Resumo: Cuida-se de ensaio que objetiva aplicar as fases da proporcionalidade em decisão colegiada que afastou a proibição de usucapião de bem público. Para tanto, pretende-se apresentar as etapas subdivididas em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, bem como explicitar, perfunctoriamente, as diferenças entre regras e princípios, as suas formas de aplicação, os requisitos da usucapião e a natureza jurídica da vedação, além de comentar a aludida decisão, indicando se poderia ou não subsistir face à teoria apresentada.
Palavras-chave: Normas jurídicas. Princípios. Regras. Proporcionalidade. Usucapião de bem público.
Sumário: Introdução. 1. Proporcionalidade: Terminologia; 2. Fases de Aplicação da Proporcionalidade; 3. Vedação à usucapião de bens públicos; 4. Caso descrito no Acórdão; 4.1. Aplicação das etapas da Proporcionalidade; 5. Conclusão; Bibliografia; Apêndice: Acórdão.
O presente ensaio tem por objetivo aplicar as etapas estruturadas da proporcionalidade ao Acórdão da Apelação Cível Nº 70018233536 do TJRS, que afastou a proibição constitucional à aquisição por usucapião de imóvel público.
O referido julgado afastou a vedação presente na Constituição Federal e no Código Civil. Em caso excepcional, entendeu que não mais subsistia o interesse público a ser assegurado com a vedação, conforme a seguinte ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BEM IMÓVEL). BENS REGISTRADO EM NOME DO PODER PÚBLICO. VIABILIDADE NO caso CONCRETO, EM QUE NÃO MAIS SUBSISTE QUALQUER INTERESSE PÚBLICO NA MANUTENÇÃO DO IMÓVEL SOB O DOMÍNIO DO ESTADO.
A despeito da vedação Constitucional (arts. 183, § 3°, CF; 191, parágrafo único, Constituição Federal), a qual impede a usucapião de imóveis públicos de qualquer espécie, possível, em casos excepcionais, o reconhecimento do direito à aquisição da propriedade pela prescrição aquisitiva, quando, como no caso, está evidente a total ausência de interesse público sobre o imóvel objeto da ação.
Hipótese em que o Poder Público Municipal, no exercício do desenvolvimento da sua política habitacional, alienou o imóvel a particular, há mais de 40 anos, tendo havido, inclusive, a expedição do Certificado de Quitação, e somente não tendo havido a efetiva transferência da propriedade junto ao registro imobiliário por entraves burocráticos.
Circunstâncias que evidenciam a total falta de interesse público, desvelando, assim, a possibilidade de aquisição do bem por usucapião.
RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO. UNÂNIME.
(Apelação Cível Nº 70018233536, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 15/02/2007).
A partir da aplicação da proporcionalidade no caso descrito no Acórdão poderemos verificar se a decisão tem respaldo na teoria, ou se, sob o prisma em estudo, outra solução deveria ter sido adotada.
Há grande divergência entre os operadores do Direito acerca da escorreita classificação da proporcionalidade, sendo comumente utilizada, inclusive pelos Tribunais Superiores, a expressão “Princípio da Proporcionalidade”. Na doutrina brasileira destacam-se as posições de Virgílio Afonso da Silva e Humberto Ávila. O primeiro entende se enquadrar no conceito de regra, segundo os critérios de distinção das normas de Robert Alexy[1], enquanto o segundo a denomina de “postulado da proporcionalidade”[2].
Virgílio sustenta ser regra, aplicada por meio de subsunção, conforme a classificação de Alexy “pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas, já que é aplicado de forma constante, sem variações”[3]. A respeito da distinção de princípios e regras Alexy discorre:
O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.
Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos, Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio[4]. (grifos no original)
Por seu turno, Humberto Ávila aduz que:
A proporcionalidade constitui-se em um postulado normativo aplicativo, decorrente do caráter principal das normas e da função distributiva do Direito, cuja aplicação, porém, depende do imbricamento entre bens jurídicos e da existência de uma relação meio/fim intersubjetivamente controlável.[5]
Ainda, conceitua que os postulados são condições essenciais a que se submete a interpretação de qualquer objeto cultural, condições essas sem as quais o objeto não pode ser sequer aprendido. Sendo os postulados divididos em meramente hermenêuticos, que objetivam a compreensão em geral do Direito, e em aplicativos, que têm função de estruturar a aplicação concreta do Direito[6].
