RESUMO: A (i)legitimidade do poder público para combater o tráfico de drogas e violência urbana é tema de constante debate nos diversos meios da sociedade, notadamente no período atualmente vivenciado no país. A partir disso e das entrevistas colhidas e apresentadas no documentário “Notícias de uma guerra particular”, o presente trabalho busca trazer à lume argumentos favoráveis e desfavoráveis, com base no ordenamento jurídico, bem como na doutrina sociológica correlata.
Palavras-chave: Papel do Estado. Sociologia Jurídica. Criminologia. Teoria da Legitimidade. Teoria Conflitiva.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo toma por base o documentário “Notícias de uma guerra particular”, que foi produzido em 1999 pelo cineasta João Moreira Salles e pela produtora Kátia Lund, o qual busca estabelecer um vínculo entre as concepções dos moradores, traficantes e policiais atuantes na favela Santa Maria, a partir de personagens com uma rotina ligada diretamente ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
Tomando como ponto de partida os temas abordados no documentário em tela, que despertam polêmicas sobre a legitimidade do poder de controle social do Estado, a marginalização das classes baixas, a seletividade na operacionalização do sistema penal e entre outros, busca-se analisar o papel do Estado no controle do tráfico, a partir de uma análise jurídica e sociológica.
Por fim, tem-se o intuito de analisar, com base nas doutrinas e teorias abordadas pela Sociologia do Direito e Criminologia Crítica, as perspectivas dos atores sociais que se encontram no contexto da violência urbana frente ao papel exercido pelo Estado, notadamente no que diz respeito à sua legitimidade.
2 AS PERSPECTIVAS DA ATUAÇÃO ESTATAL EM FACE DA VIOLÊNCIA URBANA
2.1 Legitimidade do poder de controle social do Estado frente à violência urbana.
Necessária se faz a análise, primeiramente, de alguns conceitos básicos para então entrar no debate acerca da legitimidade ou ilegitimidade do poder de controle social que a polícia exerce no combate à violência urbana.
O poder pode ser exercido sobre coisas ou pessoas, e, quando se trata de pessoas, pressupõe-se, no mínimo, uma relação de hierarquia, sendo que quem exerce o poder possui algum critério de superioridade (força, dinheiro, conhecimento, carisma etc.) frente ao destinatário do poder.
Pesquisadores analisam o poder baseados na Teoria de Legitimidade de Max Weber, o qual entendeu que a relação mandante/mandado estaria justificada em hábitos de obediência dos destinatários do poder, fundamentado em fatores materiais e, primordialmente, na legitimidade de exercê-la. No seu estudo, houve a classificação do poder (domínio) em três tipos: o poder tradicional, o poder carismático e poder legal[1]; sendo neste último que se encontra o ponto de partida do objeto de investigação do presente estudo.
O poder legal é caracterizado por ter como fonte a lei, a qual legitima (e limita) os sujeitos que detém o poder e rege os que são destinatários dele[2]. Trata-se de um aspecto objetivo utilizado para caracterizar a legitimidade.
No entanto, alguns doutrinadores não se contentam apenas com o referido parâmetro. Para eles a legitimidade traduz-se também através de um sentimento expresso da comunidade de que determinada conduta é justa. Assim, é a sensação de reconhecimento por parte da sociedade que irá legitimar o poder, conforme afirma BOBBIO no trecho abaixo transcrito:
[...] decorrente do sentimento expresso por uma comunidade de que determinada conduta é justa, correta. Daí dizer-se que esta implica sempre reconhecimento. Assim, a legitimidade pode ser definida como um amplo consenso, no seio da sociedade, de que uma autoridade adquire e exerce o poder de modo adequado[3].
Deste modo, percebe-se, nos termos defendidos acima, que a legitimidade não vem apenas da lei, mas também do consenso (aceitação) da sociedade.
