Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de fazer uma exposição geral sobre os efeitos provocados pelo parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas no âmbito do controle externo das contas do chefe do poder executivo municipal, abordando as principais controvérsias acerca do tema, as quais possuem grande relevância hodierna, ante a possibilidade da configuração da inelegibilidade prevista no artigo 1°, inciso I, alínea g, da Lei Complementar número 64, de 18 de maio de 1990.
Palavras-chave: Parecer prévio. Efeitos. Inelegibilidade.
Sumário: 1. Introdução. 2. Dos efeitos da emissão do parecer prévio pelo Tribunal de Contas. 2.1 Das espécies de contas analisadas no parecer prévio do Tribunal de Contas 2.2. Dos efeitos produzidos pela emissão pelo Tribunal de Contas do parecer prévio no âmbito do controle externo do chefe do Poder Executivo municipal. 3. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Como é cediço, a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) atribuiu ao Tribunal de Contas a tarefa de auxiliar o Poder Legislativo no exercício do controle externo do Poder Executivo. Nesse sentido, o artigo 71, inciso I, da CRFB/88, dispõe que o Tribunal de Contas da União deve apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio a ser elaborado em até sessenta dias a contar de seu recebimento. No tocante à esfera municipal, a Carta Constitucional, em seu artigo 31, parágrafo segundo, estatui que o parecer prévio elaborado pelo Tribunal de Contas Estadual[1] só deve deixar de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal, veja-se:
Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei. § 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
Apesar da clareza do texto constitucional, existe uma histórica divergência doutrinária e jurisprudencial a respeito dos efeitos proporcionados pela emissão do referido parecer nos casos em que o Poder Legislativo Municipal se mantém silente, existindo basicamente duas correntes colidentes sobre o tema[2]. Para a primeira, o parecer emitido pela Corte de Contas possui caráter apenas opinativo, não gerando quaisquer efeitos imediatos. Por outro lado, a segunda defende que o parecer tem natureza de decisão, produzindo efeitos imediatos, os quais somente findam com a sua rejeição pelo quórum qualificado previsto na CRFB/88.
Essa controvérsia possui importante repercussão prática, tendo em vista a possibilidade da configuração da inelegibilidade por oito anos daquele que teve suas contas definitivamente rejeitadas por decisão do órgão competente. Tal hipótese de inelegibilidade, criada com vistas à garantia da moralidade e probidade administrativas[3], consta no artigo 1°, inciso I, alínea g, da Lei Complementar número 64, de 18 de maio de 1990, observe-se:
Art. 1º São inelegíveis: I - para qualquer cargo: g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010).
Segundo José Jairo Gomes[4], a inelegibilidade apresentada não decorre de ato próprio da Justiça Eleitoral, mas sim da própria rejeição de contas do órgão competente. À Justiça Eleitoral só cabe, em verdade, apreciar “os fatos e as provas que lhe são apresentados”, reconhecendo a inelegibilidade ou afastando-a.
Assim, a depender da adesão a uma das duas correntes acima apresentadas, pode-se chegar a duas conclusões divergentes, quais sejam: (a) o parecer prévio do Tribunal de Contas somente possui natureza opinativa, razão pela qual a inelegibilidade acima exposta só resta configurada com o julgamento realizado pelo Poder Legislativo Municipal; (b) a simples emissão do parecer prévio da Corte de Contas no sentido da rejeição das contas apresentadas pelo chefe do poder executivo municipal já é suficiente para a configuração imediata da mencionada inelegibilidade, a qual só pode afastada com a posterior decisão de ao menos dois terços dos membros da Câmara Municipal.
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Recurso Extraordinário número 729744/MG[5], finalmente pode ter encerrado tal controvérsia, indo ao encontro da manutenção da segurança jurídica, conforme será analisado a seguir.
2. DOS EFEITOS DA EMISSÃO DO PARECER PRÉVIO PELO TRIBUNAL DE CONTAS
2.1 Das espécies de contas analisadas no parecer prévio do Tribunal de Contas
Antes de tratar especificamente acerca dos efeitos proporcionados pelo parecer prévio do Tribunal de Contas Estadual, faz-se necessário tecer algumas breves considerações acerca da abrangência do referido documento, de forma a determinar quais são os tipos de contas que são analisados na sua confecção.
De acordo com parte dos tribunais pátrios, o parecer prévio da Corte de Contas só deve analisar as chamadas “contas de governo”, isto é, as contas ligadas diretamente à gestão política do chefe do Poder Executivo, tendo em vista que apenas essas são objeto de controle do Poder Legislativo[6]. É que, segundo essa corrente, as ditas “contas de gestão”, que dizem respeito aos gastos do chefe do executivo como um simples ordenador de despesas (e não como um agente político), são diretamente julgadas pelo próprio Tribunal de Contas, sem a necessidade da emissão de um parecer prévio, aplicando-se neste caso o artigo 71, inciso II, da CRFB/88[7].
