproximá-los do cidadão. É o caso de ações preventivas em conjunto com a assistência social que visam conscientizar a população sobre os cuidados básicos de higiene e como tais cuidados podem prevenir o surgimento de doenças e outros agravos, por exemplo.
Em síntese, o princípio da integralidade tem como objetivo dar maior eficiência ao direito à saúde e, para alcançar tal intento, lança mão de expedientes que buscam não apenas recuperar a saúde, mas promovê-la e protegê-la, atuando conjuntamente com outros setores. Assim, não se tem uma visão minimalista ou mesquinha de um direito constitucionalmente previsto. Pelo contrário, tenta abarcá-lo em suas mais diversas feições para concretizá-lo.
Cabe ressaltar, inclusive, que o princípio da integralidade, além de buscar uma efetiva melhoria nas condições de saúde, também representa um importante vetor de economicidade nas contas públicas, eis que, quando se atenta para a promoção e proteção, minimiza os dispendiosos custos com tratamentos e fornecimentos de medicamentos aos cidadãos.
A conceituação de políticas públicas não é das tarefas mais fáceis, dada a plurissignificatividade da expressão. Em verdade, o termo “política” no português dá azo a diversos significados, a depender do contexto em que é empregado.
Nesse sentido, com o intuito de aclarar o significado de “políticas públicas”, conforme serão estudadas no presente trabalho, partiremos de uma análise comparada do termo em idioma estrangeiro.
Note-se que, na língua inglesa, temos três termos importantes que, quando traduzidos para o português, são identificados como “política”. Tratam-se das palavras “politics”, “polity” e “policy”. Oportuno, portanto, distinguir os três vocábulos mencionados para traçarmos as diretrizes do presente estudo e conceituarmos o que seriam políticas públicas.
Primeiramente, o termo “politics[5]” está relacionado à política no sentido de governança, da troca e do movimento de poderes que guia e influencia um modo de governo com o intuito de organizar um Estado, através de sua direção e administração. Passa, inclusive, a noção de representatividade via a escolha de uma pessoa que, consoante a eleição de seus pares, poderá conduzir os negócios políticos.
Por seu turno, a palavra “polity[6]” representa a unidade política de um Estado, enquanto nação. Trata-se da política que está constitucionalmente esboçada na Carta Magna daquele Estado, sendo delineada pelo sistema jurídico e pela estrutura que fomenta o sistema político-administrativo e pelo conjunto de regras e princípios que norteiam tais sistemas. Passa, portanto, a ideia de uma instituição.
Em seguida, temos o vocábulo “policy[7]”, o qual expressa um programa de ação, uma diretriz a ser seguida para a consecução de um determinado objetivo. É, efetivamente, o produto das decisões políticas que tem lugar nas instituições do Estado. São, portanto, as políticas públicas, representadas no conjunto de ações governamentais relacionadas às leis e à atuação do poder público nas atividades de afirmação dos direitos fundamentais.
Dessa maneira, podemos identificar as políticas públicas através das policies, das diretrizes estatais que não são um fim em si mesmo, mas buscam salvaguardar um direito fundamental garantido aos indivíduos.
Naturalmente, “politics”, “polity” e “policy” não subsistem isoladamente. Pelo contrário, são entrelaçadas e mutuamente se influenciam, de modo que a distinção acima realizada se deu apenas para fins conceituais e fundamentação teórica. Nas palavras de SÁ (2010, p. 46):
Isso se mostra muito evidente nas políticas setoriais como a saúde, bastando ver como exemplo, a política de reavaliação de registro de agrotóxicos levada a cabo pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nesse caso é possível ver como as dimensões da policies e politics influenciam-se de maneira recíproca. Os atores, as condições de interesses e a tomada de consciência sobre o risco desses produtos na saúde humana reforçam os conflitos entre os interesses econômicos e os sanitários sobre o uso de agrotóxicos. Eventualmente, tais interesses econômicos exercem uma pressão bastante forte dentro do sistema político-administrativo, até com a interveniência do Poder Judiciário, de modo que essas novas condições da politics podem levar à revisão do plano da policy original
Desta forma, conceituado e identificado o objeto de estudo do presente trabalho, passaremos à análise de alguns princípios aplicáveis às políticas públicas e como tais se relacionam com o direito à saúde para, em seguida, analisarmos o teor do processo de formação e implementação das políticas públicas.
A doutrina tem trabalhado em variados princípios que podem ser vislumbrados em questões relativas à formulação e execução de políticas públicas, inclusive no que diz respeito à saúde, de modo que, neste presente estudo, far-se-á um escorço sobre os quatro mais salutares, quais sejam: princípio da máxima efetividade das normas constitucionais; princípio da vedação ao retrocesso social; princípio do mínimo existencial e da reserva do possível.
De acordo com tal princípio, a norma constitucional deve ter maior efetividade social. Tem intensa relação com o princípio da força normativa da Constituição, de modo que os aplicadores da Carta Magna deverão otimizar a eficácia das normas constitucionais. Nas palavras de MENDES, COELHO e BRANCO (2009, p. 140):
O cânone-hermenêutico da máxima efetividade [...] veicula um apelo aos realizadores da Constituição para que em toda a situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar os seus preceitos, sabidamente abertos e predispostos a interpretações expansivas
Em ensinamento semelhante, dispõe o jurista português J. J. Gomes Canotilho (1993, p. 227):
Também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, [o princípio da máxima efetividade] pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)
No tocante ao objeto deste estudo, é importante destacar que as normas constitucionais que envolvem o direito a saúde (como, por exemplo, as extraídas do art. 6º e do art. 196 da CRFB/88, dentre outras) não podem ser vistas como normas constitucionais de eficácia programática, que consubstanciam diretrizes a serem adotas pelos formuladores de políticas públicas de saúde para alcançar, apenas futuramente e através de aplicação diferida, os intentos do constituinte.
Pelo contrário, tais normas constitucionais devem ser vistas como de efeitos imediatos e de eficácia plena, dada a sua imprescindibilidade à garantia da vida, bem jurídico de maior importância em nosso ordenamento, e da dignidade, enquanto princípio fundamental da República Federativa do Brasil.