Importa ressaltar que também se utiliza a expressão “máxima” – com mesmo sentido de “regra” – da proporcionalidade, como uma das traduções possíveis do termo “Grundsatz” em alemão[7].
A terminologia empregada deve ser coerente ao conceito adotado às regras e princípios. A distinção entre princípios e regras é feita pela doutrina utilizando-se de critério de grau de abstração ou de critério qualitativo.[8] Em relação ao grau, a doutrina normalmente aponta que os princípios têm grau de abstração elevado e menor aplicabilidade direta em relação às regras.
Enquanto na abordagem qualitativa a diferenciação baseia-se na aplicação dos princípios e regras. Nesse passo, as regras se confrontariam na esfera da validade, aplicando-se o tudo ou nada, de forma que no conflito entre regras uma seria considerada válida, afastando-se a outra do ordenamento jurídico. Por sua vez, os princípios conflitariam no plano da eficácia, sendo que um preponderaria sobre o outro conforme o caso concreto, sem que, contudo, o momentaneamente afastado, deixasse de ter validade e existência no ordenamento. Canotilho[9] aponta os seguintes critérios distintivos entre regras e princípios: a) Grau de abstração: elevado nos princípios; b) Grau de determinabilidade: princípios são vagos e indeterminados; c) Caráter de fundamentalidade: princípios são normas estruturantes ou com papel fundamental no ordenamento; d) Proximidade da ideia de direito: princípios são Standards vinculantes nas exigências de justiça ou na ideia de direito, enquanto regras podem ser meramente funcionais; e) Natureza normogênica: princípios são fundamentos das regras.
Assim, vemos na jurisprudência e na doutrina diferenças terminológicas, que devem ser coerentes com a forma de classificação adotada para denominar o “princípio”, “regra/máxima” ou “postulado” da proporcionalidade.
A aplicação da proporcionalidade contempla três etapas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. As fases devem obedecer a ordem indicada, pois elas se relacionam de forma subsidiária entre si. Nesse sentido preleciona Virgílio Afonso da Silva:
Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade. Assim, a aplicação da regra da proporcionalidade pode esgotar-se, em alguns casos, com o simples exame da adequação do ato estatal para a promoção dos objetivos pretendidos. Em outros casos, pode ser indispensável a análise acerca de sua necessidade. Por fim, nos casos mais complexos, e somente nesses casos, deve-se proceder à análise da proporcionalidade em sentido estrito.[10]
A adequação busca verificar se o meio é apto a alcançar ou, pelo menos, fomentar que o objetivo pretendido seja alcançado[11]. A necessidade, por sua vez, analisa se o objetivo perseguido pode ser promovido, com a mesma intensidade, por outro meio que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido[12]. Sendo a medida adequada e necessária, temos a verificação da proporcionalidade em sentido estrito que, nas palavras de Virgílio A. da Silva, “consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”.
A Constituição Federal estabelece nos artigos 183 e 191 a possibilidade de aquisição da propriedade por meio da usucapião. Vejamos a transcrição do Texto Constitucional:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
(...)
