Resumo: A legitimidade do Estado quanto ao exercício do direito de punir não é ilimitada. A política criminal norteia o fundamento para que determinados bens jurídicos sejam tutelados enquanto princípios constitucionais impõem limites para ao jus puniendi. O objetivo desse trabalho é demonstrar que o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 pode ser considerado atípico porquanto não subsume a tipicidade conglobante de Raúl Zaffaroni (antinormatividade e tipicidade material).
Palavras chave: direito de punir do estado; princípios constitucionais; tipicidade conglobante
Abstract: The legitimacy of the state´s right to punish is not unlimited. The criminal policy guides the foundation for that certain goods legal are safeguarded while constitutional principles impose limits to jus puniendi. The aim of this paper is to demonstrate that the first paragraph of the art. 1o. of Law 8137/90 can be considered atypical because does not fit into Zaffaroni’s typicality conglobante (antinormativity and typicality material).
Keywords: state´s right to punish; constitutional principles; typicality conglobante.
Sumário: Introdução. 1. O poder de punir do Estado somente se legitima enquanto não for arbitrário. 2. A Política Criminal enquanto instituto norteador para a seleção de bens jurídicos fundado em princípios constitucionais que limitam o poder de punir do Estado. 2.1. Princípios da subsidiariedade e fragmentariedade. 2.2. Princípio da lesividade. 2.3. Princípio da reserva legal. 3 Breves linhas acerca da Teoria da Tipicidade Conglobante de Raúl Zaffaroni: diretrizes para análise da tipicidade do parágrafo único do art.1º da Lei 8137/90 3.1. Atipicidade do parágrafo único do art.1º da Lei 8137/90 pautada na Teoria da Tipicidade Conglobante. 4. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O homem renunciou parte da sua liberdade para outorgar ao Estado a legitimidade de atuar em busca de formas adequadas e convenientes para o convívio social, sendo que o meio mais violento e, portanto, excepcional para alcançar esse objetivo é o direito penal.
É certo que jus puniendi Estatal interfere diretamente nos direitos elementares da pessoa humana, por essa razão existe uma necessidade indeclinável do Estado Democrático de Direito instituir limitações a este poder.
A Política Criminal, além de selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados penalmente e os caminhos para tal tutela, também constitui uma forma de aprimoramento e adequação do direito penal aos princípios constitucionalmente consagrados.
Percebe-se, entretanto, que quando o detentor do direito de punir excede aos limites aventados pelo nosso ordenamento jurídico, a norma passa a não mais ser reconhecida como legítima.
O objetivo desse trabalho é demonstrar que a criminalização da conduta descrita no parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 importa em abuso do poder de punir do Estado porquanto contrária aos princípios da reserva legal, lesividade, subsidiariedade e fragmentariedade.
Ainda nesse particular, buscar-se-á demonstrar que, nos termos da Teoria da Tipicidade Conglobante de Raúl Zaffaroni, a referida conduta sequer poderá ser considerada típica.
1. O PODER DE PUNIR DO ESTADO SOMENTE SE LEGITIMA ENQUANTO NÃO FOR ARBITRÁRIO
No estado de natureza, evidenciado por Thomas Hobbes[1] e Jacques Rousseau[2], vigorava a luta entre fortes e fracos consubstanciado no poder da força. Com a passagem à sociedade civil, o poder político e as leis foram criados. Nesse momento, os homens estabelecem um pacto em busca da convivência pacífica que, somente se tornou possível, mediante a renúncia da liberdade natural com a transferência de riquezas e armas ao soberano, o qual, em virtude do contrato social, possuía o poder de criar e aplicar leis.
Para John Locke, a transmutação do estado de liberdade natural em prol da instauração de um corpo político somente pode se dar através do livre consentimento. Nessa concepção, surge a necessidade de um terceiro, eqüidistante e isento, para julgar as lides e os conflitos imanentes à convivência em sociedade[3].
Para organização da vida social percebeu-se que a liberdade privada, decorrente da própria liberdade natural, poderia ocupar espaços que não afetassem o bem comum, sendo possível afirmar que a organização grupal positivou a atuação de um poder soberano (Estado) em detrimento dessa liberdade. Nos primeiros moldes instrumentais esse mecanismo de legitimação do poder confundiu-se com a religião e a moral, adquirindo feições místicas a serem respeitadas sob pena de banimento ou morte daquele que viesse a descumprir tal norma[4].
Certo é que através do pacto social legitimou-se a atuação do soberano para a promoção de garantias individuais, inclusive mediante a utilização da força e violência sobrepondo-se a vingança privada pautada na “lei da selva”. É a busca desse acordo artificial que faz nascer o Estado.
Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado[5].