[...] podemos definir Legitimidade como sendo atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser nos casos esporádicos. É por esta razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão.[4]
Neste sentido, pode-se abrir um parêntese a respeito do vínculo existente entre Estado, democracia e vontade popular, no qual é perceptível a escolha voluntária (sem presença de coerção ou coação), por interesses comuns, do povo em construir e ser obediente a um ordenamento jurídico, ou seja, de cada cidadão ter a livre escolha de se submeter a regras limitadoras.
Aplicando ao estudo em questão, pode-se constatar que, no Brasil, o Estado detém o poder de aplicar regras coercitivas, bem como cobrar dos cidadãos obediência a elas, e, neste contexto, a atuação da polícia se faz necessária, como uma instituição que vem fiscalizar ou punir para que seja mantida a ordem pública.
No momento em que a polícia estiver diante de resistência ao cumprimento de ordens legalmente previstas, se encontra legitimada a exercer a violência (força e coação)[5]. Contudo, até que ponto estaria o Estado legitimado a exercer essa violência, tendo em vista as características peculiares da polícia brasileira?
Pode-se considerar legítimo o papel da polícia visto sob dois pontos centrais: a) para manutenção da ordem pública – controle da violência urbana e controle social e; b) poder proveniente do Estado.
No que diz respeito à manutenção da ordem pública, prevê a Constituição Federal de 1988 no seu art. 144:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.[6]
A polícia foi a instituição escolhida como competente para atuar na preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, representando o Estado. Deste modo, de acordo a classificação de Max Weber[7], é considerada legítima a atuação da polícia no combate ao tráfico de drogas para controlar a violência urbana, visto que a mesma desempenha seu papel baseada em ordens estabelecidas racionalmente (lei), e, que quem as exerce possui competência constituída para tanto.
Reconhece-se o domínio legal pelas seguintes características: todo direito, seja ele estabelecido por convenção ou por outorga, vale em virtude de um procedimento racional por finalidade ou por valor, ou pelos dois ao mesmo tempo. O conjunto das regras de direito constitui um mundo abstrato de prescrições técnicas ou de normas; a justiça consiste na aplicação das regras gerais aos casos particulares, enquanto a administração tem por objetivo proteger os interesses nos limites da regra de direito, graças a órgãos instituídos para tal fim.[8]
Por este ponto de vista legalista tem-se uma interpretação restritiva, visto que se parte do pressuposto de que toda violência emanada do Estado deveria ser considerada legítima. Contudo, Porto[9] acredita em outra versão, a qual deve ser levada em consideração a existência de consensos ou legalidades diferentes, com valores e éticas diferentes, onde o que pode ser definido como violência legítima ou ilegítima dependerá de uma análise empírica.
[...] a autonomia entre diferentes esferas ou ordens de vida implica o fato de cada uma delas ter sua legalidade própria, e ser regida por éticas ou valores que lhe são particulares. Dessa perspectiva, o legítimo e o ilegítimo em política – esfera em que se situa o monopólio da força física – apenas de constituem como tal segundo a legalidade própria a esta esfera, podendo, de acordo com o contexto (daí a ideia weberiana de singularidade histórica) e/ou momento histórico conviver ou competir com ordens de valores distintos (legalidade própria) prevalecentes em outras esferas ou dimensões do social, tais como a econômica, a religiosa, a ética e a estética. A adaptação ou a tensão entre essas diferentes ordens de legalidade é algo que somente a análise empírica em sua concretude pode proporcionar.[10]
Desse modo, em relação ao quanto retratado no documentário anteriormente citado, a atuação da polícia no combate ao tráfico de drogas e à violência urbana pode ser tanto considerada como legítima, pelo ponto de vista de quem não está ligado diretamente ao tráfico de drogas, mas que sofre com a violência urbana que aquele gera, como também pode ser considerada a ilegítima aos olhos dos moradores e dos traficantes, ao momento que ambos personagens vivenciam uma dimensão social distinta daquela de que não mora no morro.
