RESUMO: O trabalho analisa a evolução histórica da legislação de parcelamento do solo no Brasil em âmbito federal, aponta as influências do direito estrangeiro, delineia as questões controvertidas de vigência de algumas normas e o âmbito de aplicação dessas normas. Há, no direito brasileiro, em âmbito federal, diversas normas que tratam do parcelamento do solo urbano, que em parte se conflitam. Vez que as normas mais recentes não revogaram de forma expressa as anteriores, surge, assim, uma controvérsia em torno da vigência dessas normas. Em outro sentido, algo pouco enfrentado, diz respeito ao âmbito de aplicação dessas normas. Essa problemática toca mais incisivamente a Lei n° 6.766/79, quando se refere aos loteamentos para fins urbanos. Como há exigências e procedimentos próprios, analisou-se o que se entende por parcelamento para fins urbanos, em confronto com a legislação anterior.
Palavras-chave: Direito urbanístico. Parcelamento do Solo.
Sumário: 1 Introdução 2 Evolução Histórica da Legislação do Parcelamento do Solo Urbano 2.1 As Primeiras Normas Sobre Parcelamento no Direito Alienígena 2.2 As Primeiras Normas Sobre Parcelamento do Solo no Brasil: o Decreto-Lei nº 58/37 e o Decreto 3.079/38 2.3 Dos Decretos-Leis 271/67 2.4 Da Lei 6.766/79 3 A Controvérsia em Torno da Vigência do Decreto-Lei nº 58/37 e do Decreto-Lei 271/69 4 Do Âmbito de Aplicação da Lei nº 6.766/79 5 Regime Jurídico do Parcelamento do Solo Urbano 6 Regime Jurídico do Parcelamento do Solo Rural 7 Conclusão Referências
1 Introdução
Embora o parcelamento do solo seja um tema que tem despertado pouca atenção dos operadores do direito, sua importância não pode ser subestimada. Decidir a forma pelo qual se dará o parcelamento é estabelecer, em essência, o modelo de cidade que desejamos. Se a incorporação imobiliária faz os núcleos urbanos expandirem verticalmente, o parcelamento é responsável pelo crescimento da cidade em sua dimensão horizontal. A falta de atenção ao instituto do parcelamento e seus impactos contribuem para o agravamento da inadequada forma de expansão urbana, refletindo no acesso aos serviços públicos, ao transporte, à moradia, entre outros. Daí a importância em aprofundar a pesquisa nos aspectos históricos do parcelamento. O tema do parcelamento está umbilicalmente ligado a qualidade de vida nas cidades, interessando aos diversos ramos do direito. Trata-se de matéria de grande relevo na vida das pessoas, merecendo, assim, um estudo mais aprofundado.
No presente trabalho, buscou-se analisar algumas questões controvertidas na aplicação da legislação federal que trata especificamente do parcelamento do solo. Na análise, serviu-se em especial dos aspectos históricos e influências dessas normas, para, ao final, analisar o problema da vigência de alguns diplomas normativos correlatos e o âmbito de incidência dessas normas, tendo em vista as problemáticas que envolvem.
2 Evolução Histórica da Legislação do Parcelamento do Solo Urbano
O parcelamento do solo urbano é gênero do qual são espécies o loteamento e o desmembramento. Embora no vocabulário do leigo seja mais conhecido o termo “loteamento”, na atual sistemática jurídica, há um regime jurídico único no qual se enquadra tanto o desmembramento quanto o loteamento.
O surgimento das primeiras normas que passaram a regular o parcelamento do solo coincide com o aparecimento também dos problemas nas cidades. O fenômeno da urbanização tem inúmeros reflexos na vida do homem moderno e é nesse contexto que surgem as preocupações com as consequências do crescimento das cidades. A importância da regulamentação do parcelamento hodiernamente parece inquestionável. O parcelamento, na sua forma urbana, é por excelência o meio pelo qual a cidade se expande horizontalmente. Se a incorporação imobiliária produz a verticalização das cidades, o parcelamento possibilita o crescimento das áreas que se agregam ao espaço urbano em sua extensão horizontal.
A falta de regulamentação do parcelamento pode trazer inúmeros problemas à cidade. Pensando no planejamento urbano, o crescimento desordenado das cidades pode sobrecarregar o transporte público, os serviços públicos de saúde, educação, coleta de lixo, entre outros. A densidade acima do desejado pode provocar inúmeras consequências, seja pela ausência de espaços públicos de lazer, ausência de áreas verdes, agravamento dos efeitos da poluição, com impacto direto na qualidade de vida dos seus habitantes. Portanto, a compreensão das normas que regem o parcelamento, além do interesse privado do proprietário da área, tem inegável repercussão para toda a sociedade.
A sistemática que se produziu em torno do parcelamento é fruto dos grandes problemas urbanos que foram se agravando ao passar do tempo, nascendo a preocupação de se produzir regras que pudessem adequar os interesses privados às necessidades da coletividade. Embora, na sua origem, as primeiras normas sobre o tema tenham se restringido a proteger os adquirentes das áreas oriundas do parcelamento, não se deve desconectar de forma estanque das outras exigências urbanísticas que se seguiram.
As normas jurídicas que se produziram em nosso país sobre o tema sofreram influência da legislação estrangeira, razão pela qual, vale analisar de forma breve como o direito alienígena tratou a matéria.