Pergunta-se: em que se funda a legitimação da autoridade estatal? Locke assegura que a liberdade do indivíduo na sociedade não deve estar subordinada a qualquer poder legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento da comunidade, nem sob o domínio de vontade ou restrição de qualquer lei, a não ser aquele promulgado por tal legislativo conforme o crédito que lhe foi confiado[6]. Então, podemos concluir que o jus puniendi estatal legitima-se através do assentimento dado pelo povo, através do contrato social.
Pode se dizer que somente em virtude dessa outorga que foi possível delimitar os primeiros moldes do direito penal afastando-o da vingança privada. No direito primitivo a pena era meramente física, objetiva, degradante e eminentemente corporal. Imputava-se a responsabilização coletiva através da penalização não só do acusado, mas também de seus familiares, por exemplo. Numa fase humanitária, iniciada por Cesar Beccaria, a pena passa a ser baseada na culpa, reprovação social, assumindo um caráter de retribuição ética, intimidativo e regenerador[7].
A atuação estatal como agente limitador apoia-se no discurso da manutenção da paz social e, sobretudo, na defesa dos direitos individuais. Acontece que o regramento excessivo leva ao refreamento e obstrução o das liberdades humanas, ao passo que a ausência de limites inviabiliza a produção do bem comum. O tamanho do Estado e, por conseguinte, da legislação por ele instituída, deve ser compatível com as necessidades reais de regramento da convivência social[8].
Para John Locke a autoridade é limitada pelos parâmetros legais, sendo que “a exacerbação do poder conferido pela lei ao Estado, com violação dos direitos individuais, resulta, em última análise, na deslegitimação de tal poder, passível de imediata recusa pelo indivíduo, ainda que através de métodos revolucionários”[9].
A partir da obra de Beccaria, na segunda metade do século XVIII, foi aventada de forma sistemática a necessidade de limitar o jus puniendi do Estado; o primeiro instituto para que tal desiderato fosse alcançado foi o Princípio da Legalidade[10]. Segundo o referido autor:
Cada indivíduo só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível de liberdade. (...) O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça
Por meio do contrato social atribui-se ao Estado a defesa de bens jurídicos indispensáveis a garantia da liberdade na sociedade civil, entretanto, patente era a necessidade de extirpar do Direito Penal objetivos pessoais, políticos e arbitrários, o que somente foi possível através da limitação da atuação estatal.
A inafastabilidade da existência de leis em toda e qualquer sociedade hodierna demonstra sua utilidade para a consecução do bem comum. Considerando que as decisões do Estado, qualquer que seja o contexto, são de obediência coercitiva pelos cidadãos, ainda que possam contrariar seus interesses particulares,
Todavia, conforme assegura Hobbes, os extremos devem ser contestados na medida em que o termo ideal encontra-se na compatibilidade entre o bem comum e o bem individual[11]. Considerando, pois, que a pena, assim como o crime, também é uma manifestação da violência[12], o direito penal não deve ser utilizado indiscriminadamente, sendo a excepcionalidade um dos mecanismos limitadores do poder Estatal de punir.
Nesse sentir, leciona Claus Roxin:
A finalidade do direito penal, de garantir a convivência pacífica na sociedade, está condicionada a um pressuposto limitador: a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas. O direito penal é desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extrajurídicas.
O recuo do direito penal para trás de outros mecanismos de regulamentação pode também ser explicado com base no modelo iluminista do contrato social. Os cidadãos transferem ao Estado a faculdade de punir somente na medida em que tal seja indispensável para garantir uma convivência livre e pacífica. Uma vez que a pena é a intervenção mais grave do Estado na liberdade individual, só pode ele cominá-la quando não dispuser de outros meios mais suaves para alcançar a situação desejada[13].
Nas palavras de Claudio Brandão “o Direito Penal tem uma inegável face política, porque ele concretiza o uso estatal da violência”[14], acrescenta, ainda, que segundo Guillermo Ouviña o Direito Penal é o mais sensível termômetro para aferir a feição liberal ou totalitária de um Estado, a saber:
Caso a violência da pena seja utilizada pelo Estado sem limites, sem respeito à dignidade da pessoa humana, estaremos diante de um Estado totalitário, ou ao invés, se a violência estatal for exercida dentro de limites determinados pelo Direito, aí se guardando o respeito à dignidade da pessoa humana, estamos diante de um Estado Democrático de Direito[15].
Como bem se pode observar, o Direito Penal deve ser aplicado com parcimônia, isso porque, como deixa marcas indeléveis no ser humano. Por ser verdadeiramente uma forma de violência, deve ser a ultima ratio de controle, tendo em vista o fracasso dos outros meios formais para a proteção dos bens da vida relevantes.