Em verdade, interpretações que amesquinhem a garantia de tal direito fundamental se mostram incompatíveis com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, pois toda norma constitucional é dotada de eficácia jurídica e deve ser interpretada e aplicada em busca de sua máxima efetividade.
Ademais, na análise do caso concreto e na ocorrência de colisão entre direitos fundamentais, o intérprete deverá otimizar e balancear os interesses em conflito – à exemplo do combate entre os interesses da Fazenda Pública e o direito à vida, conforme será analisado mais a frente – de modo a harmonizar a máxima efetividade com outras disposições hermenêuticas afim de, inclusive, preservar a unidade da Constituição.
O princípio acima salientado ressalta a concepção de que, uma vez estabelecido dado direito fundamental, o mesmo não pode ser suprimido ou restringido por atuações legislativas ou executivas posteriores.
Alguns doutrinadores apontam, inclusive, que a vedação ao retrocesso social é limite ao poder constituinte originário, no sentido de que uma nova ordem constitucional a ser inaugurada não pode embaraçar o exercício de algum direito fundamental reconhecido na ordem jurídica anterior como, por exemplo, através da internalização de tratados internacionais.
Sobre a segurança jurídica e a vedação ao retrocesso, discorre SARLET (2010, p. 433/434):
A problemática da proibição de retrocesso guarda íntima relação com a noção de segurança jurídica. (...) a ideia de segurança jurídica encontra-se umbilicalmente vinculada também à própria noção de dignidade da pessoa humana. Com efeito, a dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida em todo o lugar onde as pessoas estejam sendo atingidas por um tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas
Enquanto princípio, o mesmo não importa em vedação absoluta e irrestrita, mas o formulador da política pública não poderá olvidar que o direito à saúde tem natureza fundamental e, como tal, faz parte do núcleo intangível da Carta Magna, englobado no rol das cláusulas pétreas (art. 60, §4º, IV).
Poderá, todavia, sofrer um juízo de ponderação para melhor atendimento das normas e preceitos constitucionais, tendo também reflexo no princípio da proibição de proteção insuficiente, de acordo com o qual o Estado deve empreender os seus esforços para resguardar os direitos de seus cidadãos de modo pleno e satisfatório.
A reserva do possível está intrinsecamente relacionada às possibilidades financeiras do Estado, através da disponibilidade de recursos para custear determinado tratamento médico em geral. Por muitas vezes, a necessidade de previsão orçamentária se aponta como um entrave à atuação do Estado para efetivar direitos sociais como, por exemplo, a saúde.
Sobre o tema, discorre MENDES, COELHO e BRANCO (2009, p. 760-761):
Essas medidas dependem quase que exclusivamente de investimentos estatais [...] o grande problema para a efetivação desses direitos reside mesmo é na escassez de recursos para viabilizá-los – o chamado limite do financeiramente possível -, perversamente mais reduzidos onde maior é a sua necessidade. [...] É possível, sim, estabelecer prioridades entre as diversas metas a atingir, racionalizando a sua utilização, a partir da ideia de que determinados gastos, de menor premência social, podem ser diferidos em favor de outros, reputados indispensáveis e urgentes. (Grifos no original)
A bem da verdade, a reserva do possível não pode ser utilizada para escusar o Estado de atuar em setores vitais da sociedade e muito menos para justificar a demora na implementação de políticas públicas hábeis a resguardar o direito fundamental à saúde.
É comum que tal princípio seja levantado pela Fazenda Pública em demandas judiciais, mas a ausência de comprovação da carência financeira tem feito o Judiciário refutar tal argumento e, em alguns casos, dar destinação diferente à parte de recursos financeiros do Estado, conforme será observado na análise do Agravo de Instrumento nº 111.944/CE (tópico 5.4).
O princípio do mínimo existencial, por sua vez, aponta que alguns direitos fundamentais são dotados de forte ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana, valor constitucional supremo, de modo que há de se garantir um mínimo de eficácia a tais direitos consagrados pela Lei Maior.
Nas palavras de HARTMANN (2010, p. 61):
Numa definição mais ampla do que o mínimo vital, fica evidente que o mínimo existencial compreende os direitos à satisfação das necessidades básicas do ser humano, indispensáveis para a conservação de uma vida digna, sendo formado tanto por necessidades físicas/materiais (preservação da saúde, moradia, alimentação) quanto por necessidades culturais [...], no sentido de se buscar um bem-estar físico, mental e social, ou seja, uma máxima satisfação das necessidades humanas.
Ou seja, tal princípio vai mais além: não se restringe apenas a uma sobrevivência física, a uma mera existência, mas no resguardo de uma sadia qualidade de vida, permitindo uma existência humanamente digna através da plena fruição de direitos fundamentais.
Destarte, salta aos olhos a necessidade de efetivação do mínimo existencial no que diz respeito ao direito à saúde, levando-se em consideração as particularidades do caso concreto daquele que busca a prestação estatal, pois este tem o direito de ser tratado como igual – e não necessariamente de ter uma prestação igual a dos outros - em verdadeiro reflexo ao princípio da igualdade substancial, ou material.
Significa dizer que a garantia do mínimo existencial, no tocante ao direito à saúde, demanda uma análise mais apurada da pretensão daquele que requer o seu direito, no sentido de buscar o tratamento mais adequado e eficiente ao caso concreto, de modo a otimizar o direito fundamental.
Entrementes, não pode ser tida como irrelevante as questões vinculadas à reserva do possível, já que esta vai além de considerações de índole orçamentário-financeira, alcançando, por óbvio, a disponibilidade de profissionais médicos habilitados, leitos disponíveis, aparelhos médicos adequados, dentre outros.
Assim, evidencia-se a necessidade de harmonização do princípio da reserva do possível e do mínimo existencial através de critérios como, por exemplo, a proporcionalidade e a razoabilidade, com o intuito de aprimorar a observância do direito constitucionalmente assegurado.
Podemos identificar quatro fases distintas quando do processo do ciclo de vida de uma política pública: 1) identificação e delimitação do problema; 2) formulação da diretriz a ser seguida; 3) Implementação da política escolhida e; 4) acompanhamento e avaliação da política.