2.1 As Primeiras Normas Sobre Parcelamento no Direito Alienígena
A França foi pioneira na edição de leis sobre parcelamento do solo urbano. As leis sobre o tema surgiram já com a preocupação com os aspectos urbanísticos e de higiene, diferentemente do que foram as primeiras normas em nosso país. Ao longo das primeiras três décadas do Século XX, a França produziu diversas normas sobre parcelamento, que acabou por influenciar as demais legislações que se seguiram. Em 1919, foi imposto um plano de loteamento, sendo considerado o marco inicial na matéria. Outra lei, em 1924, passou a exigir autorização administrativa para os parcelamentos. A regularização dos parcelamentos irregulares mereceu, em 1928, atenção das leis naquele país (BATALHA, 1959, pag. 206-207). A preocupação com o tema na França foi seguida pelos demais países da Europa, como por exemplo, a Alemanha, que, em 1924, produziu normas a respeito.
Sob influência francesa, na América do Sul, o Uruguai, no ano de 1931, editou a Lei 8.733, que teve preocupação não só com os direitos de cunho obrigacional, como avançou em aspectos urbanísticos e ambiental. “O legislador uruguaio preocupou-se, fundamentalmente, com o problema dos loteamentos, não só sob o ponto de vista urbanístico, como também sob o ponto de vista da proteção aos compromissários compradores” (BATALHA, 1959, pag. 206). Frazão Couto (1981, pag. 14) aponta o pioneirismo uruguaio, ressaltando que nesse país, “pela primeira vez, falou-se em defesa dos direitos dos adquirentes de fração urbanas, em legislação própria sobre o tema”.
O legislador uruguaio conferiu ao compromissário comprador direito real ao compromisso de compra e venda inscrito no órgão de registro. Nesse aspecto, a legislação brasileira posterior sofreu forte influência do direito uruguaio. Essa previsão tem grande importância, vez que reinava grande insegurança nos compromissos de compra e venda desses imóveis pela possibilidade que os compromissários tinham de desistir da evença. Como os imóveis parcelados eram em grande parte alienados em prestações, com a valorização imobiliária, os compromissários optavam por rescindir o contrato à outorgar a escritura definitiva. A lei uruguaia, em seu art. 15, resolveu a questão, conferindo ao compromitente comprador, desde que inscrito o título no órgão de registro, direito real.
Não se deve ignorar da grande discussão em torno da natureza jurídica do instrumento particular de compromissória relativo à imóvel devidamente levado a registro. Parte da doutrina advoga a tese de não se tratar de autêntico direito real, mas o contrato levado a registro teria natureza obrigacional com oponibilidade erga omnes. Essa é a posição de Pontes de Miranda, para quem “a expressão ‘direito real’, que veio no art. 5º do Decreto-Lei nº 58, proveniente de trêfego do legislador estrangeiro, que o brasileiro copiou sem meditação, não passa de lapso, de inexatidão de técnica e de terminologia, porque se deu o nome sem se dar o conteúdo” (PONTES DE MIRANDA, 1959, pag. 134). Também assim pensa Serpa Lopes (SERPA LOPES, apud BATALHA, 1959, pag. 361), sustentando que “(...) a expressão direito real, aplicada à espécie, é evidentemente imperfeita e inadequada. Não se quis aumentar o numerus clausus dos direitos reais taxativamente indicados no artigo 674 do Código Civil”.
Caio Mario da Silva Pereira (1970, pag. 104) abre divergência ao sustentar que o contrato de promessa de compra e venda registrado é direito real, seguindo a posição segundo a qual os direitos reais não se restringiriam aos previstos no Código Civil.
Embora não haja consenso em torno da natureza jurídica do compromisso de compra e venda de imóvel, é certo que num ou noutro sentido as consequências serão as mesmas. Assim, qualquer que seja a corrente adotada, “(...) os efeitos da promessa são iguais aos derivados de outros direitos reais, enumerados no art. 1.225 do CC” (RIZZARDO, 2014, pag. 119). Assim, a discussão tem importância apenas no campo teórico.
2.2 As Primeiras Normas Sobre Parcelamento do Solo no Brasil: o Decreto-Lei nº 58/37 e o Decreto 3.079/38
O professor da Faculdade de Direito de São Paulo Waldemar Ferreira, deputado à época, apresentou à Comissão de Constituição e Justiça, em sessão de nove de junho de 1936, um projeto de lei, de sua autoria, sobre o parcelamento. O projeto de lei teve por escopo a proteção dos direitos dos adquirentes dos imóveis loteados. Não havia no projeto do deputado dispositivos acerca das limitações urbanísticas, sanitária ou ambiental.
Nas razões do projeto, o professor paulista discorre:
Surgem, constantemente, reclamos de uma legislação reguladora dos contratos de compromissos de venda de imóveis em lotes, a prazo, mediante o pagamento do preço em prestações periódicas e sucessivas. Lançam-se, em todos os pontos do país, empresas destinadas a explorar esse gênero de negócio, cuja comercialização é evidente, mas que, por enquanto, se choca com os princípios em que se abeberou o código dos comerciantes. (...) pela precariedade dos títulos de domínio dos vendedores, não examinados conveniente e cuidadosamente. Pela existência de ônus reais gravando a propriedade loteada e, em dado momento, posta em regime de execução judicial (...). Não confere o contrato de compromisso de compra e venda nenhum direito real. Sendo o instrumento público exigível para a prova do contrato de compra e venda de imóvel de valor superior a um conto de réis, a qualquer das partes permite o art. 1.088 do Código Civil arrepender-se antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento (FERREIRA, 1938, pag. 15-16).
