O presente estudo tem por objetivo analisar o cabimento (ou não) da fixação de honorários à Defensoria Pública, em razão de sua atuação.
Um primeiro recorte analítico deve ser feito. Jamais serão devidos honorários à Defensoria Pública pelo próprio usuário deste serviço público, quando a Instituição estiver atuando em suas funções típicas, ou seja, em favor dos hipossuficientes econômicos, nos termos, inclusive, do que determina a novel redação do art. 134, caput, da Constituição da República, nos termos advindos da Emenda à Constituição nº 80/14 (“...de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”, com grifos nossos).
Um segundo recorte também deve ser realizado. Parece haver um certo ambiente de consenso em doutrina e jurisprudência acerca do cabimento de honorários sucumbenciais à Defensoria Pública quando ela atua patrocinando os interesses da parte vencedora da causa, tanto em suas funções típicas, quanto em suas funções atípicas, seja atuando no patrocínio de terceiros, seja atuando em nome próprio.
Esses honorários são devidos pelo vencido, em razão do princípio da sucumbência, e devem ser pagos, regra geral, conforme determina o Código de Processo Civil. Ressalve-se, contudo, as hipóteses legais expressas de não cabimento dos honorários de sucumbência, tal como ocorre no caso de mandado de segurança (Lei nº 12.016/09, art. 25).
E o fundamento para que a Instituição faça jus a estas verbas sucumbenciais, mesmo atuando de forma graciosa em relação à parte que patrocina (o que – poderiam dizer alguns – afastaria o fundamento para que houvesse o dever da parte contrária de arcar com o custo financeiro de tal mister) é de cunho legal e se encontra na Lei Complementar nº 80/94, art. 4º, XXI, que aponta, como uma das funções institucionais da própria Defensoria Pública: “executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores” (grifos nossos).
Assim, feitos os devidos recortes temáticos, sobra uma hipótese de atuação institucional para ser analisada acerca do cabimento de honorários para a Defensoria Pública, qual seja, quando a Instituição atua, em função atípica, patrocinando interesses de terceiro; honorários estes a serem pagos por este mesmo terceiro, exatamente por estar recebendo a prestação do serviço público de assistência jurídica, na modalidade assistência judiciária.
Para tanto, necessário fazer uma digressão sobre o tema.
A Defensoria Pública presta um serviço estatal, qual seja, o de assistência jurídica integral. Ademais, este serviço jurídico-assistencial é prestado com exclusividade, como assim já afirmou o próprio Supremo Tribunal Federal.
Analisando a natureza jurídica desse serviço estatal, percebe-se que o mesmo amolda-se de forma perfeita na categoria de “serviço público”, uma vez que pode ser conceituado como “toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade”[1].
Em outras palavras: a Defensoria Pública presta, com exclusividade, o serviço público de assistência jurídica integral.
Partindo-se desta fundamental premissa, passemos à análise dos consectários desta conclusão. Quanto à forma de remuneração e custeio dos serviços públicos, abre-se uma grande chave, dividindo-os em duas grandes espécies: os serviços públicos uti universi (coletivos) e os serviços públicos uti singuli (singulares). Em síntese, os primeiros são prestados a grupos indeterminados de pessoas, enquanto os últimos são ordenados a destinatários individualizados ou individualizáveis, sendo possível mensurar o quantum do serviço cada indivíduo recebeu. Neste diapasão, infere-se que a Defensoria Pública, na quase totalidade de suas funções institucionais (sejam elas típicas ou atípicas), presta serviço uti singuli, à exceção do seu atuar na tutela coletiva, na específica defesa de direitos difusos.
Enquanto os serviços públicos uti universi são remunerados por meio de impostos, os serviços uti singuli podem ser gratuitos ou remunerados.
Inegavelmente que, quando em sua atividade típica (assistência jurídica integral e gratuita para os necessitados econômicos), o serviço prestado pela Defensoria Pública será gratuito.
Todavia, quando agindo em função atípica, qual seria a natureza do serviço público uti singuli prestado pela Defensoria Pública: gratuito ou remunerado? Eis o cerne da questão.
Para responder a esta questão, é de fundamental importância a definição de como deve ser interpretado o já mencionado art. 134, caput, da Carta Magna, cuja integral redação trazemos neste ponto a lume:
“A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal” (grifos nossos).
Isso porque, a depender da interpretação conferida ao citado dispositivo, chega-se à conclusão de que a atuação atípica da Defensoria Pública deverá ser sempre gratuita ou de que esta agir institucional atípico poderá vir a ser remunerado.
