1. Introdução
A maior parte das leis penais é ou foi, até um passado recente, neutra quanto às questões de gênero. É visível que os legisladores, de forma geral e principalmente no que diz respeito aos direitos das mulheres, atendem ao paradigma tradicional e patriarcal nos momentos de construção da lei. Como consequência, frequentemente os sofrimentos e especificidades de casos femininos são ignorados em tais matérias. Esse quadro é ainda mais agravado pelo fato de as demandas por equidade entre os gêneros e o debate sobre este tema serem relativamente novos e, consequentemente, a expressão dessa problemática no Direito Penal ainda não ser extensiva nem adequadamente abordada e apreciada (CHIAROTTI, 2011).
A escolha do México como critério e caso comparativo a ser analisado neste artigo se deu pelo fato de terem se dado nesse país, de forma inovadora e revolucionária, as primeiras discussões sobre os conceitos de femicídio e de feminicídio na região da América Latina, bem como o espalhamento geográfico de tais conceitos. Não obstante, a enorme prevalência de crimes assim caracterizados no país também chama a atenção e convida a uma reflexão sobre a eficácia real de mecanismos penais.
2. Femicídio ou feminicídio?
Primeiramente, é interessante pontuar possíveis diferenças conceituais entre os termos feminicídio e femicídio presentes no entendimento bibliográfico geral. De acordo com as Diretrizes Nacionais de Feminicídio (2016), ambas as expressões são utilizadas para denominar mortes violentas de mulheres e não há consenso na literatura quanto ao nível de aproximação e distanciamento entre elas. É importante ressaltar que tal diferenciação não é absoluta e por vezes considera-se que são termos sinônimos. Em um contexto prático, a diferenciação é quase inexistente e/ou não altera de forma significativa os efeitos dessa caracterização (CHIAROTTI, 2011; PASINATO, 2011).
Dessa forma e com o objetivo de conseguir traçar uma separação fática entre os dois termos em nível teórico, pode-se assumir como diferenciação basilar e mais proeminente aquela feita puramente pela área da linguística. Neste sentido e em se tratando de uma tradução simples dos termos femicide (do inglês e língua-materna da palavra) e femicidio (advindo do castelhano, língua na qual se deu sua difusão) para a língua portuguesa, a noção de femicídio faria referência apenas ao assassinato de mulheres sem quaisquer influências do ser mulher, enquanto feminicídio traria em si uma concepção de crime motivado por diferenciação de gênero (PASINATO, 2011).
3. Brasil
No Brasil, em se tratando de tipificação de feminicídio, deve-se observar o entendimento da Lei 13.104, sancionada em março de 2015. Tal lei introduziu alterações no Código Penal Brasileiro no sentido de incluir o feminicídio no rol de qualificadores do crime de homicídio, bem como estabelecê-lo enquanto uma modalidade de crime hediondo. Como consequência, em se tratando da letra da lei, a Lei 11.340 mudou o entendimento anterior do artigo 121 do Código Penal. A lei entende, porém, que é necessária condição de violência doméstica e familiar, ou seja, vínculo entre o agressor e a agredida. Também há possibilidade de aumento de pena de um terço até a metade, a depender das condições da vítima (gravidez, pessoa menor de 14 anos ou maior de 60 anos, presença de ascendente ou descendente).
A Lei 11.340/06 – popularmente conhecida como Maria da Penha – não faz referência explícita ao feminicídio, por outro lado, mas também se mostra muito importante para a diminuição das lacunas entre os gêneros no Brasil. Esse fato é evidenciado pelos tipos de violência descritos em seu artigo 7º, que fogem do paradigma tradicional de violência física e sexual.
Segundo sua ementa, a Lei Maria da Penha
cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências (BRASIL, 2006).
Isto posto, verifica-se que o objetivo de ambas as leis supracitadas é disciplinar as condutas ocorridas contra a mulher em ambiente doméstico, por pessoas de seu convívio e não de forma geral. Destarte, conclui-se que as hipóteses de aplicação do feminicídio no Brasil são restritas e podem não abarcar todas as formas de violência de gênero existentes.
Também vale ressaltar, em âmbito terminológico, que a nomenclatura do tipo adotada no Brasil é majoritariamente a de feminicídio. Também é este o vocabulário determinado no tipo e utilizado na legislação.
