Maristela Aparecida Dutra
(Orientadora)**
RESUMO: O instituto do bem de família surgiu em 1839, nos Estados Unidos, como forma de proteção às famílias atingidas pela grave crise econômica da época. Isso porque, até então, não havia qualquer restrição à execução de bens, podendo o indivíduo se ver, de um momento para outro, reduzido à miséria para que seus credores fossem satisfeitos. A partir de então, o instituto foi adotado em inúmeros países, ressalvadas, obviamente, as peculiaridades de cada um. No Brasil, o bem de família pode ser dividido em duas espécies: legal e voluntário. Não obstante tenham características próprias, ambos possuem como objetivo resguardar um patrimônio mínimo que possibilite ao proprietário e a seu núcleo familiar viver com dignidade. Todavia, há casos concretos em que a finalidade do objetivo é deturpada, uma vez que o imóvel a ser protegido possui elevado valor. Assim, faz-se imprescindível que o Poder Judiciário analise a questão embasado nos princípios do Direito e visando sempre à concretização da justiça, bem como que sejam realizadas inovações legislativas sobre o tema, criando-se critérios mais objetivos sobre a caracterização do bem de família.
Palavras-chaves: Bem de família; Patrimônio mínimo; Mínimo existencial; Tutela jurisdicional efetiva; Princípio da ponderação.
ABSTRACT: The homestead institute was first conceived in 1839, in the United States of America, as a form of protecting the families which were affected by the economic crisis. This was made so because, until then, there was no restriction regarding the execution of goods, so that the individual could suddenly see itself brought down to misery just to satisfy his creditors. From then onward, the institute was adopted in many countries, except, obviously, their own peculiarities. In Brazil, the homestead institute can be split into two types: legal and voluntary. Notwithstanding that each has its own characteristics, both have as their goal to guard a minimal patrimony that would allow the owner and his family live with dignity. However, there are concrete cases that the goal's purpose is perverted, since that the residential property has a high value. Therefore, it is indispensable that the Judicial Power analyzes the question at hand based on the principles of law and always aiming at the implementation of justice, as well as that legislative innovations are made about the topic, thus creating more objective criteria about the characterization of homestead.
Keywords: Homestead; Minimal property; Existential minimum; Effective jurisdictional protection; Deliberation principle.
Sumário: Introdução. 2 O bem de família no direito brasileiro. 2.1 Histórico. 2.2 Conceito. 2.2.1 Expansão jurisprudencial e doutrinária do conceito de bem de família. 2.3 Hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família. 3 A dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. 4 Conflito entre direitos fundamentais: direito à moradia x direito à tutela jurisdicional efetiva. 4.1 Análise quanto à ocorrência de colisão entre esses direitos tratando-se de imóvel de elevado valor. 5 Inovações jurisprudenciais. 6 Necessidade de critérios limitadores à impenhorabilidade do bem de família. 7 Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não se caracterizou apenas como enunciação formal de princípios, mas também como plena positivação de direitos que possibilitaria que qualquer pessoa exigisse sua tutela perante o Poder Judiciário para a concretização da democracia. Assim, visando à construção de uma sociedade mais justa e solidária, a constitucionalização dos direitos fundamentais possibilitou que os efeitos deles incidissem em todos os ramos do Direito, notadamente nas relações privadas entre os particulares e entre o Estado e os particulares.
Nesse contexto:
Com constitucionalização do direito quer-se aqui fazer menção (...) à irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito. O principal aspecto desta irradiação (...) revela-se na vinculação das relações entre particulares a direitos fundamentais, também chamada de efeitos horizontais dos direitos fundamentais (SILVA, 2011, p. 18).
O Direito tem como principal função a proteção ao ser humano, uma vez que, sem respeito à pessoa humana não há justiça e sem justiça, que é limitadora do Direito, não há Direito. Destarte, um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, deve assegurar condições mínimas de existência ao indivíduo, como moradia, educação, saúde, alimentação e segurança. A Constituição Federal traz como direito social, inclusive, o lazer.
Nessa seara, o Estado deve garantir que ninguém tenha sua dignidade ferida, e não somente assegurar a sobrevivência do indivíduo. Portanto, cabe ao Estado fornecer àqueles que lhe são tutelados moradia digna, educação de qualidade, sistema de saúde eficiente e acesso a todos os demais direitos fundamentais previstos, tendo sempre como norte a construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem qualquer distinção.