2. A POLÍTICA CRIMINAL ENQUANTO INSTITUTO NORTEADOR PARA A SELEÇÃO DE BENS JURÍDICOS FUNDADO EM PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE LIMITAM O PODER DE PUNIR DO ESTADO
O Direito Penal é o meio mais eficaz de que se vale o Estado no combate à violência, porém, da mesma forma, também é o que mais limita o exercício de Direitos Fundamentais do Homem[16], como, por exemplo, a liberdade. Em sendo assim, pergunta-se: o que deve ser entendido por bem jurídico merecedor da tutela penal?
Claus Roxin entende que bens jurídicos “são pressupostos imprescindíveis para a existência em comum, que se caracterizam numa série de situações valiosas, como, por exemplo, vida, integridade física, a liberdade de atuação ou a propriedade, as quais todo mundo conhece”[17].
Nesse contexto, orienta Cláudio Brandão que “somente o legislador pode constituir um bem jurídico, daí se infere que o surgimento ou a manutenção de um bem jurídico no Direito Penal é uma eleição política do citado legislador. O bem jurídico, assim, corrobora a face política do Direito Penal”[18].
Pois bem. O Estado é quem tem a outorga da sociedade para exercer o direito de punir de forma que, o próprio Estado, é quem seleciona os bens jurídicos que serão objeto de tutela penal das Políticas Criminais.
A Política Criminal, segundo Franz Von Liszt “nasce na segunda metade do século XVIII na Itália, fundamentalmente com o advento da publicação da obra de Beccaria e sua preocupação com as formas eficazes de prevenção do delito e o conteúdo legislativo efetivo para alcançar tal finalidade[19]”.
Para Zaffaroni e Pierangelli “A Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados penalmente e os caminhos para tal tutela, o que implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”. Extrai-se, portanto, que a Política Criminal trata-se de uma ação para efetivar a tutela dos bens jurídicos e, também, é uma forma de aprimoramento a tutela penal através da alteração e adequação às políticas recomendadas.
Se é o Estado, através do legislador que, fundado na Política Criminal, é quem seleciona os bens jurídicos merecedores da tutela do Direito Penal, é certo que esse poder legitimamente outorgado pela sociedade não pode ser ilimitado e, principalmente, discricionário.
Para tanto, encarregam-se os princípios da subsidiariedade, fragmentariedade, lesividade, legalidade e taxatividade de nortear e estabelecer limites à atuação do Estado no exercício do jus puniendi. É o que abordaremos a seguir.
2.1. PRINCÍPIOS DA SUBSIDIARIEDADE E FRAGMENTARIEDADE
O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos que – não eficazmente protegidos pelos outros ramos do direito – necessitam de tutela mais gravosa do Estado considerando, logicamente, a intensidade da ofensa.
Enquanto norma de caráter fragmentário, o Direito Penal somente deve intervir para a solução de conflitos e consequente pacificação social quando medidas judiciais ou administrativas não forem suficientes para prevenir ou punir uma conduta ilícita e socialmente reprovável. Na lição de Rogério Greco:
A fragmentariedade é, como já foi dito, uma consequência da adoção da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social, que serviram para orientar o legislador no processo de criação dos tipos penais. Depois da escolha das condutas que serão reprimidas a fim de proteger os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade, uma vez criado o tipo penal, aquele bem jurídico por ele protegido passará a fazer parte do pequeno mundo do direito penal. A fragmentariedade é, portanto, a concretização da adoção dos mencionados princípios, analisados no plano abstrato da anterioridade a criação da figura típica[20].
É possível afirmar, portanto, que o Direito Penal é determinado como “ultima ratio da política social”[21], de forma que o princípio da intervenção mínima orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só é legítima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico[22].
Desse modo, será inadequada e desnecessária a criminalização da conduta cujo bem é satisfatoriamente protegido por outras formas de sanções ou outros meios de controle social. Assevera Claus Roxin:
A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falharem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por isso se denomina a pena como ultima ratio da política criminal e se define a sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos[23]
Além de impor a subsidiariedade à tutela do Direito Penal, é possível observar, ainda, que o princípio da intervenção mínima orienta o legislador na seleção dos bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade, os quais exigem proteção mais enérgica do Estado. De outro modo, o referido princípio ainda possibilita o legislador perceber que determinadas condutas já não mais necessitam da especial proteção do Direito Penal, visto que satisfatoriamente protegidos por outros ramos do direito.
Quanto a esse último aspecto, diante da possibilidade de aplicação de outras soluções que não a excepcional e reconhecidamente extrema tutela Penal, prefere[24]-se os modos extrapenais de soluções dos conflitos. É o que corrobora André Copetti, assinalando que:
Sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos, deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político jurídica deve se dar preferência a todos os modos extrapenais de soluções de conflitos. A repressão penal deve ser o ultimo instrumento a ser utilizado, quando já não houver mais alternativas disponíveis.