Inicialmente, temos a identificação e delimitação do problema, no qual figuram diversos debates e controvérsias acerca do que seria o objeto da diretriz estatal a ser seguida, de modo que diversos setores da sociedade participam desse debate, configurando-se como um processo que utiliza os meios disponíveis para clarificar o problema e buscar maneiras legais de salvaguardar os direitos que não estão sendo respeitos.
Um exemplo salutar da fase de identificação e delimitação do problema é a participação da mídia que, por muitas vezes, dá voz a um grupo social menos favorecido. Dessa forma, tal grupo leva ao conhecimento geral, por exemplo, a ausência de disponibilidade de leitos hospitalares em uma unidade de tratamento intensivo em determinado hospital público.
De fato, a fase de identificação e delimitação tem o objetivo de noticiar um contexto que precisa de uma atuação positiva do Estado, para que um direito fundamental passe a ser garantido.
Destarte, identificado e delimitado o problema, passa-se à fase de formulação da política pública, que é a etapa mais burocrática do processo, eis que visa normatizar uma diretriz a ser seguida e que tenha o objetivo de sanar o problema anteriormente identificado.
Igualmente, diversos setores contribuem para a formulação da política pública, sendo esta uma das suas mais fortes características: a intersetorialidade, conforme inclusive já mencionado no tópico que tratou do princípio da integralidade da saúde (tópico 2.2, retro).
Assim, no que tange a uma formulação de políticas públicas relativas à saúde, por exemplo, é imprescindível que representantes da ciência médica tenham voz e participem do debate. É o caso da participação da ANVISA quando avalia a eficácia e segurança de novos medicamentos para posterior registro e disponibilização no âmbito da política de assistência farmacêutica.
O processo de formulação de uma política pública, portanto, passa por atores do Poder Legislativo, quando da formulação de atos normativos que influenciam a estrutura organizacional de um sistema (como o SUS, por exemplo), bem como do Poder Executivo, notadamente através de suas autarquias altamente especializadas e da figura do Chefe do Poder, que tem o condão de sancionar ou rechaçar um ato normativo oriundo do Poder Legislativo.
Em seguida, temos a fase de implementação da política. Busca pôr em prática a decisão política tomada no processo de formulação e envolve o aparelhamento administrativo e de recursos financeiros, humanos, materiais e tecnológicos para tanto. Tal fase carece de forte acompanhamento dos gestores públicos para que se alcance, com maior efetividade, o objetivo pretendido quando da formulação da política.
É oportuno notar que a fase de implementação não é de todo técnica ou despolitizada, eis que os agentes que a executam tem o poder de influenciá-la e, inclusive, quando o fazem, podem representar o seu sucesso ou fracasso. Com relação às políticas públicas de saúde, por exemplo, dispõe SÁ (2010, p. 64) a respeito da influência dos médicos no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos:
A adesão desses atores aos ditames da política pública é determinante para seu sucesso ou fracasso, vez que o elemento discricionário nesse nível de implementação é alto. Veja-se, por exemplo, o médico que atende nos serviços do sistema público de saúde. Ele deve observar a seleção de medicamentos adotada no âmbito da política de assistência farmacêutica do sistema de saúde para orientar sua prescrição – mas o seu grau de discricionariedade lhe permite prescrever medicamentos não elencados nas listas oficiais, contribuindo para a limitação do atingimento dos objetivos ou mesmo para o fracasso dessa política.
Em verdade, esse é um dos mais comuns contextos quando da fase da implementação de políticas públicas. O médico, ao analisar o caso concreto, percebe que determinado medicamento é o mais eficaz para sanar o problema de seu paciente. Mesmo notando o fármaco em questão não é previsto em política pública de fornecimento, o prescreve mesmo assim, buscando salvaguardar o direito à saúde do seu paciente. Nesse contexto, conforme será visto no tópico a seguir, é que se busca a atuação do Judiciário no controle jurisdicional de políticas públicas.
Ao final, temos a fase de acompanhamento e avaliação da política. O acompanhamento se dá sistematicamente no curso da execução da política, buscando corrigir eventuais falhas que por ventura venham a surgir, ao passo em que na avaliação almeja-se auferir se os objetivos almejados pela política pública foram, de fato, alcançados.
Da mesma forma que da fase de identificação e delimitação do problema, a fase de acompanhamento e avaliação de uma política pública é realizada através da participação de diversos setores sociais, de modo que, inclusive, pode-se identificar nesta fase um novo problema a ser tratado por outra diretriz, de modo que se retorna às fases anteriores, num loop, num círculo constante.
Assim, estando identificadas as fases que compõem o ciclo da vida de uma política pública, passa-se à análise do controle jurisdicional de políticas públicas e suas perspectivas no que diz respeito ao direito à saúde, foco do presente estudo.
Diante da realidade fática que aponta a deficiência na formulação de políticas públicas que prestigiem os direitos fundamentais de maneira eficaz, os cidadãos têm buscado o Judiciário com o intuito de resguardar seus direitos constitucionalmente assegurados.
Contudo, a atuação do Judiciário na implementação de políticas públicas tem sido questionada quanto a sua legitimidade, do princípio da separação dos poderes e, até mesmo, das deficiências do próprio Judiciário em atuar tão próximo a uma área imperativa de outras ciências, conforme veremos abaixo.
Aduz-se a existência de uma crise de legitimidade na atuação do Poder Judiciário em implementar determinadas políticas públicas, no sentido de que a competência para tanto é do Executivo e Legislativo através de representantes eleitos pelo povo. Assim, o magistrado careceria de legitimidade democrática.
Entretanto, tal argumento não se sustenta.
Sabe-se que democracia respalda-se na vontade da maioria, através de apurada correspondência entre a vontade do povo e a atuação de seus representantes. Democracia não está apenas relacionada ao voto – este é apenas uma das maneiras pela qual ela se manifesta – mas sim na soberania popular.
O juiz possui uma responsabilidade constitucional de integração de políticas públicas, seja pela sua forma de ingresso na carreira, pela inafastabilidade do controle jurisdicional ou pela jurisdição constitucional argumentativa, conforme preceitua Alexy.