Atendo-se ao direito de moradia, necessário dizer que, desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi reconhecido como pressuposto para a dignidade humana, estando há muito presente no ordenamento jurídico. Entretanto, apenas foi inserido no rol dos direitos sociais constitucionalmente previstos em 2000.
Como instrumento de proteção a esse direito, surge, com o Código Civil de 1916, o instituto do bem de família. Assim, nasce para o proprietário de um bem imóvel a possibilidade de registrá-lo no cartório civil competente como bem família, ficando este resguardado de execução por dívidas posteriores ao ato. Vislumbra-se, então, que a intenção da criação da figura do bem de família era evitar que o bem imóvel utilizado como habitação do proprietário e seu núcleo familiar lhes fosse subitamente tirado, o que poderia, em última análise, levá-los à miséria.
Contudo, cabia ao proprietário tomar as medidas necessárias ao registro, o que, por vezes, não era feito ante a falta de informação ou, até mesmo, de condição financeira para quitação dos emolumentos. Não preenchidos os requisitos legais, não se reconhecia o bem imóvel como bem de família e ele acabava por responder à execução, vendo-se o executado em situação de grave vulnerabilidade social.
Somente com o advento da Lei 8.009/90, a proteção do patrimônio mínimo do executado foi tida como norma de ordem pública, sendo a ele e a sua família garantido um mínimo existencial que lhes possibilite viver dignamente frente à execução de eventuais dívidas contraídas. Todavia, há casos em que imóveis a princípio caracterizados como bens de família possuem elevado valor, suficiente para quitação da dívida e manutenção de vida digna ao seu proprietário após a execução. Tal situação pode, inclusive, fomentar a prática de fraude à execução, contradizendo totalmente a ideologia por trás do instituto do bem de família.
Por conseguinte, objetivando a um sistema jurídico saudável, livre de anomalias e inseguranças jurídicas, faz-se necessário que o Poder Judiciário, ao analisar o caso concreto, verifique se se trata, de fato, de hipótese de reconhecimento e proteção do bem de família, aplicando os princípios jurídicos existentes. Da mesma forma, o Poder Legislativo precisa se ater às situações existentes no plano real, criando critérios limitadores do bem de família, a fim de que sejam repelidas quaisquer tentativas de fraudes às execuções.
2 O BEM DE FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO
2.1 HISTÓRICO
A instituição do bem de família teve origem nos Estados Unidos, mais precisamente no Estado do Texas, quando este ainda fazia parte do território mexicano, e recebeu o nome de homestead. Enxergando no território americano, com o fim da colonização inglesa, oportunidade de aumento de lucro e de desenvolvimento, os bancos europeus ali se fixaram, o que gerou enorme facilidade de crédito, concedido livremente sem exigência de garantias. Todavia, a emissão de moeda sem lastro e a concessão desenfreada de empréstimos não puderam se sustentar por muito tempo: surge a grande crise, que durou de 1837 a 1839.
Tal abalo econômico não atingiu somente os bancos que agiram de forma negligente, mas principalmente a população, que se viu endividada e com seu patrimônio totalmente desprotegido de eventuais atos executórios. Em outras palavras, como menciona Azevedo (2002), as quebras foram inevitáveis e colocaram as famílias americanas, de uma hora para outra, em completo desabrigo econômico e financeiro.
Nesse contexto, em 1839, é promulgado o Homestead Exemption Act, que passa a garantir a cada cidadão determinada área de terras, isenta de penhora. Percebe-se que a criação desse instituto teve como razão proteger o mínimo necessário ao indivíduo para que ele e seu núcleo familiar tenham uma vida digna, evitando que direitos sociais sucumbam ante direitos patrimoniais.
Pode-se ilustrar a figura do instituto através do seguinte trecho:
O instituto do homestead pode ser entendido como privilégio que concede às famílias ou às pessoas em geral para continuarem a viver em suas casas livre da ação de seus credores. A propriedade do homestead abrange não só a residência principal, mas também o terreno, os prédios adjacentes e seus acessórios que sejam necessários para o uso da família (ZILVETI, 2006, p. 32).