Entende-se, portanto, que a finalidade do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos através da tipificação condutas que possam lesioná-los ou, ao menos, ameaçá-los. Em sendo assim, pode se dizer que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico[25].
2.2. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE
Destaque-se que, assim como a subsidiariedade a lesividade também norteia a Política Criminal na seleção do bem jurídico assim como o aprimora a tutela penal consubstanciando, inclusive, verdadeiro pressuposto do jus puniendi.
De acordo com o princípio da lesividade ou ofensividade não haverá crime quando a conduta não tiver oferecido, ao menos, um perigo concreto, real, efetivo e comprovado de lesão ao bem jurídico. Segundo Luiz Flávio Gomes, “para a existência do delito, para além da presença de uma ação ou omissão (uma conduta), também se faz necessário um resultado jurídico, que consiste numa perturbação (intolerável) do bem tutelado, isto é, de uma liberdade alheia[26]”
Diante dessa assertiva, pode se dizer que somente a ação ou omissão cuja repercussão é intolerável que pode causar repercussões visíveis sobre a convivência social é que deve ser incriminada. Neste sentido, corrobora Zaffaroni:
o injusto concebido como lesão a um dever é uma concepção positivista extremada; é a consagração irracional de dever pelo dever mesmo. Não há dúvida que sempre existe no injusto uma lesão ao dever [uma violação a norma imperativa], porém o correto é afirmar que só existe violação quando se afeta o bem jurídico tutelado. Não se pode interromper arbitrariamente a análise do fato punível e se a ação não prejudica terceiros, deve ficar impune, por expressa disposição constitucional[27]
Desse modo, a intervenção estatal somente se justifica quando estivermos diante da violação à bens jurídicos importantes, aliado a insuficiência dos outros ramos do direito no que diz respeito a sua tutela.
2.3. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
O agente deve saber exatamente qual conduta não deve praticar em virtude de expressa proibição legal, desse modo, busca-se afastar o arbítrio Estatal porque, a depender do momento político, existe a possibilidade do detentor do jus puniendi alargar a exegese da norma de modo a abarcar condutas que sejam do seu exclusivo interesse.
Diante dessa necessidade, surge o princípio da legalidade que, segundo os ensinamentos de Paulo Bonavides:
O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranqüilidade, a desconfiança e a suspeição tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas[28].
No texto constitucional, o referido princípio está insculpido no art. 5º, inciso XXXIX, que dispõe: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. É importante salientar que atribui-se à nulla crimen nulla poena sine praevia lege a Anselm Von Feuerbach, o qual assevera que:
I) Toda imposição de pena pressupõe uma lei penal (nullum poena sine lege). Por isso, só a cominação do mal pela lei é o que fundamenta o conceito e a possibilidade jurídica de uma pena. 11) A imposição de uma pena está condicionada à existência de uma ação cominada (nulla pena sine crimine). Por fim, é mediante a lei que se vincula a pena ao fato, como pressuposto juridicamente necessário. O fato legalmente cominado (o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal (nullum crimen sine poena legalz). Conseqüentemente, o mal, como conseqüência jurídica necessária, será vinculado mediante lei a uma lesão jurídica determinada.[29]
Por intermédio da lei existe a segurança jurídica do cidadão de não ser punido se não houver uma previsão legal criando o tipo incriminador, ou seja, definindo as condutas proibitivas (comissivas e omissivas), sob a ameaça de sanção.
Para tanto, subsiste a necessidade de que o preceito primário do tipo penal incriminador tenha uma definição precisa da conduta proibida, devendo ser taxativa. Daí advém o princípio da taxatividade que é uma construção doutrinária fundamentada no Estado Democrático de Direito decorrente, especificamente, do princípio da legalidade.
É possível afirmar, então, que a taxatividade, oriunda do princípio da reserva legal, é diretamente dirigida ao legislador, sendo que o seu principal escopo é impor a necessidade de que as condutas típicas sejam elaboradas de maneira clara e inteligível, isso porque a utilização de termos subjetivos, dúbios, valorativos, vagos e imprecisos possibilitariam o abuso Estatal.
Registre-se que para uma norma penal incriminadora atenda aos postulados do Estado Democrático de Direito, ela deve ser suficientemente precisa no que diz respeito à descrição dos elementos do tipo assim como quanto à correspondente sanção penal.