No que diz respeito ao ingresso do magistrado na carreira, é sabido que o mesmo passa por um concurso público de alto rendimento, com bases constitucionais no que diz respeito ao acesso e à investidura no cargo. O princípio do concurso público é uma base democrática para referendar e legitimar as decisões do Poder Judiciário, eis que foi assim que o constituinte – que representava toda a nação – quis que fosse.
Ademais, outras formas de ingresso na carreira da magistratura também referendam a legitimidade democrática dos juízes. Trata-se do quinto constitucional, para egressos do Ministério Público e dos Advogados, ambos considerados como funções essenciais à justiça pela Carta Magna, sendo o Chefe do Executivo, eleito pelo povo, o responsável pela última palavra na designação do futuro magistrado.
No âmbito federal, é oportuno ressaltar que a nomeação de alguns Ministros de Tribunais Superiores é realizada diretamente pelo Chefe do Executivo e passa pelo crivo do Poder Legislativo, o que ressalta ainda mais a legitimidade do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas.
Evidencia-se, portanto, que os magistrados possuem uma responsabilidade constitucional da qual não podem se escusar, notadamente pelo bem jurídico que estão a tutelar, até mesmo diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, esculpido no art. 5º, XXXV, da CRFB/88: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A toda evidência, no que diz respeito ao objeto deste estudo, constitui o direito à saúde direito subjetivo público, ainda que individualmente exercido, outorgando ao seu titular a possibilidade de, por meio das vias judiciais postas à disposição pelo próprio Texto Maior, postular uma prestação positiva do Estado que imprima ao comando eficácia plena.
Os direitos fundamentais ressaltam mandados de otimização que possuem intrínseca relação com a democracia, de modo que a primazia hierárquica de tais direitos limitam a ação do governante tendente a assola-lo, ainda que tenha sido eleito pelo povo.
Entrementes, diante de uma situação entre a atuação de uma autoridade eleita colidindo com um direito fundamental, o jusfilósofo Robert Alexy defende o relevante papel dos magistrados em proteger os cidadãos de possíveis abusos de seus representantes políticos, desde que respeitado o espaço dos mesmos, de modo que a jurisdição constitucional exerce a última palavra.
De acordo com MIRANDA NETTO e CAMARGO[8]:
Segundo Alexy, o fato de os magistrados encontrarem-se vinculados institucionalmente às regras da argumentação jurídica, como também aos princípios da publicidade e da motivação da decisão judicial, permite-nos um maior grau de conhecimento e controle da jurisdição constitucional, decisivo para a distinção do debate judicial e do debate político – este tipicamente marcado pela negociação e pela barganha em torno de interesses específicos. A partir da premissa de que representação significa consonância de ideias entre representante e representado, Alexy procura mostrar que o Tribunal, ao trazer suas razões de decidir, pela lógica da argumentação procura a concordância das pessoas; dos cidadãos em geral, mas principalmente daqueles diretamente ou indiretamente atingidos pela decisão.
Ao contrário do representante eleito, o magistrado deve fundamentar cada decisão sua, com o intuito de aprimorar a interação existente entre o representante (Judiciário) e o representado (cidadão), tendo tal interação caráter explicitamente argumentativo. Não é à toa, portanto, que a Carta Magna positiva o princípio da motivação das decisões judiciais em seu art. 93, IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”.
Dessa forma, mostra-se despicienda a argumentação de que o Poder Judiciário carece de legitimidade democrática para implementar dada política pública na área de saúde.
Dentre os argumentos levantados para frear a implementação de políticas públicas através de seu controle jurisdicional é a suposta ofensa a tripartição dos poderes, sob o argumento de que o Judiciário estaria imiscuindo-se em atribuição alheia ao seu papel.
Como se sabe, o poder estatal é emanação de sua soberania e é através de sua atuação que surgem os preceitos imperativos incidentes sobre a sua organização. É falsa a ideia de que existe sociedade sem organização estatal, estando tal concepção assentada pela clássica expressão ubi societas, ibi jus; ubi jus, ibi societas[9].
Dessa forma, consoante TEMER (2010, p. 120):
Foi observando as sociedades que [...] verificaram a existência de três funções básicas: uma, produtora de ato geral; outra, produtora de ato especial e uma terceira solucionadora de controvérsias. As duas últimas aplicavam o disposto no ato geral. Seus objetivos, porém, eram diversos: uma, visando a executar; administrar; a dar o disposto no ato geral para desenvolver a atividade estatal; outra, também aplicando ato geral, mas com vistas a solucionar controvérsias entre os súditos e o Estado ou entre os próprios súditos.
Em “O espírito das leis”, Montesquieu apontou que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si, de modo que cada Poder exercia uma função típica, consoante sua natureza. Assim, cada órgão exerceria sua função típica: legislar, administrar, julgar.
Naturalmente, tal concepção é abrandada pelo fato de que todos os órgãos, além de exercerem suas funções típicas, exercem também funções atípicas. Como exemplo, o Senado Federal, enquanto órgão do Poder Legislativo é também constitucionalmente incumbido de julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade (art. 52, I, CRFB/88), competência esta de viés claramente jurisdicional.
Ressalta-se que o termo “tripartição” é inoportuno, por si só, eis que o poder é uno e indivisível, não se tripartindo, mas apenas se manifestando através de órgãos que exercem determinadas funções. Assim, todos os atos praticados pelo Estado decorrem de um só Poder, que emana do povo e é exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos do Parágrafo Único do art. 1º da CRFB/88.
Destarte, observa-se que o Poder é uno, imprescritível, indelegável e indivisível. Os órgãos que o exercem devem atuar de maneira harmônica, em relação simbiótica, autocontendo o poder entre si, com limites recíprocos.
Trata-se do sistema de checks and balances (freios e contrapesos), no qual cabe aos demais órgãos corrigirem os equívocos perpetrados pelos órgãos distintos, de modo a propiciar uma maior integração entre os “poderes” da República, que estão a serviço do povo e dos seus direitos fundamentais.