Resta claro, então, que o cerne do bem de família é proteger o bem utilizado pelo núcleo familiar como lar e o mínimo existencial frente às cobranças de cunho patrimonial.
O êxito do Homestead Exemption Act foi grande, tanto que o instituto foi adotado por outros Estados norte-americanos, ultrapassando, inclusive, as fronteiras de seu país criador. Atualmente, a figura do bem de família é concebida em inúmeras legislações, obviamente, com alterações que procuram adaptá-la à realidade e às necessidades de cada Estado.
No Brasil, o bem de família foi introduzido ao ordenamento jurídico com o Código Civil de 1916, sendo também objeto de disciplina no Decreto-Lei n° 3.200/41, na Lei n° 6.015/73 e no Código de Processo Civil.
A primeira polêmica acerca do tema surge com a alocação do instituto no Código Civil. O Código Civil de 1916 o colocava na Parte Geral, completando o regime dos bens. Na ocasião, permitia que os chefes de família escolhessem um prédio como domicílio desta e, a partir de então, estaria ele isento de execuções por dívidas, ressalvada as advindas de impostos a ele inerentes. O projeto de Código Civil de 1965 o transpôs para o Direito de Família, local em que o Código Civil atual o mantém. Pereira (2010, p. 609) destaca que “compondo agora o “Livro de Família”, o instituto há que priorizar a convivência familiar, sobrepondo-a aos interesses unicamente patrimoniais”.
Inicialmente, a instituição do bem de família era atribuição dada ao chefe de família, assim entendido, pela doutrina da época, o marido e, de forma excepcional e subsidiária, a mulher. Ultrapassado tal entendimento, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 igualou homens e mulheres em direitos e obrigações. Entretanto, a proteção então vigente mostrava-se insuficiente para que fosse alcançada a proteção do mínimo existencial da família: o país atravessava período de inflação gritante e muitos não procediam ao registro, ato essencial para que se caracterizasse o imóvel como impenhorável.
Nesse cenário, em 1990, foi editada a Medida Provisória n° 143, que objetivava resguardar de atos executórios o imóvel utilizado pela entidade familiar como lar independentemente da vontade do proprietário, isto é, independentemente de registro. Rapidamente, a referida medida foi transformada em lei (Lei 8.009/90) e o bem de família reconhecido independente de ato solene passou a ser denominado bem de família legal.
Consagra-se, então, a dualidade de regimes do bem de família no Direito Brasileiro: o voluntário e o legal.
2.2 CONCEITO
No ordenamento jurídico brasileiro, há duas espécies de bem de família: o voluntário e o legal. Este está previsto no Código Civil nos artigos 1.711 a 1.722 e é instituído através de escritura pública pela entidade familiar ou por testamento, enquanto aquele decorre da Lei n° 8.009/90, sendo sua constituição involuntária. Deixadas as diferenças de lado, fácil inferir que a finalidade das duas modalidades é a mesma, isto é, ambas possuem como objetivo resguardar à família um patrimônio mínimo que lhe assegure uma vida digna, restando inatingível pela execução de eventuais dívidas.
O bem de família voluntário, também chamado convencional, pode ser instituído pelos cônjuges ou pela entidade familiar, através de escritura pública ou testamento. Ainda, poderá o terceiro, mediante testamento ou doação e, desde que haja aceitação expressa dos cônjuges ou da entidade familiar beneficiados, instituir bem de família.
A grande inovação trazida pelo Código Civil consiste em permitir que abranja também valores móveis corpóreos ou incorpóreos. Dessa forma, entendem-se também por bem de família as pertenças e acessórios do imóvel, bem como os valores mobiliários cuja renda seja aplicada na manutenção do bem e da família.
Ressalva-se que o referido diploma legal traz como requisito para caracterização de bem de família que este não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição. Destarte, ao promover a caracterização, a lei requer que o instituidor seja proprietário do bem e goze de solvência. Assim, ao se falar de bem de família convencional, fala-se em ato voluntário do proprietário do bem móvel ou imóvel, revestido de requisitos burocráticos, com o objetivo de protegê-lo em nome da célula familiar. Em caso de bem imóvel, por exemplo, o ato deve ser levado a registro no cartório competente.