Considerando os ensinamentos ora delineados, já é possível indagar se o quanto disposto no parágrafo único do art.1º da Lei 8137/90 obedece aos princípios constitucionalmente consagrados ou importa em excesso do poder de punir do Estado. Pergunta-se, ainda, se a referida norma incriminadora amolda-se a tipicidade preconizada na Teoria da Tipicidade Conglobante de Raul Zaffaroni. É o que trabalharemos a seguir.
3. BREVES LINHAS ACERCA DA TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE DE RAÚL ZAFFARONI: DIRETRIZES PARA ANÁLISE DA TIPICIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART.1º DA LEI 8137/90
Um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis[30]. É possível, entretanto, que normas possam apresentar incongruências quando confrontadas com o ordenamento jurídico, sendo que, nessas hipóteses, a Teoria da Tipicidade Conglobante de Raúl Zaffaroni funciona como verdadeiro corretivo da tipicidade penal posto que considera que essa antinomia deve ser solucionada pelo próprio ordenamento jurídico[31].
Na lição de Zaffaroni e Pierangeli[32], não é possível que no ordenamento jurídico que se entenda como perfeito, uma norma proíba aquilo que outra imponha ou fomente. Demais disso, a simples acomodação do comportamento do agente ao tipo não é suficiente para que possamos concluir pela tipicidade penal, uma vez que esta é formada pela conjugação da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante[33].
A tipicidade conglobante surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é antinormativa, isto é, contrária a norma penal e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o direito penal (tipicidade material).
Para essa teoria, a tipicidade penal é constituída pela junção da tipicidade formal (modelo abstrato da lei) e da tipicidade conglobante (que engloba a tipicidade material e a antinormatividade).
Antinormatividade seria toda conduta contrária às normas e as suas determinações. Dentro da teoria de Zaffaroni, a "antinormatividade constitui elemento integrante da tipicidade conglobante, que por sua vez integra o próprio fato típico"[34]. Condutas que sejam fomentadas pela norma não são consideradas antinormativas.
Na análise da tipicidade material deve-se apurar se a conduta é realmente lesiva aos bens protegidos pelo direito penal. Para tanto, considera-se que a finalidade do direito penal é a proteção dos bens mais importantes existentes na sociedade. O princípio da intervenção mínima, que serve de norte para o legislador na escolha de bens que serão tutelados pelo direito penal, assevera que nem todo e qualquer bem é passível de ser protegido, mas aqueles que gozem de considerável importância. Assim, é pelo critério da tipicidade material que se afere a relevância do bem no caso concreto.
Desse modo, para que se possa falar em tipicidade penal é preciso haver a fusão da tipicidade formal (tipo descrito pela norma) com a tipicidade conglobante (antinormatividade e tipicidade material).
Considerando, pois, as diretrizes da tipicidade conglobante, analisaremos se o parágrafo único do art.1º da Lei 8137/90 pode ser considerado penalmente típico.
3.1. ATIPICIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART.1º DA LEI 8137/90 PAUTADA NA TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE
Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante o emprego das condutas descritas na Lei 8137/90.
Há quem sustente que o bem jurídico tutelado nas hipóteses de crime contra a ordem tributária é a fé pública, a coletividade, a administração pública, entre outros, mas, o que a norma jurídico-tributária visa tutelar é o patrimônio público formado pelo pagamento da exação tributária, sendo certo, entretanto, que todos os outros referidos bens são tutelados por via reflexa.
Segundo Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio Smanio os crimes contra ordem tributária visam “tutelar o erário público, preservando-o de manobras fraudulentas ou de falsidades”[35].
É possível constatar que as condutas tipificadas na lei de crimes contra ordem tributária assemelham-se aquelas reprimidas pelo Código Penal, a exemplo da apropriação indébita, fraudes e falsificações, de modo que inegavelmente violam bens jurídicos relevantes merecendo, portanto, a tutela do direito penal. Há um dispositivo, entretanto, que se distancia – um tanto quanto – dessa sistemática. Observe-se:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Diferentemente dos crimes materiais enumerados nos incisos I à V do art. 1º, o parágrafo único retro transcrito é um crime formal, isto é, "se consuma com o desatendimento à exigência da autoridade fiscal, independentemente da verificação naturalística de qualquer resultado, como, por exemplo, a vantagem patrimonial do sujeito ativo ou terceiro e prejuízo econômico do Estado, como ocorre no ‘caput’ do art.1º”[36].
De antemão já se observa que o parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90 é uma norma penal aberta que possibilita o detentor do jus puniendi controlar a sua extensão e conteúdo. Isso porque, a possibilidade de se formular inúmeras indagações demonstram que o conteúdo do referido dispositivo é vago e impreciso, dentre as quais: Trata-se de desobediência ou um simples desatendimento a uma exigência da autoridade? Quem seria essa autoridade? Como auferir a menor ou maior complexidade da matéria? O que importaria em dificuldade ao atendimento da exigência?