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O Código Civil regulamente a usucapião de bens imóveis nos artigos 1.238 a 1.244. Constituem requisitos para a consumação da usucapião: a coisa hábil ou suscetível de usucapião, a posse, o decurso do tempo, o justo título e a boa-fé, sendo que os três primeiros são requisitos necessários para todas as espécies, enquanto o justo título e a boa-fé são requisitos somente da usucapião ordinária. A usucapião pode ser classificada como extraordinária, ordinária ou especial (urbana ou rural). A extraordinária resta regulamentada no artigo 1.238 do Código Civil, tem como requisitos a posse ininterrupta de 15 (quinze) anos, exercida de forma mansa e pacífica com ânimo de dono, que poderá ser reduzida para 10 (dez) anos nos casos em que o possuidor estabelecer no imóvel a sua moradia habitual ou nele tiver realizado obras e serviços de caráter produtivo. A ordinária, prevista no artigo 1.242, do Código Civil, tem como requisitos a posse contínua, exercida de forma mansa e pacífica pelo prazo de 10 (dez) anos, o justo título e a boa fé, reduzindo esse prazo pela metade se o imóvel tiver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante em cartório, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. As hipóteses dos artigos 1.239 e 1.240, do mesmo diploma, respectivamente, definem a usucapião rural e a urbana. Ainda, permite-se a usucapião coletiva, artigo 10 do Estatuto da Cidade, e o artigo 1.240-A do Código Civil, prevê a possibilidade da usucapião da propriedade dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar àquele que exercer, por 2 anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 metros quadrados, utilizando-o para sua moradia ou de sua família e desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Entretanto, o Código Civil ressalva expressamente no artigo 102 que: “Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. Cumpre ressaltar que desde o Código Civil de 1916 o Supremo Tribunal Federal consigna a impossibilidade de aquisição de bens públicos, independentemente de sua natureza, por usucapião, conforme a Súmula 340 do STF[13].
A demanda consiste no pedido de usucapião de imóvel urbano, em que o autor alega deter a posse mansa e pacífica de uma área de terras contendo 250m². Assevera não possuir outro imóvel, estando presentes os pressupostos para a prescrição aquisitiva. Contudo, o bem era de propriedade da Administração Pública Indireta, Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB, que sustentava ser juridicamente impossível o pedido, pois que não seria possível a aquisição por usucapião de bens públicos.
Explicita o voto do Relator que o imóvel sobre o qual repousa o objeto da presente demanda foi concebido originariamente para servir ao desenvolvimento da política habitacional do Município de Porto Alegre, destinando-se à venda a pessoas de baixa renda. Ainda, relata que o imóvel fora objeto de alienação pela autarquia a um particular e, posteriormente, “vendido” diversas vezes até a aquisição pelo autor, porém, por entraves burocráticos, não houve o devido registro, impedindo a transmissão da propriedade, permanecendo, portanto, o imóvel como integrante dos bens da autarquia.
Entendeu o c. Tribunal que, neste caso excepcional, seria admitida a usucapião do bem público, pois havia sido quitado o preço, existia comprovação de posse mansa e pacífica há mais de 20 anos e, assim, inexistiria interesse público a ser resguardado pela vedação constitucional.
Como visto algures, as etapas da proporcionalidade se subdividem em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, que se aplicam subsidiariamente.
Primeiramente, antes de aplicarmos as fases, devemos verificar a natureza jurídica da vedação à usucapião de bens públicos. Existem diferentes critérios para se classificar uma norma jurídica como regra ou princípio. Se adotarmos o critério qualitativo, pela forma como a norma é aplicada, tendemos a enquadrar a vedação prevista na Constituição Federal e no Código Civil como regra, pois não teria como produzir efeitos em variadas medidas, já que seria aplicada de forma constante, sem exceções, restaria, assim, juridicamente impossível a usucapião de bens públicos em nosso ordenamento. Esta tendência pode advir da interpretação literal dos dispositivos ou da confusão entre norma e texto. Importa salientar que, na Teoria Estruturante de Müller, a norma é o resultado do texto interpretado, não se confunde norma com o texto, ela resulta dos dados extralinguísticos de tipo estatal-social com funcionamento efetivo, relacionamento efetivo e atualidade efetiva, que não podem ser previstos de antemão no texto legal[14]. Assim, a depender do resultado da interpretação estruturada a norma será classificada como regra ou princípio.
Sendo princípio, aplica-se a ponderação, por meio das etapas da proporcionalidade, se regra, em eventual embate, deve-se verificar a existência de uma cláusula de exceção que elimine o conflito entre regras, ou, se inexistir a aludida cláusula, uma das regras deve ser declarada inválida e ser extirpada do ordenamento. Nesse sentido, aduz Alexy: “Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida.”[15].
Observe que o ordenamento não contempla nenhuma exceção expressa à vedação de usucapião de bens públicos, independentemente de sua natureza (uso comum do povo, uso especial ou dominial). Se for regra, para a decisão judicial se sustentar, segundo a teoria ora explicitada, haveria a necessidade da introdução de cláusula de exceção no caso concreto, por meio de um princípio[16], porquanto impossível a sua extirpação do ordenamento – declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário –, vez que a vedação decorre de norma constitucional originária.