Outrossim, uma vez constituído o imóvel como bem de família, este só poderá ser alienado com o consentimento dos interessados e, se for o caso, dos representantes legais, bem como ficará isento de execução por dívida contraída posteriormente ao ato, enquanto viver um dos cônjuges ou, na falta destes, até que os filhos completem a maioridade.
Depreende-se, também, da leitura do Código Civil que a administração do bem de família compete a ambos os cônjuges, não havendo que se falar em extinção dele caso a sociedade conjugal se dissolva. Todavia, se dissolvida por morte de um dos cônjuges, o sobrevivente poderá requerer a extinção. Da mesma forma, há extinção do bem de família com a morte de ambos os cônjuges e advento da maioridade dos filhos, se não sujeitos à curatela. Entretanto, apesar de ser uma importante garantia à dignidade do devedor, a hipótese de bem de família voluntário se mostra insuficiente para proteger a população como um todo, tendo em vista que, para constitui-lo, é necessário preencher requisitos burocráticos que, por si só, dificultam a efetivação do direito. Além disso, subentende-se que ele é interessante para aqueles que possuam razoável patrimônio, uma vez que tem como limite um terço dele, e não para aqueles que possuem apenas um imóvel.
Corroborando esse entendimento, tem-se:
Só haverá necessidade de sua criação pelos meios retro mencionados na hipótese do parágrafo único, do art. 5º, da Lei nº. 8.009/90, ou seja, quando o casal ou entidade familiar possuir vários imóveis, utilizados como residência, e não desejar que a impenhorabilidade recaia sobre o de menor valor. Neste caso, deverá ser estabelecido o bem de família mediante escritura pública, registrada no Registro de Imóveis, na forma do art. 1.714 do Código Civil, escolhendo-se um imóvel de maior valor para tornar-se impenhorável (GONÇALVES, 2010, p. 561).
Feitas as considerações acima, é possível concluir que, de fato, fazia-se imprescindível o advento de lei que fornecesse meio de se alcançar efetivamente a proteção pretendida quando da criação do instituto do bem de família. Além de não exigir os trâmites burocráticos e demais requisitos previstos para a modalidade voluntária, a Lei n° 8.009/90 estendeu a proteção às plantações, às benfeitorias de qualquer natureza e aos equipamentos e móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. Destarte, o bem de família legal protege não só o imóvel em que reside a célula familiar, mas também os bens indispensáveis para que ela viva de forma digna, como é o caso da mobilha.
Com o advento da Lei n° 8.009/90, passou-se a se considerar bem de família aquele utilizado pela entidade familiar para sua moradia, havido como impenhorável por este diploma legal, independentemente de qualquer manifestação de vontade do proprietário nesse sentido. Desta forma, a instituição do bem de família legal se dá automaticamente, desvinculada de qualquer vontade ou negócio jurídico do beneficiário. Por essa razão, é possível dizer que a instituição do bem de família por ato de vontade, expresso em escritura pública ou testamento, perdeu, em grande parte, sua utilidade. Nesse sentido:
A inspiração desse diploma é, sem dúvida, o bem de família tradicional, de nosso Código Civil. Entretanto, perante essa lei de ordem pública, deixa de ter maior utilidade prática o bem de família voluntário, por nós já referido como de pouco alcance prático. Estando agora, por força de lei, isento de penhora o imóvel residencial que serve de moradia, não há necessidade de o titular do imóvel se valer do custoso procedimento para estabelecer o bem de família. Os efeitos a partir da lei são automáticos (VENOSA, 2010, p. 396).
Por fim, vale ressaltar que, nos termos da Lei n° 8.009/90, excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, as obras de arte e os adornos suntuosos. Tal exceção fundamenta-se justamente na ideia do mínimo patrimonial: eles são dispensáveis, não se caracterizando como bens essenciais a uma vida digna. Ademais, outras exceções à impenhorabilidade do bem de família são elencadas na referida lei e estas serão objeto de análise em tópico específico deste capítulo.
2.2.1 Expansão jurisprudencial e doutrinária do conceito de bem de família
Considerando que o instituto do bem de família foi criado pensando-se mais na ideia de proteção a um patrimônio mínimo, de respeito à dignidade da pessoa humana, do que na instituição família, é possível encontrar na doutrina e na jurisprudência desdobramentos do conceito anteriormente analisado.