O projeto de lei teve por finalidade a proteção dos direitos dos adquirentes de imóveis divididos em lotes, desde que fossem vendidos por ofertas públicas, mediante pagamento em prestações sucessivas e periódicas. Diferentemente da lei uruguaia, não havia ainda uma preocupação, ao menos estampada no projeto, em relação aos aspectos urbanísticos do parcelamento.
O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 16 de junho de 1936, com pequenas alterações. Na tramitação, o projeto sofreu várias emendas, sendo aprovado na Câmara dos Deputados o substitutivo elaborado, tendo como essência o projeto originário. Encaminhado o projeto ao Senado Federal, a tramitação foi interrompida pelo golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937.
De todo modo, o novo governo adotou o projeto na sua quase integralidade, editando o Decreto-Lei 58, de 10 de dezembro de 1937. Em 15 de setembro de 1938, foi editado o Decreto nº 3.079, que regulou o referido diploma legal sem grande novidade sobre o tema.
O Decreto-Lei 58/37 foi o primeiro diploma normativo específico a cuidar do parcelamento do solo em nosso país. Representou, de fato, um grande avanço na proteção dos adquirentes dos lotes. Embora tenham sobrevindo outras normas sobre a matéria, esse decreto-lei não foi expressamente revogado. Há, assim, controvérsia em torna da sua vigência, questão que será tratada adiante.
Conforme dispõe o art. 1º do Decreto-Lei 58/37:
Os proprietários ou co-proprietários de terras rurais ou terrenos urbanos, que pretendam vendê-los, divididos em lotes e por oferta pública, mediante pagamento do preço a prazo em prestações sucessivas e periódicas, são obrigados, antes de anunciar a venda, a depositar no cartório do registro de imóveis da circunscrição (...).
Esse dispositivo enuncia alguns elementos importantes que dizem respeito ao âmbito de incidência do diploma normativo. De início se extrai que o Decreto-Lei 58/37 tem aplicação tanto aos imóveis urbanos quantos aos rurais. Em relação aos imóveis rurais, o posicionamento predominante é o de que o referido diploma ainda é aplicável. A controvérsia acima enunciada, em relação à vigente, se refere a sua aplicação tão somente aos parcelamentos para fins urbanos.
Há outros elementos que ainda podem ser extraídos do referido dispositivo. Para que seja aplicado o Decreto-Lei 58/37, dependerá cumulativamente dos seguintes critérios:
a que os imóveis sejam divididos em lotes;
b que haja a intenção de alienar por oferta ao público;
c mediante pagamento do preço em prestações sucessivas e periódicas.
Assim, não havendo a intenção do loteador em ofertar os imóveis ao público, não haveria a incidência do referido diploma legal. Do mesmo modo, se não houvesse a divisão em lotes, igualmente não se aplicaria.
Não obstante empregar o termo lote, o diploma não o conceitua. A dúvida surge tendo em mente a diferenciação do loteamento do simples desdobro (desdobre) e do desdobramento. O diploma não traz critério de diferenciação desses conceitos, cabendo ao intérprete elucidar a problemática. Em relação a questão, primeiramente o Decreto-Lei nº 271/67, nos parágrafos 1º e 2º do art. 1º, resolve em parte o problema, definindo loteamento e desmembramento, o que o art. 2º, §§ 2º e 3º, da Lei 6.766/79, posteriormente, repete quase que integralmente. Por fim, o referido decreto-lei exige que os lotes sejam alienados com pagamento do preço em prestações sucessivas e periódicas. Em outras palavras, se a quitação do preço não fosse diferida, estaria afastada a aplicação do deferido diploma legal.
Outra inovação trazida pelo Decreto-Lei 58/37 diz respeito à impossibilidade de rescisão unilateral da avença pelo loteador. A questão tem relevo à luz do que previa o art. 1.088 do Código Civil de 1916, que dispunha: “quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097”. Com a valorização dos imóveis loteados, os promitentes alienantes optavam por rescindir o contrato para posterior alienação do imóvel. Essa providência acabava por frustrar as expectativas do promitente adquirente.
Com inspiração no artigo 15 da Lei 8.733 do Uruguai, o Decreto-Lei 58/37, em seu art. 5º, conferiu ao compromisso de compra e venda devidamente averbado no registro de imóvel efeito erga omnes em relação às alienações ou onerações posteriores. O dispositivo, no tocante aos imóveis loteados, encerrou a discussão, passando a conferir aos contratos de promessa de compra e venda tutela específica.
2.3 Dos Decretos-Leis 271/67
Diante da premente necessidade de regulação do parcelamento do solo urbano em seu aspecto urbanístico, o professor Hely Lopes Meirelles, juntamente com Eurico de Andrade de Azevedo, se encarregou da elaboração de um anteprojeto de lei, apresentado ao Ministério do Planejamento no ano de 1966. Durante a tramitação do anteprojeto de lei perante os órgãos federais, este foi desfigurado, dando origem ao Decreto-Lei nº 271/67, que teve pouco impacto no regime jurídico dos parcelamentos do solo.