Desta feita, para continuarmos o escólio faremos o estudo das etapas adotando a possibilidade de ponderação neste caso concreto, pois se concluirmos que a natureza da norma é de regra e que inexistem cláusulas de exceção, a r. decisão não encontraria lastro de sustentação.
Na primeira etapa, da adequação, devemos verificar se a medida usucapião tem capacidade de atingir ou fomentar o seu objetivo, qual seja de aquisição da propriedade. Cumpre salientar que, se o imóvel continua a manter a natureza de bem público o requisito da posse restaria descumprido, porque, ainda que de forma mansa e pacífica, considera-se que a ocupação indevida de bem público gera mera detenção e não posse, segundo precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça[17].
Nesse passo, se o meio é inadequado, por descumprir o requisito de temporal da posse sobre o bem, a decisão não subsistiria. Mas para continuarmos no exercício, consideraremos a medida adequada, admitindo-se a posse sobre bem público, ainda que adquirida de modo indevido ou que em razão da boa-fé neste exemplo a ocupação mostre-se legítima (o autor “comprou” o bem de pessoa que parecia ser o legítimo proprietário, que não o era por “entraves burocráticos” impeditivos da transmissão da propriedade).
Ultrapassada a etapa da adequação entre meio e fim, devemos analisar a necessidade, ou seja, se o meio eleito (usucapião), dentro das possibilidades fáticas, é o que vulnera em menor medida outros princípios. Nesta fase, se houver outros meios igualmente eficazes para a aquisição da propriedade a usucapião não merece prosperar. Lembremos que a falta de transmissão do imóvel público para um particular se deu por “entraves burocráticos”, fato que impediu a modificação da natureza jurídica do bem, pois apenas com o registro ela poderia ocorrer na inteligência do artigo 1.245 do Código Civil. Destarte, se o autor pudesse se insurgir contra os “entraves burocráticos”, permitindo-lhe a aquisição pela compra e venda ordinária e não pela usucapião, a decisão não merece prosperar. No entanto, se no contexto fático, inexistirem alternativas que vulnerassem em menor medida o princípio em conflito, dar-se-ia início à proporcionalidade em sentido estrito, sopesando-se a imprescritibilidade do bem público e a função social da propriedade.
Nesta derradeira fase, diante de todo o contexto fático (bem dominial destinado à alienação para pessoas de baixo poder aquisitivo, quitação, uso para moradia por décadas, boa-fé do autor, dentre outros) no sopesamento entre a função social da propriedade e a imprescritibilidade do bem público, visto que o Tribunal declarou inexistir interesse público sobre o imóvel, prevaleceria a função social da propriedade, admitindo-se a usucapião, excepcionalmente, no presente caso.
Portanto, diversos são os entraves teóricos que necessitam ser traspassados para fundamentar a decisão judicial em estudo. Se a natureza jurídica da norma proibitiva for de regra, apenas uma cláusula de exceção de mesma hierarquia poderia excepcioná-la, pois a regra tem previsão constitucional e foi instituída pelo Poder Constituinte Originário, sendo predominante a tese de que não é possível declarar inconstitucional normas constitucionais originárias (ADI 815/DF).
Se admitida a possibilidade de ponderação ou se concluir pela natureza de princípio, também é árdua a transposição das fases da proporcionalidade. A adequação entre meio e fim restaria prejudicada se for mantida a natureza de bem público do imóvel, vez que não haveria posse, mas mera detenção pelo particular, restando descumprido o principal requisito da usucapião. Nesse passo, apenas se for admitida a posse do particular sobre o bem público, a usucapião cumpriria a fase da adequação. A necessidade enfrentaria a comprovação de que inexistem, no plano fático, outras alternativas para a solução dos “entraves burocráticos”, que permitiriam, por exemplo, o reconhecimento da compra e venda e com respeito às normas de alienação de bens públicos.