Se uma norma, de acordo como princípio da reserva legal, deve ser precisa e determinada, as dúvidas suscitadas quanto ao alcance do parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90 nos leva a concluir pela imprecisão do tipo e, portanto, pela violação do princípio da legalidade, especificamente quanto a taxatividade.
Demais disso, é possível observar que também viola o princípio da legalidade o fato do parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90 não estabelecer inequivocamente a respectiva sanção penal. Ao que parece, a conduta é penalizada mediante equiparação ao inciso V do mesmo artigo. Isso é, quem não atente à exigência da autoridade quanto ao fornecimento de nota fiscal ou documento equivalente se sujeita à pena de reclusão de dois a cinco anos e multa.
Nesse momento, para que se perceba o quão desarrazoado mostra-se a pena cominada, basta relembrar que trata-se de um crime formal, que consuma-se independentemente da verificação naturalística de qualquer resultado, como, por exemplo, a vantagem patrimonial do sujeito ativo ou terceiro e prejuízo econômico do Estado. Veja: aquele que deixou de atender a exigência da autoridade, ainda que não haja qualquer prejuízo ao erário, submete-se a pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, assim como àquele que favorece a prostituição ou outra forma de exploração sexual.
A falta de proporcionalidade torna-se ainda mais patente quando contrastamos a pena cominada para a conduta descrita no parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90 com outros tipos cujos bens jurídicos são infinitamente mais relevantes. A exemplo do crime de sequestro em que a vítima tem sua liberdade cerceada por um indivíduo que se sujeitará a uma pena de reclusão de um a três anos; ou o constrangimento ilegal, em que há o uso da violência ou grave ameaça e a pena cominada é de detenção de três meses a um ano ou multa. Destaque-se que até mesmo o furto – que comina pena de reclusão de um a quatro anos e multa – não alcança o rigor da pena cominada pelo parágrafo único do art. 1º da Lei 8137/90.
Diante de tamanha desproporção, há quem defenda que se deve aplicar, analogicamente, a pena prevista para o art. 330 do Código Penal (crime de desobediência). É o que assegura Luiz Otávio de Oliveira Rocha:
Aplicadas essas proposições à questão que aqui examinamos, aflora que o tipo penal do parágrafo único em exame somente se encaixa no ordenamento jurídico vigente se interpretado com as seguintes limitações: a) a conduta que pode configurar infração é somente aquela que deriva da conjugação do seu texto com o do inciso V – como determina a norma -, isto é, a ‘falta de atendimento a exigência da fiscalização’ que possui relevância penal é somente a que se prende ao fornecimento de notas fiscais ou documentos equivalentes (cupons fiscais e assemelhados); e b) a pena aplicável não pode ser aquela prevista para os crimes materiais dos incisos I a V do artigo 1º, devendo-se aplicar, segundo o critério da proporcionalidade, a pena prevista para o delito análogo, o art. 330 do C. Penal[37].
Acontece que, caso essa aplicação analógica fosse possível, não haveria a necessidade de o legislador especializar a tipificação do delito de desobediência na hipótese de crimes contra ordem tributária. Desse modo, estaríamos atestando que o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 é inócuo em virtude de existir outra norma penal que contempla a conduta criminalizada.
A dificuldade em identificar qual pena será cominada ao parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90, considerando o princípio da proporcionalidade, também conduz a conclusão de que o mencionado dispositivo ignora o princípio da reserva legal (legalidade e taxatividade) posto que a sanção imposta não é inequívoca.
Tecidas essas breves considerações acerca da impropriedade do mencionado dispositivo quanto à adequação ao princípio da reserva legal o que, de per si, já justificaria o reconhecimento da sua inconstitucionalidade, passaremos a analisar a atipicidade do mencionado dispositivo, segundo a Teoria da Tipicidade Conglobante.
O primeiro elemento a ser trabalhado, é a antinormatividade. Conforme já discorrido, a antinormatividade traduz uma conduta não fomentada ou não exigida pelo Estado. Para que seja possível analisar se a conduta descrita no parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 é, ou não, fomentada pelo Estado, faz-se necessário analisar a finalidade do mencionado dispositivo.
O parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 tem como objeto a criminalização da conduta daquele que não fornece notas fiscais ou documento equivalente quando exigido pela autoridade. A partir da interpretação literal da norma poderíamos concluir que o bem jurídico que se busca tutelar é o prestígio da função pública quando a autoridade exige a apresentação de notas fiscais com o objetivo de fiscalizar a regularidade da arrecadação.