Conforme afirma o próprio Hely Lopes Meirelles (1974, pag. 262):
Infelizmente, desse anteprojeto foram retirados apenas alguns dispositivos, quebrando todo o sistema, e dando origem ao atual Decreto-Lei 271, de 27 de fevereiro de 1967, que trouxe ainda mais dificuldade e confusão nesse setor, pela manutenção obsoleta da legislação anterior (Decreto-Lei 58, de 1937 e seu Regulamento, Decreto 3.079, de 1938 e determinação da aplicação de Condomínios e Loteamentos (Lei 4.591, de 1.964).
O art. 3º do diploma legal, de fato, determinou a aplicação da Lei nº 4.591, Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliária. Esse dispositivo trouxe mais controvérsia que solução, vez que o regime jurídico das incorporações imobiliárias não tem proximidade com o parcelamento. O diploma não previu áreas mínimas aos lotes, não dispôs sobre a infraestrutura do loteamento, sobre os equipamentos públicos, logradouros, ou seja, não significou quase nenhum avanço na matéria.
O Decreto-Lei 271/67 normatizou apenas os loteamentos urbanos, diferentemente do Decreto-Lei 58/37, que regula tanto os loteamentos de imóveis urbano quanto os rurais. Previu o art. 2º do referido decreto-lei que o Banco Nacional de Habitação, no prazo de 90 dias, baixaria normas gerais de diretrizes, apresentação do projeto, especificações técnicas e dimensionais e aprovação. Ocorre que tal norma nunca foi editada.
O Decreto-Lei 271/37 em seu art. 1º, § 3º, para os fins de sua aplicação, definiu zona urbana como sendo as áreas abrangidas pelas “da edificação contínua das povoações, as partes adjacentes e as áreas que, a critério dos Municípios, possivelmente venham a ser ocupadas por edificações contínuas dentro dos seguintes 10 (dez) anos”.
2.4 Atual Lei de Parcelamento do Solo Urbano: Lei 6.766/79
A ausência de uma legislação nacional sobre a matéria contribuiu para a proliferação dos loteamentos clandestinos. Na busca de uma proposta para a questão, iniciaram-se vários debates no âmbito acadêmico e no governo. Dois encontros nacionais se destacaram. O primeiro em 1969, com o tema “Uso do Solo e Loteamento Urbano”, realizado em Salvador, no qual teve como centralidade a questão do loteamento. Entre os participantes do encontro estavam grandes nomes do direito, como Orlando Gomes, Celso Antônio Bandeira de Mello, Eurico de Andrade de Azevedo, Hely Lopes Meirelles, Darcy Bessone, entre outros. Ao final do evento, foi proposto um anteprojeto de lei, encaminhado ao Executivo Federal. Outro encontro foi realizado em 1975, em Brasília, proposto pela Fundação Milton Campos, onde também se discutiu a questão. Nesse encontro o anteprojeto proposto no encontro em Salvador foi rediscutido, contando com a presença de vários parlamentares (MEIRELLES, 1974, Pag. 113-153).
Fruto desse intenso debate, em 11 de março de 1977, o Senador Otto Lehmam apresentou o Projeto de Lei nº 18/77, que daria origem à atual Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766/79). Ao longo da tramitação, foi apresentado parecer do BNH – Banco Nacional de Habitação propondo alteração dos padrões urbanísticos. Com base no parecer, foi elaborado um substituto ao projeto, que teve seu trâmite acelerado. Em 17/08/1979 foi aprovado o substitutivo na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal, onde teve tramitação célere e, em 19 de dezembro de 1979, foi sancionada a Lei nº 6.766 pelo então presidente João Figueiredo (MEIRELLES, 1974, pag. 157).
A Lei nº 6.766/79 é hoje o principal diploma normativo em âmbito federal sobre parcelamento do solo urbano, tendo aplicação tão somente aos parcelamentos para fins urbanos, conforme dispõe o seu art. 1º. Diversas foram as inovações em relação ao tratamento da questão: 1) impôs diversos limites em relação ao solo a ser parcelado, proibindo o parcelamento em solos alagadiços, sujeitos a inundação, que tenham sido aterros sanitários etc. (art. 3º, Parágrafo Único); 2) estabeleceu requisitos urbanísticos a serem atendidos, tais como áreas dos lotes, áreas non edificandi, diretrizes sobre a respeito das vias e logradouros públicos (art. 4º); 3) estabeleceu a participação no procedimento de aprovação do projeto de parcelamento dos Estados em alguns casos (art. 13); 4) tornou crime diversas condutas envolvendo o parcelamento etc.
De fato, a Lei nº 6.766 foi um marco no tratamento da questão, concentrando em um diploma legal toda a sistemática que envolve o parcelamento. Ressalta-se que o parcelamento do solo urbano é matéria que interessa a vários ramos do direito. O parcelamento envolve aspectos de Direito Civil, no que concerne os adquirentes, com regras próprias a respeito dos contratos e as obrigações deles decorrentes. Também envolve aspecto registrais, em relação ao procedimento perante o Registrador de Imóveis. Tem grande relevo ainda em relação a questões urbanísticas e de direito administrativo, no tocante aos parâmetros urbanísticos e no exercício do poder de polícia do Estado, por seus órgãos, no tocante as licenças e o poder de fiscalização do cumprimento das obrigações legais do parcelador. O loteamento envolve questões de Direito Ambiental, seja na limitação de áreas non aedificandi e de preservação ambiental. Portanto, a matéria reclamava a tempos um tratamento específico que pudesse sistematizar e harmonizar os diversos aspectos do parcelamento.