Assim, tormentosos são os argumentos para considerar adequada e necessária a usucapião e se adentrar à fase da proporcionalidade em sentido estrito, em que no sopesamento entre os princípios da função social da propriedade e da imprescritibilidade dos bens públicos, neste caso excepcional, prevaleceria a solução encontrada pelo i. Tribunal.
Desta feita, parece-nos que o Colegiado atentou-se apenas à proporcionalidade em sentido estrito, sem considerar a natureza da norma e as etapas precedentes da necessidade e da adequação. Há sólidos fundamentos, conforme demonstrado, para classificar a imprescritibilidade dos bens públicos como regra, bem como, se eventualmente considerada possível a aplicação da proporcionalidade, para considerar a usucapião inadequada (descumprimento do requisito posse) ou desnecessária (existência de outros meios para solucionar os “entraves burocráticos”), afastando-se a decisão da teoria em comento.
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PCDP
Nº 70018233536
2006/Cível
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BEM IMÓVEL). BENS REGISTRADO EM NOME DO PODER PÚBLICO. VIABILIDADE NO caso CONCRETO, EM QUE NÃO MAIS SUBSISTE QUALQUER INTERESSE PÚBLICO NA MANUTENÇÃO DO IMÓVEL SOB O DOMÍNIO DO ESTADO.
A despeito da vedação Constitucional (arts. 183, § 3°, CF; 191, parágrafo único, Constituição Federal), a qual impede a usucapião de imóveis públicos de qualquer espécie, possível, em casos excepcionais, o reconhecimento do direito à aquisição da propriedade pela prescrição aquisitiva, quando, como no caso, está evidente a total ausência de interesse público sobre o imóvel objeto da ação.
Hipótese em que o Poder Público Municipal, no exercício do desenvolvimento da sua política habitacional, alienou o imóvel a particular, há mais de 40 anos, tendo havido, inclusive, a expedição do Certificado de Quitação, e somente não tendo havido a efetiva transferência da propriedade junto ao registro imobiliário por entraves burocráticos.
Circunstâncias que evidenciam a total falta de interesse público, desvelando, assim, a possibilidade de aquisição do bem por usucapião.
RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO. UNÂNIME.
Apelação Cível
|
Décima Oitava Câmara Cível |
Nº 70018233536
|
Comarca de Porto Alegre |
DEPARTAMENTO MUNICIPAL DE HABITACAO DEMHAB
|
APELANTE |
GUIOMAR PAZ
|
APELADO |
HERACLIDES RODRIGUES DE FREITAS
|
INTERESSADO |
CLAIR RODRIGUES DE FREITAS
|
INTERESSADO |
MARIA FRANCISCA SILVINO
|
INTERESSADO |
VALTER HUGO KUHN
|
INTERESSADO |
ELIZETE GONCALVES
|
INTERESSADO |
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes (Presidente e Revisor) e Des. André Luiz Planella Villarinho.
Porto Alegre, 15 de fevereiro de 2007.
DES. PEDRO CELSO DAL PRÁ,
Relator.
RELATÓRIO
Des. Pedro Celso Dal Prá (RELATOR)
Trata-se de ação de usucapião de imóvel urbano ajuizado por GUIOMAR PAZ. Alega o autor deter a posse mansa e pacífica de uma área de terras contendo 250m². Assevera não possuir outro imóvel, estando presentes os pressupostos para a prescrição aquisitiva. Requer o julgamento de procedência da ação.
Houve a determinação da exclusão do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB do pólo passivo da demanda, com a inclusão de Heraclides Rodrigues de Freitas e Clair Rodrigues de Freitas (fl. 49).
Manifestou-se o Ministério Público (fl. 72-3), alegando que, a despeito do contrato de promessa de compra e venda a particular, o bem ainda se encontra registrado em nome do DEMHAB, devendo os autos serem enviados para uma das Varas da Fazenda Pública.
O Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB ofereceu contestação (fls. 95-99), alegando ser parte passiva legítima para figurar na presente ação, pois ainda é o proprietário do imóvel. Diz ser juridicamente impossível o pedido, pois que não é possível a aquisição por usucapião de bens públicos. Alega que o imóvel é de propriedade da autarquia, e integra um loteamento popular. Sustenta não ter havido ainda a transferência do domínio junto registro de Imóveis. Requer o julgamento de improcedência da ação.