Acontece que, diferentemente do crime de desobediência, o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 não se limita tutelar, apenas, o cumprimento das determinações legais expedidas pelo funcionário público pautando pela dignidade e prestígio da máquina estatal administrativa. Caso pugnássemos por essa linha interpretativa, a invariável conclusão seria a de que não haveria necessidade de o legislador descrever a conduta do parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 posto que o bem jurídico já estaria plenamente protegido pelo quanto disposto no art. 330 do Código Penal.
O que se percebe é que o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 tutela a autoridade e prestígio Estatal na hipótese de descumprimento ao atendimento de determinada exigência, qual seja: apresentação de notas ficais ou documento equivalente.
A finalidade do referido dispositivo é, portanto, acompanhar a atividade arrecadatória, isto é, fiscalizar a regularidade do contribuinte. Conforme ressalta Rui Stoco “a fiscalização sempre se ressentiu da dificuldade encontrada na obtenção de informações e acesso aos documentos e livros contábeis, cuja verificação é fundamental aos trabalhos de auditoria fiscal junto a empresa”[38].
Destaque-se que, segundo a própria descrição típica do parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 a falta de atendimento da exigência da autoridade caracteriza a infração prevista no inciso V do mesmo diploma legal, ou seja “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”.
Considerando que o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 trata-se de um delito autônomo que tem como objetivo propiciar a atividade fiscalizatória com a finalidade, inclusive, de obter materialidade delitiva quanto aos demais crimes contra a ordem tributária, é possível concluir que a incriminação da conduta daquele que deixa de atender a exigência da autoridade quanto a apresentação de nota fiscal ou documento equivalente é incongruente com o quanto disposto no art. 8º, 2, alínea “g” da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH.
A não exigibilidade de participação compulsória do acusado na formação da prova a ele contrária decorre, além do próprio sistema de garantias e franquias públicas instituído pelo constituinte de 1988, de norma expressa prevista no art. 8º, 2, alínea 'g' da Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de San José da Costa Rica)[39], que o Brasil. Vejamos:
Art. 8º - Garantias judiciais:
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
Ora. Se o Estado não obriga ninguém a produzir provas contra si mesmo, sendo correto afirmar que essa conduta é autorizada pelo nosso ordenamento jurídico, o quanto disposto no parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 não goza de antinormarivadade porquanto fomentada pelo próprio estado.
No que diz respeito a tipicidade material, é possível perceber a ausência de lesividade da referida conduta, assim como à violação aos princípios da subsidiariedade e fragmentariedade.
Os demais crimes contra ordem tributária criminalizam as condutas de suprimir ou reduzir tributo em detrimento do erário público, ao tempo em que o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 incrimina conduta que não traz qualquer possibilidade concreta de dano a bem jurídico relevante. É correto afirmar que o art. 1º da Lei 8137/90 não traz a possibilidade concreta de dano ao patrimônio público, que – frise-se – não é diretamente lesionado pela prática da conduta criminalizada.
Se o direito penal visa à tutela do cidadão e minimização da violência, as proibições penais justificadas devem ser necessárias. Há, portanto, ofensa ao princípio da lesividade na incriminação da conduta tratada pelo parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90, posto que não traz a possibilidade concreta de dano. Não é suficiente adequar a conduta punitiva à forma, mas “asseverar a relevância penal dos comportamentos que se mostrem realmente, ao menos em termos potenciais, lesivos ao bem-jurídico”.[40]
Pois bem. Se a finalidade do referido dispositivo é fiscalizar a atividade arrecadatória, outros diplomas legais já exercem força cogente sobre a referida conduta, inclusive, mediante a imposição de multa para a hipótese de descumprimento.
Neste particular, o Código Tributário Nacional preconiza, nos termos do art. 113, §2º que a obrigação acessória tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. As legislações Estaduais, Municipais e Federais cominam multa para a hipótese do descumprimento da obrigação acessória de emitir ou apresentar notas fiscais estabelecendo multas que chegam a ultrapassar 100% do valor da obrigação.
Como a criminalização da conduta cujo bem é satisfatoriamente protegido por outras formas de sanções ou outros meios de controle social é inadequada e desnecessária, o parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 viola o princípio da fragmentariedade assim como o da subsidiariedade considerando que a repressão penal deve ser o último instrumento a ser utilizado, quando já não houver mais alternativas disponíveis, o que não é o caso.
De acordo, portanto, com a Teoria da Tipicidade Conglobante, não é possível identificar no parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 antinormatividade e tipicidade material de modo que podemos concluir pela sua atipicidade.
4, CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que um fato constitua uma infração penal é necessário verificar a sua tipicidade, a qual, a princípio, é aferida mediante a subsunção exata da conduta ao modelo abstrato previsto na norma penal incriminadora.