Destarte, vislumbram-se casos no mundo fático em que o bem de família não é aquele em que vive uma família formada por uma mulher, um homem e seus filhos, isto é, um casal heterossexual e sua prole. As maneiras de o homem se relacionar diversificam-se e modificam-se ao longo do tempo, sendo restritivo e discriminatório proteger apenas um tipo familiar. Senão vejamos:
A unidade familiar, sob o prisma social e jurídico, não mais tem como baluarte exclusivo o matrimônio. A nova família estrutura-se independentemente das núpcias. Coube à ciência jurídica acompanhar legislativamente essas transformações sociais, que se fizeram sentir mais acentuadamente em nosso país na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra. Na década de 70, em toda a civilização ocidental, fez-se sentir a família conduzida por um único membro, o pai ou a mãe. Novos casamentos dos cônjuges separados formam uma simbiose de proles. (...) Casais homoafetivos vão paulatinamente obtendo reconhecimento judicial e legislativo. Em poucas décadas, portanto, os paradigmas do direito de família são diametralmente modificados (VENOSA, 2010, p. 6).
Nesse contexto, a casa de qualquer ser humano, independentemente da maneira que o indivíduo tenha escolhido para se relacionar, incluindo-se aqui aquele que preferiu abster-se de constituir vínculos afetivos com outrem – o solteiro, deve ser protegida. Assim, é possível afirmar, fazendo-se uma interpretação teleológica da Constituição Federal, especialmente de seu art. 226 e, trazendo o seu conteúdo ao tema ora esmiuçado, que a família a ser protegida pelo Estado não se restringe àquela constituída através do matrimônio, da união estável ou até mesmo à monoparental. O intuito da Carta Magna é maior: a moradia de todo e qualquer ser humano deve ser resguardada, uma vez que indispensável à dignidade de seu titular.
Compulsando a jurisprudência e a doutrina, vê-se o status de bem de família sendo aplicado a imóvel em que residem irmãos, viúvos, casais homoafetivos e, como dito alhures, pessoas solteiras. Pereira (2010, p. 609) afirma que “há de se estender a impenhorabilidade da residência à família substituta nas hipóteses de tutela e guarda judicial concedidas na forma do art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente”. Ademais, cite-se como exemplo a Súmula n° 364 do Superior Tribunal de Justiça que dispõe que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
Inevitável concluir que a finalidade definitiva do instituto do bem de família é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia, e não o conceito engessado de família propriamente dito.
2.3 HIPÓTESES DE EXCEÇÃO À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA
O instituto do bem de família, como dito acima, tem por fim preservar a dignidade da pessoa humana não retirando do indivíduo sua moradia. Contudo, não se trata de um direito absoluto que se sobrepõe a todas as outras normas. Visando à harmonia, à coerência e, até mesmo, à segurança do ordenamento jurídico brasileiro, o bem de família possui restrições. A própria lei 8.009/90 traz, em seu art. 3°, as exceções à sua impenhorabilidade.
Pois bem, o inciso I do referido artigo trazia como ensejadores de penhora do bem de família os créditos referentes aos trabalhadores da própria residência e as respectivas contribuições previdenciárias. Contudo, a Lei Complementar n° 150, de 2015, e que entrou em vigor na data de sua publicação, revogou expressamente a hipótese em questão no seu art. 46. Desta forma, o imóvel habitado pelo empregador doméstico devedor e sua família tornou-se impenhorável, podendo ser oposta tal objeção em eventual feito executivo.
Já o inciso II, do art. 3°, da Lei 8.009/90, dispõe que o bem de família poderá ser atingido para satisfazer crédito decorrente do financiamento destinado à sua construção ou aquisição. Aqui, o legislador procurou evitar o enriquecimento ilícito do devedor – não seria justo que, após cumprida sua parte no contrato, o credor se visse impossibilitado de cobrar seu crédito por estar o bem, advindo de sua prestação de serviço, revestido de impenhorabilidade.