Essa posição foi expressamente adotada pela segunda turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Ordinário no Mandado de Segurança número 12.402/CE[8], oportunidade na qual a ministra relatora Eliana Calmon afirmou o seguinte:
Partindo-se da idéia de que não contém a Constituição palavras inúteis e de que se estendem os princípios constitucionais às três esferas de Poder - União, Estados e Municípios -, podemos afirmar que nos Estados o Tribunal de Contas funciona com a dupla atribuição: órgão auxiliar e órgão julgador. A diferença de atribuições fica na dependência do que se coloca para apreciação. No exercício da função política de gerência estatal, quando são examinados os atos de império na confecção, atuação e realização orçamentária, é o Tribunal órgão opinativo e, como tal, assessora tecnicamente o Legislativo, a quem compete o julgamento das contas do chefe político: Prefeito, Governador e Presidente da República (art. 71, inciso I, c/c o art. 49, IX, da CF/88). Diferentemente, quando examina o agir do ordenador de despesas, o Tribunal de Contas vai além, porque lhe compete julgar tais contas.
Dessa feita, a título ilustrativo, o respeito aos percentuais mínimos referentes à aplicação de recursos em educação pelo chefe do Poder Executivo municipal (gasto do chefe do executivo relacionado à própria gestão política) seria objeto de julgamento pela Câmara Municipal, mediante o parecer prévio do Tribunal de Contas, ao passo que determinado ato de licitação (atuação do chefe do executivo como ordenador de despesas) seria objeto de julgamento diretamente pela Corte de Contas.
Esse também é o entendimento de grande parte da doutrina. Edson de Resende Castro[9], por exemplo, afirma que:
O certo é que o Tribunal de Contas, quando examinando a execução da despesa pública, ou seja, esse ato de ordenação de despesa, profere julgamento das contas, aprovando-as ou rejeitando-as. O TC não vai, neste particular (ordenação de despesas, repita-se), emitir parecer prévio para a apreciação da Casa Legislativa. Vai, isto sim, proferir um julgamento, porque é dele a competência para o juízo definitivo, nesta instância, a respeito das contas de tal natureza. Via de consequência, a decisão que vai tornar inelegível o ordenador das despesas é aquela pronunciada pelo Tribunal de Contas, se as tiver rejeitado, perdendo relevância eventual pronunciamento da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa ou do Congresso Nacional, ainda que seja no mesmo sentido.
Contudo, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, na análise do Recurso Extraordinário número 848826/DF[10], reiterou sua posição no sentido de que tanto as “contas de governo” quanto as “contas de gestão” do chefe do Poder Executivo devem ser julgadas pelo Poder Legislativo, razão pela qual o parecer do Tribunal de Contas deve abrangê-las simultaneamente.
Tal posição parecer ser, de fato, a mais acertada, visto que a Carta Magna diferenciou a atividade do Tribunal de Contas quando do julgamento das Contas pelo Chefe do Poder Executivo (sem fazer qualquer tipo de ressalva) daquela exercida quando do julgamento dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, instituindo, dessa feita, um tratamento dúplice.
2.2 Dos efeitos produzidos pela emissão pelo Tribunal de Contas do parecer prévio no âmbito do controle externo do chefe do Poder Executivo municipal
Conforme exposto anteriormente, existe relevante embate doutrinário e jurisprudencial a respeito dos efeitos provocados pelo parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas no âmbito do controle externo das contas apresentadas pelo chefe do Poder Executivo municipal, o que repercute na possibilidade da configuração da sua inelegibilidade.
Segundo grande parte da doutrina, com a edição da “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar número 135, de 4 de junho de 2010), a qual modificou a Lei Complementar número 64, de 18 maio de 1990, determinando a “aplicação do inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão dos mandatários que houverem agido nessa condição”, o legislador deixou nítida a sua intenção de que a inelegibilidade resultante da rejeição das contas do agente político também decorre da apreciação feita pelo Tribunal de Contas[11].
O Supremo Tribunal Federal, porém, na análise do já citado Recurso Extraordinário 729744/MG, aclarou sua posição acerca do tema, adotando, acertadamente, a tese no sentido de que o parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas possui caráter meramente opinativo, não se confundindo, portanto, com uma decisão, razão pela qual não produz efeitos imediatos. Sendo assim, apenas após a confirmação da rejeição de contas pela Câmara Municipal é que o Prefeito pode ser considerado inelegível.