Conclui-se que, mesmo em função atípica, a Instituição deve atuar de forma gratuita, partindo-se da premissa que o usuário-beneficiário do serviço sempre será uma pessoa ou uma coletividade vulnerável (os “necessitados”, na forma do texto constitucional). Esta noção de vulnerável (que pode ser: econômico, organizacional, social, dentre outros), portanto, nortearia o agir institucional tanto típico, quanto atípico. Destarte, a referência “na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal” (ou seja, em relação aos que “comprovarem insuficiência de recursos”) ligar-se-ia ao advérbio “fundamentalmente”.
Em resumo: fundamentalmente (ou seja, em suas funções típicas), a Defensoria Pública atuará em favor dos economicamente necessitados; mas para além desse agir (ou seja, em suas funções atípicas) a Instituição agirá em prol dos vulneráveis em sentido amplo. Sempre, contudo, de forma integral e gratuita.
Esta forma de interpretar, mais restritiva, tem o seu valor, por reforçar a necessidade de que a Instituição possua um orçamento condigno com sua grandeza, eis que esta seria a única fonte de receitas, à exceção dos honorários de sucumbência. Entretanto, este viés interpretativo encontra severos críticos em doutrina e não parece ser assim que caminha a jurisprudência pátria.
É possível, ademais, realizar interpretação diametralmente oposta do mesmo dispositivo constitucional. Esta outra linha de pensamento perpassaria pelo entendimento de que o advérbio “fundamentalmente” estaria ligado a “gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”. Deste modo, nas demais formas de atuação institucional, que não as fundamentais ali postas no dispositivo constitucional (ou seja, nas funções atípicas), o agir da Defensoria Pública deveria ser (ou, ao menos, poderia vir a ser) remunerado pelo usuário do serviço.
Em outras palavras: fundamentalmente (ou seja, em suas funções típicas), a Defensoria Pública deve atuar de forma gratuita e em favor dos economicamente necessitados; nas demais atuações institucionais (ou seja, em suas funções atípicas), seria possível que houvesse, por parte do usuário do serviço, uma contraprestação.
Aprofundando-se na interpretação que permite a remuneração dos serviços prestados pela Defensoria Pública, quando em suas funções atípicas, é de fundamental importância, para que esta exegese seja válida, que se perquira qual a natureza dessa retribuição e qual(is) requisito(s) para sua instituição.
Para doutrina majoritária, os serviços públicos uti singuli remunerados podem sê-lo por duas formas: taxa ou tarifa. Os serviços remunerados por meio de taxa seriam aqueles prestados diretamente pelo Estado; enquanto que os serviços remunerados por tarifa seriam os prestados por delegatários (concessionários ou permissionários) de serviços públicos.
Assim sendo, deveria o serviço público jurídico-assistencial da Defensoria Pública na função atípica ser remunerado por meio de taxa? Caso afirmativo, em se tratando de espécie tributária, haveria toda uma série de princípios e regras específicos do sistema tributário a serem respeitados para fins de cobrança desta remuneração.
Contudo, fato é que inexiste tal previsão seja na legislação federal, seja na distrital, seja na de quaisquer dos Estados-membro da federação. Destarte, por ausência de previsão legal, em um primeiro momento, chegar-se-ia à conclusão de que não haveria espaço para a cobrança, no atual cenário legislativo pátrio, por qualquer serviço prestado pela Defensoria Pública.
Todavia, a questão não é de resposta tão simplória. José dos Santos Carvalho Filho afirma que “nada impede que, em serviços dessa natureza [serviços que são, em regra, gratuitos], possa ser cobrada remuneração (normalmente taxa) de algumas pessoas (...) não consistindo óbice o fato de o órgão ser beneficiário de orçamento público”[2]. Conclusão: para o insigne administrativista, esta forma de cobrança não seria obrigatoriamente uma taxa.
Mas, qual seria esta outra forma de remuneração? O culto doutrinador não responde a esta pergunta, até porque este tema é de grande debate em sede de Supremo Tribunal Federal.
Entretanto, analisando as semelhanças mínimas entre taxa e tarifa, pode-se chegar a um denominador comum: a necessidade de previsão legal. Para que exista uma taxa, em respeito ao princípio da legalidade, é curial que a mesma seja criada por meio de lei em sentido estrito. A seu turno, somente é possível falar em pagamento de tarifas no caso de serviços públicos delegados porque a Lei nº 8.987/95, art. 9º, expressamente autoriza a sua cobrança.
Sendo assim, seria possível chegar a mais uma conclusão: é possível a cobrança pelo serviço jurídico-assistencial prestado pela Defensoria Pública, quando em função atípica, desde que haja, ao menos, previsão legal.