O inciso III traz a possibilidade de o devedor de alimentos ter seu bem de família constrito em razão desse tipo de crédito. Entretanto, tal hipótese não é irrestrita: a Lei 13.144/2015, que entrou em vigor na data de sua publicação, resguardou a meação do coproprietário que viva em união estável ou conjugal com o devedor, salvo caso em que ambos sejam responsáveis pela obrigação. Portanto, como forma de proteção ao alimentado, que também integra da unidade familiar, poderá ser o imóvel penhorado.
Outro crédito tido como exceção à impenhorabilidade do bem de família é o decorrente de impostos, taxas e contribuições inerentes ao imóvel, constante do inciso IV, do art. 3°, da Lei 8.009/90. Desse modo, a inassiduidade quanto ao pagamento dos tributos ligados à fruição e à manutenção do imóvel enseja sua constrição. O inciso V permite que o bem imóvel dado como garantia real pela unidade familiar seja penhorado para a execução de hipoteca que sobre ele recaia, tendo em vista a renúncia expressa à proteção dada ao bem de família pelo devedor. Por sua vez, o inciso VI traz que são penhoráveis os imóveis adquiridos com produto de crime ou que visem à execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. Com efeito, não admitir tal exceção seria permitir e até mesmo incentivar a atividade criminosa no país.
Por fim, afasta-se a impenhorabilidade do bem de família por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Tal hipótese possui como objetivo proteger o mercado imobiliário e facilitar o aluguel de imóveis, uma vez que a obrigação locatícia que possui algum tipo de garantia se mostra muito mais atrativa aos proprietários e aos locatários, tornando o negócio mais seguro e, por consequência, diminuindo o risco e o valor do aluguel.
Não obstante o objetivo fundado dessa previsão acima exposto, ainda há muita controvérsia sobre sua razoabilidade. Isso porque, para parte da doutrina, não parece proporcional e equilibrado proteger o afiançado em detrimento do fiador pelo inadimplemento do primeiro. Neste sentido:
De todas as exceções do art. 3°, esta parece ser a regida de forma mais inadequada, por colocar o fiador em situação de inferioridade frente ao próprio afiançado. Este inciso, embora represente uma segurança importante para o locador, mantendo a utilidade e a eficácia da garantia representada pela fiança, tem o aspecto negativo de proteger excessivamente o locatário inadimplente em detrimento do fiador, normalmente de boa-fé, que poderá ter grandes transtornos e prejuízos (CZAJKOWSKI, 1998, p. 111).
De toda forma, apesar de não haver consenso na doutrina, o dispositivo permanece plenamente válido e vigente.
Por todo o exposto, é possível perceber que as exceções previstas na Lei 8.009/90 nada são além de uma demonstração da harmonia inerente ao ordenamento jurídico brasileiro. Assim, apesar da grande proteção dada ao bem de família, esta não é absoluta, devendo ser afastada em alguns casos para que não ocorra grave lesão ao direito de outrem e à segurança jurídica.
3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO EXISTENCIAL
Como dito alhures, ao se falar em bem de família, fala-se, necessariamente, de proteção ao mínimo existencial e, consequentemente, de proteção à dignidade da pessoa humana. Assim, para que se compreenda a função do instituo do bem de família no ordenamento jurídico brasileiro é preciso compreender, antes, o significado e a dimensão da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.
Pois bem, a dignidade trata-se de direito inerente a qualquer pessoa, ou seja, a todas as pessoas, sem exceção, apresentando-se como um elemento que caracteriza o ser humano como tal e que dele não pode ser dissociado. Dessa forma, é possível concluir que a dignidade é intrínseca à pessoa e independente de sua cultura, classe social, cor, origem e atitude, ainda que imoral ou criminosa.
Em outras palavras, pode-se conceituar dignidade da pessoa humana da seguinte forma:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2013, p. 48).
Portanto, ainda que o indivíduo pratique atividade criminosa ou fira a dignidade de outrem, a sua condição como humano permanece intacta, não havendo que se falar em perda ou até mesmo em mitigação da sua dignidade. Com feito, não seria razoável que a proteção à dignidade da pessoa fosse utilizada a bel prazer da sociedade, podendo aferi-la de acordo com cada indivíduo e com cada caso.