3 A Controvérsia em Torna da Vigência do Decreto-Lei nº 58/37 e do Decreto-Lei 271/69
Com o advento da Lei nº 6.766/79, passou-se a indagar se esse diploma legal teria revogado integralmente o Decreto-Lei 58/37, seu decreto regulamentador e o Decreto-Lei 271/69, em relação aos loteamentos para fins urbanos. Como se afirmou, o Decreto-Lei nº 58/37 trata tanto do loteamento urbano quanto do rural. Portanto, a questão tem relevo considerando a sua aplicação aos parcelamentos para fins urbanos. O Decreto-Lei nº 271/69, por sua vez, cuidou apenas do loteamento de imóveis urbanos. Assim, a questão a ser enfrentada seria se a Lei nº 6.766/79 teria derrogação o Decreto-Lei nº 58/37 em relação aos loteamentos para fins urbanos e, em relação ao Decreto-Lei 271, o teria ab-rogado, ou seja, revogado na sua integralidade.
É certo que a Lei nº 6.766/79 não revogou de forma expressa os diplomas normativos anteriores. Restringiu essa lei em prever o que sacramentalmente os textos acabam por reproduzir, dispondo o seu art. 55 que “revogam-se as disposições em contrário”. Caio Mário da Silva Pereira (2014, pag. 206) aponta que essa previsão é um “ocioso apêndice, pois que, com esta referência ou sem ela, as disposições contrárias à lei nova, existentes em outras mais antigas, ficam tacitamente revogada, pelo princípio da incompatibilidade, sem valer, entretanto, a cláusula como revogação expressa, pela falta de referência ao dispositivo de lei anterior, diretamente atingido”. Trata-se, de fato, de disposição que em nada contribui na análise da possível revogação dos dispositivos anteriores.
Não há dúvida de que o Decreto-Lei nº 271/69 não revogou o Decreto-Lei nº 58/37, já que aquele diploma normativo contém expressamente menção nesse sentido em seu art. 10. Portanto, permanecia todos esses diplomas normativos vigentes, salvo naquilo que incompatível com o novo decreto-lei. Ocorre que a Lei nº 6.766/79 não tem dispositivo semelhante, nem poderia tê-lo, vez que incompatível com a sistemática que instaurara.
Diante da ausência de norma revogadora expressa, cabe perquirir se teria a nova lei ab-rogado tacitamente os demais textos normativos. A revogação “tácita ou indireta é a forma de revogação mais frequente, porém mais delicada, sujeita a sutilizas, e por isso mesmo a doutrina mais detidamente a examina” (PEREIRA, 2014, pag. 107). De fato, não se trata de trabalho simples, causador de grande controvérsia entre os aplicadores do direito.
No direito brasileiro, a revogação tácita da lei anterior se dá em dois casos, em razão da incompatibilidade com a nova lei ou se a lei posterior regular inteiramente a matéria tratada na lei anterior (art. 2º, § 1º, Lei de Introdução). Caio Mario ressalta que, em verdade, embora a lei traga duas formas de revogação tácita, num ou noutro modo será caso de incompatibilidade. Isso porque, no caso de lei posterior regular inteiramente a matéria da lei anterior, tem-se igualmente uma situação de normas incompatíveis. O que distinguiria, portanto, seria ser a incompatibilidade parcial ou total da lei anterior com a nova lei (PEREIRA, 2014, pag. 108-109). Havendo incompatibilidade total entre os diplomas, não resta outra via senão o afastamento da lei anterior na sua integralidade. Por outro lado, se apenas alguns dispositivos da nova lei são incompatíveis com a anterior, caberá ao operador investigar pontualmente as incoerências. Em arremate ao dispositivo anteriormente citado, prevê o art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.
Cabe, neste caso, indagar se a Lei nº 6.766/79 teria regulado inteiramente a matéria tratada nas leis anteriores, situação na qual teria superado esses diplomas normativos. Na busca de solução da controvérsia, a doutrina especializada se diverge.
Para os autores Toshio Mukai, Alaôr Caffé Alves e Paulo José Villela Lomar, a Lei nº 6.766/79, em relação ao loteamento para fins urbanos teria derrogado os Decretos-leis 58/37 e 271/69. Sustentam que
(...) a Lei nº 6.766/79 veio aperfeiçoar a disciplina dos loteamentos e desmembramentos urbanos. Ela regula inteiramente o instituto do loteamento urbano (e do desmembramento urbano). Por isso, de acordo com o art. 2º, § 1º, do Decreto-lei nº 4.557, de 4-9-42 (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro), exatamente porque regula inteiramente a matéria concernente a loteamento urbanos, derrogou o Decreto-lei nº 58, de 10-12-37, no que diz respeito à sua aplicação em relação ao meio urbano e também o Decreto-lei nº 271, de 28-2-67, no que diz respeito a loteamentos (MUKAI; ALVES; LOMAR, 1980, pag. 1-2).
Ressaltam os autores que, em relação aos imóveis rurais, o Decreto-lei nº 58/37 ainda tem aplicação. Relevam, entretanto, os autores que
(...) como, também, o Decreto-lei 271/67 dispôs sobre loteamento urbanos e concessão de uso de terrenos e do espaço aéreo, permanecem em vigor os seus arts. 7º e 8º, que tratam da concessão de uso, que é matéria geral, não especial, relativa a loteamentos urbanos (MUKAI; ALVES; LOMAR, 1980, pag. 1-2).