Contudo, através da Teoria da Tipicidade Conglobante, que funciona como verdadeiro corretivo da tipicidade penal, a conduta é típica se antinormativa e ofensiva aos bens de relevo para o direito penal. Pode-se dizer que a referida teoria nos possibilita exercer juízo de razoabilidade sobre aquela conduta que o estado diz ser típica, exercendo um verdadeiro controle sobre os excessos do detentor poder de punir.
Se a conduta criminalizada, como é o caso parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90, importa em violação de princípios constitucionais; não é antinormativa nem representa ofensividade a bem jurídico relevante, podemos, por meio da referida teoria, reconhecer a sua atipicidade.
Desse modo, é possível pautar pela atipicidade do quanto disposto no parágrafo primeiro do art. 1º da Lei 8137/90 por meio da aplicação da Teoria da Tipicidade Conglobante, reconhecendo, por oportuno, que trata-se de um verdadeiro excesso.
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NOTAS:
[1] Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret Ed., 2008, p. 31
[2] Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. São Paulo: Martin Claret Ed., 2008, p. 29
[3] BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p.156.
[4] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p. 290-291.
[5] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 220-223.
[6] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 35.
[7] ARAGÃO, Nancy. Você conhece Direito Penal? Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. Vol. II, p. 69 e 70.
[8] MARQUES, Karla Padilha Rebelo. Filosofia política em Hobbes e Locke: Conflitos e soluções para uma adequada atuação estatal. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco. p. 27
[9] LOCKE, op. cit, p. 35.
[10] ARAGÃO, Nancy, ob. cit. p. 34
[11] MARQUES, ob. cit. p. 29
[12] CARNELUTTI, Francesco apud BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal. RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, jan./jun. 2006. p. 201
[13] ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.33.
[14] BRANDÃO op. cit. p.201.
[15] OUVIÑA apud BRANDÃO ibid, p.201.
[16] MARQUES, ob. cit. p. 35
[17] ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. Lisboa: Vegas, 1998. p. 25
[18] CARNELUTTI, Francesco apud BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal. RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, jan./jun. 2006. p. 206
[19] Franz Von Liszt apud CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. 4 ed. p. 93.
[20] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 12ª Edição: Rio de Janeiro. 2010. Volume I, p. 58
[21] ROXIN, ob. cit. p. 65.
[22] BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de direito penal. Parte Geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p. 32.
[23] ROXIN, op. cit, p.65
[24] COPETTI apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, parte geral. São Paulo: Impetus, v. 1, 2005. p. 87
[25] PRADO, Luiz Regis apud SANTORO, Luciano de Freitas. Bem Jurídico e Tutela Penal de Ultima Ratio. Disponível em: < http://www.elciopinheirodecastro.com.br> Acesso em: 30 ago. 2010
[26] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito Penal. Série as ciências criminais no século XXI. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. vol. 6. p. 15.
[27] GOMES, ibid. p. 18
[28] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 67
[29] FEUERBACH apud GRECO, Rogério op. cit. p.91.
[30] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UnB, 1982. p.80
[31] GRECO ob. cit. p. 153
[32] ZAFFARONI e PIERANGELI apud GRECO, Rogério, ob. cit. p. 153
[33] GRECO, Rogério, ob. cit. p. 153
[34] ZAFFARONI apud GRECO, Rogério, ob. cit. p. 154
[35] MORAES, Alexandre de & SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial. 5ª Ed. Atlas. São Paulo. 2002. p.96.
[36] EISELE Andréas. Crimes contra a ordem tributária, Dialética: São Paulo, 1998, p. 141
[37] ROCHA, Luiz Otávio de Oliveira. O tipo penal do parágrafo único do artigo 1º da Lei 8137/90: uma interpretação à luz dos princípios da legalidade e da proporcionalidade em <www.direitocriminal.com.br> Acesso em: 19 nov. 2010
[38] STOCO, Rui. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. Coord. 7ª Edição. Revista dos Tribunais. São Paulo. Vol. 1. 2001.p. 619.
[39] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13ª Edição. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2010, p. 43.
[40] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal econômico como Direito Penal de Perigo. São Paulo, RT, 2006, p.166
Analista Processual do Ministério Público da União, lotada no Ministério Público do Trabalho de Foz do Iguaçu, Pós-graduada em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ESPINHEIRA, Adriana Monteiro. Análise da tipicidade do parágrafo único do Art. 1º da Lei n. 8137/90: Aplicação da Teoria da Tipicidade Conglobante de Raúl Zaffaroni Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 maio 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50065/analise-da-tipicidade-do-paragrafo-unico-do-art-1o-da-lei-n-8137-90-aplicacao-da-teoria-da-tipicidade-conglobante-de-raul-zaffaroni. Acesso em: 22 nov 2024.
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