De acordo o ministro Gilmar Mendes, relator do referido processo, a expressão “só deixará de prevalecer”, utilizada no artigo 31, parágrafo segundo, da CRFB/88 (já citado), interpretada de forma sistêmica, apenas ressalta a necessidade do quórum qualificado de dois terços dos vereadores para a rejeição do parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas.
Caso fosse possível a produção imediata de efeitos após a emissão de tal parecer, haveria uma espécie de julgamento ficto das contas do chefe do Poder Executivo, o que não é permitido pelo atual ordenamento jurídico. Nas palavras do mencionado ministro:
O ordenamento jurídico pátrio não admite o julgamento ficto de contas, por decurso de prazo, sob pena de, assim se entendendo, permitir-se à Câmara Municipal delegar ao Tribunal de Contas, que é órgão auxiliar, competência constitucional que lhe é própria, além de se criar sanção ao decurso de prazo, inexistente na Constituição. Do mesmo modo, não se conformam com o texto constitucional previsões normativas que considerem recomendadas as contas do município nos casos em que o parecer técnico não seja emitido no prazo legal, permitindo às Câmaras Municipais o seu julgamento independentemente do parecer do tribunal de contas.
Além dos argumentos acima apresentados, cabe ponderar que o artigo 1°, inciso I, alínea g, da Lei Complementar número 64, de 18 de maio de 1990, que trata sobre a hipótese da inelegibilidade pela rejeição de contas, dispõe que a decisão de rejeição das contas deve ser irrecorrível e proferida pelo órgão competente, o qual só pode ser o Poder Legislativo municipal, conforme o decidido no já mencionado Recurso Extraordinário número 848826/DF.
Ainda, é relevante a ressalva feita pelo Ministro Gilmar Mendes, no sentido de que a aprovação das contas do chefe do Poder Executivo municipal pela Câmara Municipal tem o mero condão de afastar a sua inelegibilidade, não obstando, entretanto, a possibilidade de sua responsabilização nos âmbitos civil, criminal ou administrativo.
Destarte, conclui-se que, apesar do entendimento doutrinário em sentido contrário, somente com a decisão da Câmara Legislativa no sentido de rejeitar as contas apresentadas pelo chefe do Poder Executivo é que haverá a configuração da inelegibilidade prevista no artigo 1°, inciso I, alínea g, da Lei Complementar número 64, de 18 de maio de 1990.
3. Conclusão
Pelo exposto, conclui-se que o parecer técnico emitido pelo Tribunal de Contas no âmbito do controle externo do chefe do Poder Executivo municipal possui natureza meramente opinativa, podendo ser rejeitado pelo quórum qualificado de dois terços dos membros da Câmara Municipal, não produzindo efeitos imediatamente.
Esse parecer prévio deve conter não apenas as “contas de governo” do chefe do Prefeito, mas também as suas “contas de gestão”, ante a competência do Poder Legislativo municipal para a apreciação da regularidade de ambas.
Sendo assim, é descabida a rejeição do registro da candidatura do candidato que ainda não tenha tido suas contas definitivamente rejeitadas pelo Poder Legislativo municipal, o que poderá dar ensejo à adoção das medidas jurídicas cabíveis.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2016.
CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 6. ed. Belo Horizonte: Delrey, 2012.
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5. ed. Salvador: Juspodivm, p. 436, 2016.
[1] Ou pelo Tribunal de Contas Municipal, no caso dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro, em razão do artigo 31, parágrafo quarto, da CRFB/88.
[2] LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5. ed. Salvador: Juspodivm, p. 436, 2016.
[3] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 10. ed. São Paulo: Atlas, p. 206, 2014.
[4] Ibid.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 729744/MG. Recorrente: Ministério Público Eleitoral. Recorrido: Jordão Viana Teixeira. Relator atual: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, DF, 18 de outubro de 2016. Diário da Justiça Eletrônico.
[6] LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5. ed. Salvador: Juspodivm, p. 442, 2016.
[7] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (...) II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário no Mandado de Segurança número 12.402/CE.
[9] CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 6. ed. Belo Horizonte: Delrey, p. 222, 2012.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 848826/DF. Recorrente: José Rocha Neto. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Relator atual: Ministro Roberto Barroso. Brasília, DF, 22 de outubro de 2016. Diário da Justiça Eletrônico.
[11] CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 6. ed. Belo Horizonte: Delrey, p. 227, 2012.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Victor Teixeira de. A inelegibilidade pela rejeição de contas e o parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas no âmbito do controle externo do chefe do poder executivo municipal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50453/a-inelegibilidade-pela-rejeicao-de-contas-e-o-parecer-previo-emitido-pelo-tribunal-de-contas-no-ambito-do-controle-externo-do-chefe-do-poder-executivo-municipal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
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