Em relação ao caput e parágrafo 5º do art. 7º do Decreto-lei 271/67, a Lei nº 11.481/2007 lhes deu nova redação, restando, assim, as redações primitivas expressamente revogadas.
O professor mineiro Marco Aurélio S. Viana tem o mesmo posicionamento, sustentando que, vez que a Lei de Parcelamentos do Solo Urbano trouxe “normação geral sobre a matéria contida nas leis anteriores, é indiscutível que ab-rogou o Decreto-lei nº 58/37, o Decreto nº 3.709/38 e o Decreto-lei nº 271/67, no que diz respeito aos imóveis loteados” (VIANA, 1984, pag. 150).
Em sentido contrário, posiciona Arnaldo Rizzardo, para quem os antigos diplomas normativos ainda permanecem aplicáveis aos parcelamentos para fins urbanos, salvo se houver incompatibilidade do dispositivo com a nova lei. Sustenta esse autor que, “em tese, não se presume a derrogação tácita ou implícita das leis; vislumbra-se a derrogação quando é invencível a irreconciliabilidade entre a nova e a lei anterior”. Finaliza o autor, afirmando que, “em resumo, todos os mandamentos sobre o parcelamento do solo continuam em vigor, não na plenitude, pois vários dispositivos tiveram a matéria regulada pela Lei nº 6.766, como se analisará a seguir” (RIZZARDO, 2014, pag. 24).
Como se percebe, a doutrina se divide em relação a extensão de aplicação das normas anteriores. Parte da doutrina entende que os Decretos-leis nº 58/37 e 271/67 não teriam mais aplicação nos loteamentos para fins urbanos. Outra parte da doutrina, sustenta que os dispositivos compatíveis com a Lei nº 6.766 ainda permanecem vigentes.
Com o devido respeito a quem pensa em sentido contrário, perfilhamos esse segundo entendimento. Entendendo que, diante do silêncio da lei posterior, não cabe ao intérprete ab-rogar outros diplomas normativos sem que haja forte fundamento. Nesse sentido, havendo possibilidade de conciliação dos dispositivos anteriores com a nova lei, sempre é preferível tal caminho. No caso em que se analisa, alguns dispositivos são não só conciliáveis formalmente como desejável que se reconheça sua vigente. Cita-se, a título de exemplo, o art. 10 do Decreto-lei nº 58/37, que estabelece a obrigatoriedade de que nas publicações de propaganda de venda dos lotes seja mencionado o número e data da inscrição do registro imobiliário.
Essa obrigatoriedade não foi repetida pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Norma parecida há em relação as incorporações imobiliárias, conforme dispõe o § 3º, art. 32 da Lei nº 4.591/64. A obrigatoriedade busca proteger os interesses dos adquirentes, buscando dar amplo acesso aos documentos que deram origem ao registro. Poderá qualquer interessando, buscando adquirir os imóveis objeto do empreendimento, diligenciar junto ao Registro de Imóveis com o objetivo de verificar a regularidade do registro. O dispositivo é um salutar complemento ao art. 24 da Lei de Parcelamento, que dispõe que o processo de loteamento e os contratos podem ser examinados por qualquer pessoa, a qualquer tempo, independente do pagamento de custas ou emolumentos, ainda que a título de busca.
Não há dúvida, entretanto, que em razão da Lei de Parcelamento do Solo Urbano regular de forma ampla a matéria, grande parte dos dispositivos dos diplomas anteriores estão revogados.
Superada essa questão, cumpre enfrentar de forma mais detida, quais seriam as principiais normas que tratam do parcelamento do solo para fins urbanos e do parcelamento para fins rurais.
4 Do Âmbito de Aplicação da Lei nº 6.766/79
A questão central no estabelecimento do regime ao regime jurídico do parcelamento é o delineamento do que se entende por fins urbanos, previsto no art. 1º da Lei de Parcelamento. Antes de analisar a questão de forma mais detida, convém perpassar por outras discussões que clarearão o sentido da expressão.
Do art. 1º do Decreto-lei 58/37 se extrai que esse diploma se aplicava tanto ao imóvel urbano quanto ao rural, não havendo qualquer distinção.
O art. 1°, caput, do Decreto-lei 271/67, estabelece que está submetido ao diploma normativo os loteamentos urbanos. Em completo ao caput do art. 1º o parágrafo 3º definiu zona urbana, para os fins do decreto-lei, como sendo “a da edificação contínua das povoações, as partes adjacentes e as áreas que, a critério dos Municípios, possivelmente venham a ser ocupadas por edificações contínuas dentro dos seguintes 10 (dez) anos”. O caput do artigo usa a expressão loteamentos urbanos, há que se indagar se referiria à imóveis urbanos ou imóveis localizados em zonas urbanas. Por outro lado, o parágrafo 3º se restringe a conceituar zona urbana. Assim, não deixa claro se o diploma teria aplicação aos imóveis urbanos ou aos imóveis localizados nas zonas urbanas.
A Lei nº 6.766/79, em melhor técnica, estabeleceu em seu art. 1°, que “o parcelamento do solo para fins urbanos será regido por esta Lei”. Como se nota, o dispositivo não fala em imóveis urbanos ou localizados em zonas urbanas, mas em loteamentos para fins urbanos. Assim, todo parcelamento para fins urbanos, independentemente de ser imóvel rural ou urbano, será regido pelo diploma legal citado.