Neste mesmo contexto, Sabadell[11] entende que:
Dependendo do período histórico, estas formas de poder gozam de um determinado grau de aceitação pela população, isto é, de legitimidade: não se exercem através do recurso à violência, mas em geral, através do consenso da maioria da população, que reconhece o poder como legítimo
No que tange à legitimidade de poder do controle social realizado pelo Estado, cabe mencionar que este pode ser definido como meio do qual o aparelho estatal utiliza para impor ao cidadão um modelo de comportamento a ser seguido com base nos valores sociais com o intuito de garantir a convivência em sociedade.
O termo “controle social” possui na sociologia um significado muito amplo, eis que indica todo o processo de socialização que orienta o indivíduo, integrando-o aos valores e aos padrões de comportamento social. Por esta razão, o controle social está intimamente relacionado com os conceitos de “poder” e de “dominação política”, que criam determinada ordem social e integram os indivíduos nela.[12]
O controle social é um dos principais pontos abordados no documentário, principalmente na fala de uma autoridade policial que afirma:
“[...] a polícia é corrupta, é uma instituição que foi criada para ser violenta e corrupta [...] Eu faço política de repressão [...] Como você mantém 2 milhões de habitantes sob controle? Ganhando R$ 112,00? Quando ganham! Como você mantém todos esses excluídos sobre controle? Com repressão!’’
Constata-se um controle social externo, o qual é realizado sobre indivíduos por meio de outros com o intuito de restabelecer a ordem. “Isso tudo acontece, sobretudo, quando falha o controle interno e o indivíduo transgride normas. O controle externo é, na maior parte dos casos, repressivo: manifesta-se por meio de aplicações de sanções”[13].
Nessa perspectiva, insta destacar o poder disciplinar de Foucault[14], o qual defendia em seu estudo a criação de um “modelo social humano”, no qual deveria ser seguido pelos cidadãos: “Forma-se então um política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos”.
2.2 Ilegitimidade do poder de controle social do Estado frente à violência urbana que o tráfico de drogas gera
Expostos os argumentos capazes de fundamentar acerca da legitimidade do poder de controle do Estado no combate, neste ponto passe-se a expor as concepções divergentes.
Anteriormente, afirmou-se que o poder se legitima pelo consenso popular, por ordens previamente estabelecidas, e, em alguns fundamentos, apenas por ter como fonte o Estado. Contudo, com base na Teoria Conflitiva, poder-se-ia pontuar que “os detentores do poder direcionam o processo de legislação e de aplicação do direito”, onde a concentração do poder se fundamenta na economia e política. [15]
Deste modo, como se constatou no documentário, principalmente na fala de umas das autoridades policiais, que o direito penal é seletivo, sendo aplicado apenas para classes mais carentes.
As regras sociais não exprimem uma “vontade geral” ou interesses comuns de todos os cidadãos. Em outras palavras, os adeptos da teoria conflitiva não aceitam a ideia de que é possível realizar um controle social democrático e em favor da sociedade como um todo, tal como sustentam os liberais. [...] as teorias do conflito partem da existência de grupos sociais desiguais com interesses divergentes e consideram o controle social institucionalizado como meio de garantia das relações de poder. Tais relações são sempre assimétricas.[16]
Neste sentido, pode-se remeter aos ensinamentos de Andrade[17], a qual é uma das maiores autoras de Criminologia crítica, quando trata sobre a lógica da seletividade como lógica estrutural de operacionalização do sistema penal e sua relação funcional com dominação classista.
A revelação da lógica da seletividade como lógica estrutural de operacionalização do sistema penal, a qual representa a fundamentação científica de uma evidência empírica visibilizada pela clientela da prisão: a da “regularidade” a que obedecem a criminalização e o etiquetamento dos estratos sociais mais pobres de sociedade. Evidência, por sua vez, há muito vocalizada pelo sendo comum no popular adágio de que “a prisão é para os três pés: preto, pobre e prostituta”.[18]
Esta seletividade do sistema penal se daria por dois fundamentos: a) a falta de capacidade do sistema penal operar em toda extensão da sociedade e; b) a impunidade e a criminalização se orientam pela seleção desigual de indivíduos de acordo com o status social e não pela incriminação da conduta em si[19].