Réplica nas folhas 117 a 119.
Sobreveio sentença (fls. 121 a 125), na qual o MM. Juiz de Primeiro Grau julgou extinta a ação em relação ao DEMHAB, por ilegitimidade passiva.
Interposto agravo de instrumento, foi o mesmo provido, na decisão das folhas 134-136, tornando sem efeito a decisão que excluiu a autarquia do pólo passivo da demanda.
Manifestou-se o Ministério Público (fls. 175 a 179) pelo julgamento de carência de ação, por ausência dos requisitos legais de comprovação do exercício de posse.
Prova testemunhal nas folhas 209 a 214.
Sobreveio sentença (fls. 206 a 207), na qual a MM. Juíza de Primeiro Grau julgou procedente a ação, declarando a aquisição da propriedade por usucapião, ao fundamento de que restou demonstrada a presença de todos os requisitos necessários ao acolhimento da pretensão da parte autora. Condenou o demandado, outrossim, ao pagamento das custas processuais e em honorários advocatícios, arbitrados estes em R$ 1.000,00.
Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB interpôs recurso de apelação (fls. 215-217), alegando, em síntese, que o bem é de propriedade da autarquia. Assevera que a Constituição Federal não estabelece a diferença entre bens de uso comum, especial ou dominicais, ao rezar que não são passíveis de serem usucapidos. Alega que não está em discussão a situação individual dos autores, mas o princípio jurídico, sob pena de estabelecer a insegurança quanto à titularidade dos bens públicos ocupados. Alega que a posse dos autores está garantida e tem meios jurídicos de defesa, mas a ação de usucapião não é meio de regularização de bem público. Requer o provimento do recurso.
Contra-razões nas folhas 220 a 222.
Manifestou-se o Ministério Público pelo desprovimento do recurso.
Remetidos a este Tribunal de Justiça, foram-me os autos distribuídos por sorteio automático em 29/12/2006, vindo conclusos para julgamento em 03/01/2007.
É o relatório.
VOTOS
Des. Pedro Celso Dal Prá (RELATOR)
Eminentes Colegas: O presente recurso de apelação não merece prosperar.
Cuida-se de ação de usucapião, que traz em seu bojo situação peculiar.
O imóvel sobre o qual repousa o objeto da presente demanda foi concebido originariamente para servir ao desenvolvimento da política habitacional do Município de Porto Alegre. Destinava-se, pois, à venda a pessoas de baixa renda.
Como se percebe do teor da contestação do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB, o imóvel foi alienado, tendo-o adquirido, inicialmente, mediante Contrato Particular de Promessa de Compra e Venda, Adão Pires da Silva, o qual, posteriormente, em maio de 1967, vendeu-o a Ivo Arno Vigolo, consoante demonstram os documentos das folhas 109 a 112. Após, sempre com o consentimento da autarquia demandada, o imóvel foi novamente vendido, passando à titularidade de Heraclides Rodrigues de Freitas e Clair Rodrigues de Freitas (fl. 113). E, por fim, veio adquiri-lo o autor.
Entrementes a essa sucessão de adquirentes, o imóvel restou devidamente quitado, como demonstra o documento da folha 115, e consoante corrobora o próprio ente demandado.
Mas, não obstante às incontestáveis vendas do imóvel e à quitação de seu preço, o bem ainda se encontra registrado em nome do ente de direito público, consoante se pode verificar na folha 108 dos autos.
E com lastro neste fato é que a parte apelante veiculou sua irresignação, aduzindo, como visto do relatório, não ser possível a aquisição da propriedade por usucapião de bem público, pois ainda detém o domínio do imóvel.
Entretanto, com a devida vênia, razão assiste à parte autora, pois não verifico óbice, no concreto caso dos autos, a que se reconheça o seu direito à aquisição da propriedade do imóvel pela via da usucapião, tendo em vista, principalmente, não haver qualquer dúvida quanto à quitação do imóvel pelo autor (fato não negado pela parte ré, pois, ao contrário, reconhece expressamente, em sua contestação, a liquidação do débito – fl. 98).