É perfeitamente possível o loteamento de imóvel rural para fins urbanos, desde que, situado em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal, conforme pode ser extraído do art. 3º, caput, da Lei de Parcelamento do Solo. Em complemento, estabelece o art. 53 da mesma lei que
(...) todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente (BRASIL, 1979).
A Lei de Parcelamento tem aplicação sempre que o parcelamento se destinar a fins urbanos, pouco importante se o imóvel seja urbano ou rural.
A critério adotado pelo ordenamento brasileiro para diferenciar o imóvel urbano do rural é o da destinação. Conforme estabelece o art. 4º, I, do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964), será considerado imóvel rural “o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial (...)”. Washington de Barros Monteiro (1969, pag. 166 apud RIZZARDO, 2014, pag. 27) reafirma que “a conceituação de prédio rústico e de prédio urbano decorre de sua destinação”.
A Lei nº 5.878/72, que trata do Sistema Nacional de Cadastro Rural, em seu art. 6º, estabelecia que além da destinação rural exigia-se que o imóvel tivesse área superior a um hectare. Ocorre que o Senado Federal suspendeu a sua aplicação em razão de declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Esse dispositivo criava uma situação incompreensível em nosso sistema, vez que considerava como prédio urbano tão somente pela extensão da área, pouco importando a destinação ou a localização do imóvel. A suspensão da execução do dispositivo foi salutar à coerência do sistema.
Em sentido contrário, será considerado imóvel urbano “quando localizado na zona urbana do Município, aí incluídas, eventualmente, as zonas urbanizáveis, ou de expansão urbana, consoante art. 32 da Lei n 5.172/1966)” (RIZZARDO, 2014, pag. 27). Deve-se ainda acrescentar que mesmo localizado em zona urbana, mas se a destinação do imóvel for a prevista no art. 4º, I, do Estatuto da Terra, será considerado rural.
Feitas essas considerações, cabe traçar algumas considerações em torno da expressão fins urbanos, vez que está ai a centralidade da questão do regime jurídico do parcelamento. Como se afirmou, ao utilizar da referida expressão, não está a considerar o imóvel urbano, cuja conceituação foi delineada anteriormente. Sérgio Frazão do Couto (COUTO apud RIZZARDO, 2014, pag. 8-9) afirma que “quando a lei fala em parcelamento do solo com fins urbanos, refere-se ao fracionamento do espaço territorial especificamente destinado a abrigar contingentes humanos para formação, expansão ou conservação das cidades”.
A expressão fins urbanos, ao que nos parece, para fins do que dispõe a Lei nº 6.766/79, pode ser definida como para o fim de edificação. Embora possa se aproximar do que define Sérgio Frazão, haveria, em nosso sentir, algumas distinções ou até mesmo complementaria o que o autor sustenta. O intuito de edificação está espraiado ao longo de todo o texto da lei.
No art. 2º, § 1º, da Lei nº 6.766/79, ao definir loteamento, o legislador afirma que seria “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação (...)”. No parágrafo seguinte, define desmembramento como sendo “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação (...)”. No art. 3º, Parágrafo Único, IV, da mesma lei, o legislador proíbe o parcelamento, “onde as condições geológicas não aconselham a edificação”. No art. 12, § 3º da referida lei, o legislador veda “a aprovação de projeto de loteamento e desmembramento em áreas de risco definidas como não edificáveis, no plano diretor ou em legislação dele derivada”. Ao que nos parece, a ideia de fins urbanos deve ser entendida como finalidade precipuamente de edificação.
Como se sabe, o parcelamento, regulado por essa lei, é gênero do qual são espécies o loteamento e o desmembramento. Por sua vez, ao conceituar o loteamento e o desmembramento, deixou claro o legislador que tanto numa quanto noutra a finalidade será sempre a edificação. O termo edificação, aqui empregado, deve ser entendido em oposição à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial.
Discorrendo sobre a liberdade de construir, Hely Lopes Meirelles (2000, pag. 30) afirma que por construção deve ser entendido “toda realização material e intencional do homem, visando a adaptar o imóvel às suas conveniências”. Assim, submete ao regime da Lei de Parcelamento toda subdivisão de gleba cuja finalidade seja destinar à futuras áreas menores a edificação, pouco importando se tratar de imóvel urbano ou rústico.
Essa solução, ao que nos parece, evita qualquer tentativa do titular da gleba cuja intenção seja destinar as futuras áreas à edificação, de afastar a aplicação de Lei de Parcelamento sob o pretexto de não se destinar a fins urbanos. Esse subterfúgio pode ser usado, em especial, em regiões que estejam distantes dos centros urbanos, como chácara de recreio e sítios de lazer.
A esse respeito, Toshio Mukai (1988, pag. 123) ressalta:
(...) a Procuradoria do INCRA concluía em parecer: ‘a) – a chácara de recreio não se enquadra no conceito de imóvel rural, pois não se destina à exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial. Mesmo que se pensasse em plantação num sítio de recreio, esta jamais poderia se configurar numa exploração econômica; quando muito seria doméstica; b) – a chácara de recreio enquadra-se perfeitamente no conceito de imóvel urbano, como lote destinado a edificação de qualquer natureza’.