4. México
É interessante retomar a ideia aludida anteriormente de que ocorreu no México - em decorrência do significativo número de mortes violentas de mulheres - o fomento inicial para o emprego e a discussão do termo feminicídio pela América Latina. Como consequência, foram engendradas também nesse país as primeiras iniciativas de incorporação do feminicídio por um código penal em toda a região (BRASIL, 2016; CHIAROTTI, 2011; GARITZA VILCHEZ, 2013).
Até 2012, cabia destacar no México a existência da Lei Geral de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência, que descreve de forma bastante ampla em seu artigo 21 o delito de feminicídio. O destaque do país quanto a essa matéria estava no fato de que se caracterizava o delito sem, para tanto, estabelecer punições ou sanções para possíveis transgressões. Tal lei também prevê, de forma bastante parecida à Lei Maria da Penha, o ressarcimento em várias modalidades dos danos sofridos pelas mulheres mexicanas em condição de violência, conforme verificável em seu artigo 26 (MÉXICO, 2012; GARITZA VILCHEZ, 2013).
Em junho de 2012, o feminicídio foi tipificado através de reforma no Código Penal Federal mexicano, modificando o conteúdo seu artigo 325, que atualmente aborda as diferentes possibilidades de conduta que caracterizam esse tipo. As penas instauradas foram as de reclusão entre 40 e 60 anos e de 500 a 1000 dias multa, além da perda de direitos do agressor em relação à vítima, inclusive os sucessórios.
Pela nova redação dada à lei mexicana, entende-se que a existência de vínculo entre vítima e agressor é uma das formas possíveis de caracterização de feminicídio. Entretanto, contrariamente ao caso brasileiro, a letra de lei não se restringe a tal possibilidade, abrangendo e dando margem para uma interpretação mais ampla da questão. Por conseguinte, o Código Penal mexicano se mostra, em teoria, mais eficiente e flexível a fim de proteger as mulheres frente às múltiplas situações em que é possível a ocorrência de homicídio de pessoas do gênero feminino advindo desta característica específica.
No que se refere à nomenclatura, a experiência mexicana tem como uso majoritário o termo femicidio, tendo em vista sua prevalência no idioma castelhano. Quanto ao tipo, a legislação mexicana também tem como padrão o uso do vocábulo feminicidio (GARITZA VILCHEZ, 2013).
5. Considerações finais
Percebe-se que o ordenamento mexicano é mais sofisticado e menos ligado ao paradigma tradicionalista de contexto familiar que o brasileiro, além de prever uma penalização mais rígida para o crime.
A tipificação e a punição da conduta de feminicídio são essenciais não só para o fim de promover a justiça e diminuir a recorrência da impunidade, grande marco dos crimes cometidos contra pessoas do gênero feminino. Tal especificação também é importante para o entendimento adequado das necessidades e para a implementação eficaz de políticas públicas e medidas de proteção que preservem a vida das mulheres.
Tomando como parâmetro o próprio caso mexicano, em que a discussão sobre femicídio foi o ponto de partida para o surgimento de uma nova forma de pensar as relações de gênero, é factível supor que a tipificação e a implementação de medidas pode significar o início de uma nova reflexão que, em longo prazo, pode levar a uma nova configuração social menos prejudicial para as mulheres.
6. Bibliografia:
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: . Acesso em 10 out. 2016.
BRASIL. Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal e o art. 1o da Lei no8.072, de 25 de julho de 1990. Disponível em: . Acesso em 10 out. 2016.
BRASIL. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Diretrizes nacionais de feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília: 2016. 132p.
CHIAROTTI, S. Contribuições ao debate sobre a tipificação penal do femicídio/feminicídio. Lima: CLADEM. 2011.
GARITZA VILCHEZ, Ana Isabel. La regulación del delito femicidio/feminicidio em America Latina y el Caribe. Cidade do Panamá: 2013.
MÉXICO. Violencia feminicida en México: características, tendencias y nuevas expresiones en las entidades federativas, 1985-2010. 1. ed. Cidade do México: 2012. 208p.
MÉXICO. Código Penal Federal, de 14 de agosto de 1931. Regula a legislação relacionada a crimes e penas. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2016.
PASINATO, Wânia. Femicídios e as mortes de mulheres no Brasil. Cadernos Pagu [online]. 2011, nº 37, p. 219-246.
Graduanda em Direito. Universidade de Brasília (UnB).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Nayla. Violências estruturais: um estudo comparativo de mecanismos legais relacionados ao feminicídio no brasil e no méxico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50550/violencias-estruturais-um-estudo-comparativo-de-mecanismos-legais-relacionados-ao-feminicidio-no-brasil-e-no-mexico. Acesso em: 22 nov 2024.
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