Conforme Sabadell[20] afirma que “o controle social é carente de legitimidade porque está a serviço dos grupos de poder que, por meio da criação e da aplicação das normas de controle, asseguram seus interesses.” Deste modo, pode-se perceber que o sistema penal, por ser seletivo e marginalizar minorias, torna-se ilegítimo ao realizar o controle social no combate ao tráfico de drogas.
O poder de controle social também torna-se sem legitimidade quando percebe-se a resistência, ou seja, a não obediência a lei, fato que é perceptível no documentário no momento em que se comenta sobre o Partido do Comando Vermelho (PCV) e sua finalidade nas favelas. Ademais, para haver controle diante desta resistência, a polícia, necessariamente, utilizaria de força, o que para Bobbio torna poder ilegítimo[21].
Diante do exposto, buscou-se fundamentar as decisões possíveis do case apresentado apresentando as teorias e concepções de sociólogos e autores da criminologia crítica.
3 CONCLUSÃO
Nada obstante os argumentos elencados no sentido da ilegitimidade estatal para desenvolver a tarefa em comento, entende-se que deve ser considerado legítimo o poder estatal no combate ao tráfico de drogas tendo em vista que a violência exercida possui uma finalidade, a qual é o controle social, a manutenção da ordem pública e o controle (e combate) da violência urbana decorrente deste tipo de tráfico.
Ademais, antes mesmo de ser aplicada a sanção ou a limitação de um direito, aquele cidadão conhece as regras e tem ciência de que não pode desrespeitá-las, assim, a violência legítima é exercida diante da desobediência ou quando o indivíduo excede em relação ao modelo considerado fora dos limites, como por exemplo, cometer um crime.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
BOBBIO, Noberto; MATTEUCI, Nicola; PAQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13 ed. Vol 2. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.
BOBBIO, Noberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 13 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 32 ed. Petrópoles: Vozes, 1987.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
PORTO, Maria Stela Grossi. Análise weberiana da violância. In: Política, ciência e cultura em Max Weber. Org.: Maria Franscisca Pinheiro Coelho, Lourdes Bandeira, Marilde Loiola de Menezes. São Paulo: Impresa Oficial do Estado, 2000.
[1] BOBBIO, MATTEUCI, PASQUINO, p. 940, 2007.
[2] BOBBIO, MATTEUCI, PASQUINO, p. 940, 2007.
[3] SABADELL, p. 113, 2005.
[4] BOBBIO, MATTEUCI, PASQUINO, p. 675, 2007.
[5] SABADELL, p. 113/114, 2005.
[6] Constituição da República Federativa do Brasil.
[7] FREUND. p. 167, 2000.
[8] FREUND. P. 167, 2000.
[9] P. 324, 2000.
[10] P. 324/325, 2000.
[11] P. 143., 2005.
[12] SABADELL, p. 135, 2005.
[13]SABADELL, P. 138, 2005.
[14] P. 119, 1997.
[15] SABADELL, P. 139, 2005.
[16] SABADELL, p. 139, 140.
[17] P. 49, 2003.
[18] ANDRADE, P. 49/50, 2003.
[19] ANDRADE, P. 51, 2003.
[20] P. 157, 1986.
[21] P. 87, 1986.
Advogado. Bacharel em Direito. Faculdade 7 de Setembro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DANTAS, Ítalo Silva. O papel exercido pelo Estado no controle do tráfico e da violência urbana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50572/o-papel-exercido-pelo-estado-no-controle-do-trafico-e-da-violencia-urbana. Acesso em: 22 nov 2024.
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