5 Regime Jurídico do Parcelamento do Solo Urbano
Há, em nosso sistema jurídico, atualmente dois regimes jurídicos no tocante ao parcelamento do solo. De um lado, temos no plano legislativo federal a aplicação da Lei nº 6.766/79, que, como se afirmou, tem por destinatário os loteamentos para fins urbanos. Em relação a possível aplicação dos Decretos-leis 58/37 e 271/67, não há consenso na doutrina. Em relação ao Decreto-lei 58/37, há aqueles que entendem não mais ter aplicação aos loteamentos para fins urbanos, com o advento da Lei nº 6.766/79, permanecendo aplicável aos imóveis rurais. Outros entendem que ainda permanecem em parte aplicável aos parcelamentos para fins urbanos, desde que não contrarie a referida lei. Em relação ao Decreto-lei 271/67, em razão de seu âmbito de aplicação ser os parcelamentos urbanos, parte da doutrina advoga a sua total superação, enquanto outros sustentam a sua permanência parcial, no que não contrariar a Lei nº 6.766/79.
A Lei nº 6.766, art. 13, com redação pela Lei nº 9.785/99, prevê que seja disciplinado pelos Estados a aprovação pelos Municípios de loteamentos e desmembramentos nos parcelamentos: a) localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal; b) quando o loteamento ou desmembramento localizar-se em área limítrofe do município, ou que pertença a mais de um município, nas regiões metropolitanas ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal; e c) quando o loteamento abranger área superior a 1.000.000 m². Nestes casos, o parcelamento do solo para fins urbanos deverá atender as regras estaduais a respeito, além da disciplina federal.
Além dessa sistemática, o parcelamento deverá se submeter a leis de âmbito municipal, no que diz respeito às especificidades locais.
6 Algumas Considerações a Respeito do Regime Jurídico do Parcelamento do Solo Rural
Neste ponto buscaremos apontar as principais normas que incidem no parcelamento do solo rural para fins agrários. Há, assim, dois regimes jurídicos no tocante aos parcelamentos do solo: a) o parcelamento de imóvel rural ou urbano para fins urbanos; e b) parcelamento (loteamento) de imóveis rural para fins agrários. A definição, como se analisou anteriormente, do regime a ser aplicado não é pautada pela qualidade do imóvel, se rural ou urbano, mas a destinação do parcelamento.
O Decreto 59.428/66, que regula alguns dispositivos da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra, em seu art. 13, estabelece que
(...) são consideradas formas complementares de acesso a propriedade da terra: a) os loteamentos rurais destinados à urbanização, industrialização e formação de sítios de recreio; b) os loteamentos rurais destinados à utilização econômica da terra através da exploração agrícola, pecuária, extrativa ou agroindustrial (BRASIL, 1964).
Assim, ao destinar o parcelamento (loteamento) para fins rurais incidirá, no plano legal, a Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra) e seu regulamento, o Decreto 59.428/66, a Lei nº 4.947/66, a Lei nº 5.868/72, que cria o Sistema Nacional de Cadastro Rural e a Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal). No plano infralegal, há a Instrução Normativa 17-B, de 22 de dezembro de 1980 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA.
7 Conclusão
A partir de uma análise história da legislação do parcelamento do solo no Brasil, é possível fazer algumas observações. É preciso considerar uma evolução no tratamento da questão, em especial em relação ao impacto urbanístico e sanitário do parcelamento, que se vê de forma mais acentuada na Lei n° 6.766/79.
Entretanto, não obstante os elogios merecidos no avançado do tratamento da questão do parcelamento do solo fins urbanos, nota-se, por outro lado, algumas questões que despontam como entrave à segura jurídica. Há duas questões que podem ser apontadas de forma mais evidente. A primeira diz respeito à vigência das normas em âmbito federal sobre a matéria com o advento da Lei n° 6.766/79. Essa controvérsia gravita em sentido oposta à previsibilidade das relações jurídicas. Não obstante as soluções que a doutrina aponta, trata-se de trabalho no puro campo interpretativo, diante da ausência de previsão legal específica. Outra questão que merece pontuar diz respeito ao âmbito de incidência dessas normas, mormente pela falta de uma definição mais clara do que se entende por fins urbanos, tendo em conta de forma mais precisa as situações limítrofes, tais como os sítios de recreio.
Por outro lado, como outrora já se pontuou, vale repisar, que fica a percepção de que a atual Lei de Parcelamento do Solo Urbano merece ser revista, buscando adequar a realidade atual, de forma a facilitar o parcelamento do solo quando se destinar às camadas mais simples da sociedade (RIBEIRO, 2016). Isso contribuiria para combater a formação de ocupações sem qualquer condição de habitabilidade, o que reclamará posterior atuação do Estado no sentido de buscar a sua regularização. Todo o esforço no sentido de regularizar as ocupações irregulares poderia ser evitado ao se prevenir de forma eficiente o surgimento dessas ocupações.
Referências
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Advogado. Bacharel em Direito (PUC Minas), com graduação incompleta em Filosofia (ISTA), especialista em Direito Empresarial (UCAM) e em Direito Notarial e Registral (UCAM), pós-graduando em Direito Civil (PUC Minas). <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, João Ronaldo. As normas em âmbito federal sobre o parcelamento do solo no Brasil: evolução histórica, questões controvertidas e delineamento do âmbito de incidência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49474/as-normas-em-ambito-federal-sobre-o-parcelamento-do-solo-no-brasil-evolucao-historica-questoes-controvertidas-e-delineamento-do-ambito-de-incidencia. Acesso em: 22 nov 2024.
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