Portanto, mostra-se enganosa a concepção de que o controle jurisdicional de políticas públicas viola a “tripartição” dos poderes eis que, como já dito, este é uno, indivisível e está a serviço do povo e de seus direitos fundamentais.
Outro argumento levantado para questionar a atuação do Judiciário no controle jurisdicional de políticas públicas é a ausência de conhecimento adequado para lidar com questões que fogem do escopo do Direito.
É que a formulação de uma política pública, no seio dos Poderes Executivo e Legislativo, passam pelo crivo de conhecedores daquela área. Na área da saúde, por exemplo, é extremamente comum que critérios epidemiológicos sejam observados quando da formulação de uma política pública.
Questiona-se, por conseguinte, se os operadores do Direito podem atuar no controle jurisdicional de políticas públicas diante da ausência de conhecimentos específicos. Face às questões relativas ao direito à saúde, que é o escopo deste estudo, como poderiam os operadores do direito averiguar se o tratamento disponibilizado pelo SUS é falho ou insuficiente, se não detém o conhecimento sobre minúcias das ciências médicas?
Assim, por não deter tal conhecimento especializado, não poderia o Judiciário, por exemplo, preterir um determinado fármaco disponibilizado pelo SUS, escolhido para integrar as listas de dispensação após cuidadosos estudos e processo de seleção, em favor de outro não disponibilizado pelo sistema ou, até mesmo, sem eficácia comprovada.
A questão é, de fato, delicada, mas não pode ser óbice à atuação do magistrado em preservar o direito do jurisdicionado. É que, atualmente, existem diversas formas de trazer aos autos o conhecimento necessário para legitimar uma decisão judicial.
Assim, no âmbito dos processos individuais, a realização de prova pericial é um instrumento importante para levar ao conhecimento do juízo, através de opinião prestada imparcialmente por um expert, acerca da viabilidade da pretensão postulada em juízo.
Outrossim, outros instrumentos podem ser destacados como, por exemplo, a realização de audiências públicas e a intervenção de amigos da corte.
As audiências públicas se configuram como instrumento de legitimação social da decisão, pois nela é possibilitada a maior colheita de informações. É considerada instrumento do diálogo estabelecido com a sociedade na busca de soluções para as demandas, propiciando ao particular e algumas entidades a troca de informações com aquele que irá tomar a decisão, além de também representar o exercício da cidadania.
No Brasil, por exemplo, a primeira audiência pública do STF foi realizada em 20/04/2007, a fim de colher elementos de convicção na ação direta de inconstitucionalidade contra a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas
Além disso, a intervenção dos amigos da corte, ou amicus curiae, que são auxiliares do juízo, almejam aprimorar as decisões proferidas pelo Judiciário, consubstanciando-se em levar ao conhecimento do juízo as implicações e repercussões de suas decisões em processos do controle concentrado de constitucionalidade ou naqueles em que há repercussão geral,.
Nas palavras de Dirley da Cunha Jr (2004, p. 165):
A intervenção do amicus curiae no processo objetivo de controle de constitucionalidade pluraliza o debate dos principais temas de direito constitucional e propicia uma maior abertura no seu procedimento e na interpretação constitucional, nos moldes sugeridos por Peter Haberle em sua sociedade aberta dos intérpretes da Constituição
Destarte, a aproximação do Direito com outras ciências não pode ser vista como um óbice para salvaguardar um direito constitucionalmente previsto. Pelo contrário, a aproximação do jurídico com outras áreas é algo que deve ser, inclusive, estimulado, eis que o Direito serve à sociedade e não o contrário, motivo pelo qual a interdisciplinaridade também é fator de legitimação social.
5 PARÂMETROS DE ATUAÇÃO JURISDICIONAL NA IMPLEMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ATINENTES AO DIREITO À SAÚDE
É sabido que o controle jurisdicional de políticas públicas de saúde é um fenômeno crescente e alvo de grandes controvérsias jurisprudenciais. Com o escopo de trazer alguns precedentes específicos, mas sem esgotar a amplitude do tema, almeja-se identificar algumas peculiaridades e determinadas questões salutares neste tema tão polêmico.
Assim, partiremos para análise de três precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal (ADPF 45, Suspensão da Tutela Antecipada nº 175 e RE 393175) e um precedente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (Agravo de Instrumento nº 111.994/CE)
A arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 45 foi promovida contra veto, que, emanado do Presidente da República, incidiu sobre o § 2º do art. 55, de projeto legislativo que se converteu na Lei nº 10.707/2003, que objetivava fixar as diretrizes relativas à elaboração da lei orçamentária anual de 2004.
Tal veto implicaria em desrespeito a preceito fundamental decorrente da EC 29/2000, para garantir recursos financeiros mínimos a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde.
O julgado está assim ementado:
EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).
De relatoria do Min. Celso de Mello, a ADPF foi extinta sem resolução de mérito em virtude do Chefe do Executivo Federal ter remetido, ao Congresso Nacional, projeto de lei restaurou integralmente o § 2º do art. 59 da Lei nº 10.707/2003, fazendo constar a mesma norma sobre a qual incidira o veto executivo.
A despeito da extinção do feito sem resolução de mérito, tal precedente se mostra importante por ter se manifestado sobre importantes temas como, por exemplo, a aptidão da ADPF para veicular a questão, além de enfrentar o princípio da reserva do possível e a suposta ofensa à tripartição dos poderes.
In casu, o Min. Celso de Mello, em decisão monocrática, ressaltou que tal ação constitucional é instrumento apto e idôneo para implementar políticas públicas previstas no corpo da Lei Maior, caso estas sejam descumpridas total ou parcialmente pelo poder público. Assim, as políticas públicas relativas à saúde foram consideradas preceitos fundamentais pelo eminente relator e o veto do Presidente da República pode ser objeto de controle.
Com relação à tripartição dos poderes, ressaltou o Min. Relator:
No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais.
Assim, delineou-se que o Poder Judiciário não pode, à primeira vista, intervir nas atribuições de outro Poder para substituí-lo em seu juízo de conveniência e oportunidade, mas, verificada a violação de direitos fundamentais como, por exemplo, a saúde, que dependem primordialmente da atuação positiva do Estado, faz-se imperiosa a atuação do Judiciário para tutelar o bem da vida em perigo.