Fato é que existe previsão legal. E não é de uma taxa, muito menos de uma tarifa, mas de uma verba conhecida como “honorários”. Assim, em se admitindo que outras formas que não taxas e tarifas remunerem serviços públicos uti singuli, seria perfeitamente viável que o serviço da Defensoria Pública, quando em função atípica, seja remunerado, desde que haja previsão legal. Atualmente, no sistema legislativo pátrio, esta forma de remuneração responde pelo nome de “honorários”.
Esta previsão legal, contudo, é por demais restrita. Passando em revista o ordenamento jurídico pátrio, analisando a regulamentação legal de cada uma das funções atípicas da Defensoria Pública, avista-se somente uma que expressamente prevê a remuneração, pelo usuário-beneficiário do serviço.
Tal previsão é a constante do parágrafo único do art. 263, do Código de Processo Penal. Para entendimento do tema, faz-se mister a transcrição integral do referido artigo:
“Art. 263. Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.
Parágrafo único. O acusado, que não for pobre, será obrigado a pagar os honorários do defensor dativo, arbitrados pelo juiz.”
Como se depreende da melhor exegese do art. 4º, inciso V, da Lei Complementar nº 80/94, a antiga expressão “patrocinar defesa em ação penal” está atualmente contida em “exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses”, mantendo, contudo, sua natureza de atuação institucional atípica[3].
Desta maneira, na atual ordem legislativa brasileira – partindo-se da premissa de que seria possível, em determinados casos, a cobrança pelos serviços prestados pela Defensoria Pública, em suas funções atípicas, em razão de interpretação do art. 134, caput, da Lei Maior – somente é possível a tal remuneração no caso do patrocínio da defesa, em processo criminal, de réu não economicamente necessitado, por meio de “honorários”, a serem fixados pelo juiz da causa.
Há, contudo, quem irá criticar esta previsão, inclusive qualificando-a de inconstitucional. Isto porque, se a defesa técnica em ação penal é indisponível, em razão do que determina a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o réu estaria sendo compelido a pagar por um serviço público a ele prestado, mesmo contra sua vontade.
Todavia, rebate-se este argumento na medida em que o Supremo Tribunal Federal entende plenamente constitucional a cobrança de taxas por serviços públicos de utilização compulsória. Portanto, de inconstitucionalidade nenhuma padece o dispositivo legal que prevê a remuneração da Defensoria Pública, por meio da fixação de “honorários”, no caso de prestar a defesa criminal a réu que não seja economicamente necessitado.
À guisa de conclusão, extrai-se que, no atual tratamento conferido pelo texto constitucional à Defensoria Pública, duas são as interpretações possíveis, no que tange ao cabimento de remuneração pelo usuário-beneficiário do serviço público jurídico-assistencial: uma, confere caráter absoluto à gratuidade dos serviços prestados pela Defensoria Pública; outra, entende ser possível a cobrança no caso do exercício institucional de função atípica.
A interpretação que veda qualquer forma de cobrança do usuário pela prestação do serviço tem seu valor institucional, porém encontra grande resistência na doutrina institucional e parece destoar do que decidem os tribunais inferiores e mesmo os superiores.
Assim, aprofundando-se pela outra forma de interpretar o dispositivo, seria possível a cobrança do usuário do serviço em situações excepcionais, quais sejam, as relativas às funções institucionais atípicas.
Prosseguindo e aprofundando a análise, fazendo um cotejo com as outras formas de remuneração dos serviços públicos uti singuli, tal qual o serviço jurídico-assistencial, chega-se à conclusão da indispensabilidade da previsão legal para sua cobrança. E, passando em revista a legislação pátria, encontra-se apenas uma previsão legal de contraprestação a ser paga pelo usuário-beneficiário: por meio da fixação, pelo juiz, de honorários devidos pelo réu em ação penal, patrocinado pela Defensoria Pública, que não seja hipossuficiente econômico.
Por fim, não se sustente a inconstitucionalidade de tal cobrança, ante a sua compulsoriedade – o réu em processo criminal não pode dispor de sua defesa técnica – pois que outros serviços públicos obrigatórios são remunerados por taxas e sua constitucionalidade nunca foi declarada pela Corte Suprema.
[1] Esta é a conceituação proposta por José dos Santos Carvalho Filho, in: Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2014. p. 329.
[2] CARVALHO FILHO, op. cit. p. 345.
[3] Neste sentido: ESTEVES, Diogo e SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014. pp. 343-344
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Pedro Ramos Lyra da. Do (não) cabimento da fixação de honorários para a Defensoria Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50228/do-nao-cabimento-da-fixacao-de-honorarios-para-a-defensoria-publica. Acesso em: 22 nov 2024.
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