Reconhece-se, por outro lado, que a Constituição Federal veda, expressamente, a hipótese de usucapião sobre imóveis públicos (arts. 183, § 3°[18], CF; 191, parágrafo único[19], Constituição Federal), independentemente de sua condição jurídica frente ao ente público, seja ele afetado ou não, ou, ainda, independente de ser de uso comum do povo, de uso especial ou dominial.
O caso dos autos, todavia, guarda situação peculiar, que o afasta da regra geral.
A vedação Constitucional tem por escopo, precipuamente, o resguardo do interesse público.
Ocorre que nenhum interesse público subsiste quanto ao terreno objeto da presente demanda, pois, como visto, já foi alienado pelo Estado há mais de vinte anos, mediante Contrato Particular de Promessa de Compra e Venda. Houve, inclusive, a expedição do Certificado de Quitação, o qual tomou o n.º 140/01-EFC (consoante reconhece a parte ré – fl. 98).
O próprio Estado reconhece a ausência de interesse público sobre o bem, apenas apontando como óbice ao acolhimento da pretensão do autor a vedação Constitucional e o temor de se estabelecer a insegurança quanto à titularidade dos bens públicos ocupados.
Entretanto, não vejo, repiso, óbice ao acolhimento da pretensão do autor, frente à peculiaridade do caso concreto, em que nenhum interesse público remanesce quanto ao terreno objeto da presente ação.
À vista disso, tenho que no caso mostra-se possível o acolhimento da pretensão inicial.
No mais, presentes os requisitos autorizadores para o reconhecimento da usucapião, pois a prova dos autos, em especial a testemunhal, atesta que o autor encontra-se na posse do imóvel há mais de 20 anos, de forma mansa, pacífica e com ânimo de dono, razão pela qual é de ser mantida a sentença, em sua integralidade.
ISSO POSTO, voto no sentido de negar provimento ao recurso de apelação.
Des. Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes (PRESIDENTE E REVISOR) - De acordo.
Des. André Luiz Planella Villarinho - De acordo.
DES. CLÁUDIO AUGUSTO ROSA LOPES NUNES - Presidente - Apelação Cível nº 70018233536, Comarca de Porto Alegre: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: FERNANDO CARLOS TOMASI DINIZ
[1] SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798(2002), pp. 23-50.
[2] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 204.
[3] SILVA, Virgílio Afonso. Ob. Cit. p. 25.
[4] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. (trad. Virgílio Afonso da Silva). São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 90-91.
[5] ÁVILA, Humberto. Ob. Cit., p. 205.
[6] ÁVILA, Humberto. Ob. Cit., pp. 163-164.
[7] SAPUCAIA, Rafael Vieira Figueiredo. A aplicação da máxima da proporcionalidade no STF: um caso. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, abril de 2013, pp. 193-204. Veja-se também ALEXY, Robert. Ob. Cit., passim, tradução de Virgílio Afonso da Silva que utiliza “máxima da proporcionalidade”.
[8][8] Luís Virgílio Afonso da Silva. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Artigo publicado na Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): 607:630. Passim.
[9] José Joaquim Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição. 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002, pp. 1146/1147.
[10] SILVA, Virgílio Afonso da. Proporcional., pp. 35-36.
[11] Idem, pp. 36-37.
[12] Ibidem, p. 38
[13] “Desde a vigência do código civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”
[14] MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho no direito constitucional. 3 ed, Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2005, p.38, APUD NERY JR, Nélson. Princípios do processo na constituição federal. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp. 22-23.
[15] Ob. Cit., p. 92.
[16] Ver Alexy, Ob. Cit., pp. 104-105.
[17] V.g. AgRg no REsp 1470182 e REsp 1310458.
[18] § 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
[19] Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Procurador do Estado de São Paulo. Mestre e Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Especialista em Direito Constitucional pela PUCSP/COGEAE.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Fábio André Uema. Usucapião de Bem Público: Breves Comentários ao Acórdão da Apelação Cível Nº 70018233536 do TJRS à luz da Proporcionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50179/usucapiao-de-bem-publico-breves-comentarios-ao-acordao-da-apelacao-civel-no-70018233536-do-tjrs-a-luz-da-proporcionalidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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