Sobre a ADPF 45, destaca Ada Pellegrini Grinover (2011, p. 132):
Resumindo, percebe-se que a posição do STF, manifestada por um de seus mais sensíveis Ministros, é a de que são necessários alguns requisitos, para que o Judiciário intervenha no controle de políticas públicas, até como imperativo ético-jurídico: (1) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cidadão; (2) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e; (3) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.(grifos no original)
Dessa forma, evidencia-se, da leitura do voto do ministro e dos ensinamentos da doutrinadora acima delineada, que o princípio da reserva do possível não pode ser trazido à baila para exonerar o Estado de cumprir as suas obrigações constitucionalmente estabelecidas, notadamente quando se tratam de direitos fundamentais, e mais ainda se não há um justo motivo aferível no plano objetivo para justificar a conduta estatal.
O agravo regimental interposto pela União após decisão monocrática do Min. Gilmar Mendes em sede de pedido de suspensão de tutela antecipada nº 175 deu oportunidade ao jurista de se debruçar sobre o direito à saúde e a implementação de políticas públicas pelo Judiciário, chegando a importantes conclusões.
O caso concreto versava sobre o fornecimento do medicamento ZAVESCA ® (miglustat) à jovem de 21 anos que padecia de patologia neurodegenerativa rara, denominada NIEMANN-PICK tipo C, que causava movimentos involuntários, ataxia da marcha e dos membros, paralisas progressivas, dentre outros efeitos.
O Min. Gilmar Mendes, em obiter dictum, ressaltou a experiência da Audiência Pública sobre saúde, ocorrida nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009 no STF, o que denota a importância deste instrumento de legitimação das decisões da Suprema Corte, pois permite a participação de acadêmicos de variados setores a fim de trazer informações relevantes para auxiliar o juízo.
Na audiência pública em questão, foram ouvidos membros da magistratura, do Ministério Público, das Advocacias Públicas e de entidades e organismos da sociedade civil. Destacou o eminente jurista, ao tratar da audiência:
Após ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas. Portanto, não se cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de políticas públicas.
Outrossim, o Min. Gilmar Mendes discorreu sobre as ideias de macrojustiça e microjustiça, o que levou a importantes reflexões e conclusões.
Assim, por não existir recursos financeiros para a satisfação de todas as necessidades relativas ao direito à saúde, notadamente pela grande quantidade de tratamentos medicamentosos e cirúrgicos disponíveis na medicina e do número em constante crescimento de patologias, os formuladores e executores de políticas públicas seguem os critérios de macrojustiça, levando em consideração fatores como a maximização dos resultados, efetividade do serviço, número de cidadãos atingidos, habitualidade de determinada patologia, etc.
A formulação de políticas públicas relativas à saúde baseada em critérios de macrojustiça é plenamente legítima, até porque a gestão do SUS baseia-se no princípio constitucional do acesso universal e igualitário às ações e prestações de saúde, o que só se torna viável através da destinação mais eficiente possível dos já escassos recursos financeiros.
Contudo, o papel do Judiciário é a realização da microjustiça, isto é, a justiça do caso concreto, de modo que deve examinar determinada prestação com o intuito de resguardar a dignidade da pessoa humana e a vida do jurisdicionado, naquele caso específico. Deverá, por conseguinte, levar em consideração todas as perspectivas do direito social em exame, através de juízos sensatos de ponderação.
Com base nisso, delineou que o magistrado, na análise do caso concreto, deverá observar se existe política estatal que abranja a prestação postulada pelo jurisdicionado, de modo que, caso existente, o Judiciário está apenas determinando o seu cumprimento através da existência de um direito público subjetivo do demandante.
No caso de decisão administrativa denegatória ao tratamento médico postulado, faz-se a distinção entre a decisão denegatória motivada na existência de tratamento diverso no sistema e a fundamentada na inexistência de quaisquer tratamentos no âmbito do SUS. Discorre o eminente ministro:
Podemos concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente. Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso.
Em caso de inexistência do tratamento postulado no âmbito do SUS, o Min. diferencia os tratamentos experimentais daqueles não testados ou não incorporados pelo sistema. Naqueles, não há comprovação científica de sua eficácia e a participação nas pesquisas rege-se de acordo com as normas médicas, motivo pelo qual o Estado não pode ser incumbido a fornecer tratamento experimental, eis que é de responsabilidade dos laboratórios que realizam a pesquisa fornecê-lo aos pacientes que desejam se submeter à pesquisa, ainda após o seu término.
Com relação aos não testados ou não incorporados pelos SUS, embora já devidamente experimentados na ciência médica, ressalta-se que a inexistência de protocolo clínico no âmbito do sistema não pode prejudicar o direito público subjetivo à saúde do jurisdicionado, mas é imprescindível que haja instrução processual com ampla produção de provas.
Ademais, ainda que o fármaco pleiteado não esteja registrado na ANVISA (o que impede o fornecimento administrativo do mesmo), pode o Judiciário entender pela sua necessidade e imprescindibilidade à hipótese versada no caso concreto, de modo que não haveria empecilho na aquisição e destinação do mesmo ao jurisdicionado pela Administração, eis que a mesma estará cumprindo uma decisão judicial.
Conclui-se, do estudo do voto do Min. Gilmar Mendes, que a implementação de políticas públicas atinentes à saúde pelo Judiciário é questão delicada e minuciosa, de modo que somente a partir da análise do caso concreto é que se pode chegar a uma conclusão especificamente adequada e individualizada para cada hipótese.
O recurso extraordinário versava sobre o fornecimento de medicamentos a pacientes com esquizofrenia paranoide e doença maníaco-depressiva crônica, com episódios de tentativa de suicídio. A demanda havia sido julgada improcedente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
A importância deste julgado para analisar a implementação de políticas públicas relativas à saúde se revela quando se assenta a ideia de que é desnecessário o esgotamento das vias administrativas para acessar o Poder Judiciário.
Alegou-se, em instâncias inferiores, a carência da ação, uma vez que restaria inexistente o interesse de agir dos demandantes pelo não exaurimento das vias administrativas, de modo que requereram a extinção do feito sem extinção de mérito com fundamento no art. 267, IV ou VI, c/c o art. 329, do CPC.
Tal argumento foi afastado desde logo pelo TJRS, sob o fundamento de que o cidadão não está obrigado, sob qualquer pretexto, a esgotar ou a requerer na instância administrativa para acudir à tutela jurídica do Estado (art. 5°, XXXV, da CRFB/88), sendo tal argumento corroborado pelo STF.
Contudo, o TJRS havia julgado a demanda improcedente por entender que o Estado não pode, de forma indiscriminada, fornecer todo e qualquer tipo de medicamento solicitado. Dando provimento ao recurso extraordinário, ressaltou o Min. Celso de Mello:
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro [...] não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
Dessa forma, prevaleceu a ideia de que o direito à saúde deve prevalecer sobre os interesses financeiros da Fazenda Pública, de modo que a distribuição gratuita, à pessoas carentes, de medicamentos essenciais à preservação da saúde e de sua vida é um dever constitucional do qual não pode o Estado se esquivar.
Trata-se de agravo julgado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no qual o Estado do Ceará questiona o bloqueio de verbas públicas destinadas à publicidade governamental para efetuar o pagamento do valor restante para conclusão de UTI’s neonatais e pediátricas.
Tal julgado está assim ementado:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ORDEM JUDICIAL PARA FINALIZAÇÃO DE OBRA EM UTI’S. DESCUMPRIMENTO. BLOQUEIO DE VERBAS DESTINADAS À PUBLICIDADE. POSSIBILIDADE. IMPROVIMENTO. [...]Diante do reiterado desrespeito às ordens judiciais proferidas ao longo do processo, o bloqueio dos valores em questão – destinados à publicidade governamental – apresenta-se como única medida capaz de garantir a efetividade da prestação jurisdicional, vez que o aludido montante será de pronto utilizado na finalização da obra de que ora se trata.
O precedente acima esposado possui bastante importância no âmbito da implementação de políticas públicas relativas à saúde pelo Judiciário, notadamente porque mudou a destinação de verbas públicas que antes iam para a publicidade, para que fossem revertidas em favor da construção de unidades de tratamento intensivo.
Acerca da ingerência do Judiciário no Poder Executivo, destacou o eminente Des. Federal Francisco Wildo:
[...] não se poder falar na espécie em ingerência indevida do Poder Judiciário em funções que não lhe são afetas, pois, diante do reiterado desrespeito às ordens judiciais proferidas ao longo do processo, o bloqueio dos valores em questão apresenta-se como única medida capaz de garantir a efetividade da prestação jurisdicional, já que o aludido montante será de pronto utilizado na finalização da obra de que ora se trata. Saliento, ainda, que tal medida excepcional está autorizada pelo art. 461, §5º do CPC, que tratou de prever - de forma não-exauriente - uma série de providências coercitivas com o fim de viabilizar o cumprimento das tutelas específicas ou de tutelas equivalentes, previstas nos arts. 461 e 461-A daquele diploma legal, deixando ao magistrado a escolha daquela que considerar mais adequada para assegurar o cumprimento da providência concedida.
Significa dizer que o Judiciário tem legitimidade para aplicar sanções à Fazenda Pública quando esta se esquiva de cumprir decisões judiciais, podendo chegar a bloquear verbas públicas provenientes de setores menos salutares – à exemplo da publicidade governamental – e revertê-lo em favor de determinado paciente ou determinado objetivo em favor da saúde.
É dizer: pode o Judiciário dar destinação diferente a verba orçamentária àquela originalmente pretendida pelo governante, com o intuito de proteger direito fundamental ameaçado de lesão pelo Poder Público, sem que isso implique em interferência indevida de um Poder no outro.
Consoante os estudos acima relatados, entendemos que existe uma gama de direitos fundamentais que são assegurados aos cidadãos, de forma que os direitos sociais prescindem de uma atuação positiva do Estado para sua efetiva observância.
Para a efetivação dos referidos direitos é que surge a figura das políticas públicas, entendidas como o conjunto de ações governamentais relacionadas às leis e à atuação do poder público nas atividades de afirmação dos direitos fundamentais, sendo, verdadeiramente, uma ponte de integração da Constituição com a realidade do país.
Tais diretrizes estatais não são um fim em si mesmo, mas buscam salvaguardar um direito fundamental garantido aos indivíduos, de modo que o seu ciclo de vida é composto por uma fase de identificação e delimitação do problema; da formulação da política em si; da implementação da mesma e; de seu acompanhamento e avaliação.
Dentre os direitos que proclamam tal atuação positiva, temos o direito social à saúde, que é, no Brasil, assegurado constitucionalmente a todos, passando a haver um dever correlato do Estado de prover condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde.
Todavia, evidenciou-se também que, em diversos momentos, inexistem diretrizes estatais para o tratamento de determinado problema de saúde ou, se prevista alguma política pública, a mesma pode se mostrar ineficiente em virtude da peculiaridade do caso concreto.
Por causa disso, identificou-se o surgimento do controle jurisdicional de políticas públicas, de modo que o cidadão passou a buscar a tutela do Poder Judiciário para efetivar um direito que deveria ter sido salvaguardado, em primeiro lugar, pelo Poder Executivo e Legislativo através da formulação e implementação de políticas públicas efetivas e adequadas à realidade social.
Assim, notou-se que através de uma ação judicial de caráter individual ou coletiva, é de se aplicar a dimensão positiva do direito fundamental à saúde. Em outras palavras, trata-se do direito subjetivo do cidadão, que pode exigir da União Federal, Estados e Municípios, solidariamente, o fornecimento de um determinado tratamento médico, um exame laboratorial, uma internação hospitalar, procedimento cirúrgico ou qualquer outro meio de proteger a saúde.
Desta forma, através dos estudos realizados acerca do controle jurisdicional de políticas públicas e dos precedentes jurisprudenciais acima colacionados, observou-se que o Judiciário possui legitimidade democrática para implementar políticas públicas relativas ao direito à saúde quando esta estiver em risco por parte da desídia estatal, sem que isso represente uma ingerência indevida de um Poder no outro.
Expressou-se, de particular maneira, que vários instrumentos judiciais podem ser utilizados para salvaguardar o direito fundamental à saúde, inclusive no que diz respeito à formas de controle concentrado de constitucionalidade, que também se configuram como meios idôneos para verificar a negligência dos executores de Políticas Públicas, não sendo necessário ao jurisdicionado, inclusive, esgotar as instâncias administrativas para obter do Judiciário uma tutela tempestiva e adequada aos seus direitos.
Além disso, reputou-se que medidas coercitivas podem ser utilizadas em desfavor da Fazenda Pública como, por exemplo, o bloqueio de verbas públicas, para forçar o cumprimento das decisões oriundas do Judiciário.
Ademais, foi verificado também que deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em prejuízo de opção distinta escolhida pelo jurisdicionado, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.
Mas, caso seja constatada a impropriedade do procedimento do SUS para o caso concreto, é perfeitamente possível o Judiciário valer-se de tratamento diferente, inclusive de medicamentos ainda não registrados na ANVISA, para resguardar o direito à saúde do postulante.
Outrossim, evidenciou-se que a formulação de uma política pública passa por critérios de macrojustiça, em que se busca uma maior efetividade do direito à saúde através da previsão e combate a agravos mais recorrentes, de modo que a diretriz esboçada na política pública busca atingir uma maior quantidade de indivíduos e combater a maior quantidade de problemas possíveis.
Entretanto, afirmou-se também que o papel do Poder Judiciário é a realização da microjustiça (a justiça do caso concreto), de modo que o Judiciário tem o dever constitucional de assegurar o tratamento que se configure mais adequado à realidade, caso se vislumbre a impropriedade do tratamento no âmbito do SUS.
Dessa forma, mostrou-se imperiosa a adequada instrução probatória em demandas que envolvem o direito fundamental à saúde, de modo a aclarar melhor o posicionamento do juízo e legitimar a sua decisão.
Conclui-se, portanto, que o direto à saúde não pode ser formal, mas sim efetivo, devendo-se proporcionar ao cidadão o acesso aos tratamentos médicos necessários, para atender plenamente o direito Constitucional à saúde e o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, não havendo óbices ao Judiciário para atuar em demandas que envolvam o controle jurisdicional de políticas públicas atinentes à saúde.
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[1] SARLET, Ingo Wolfgang . Algumas Considerações Em Torno Do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do direito à Saúde na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, núm. 10, janeiro de 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 de novembro de 2014.
[2] “Entre as garantias objetivas do direito à saúde se encontra a informação, um conceito que recorre em manifestações múltiplas e variadas, em toda a nossa legislação sanitária. Além do direito ao diagnóstico e ao direito à informação sobre a própria doença, como uma ferramenta para melhor exercício da liberdade de escolha incluída no lado defensivo do direito à saúde [...] o direito à informação como garantia objetiva tem duas formas em nosso Ordenamento: 1) direito à informação sobre os serviços de saúde, como uma ferramenta para melhor solicitude dos benefícios e serviços do direito à saúde [...] 2) informações coletadas pelo SNS (sistema nacional de saúde), como um meio necessário para uma melhor regulamentação e política sanitária [...]” – tradução livre.
[3] RIOS, Roger Raupp. Direito à saúde, universalidade, integralidade e políticas públicas: princípios e requisitos em demandas judiciais por medicamentos. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao031/roger_rios.html. Acesso em 24 de novembro de 2014.
[4] FAGUNDES, Helenara Silveira; NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. O principio da integralidade nas políticas nacionais de saúde e assistência social. Disponível em: http://www.uff.br/lassal/images/stories/jornadas/artigo/FAGUNDES_E_NOGUEIRA1.doc. Acesso em 24 de novembro de 2014.
[5] De acordo com o dicionário Michaelis: pol.i.tics: n pl 1 (verbo no singular) política. 2 (verbo no singular) interesse partidário. 3 (verbo no plural) opiniões políticas. what are his politics? / qual é a sua opinião política? to talk politics discutir questões políticas. all politics were forbidden / toda discussão política foi proibida. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php?lingua=ingles-portugues&palavra=politics, acesso em 04 de dezembro de 2014.
[6] De acordo com o dicionário Michaelis: pol.i.ty n 1 forma, sistema ou método de governo. 2 comunidade organizada politicamente. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php?lingua=ingles-portugues&palavra=polity. Acesso em 04 de dezembro de 2014.
[7] De acordo com o dicionário Michaelis: pol.i.cy1 n 1 diplomacia. 2 orientação política, programa de ação, diretriz. 3 sagacidade, astúcia. bad policy falta de diplomacia. domestic policy política interna. foreign policy política externa. honesty is the best policy a honestidade é a melhor política. to do something from motives of policy fazer alguma coisa por motivos táticos. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/ingles/index.php?lingua=ingles-portugues&palavra=policy. Acesso em 04 de dezembro de 2014.
[8] Representação Argumentativa: fator retórico ou mecanismo de legitimação da atuação do Supremo Tribunal Federal? Disponível em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3589.pdf, acesso em 16 de novembro de 2014
[9] “Onde está a sociedade, está o direito; onde está o direito, está a sociedade”.
[10] Íntegra da decisão monocrática em http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm, acesso em 14 de novembro de 2014.
[11] Íntegra do voto disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA175.pdf. Acesso em 15 de novembro de 2014.
[12] Íntegra de acórdão e decisão monocrática disponíveis em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listar Consolidada.asp?classe=RE&numero=393175&origem=AP, acesso em 16 de novembro de 2014.
[13] Íntegra de acórdão disponível em http://www.trf5.jus.br/archive/2011/03/00182869820104050000_20110331_3801748.pdf. Acesso em 16 de novembro de 2014.
Advogado. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal - RN - Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAIA, Angelus Emilio Medeiros de Azevedo. Perspectivas e parâmetros do controle jurisdicional de políticas públicas em saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49104/perspectivas-e-parametros-do-controle-jurisdicional-de-politicas-publicas-em-saude. Acesso em: 25 nov 2024.
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