Ademais, logo em seu art. 1°, inciso III, a Constituição Federal de 1988 apresenta como um de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana. Trata-se de um fundamento axiológico que se estende a todo o ordenamento, a todos os âmbitos, isto é, aplica-se a concepção de dignidade da pessoa humana nas áreas trabalhista, cível, penal, administrativa, eleitoral, bem como nos demais ramos do Direito. Destarte, este princípio orienta as atividades estatais e as privadas, apresentando-se como um mínimo protetivo.
Pode-se dizer, em outras palavras, que a dignidade da pessoa humana é um valor positivado, um axioma que se tornou fundamento do Estado brasileiro. Por esta razão, o princípio é recorrentemente suscitado nas mais diversas áreas jurídicas, podendo ser arguido a qualquer tempo e por qualquer pessoa que a ele vislumbre lesão.
Ainda, é possível perceber que o princípio da dignidade é um princípio que visa à estruturação, à construção e à indicação de ideias diretivas primárias e básicas de toda a ordem constitucional e, por conseguinte, jurídica. Assim, para a efetiva aplicação desse princípio, todas as searas do Direito deverão observá-lo, tendo-o sempre como norte. Fachin (2008, p. 105) destaca que “todos os institutos fundamentais do Direito Civil devem atender à dignidade da pessoa, desde a propriedade funcionalizada, passando pelas relações de família até as obrigacionais”.
Dessa feita, é fundamental que o Estado forneça ao indivíduo proteção legal ao mínimo existencial, uma vez que este é imprescindível a uma vida, de fato, digna. Surge, então, a noção de patrimônio mínimo, a qual preconiza que a pessoa deve ser o centro de todo o Direito Privado em detrimento do patrimônio. Contudo, ressalta-se que o objetivo do conceito de patrimônio mínimo não é atacar o direito à propriedade e ao crédito, mas somente impedir que eles se sobreponham à dignidade da pessoa.
Importante esclarecer que o conceito de mínimo existencial abrange não apenas bens de cunho monetário e econômico, mas também os bens jurídicos, bem como que a garantia dele está intimamente ligada à busca por uma sociedade mais igualitária, justa e solidária. Nesse contexto:
As condições básicas para a existência humana, somadas aos elementos necessários ao exercício da sua dignidade, é que configuram o núcleo do mínimo existencial. Esse compreende o conjunto de situações materiais a uma existência com dignidade, mas não somente uma existência meramente física, como também espiritual e intelectual, fundamentais em um Estado que, pela feição democrática, demanda a participação dos indivíduos nas gerências públicas e, pelo aspecto liberal, permite a cada um o alcance de seu próprio desenvolvimento (BARCELLOS, 2002, p. 198).
Por todo o exposto, afirma-se que o patrimônio mínimo é fundamental, em maior âmbito, ao Estado e à construção de uma nova realidade social - mais equilibrada e democrática - e, em menor âmbito, ao próprio indivíduo, possibilitando-lhe uma vida verdadeiramente digna.
O bem de família apresenta-se, assim, como importante instrumento de proteção ao mínimo existencial, haja vista que obsta a penhora do imóvel residencial do devedor e de seu núcleo familiar, impedindo que sejam reduzidos à miséria e, consequentemente, que tenham ferida sua dignidade enquanto humanos.
4 CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À MORADIA x DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
A impenhorabilidade é um meio de defesa a ser oposto contra penhora que intente recair sobre bem imprescindível à residência ou à manutenção alimentar do executado. Assim, como já dito alhures, a impenhorabilidade mostra-se extremamente importante para a preservação da dignidade do devedor através da proteção à sua moradia, constituída como direito fundamental.
É sabido que a moradia, desde os tempos remotos, é necessidade essencial dos seres humanos. Todavia, tal direito apenas foi reconhecido como pressuposto para a dignidade da pessoa humana com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, sendo recepcionado pelo texto constitucional brasileiro, no ano de 2000, através da Emenda Constitucional n° 26, pelo que passou a integrar o rol de direitos sociais do art. 6°, da Constituição Federal de 1988.
Os direitos sociais estão intimamente ligados ao princípio da igualdade, uma vez que objetivam garantir ao indivíduo condições materiais consideradas imprescindíveis para o pleno gozo de seus direitos, isto é, que visam reduzir a desigualdade entre as pessoas através da oferta de melhores condições de vida a elas. Por essa razão, os direitos sociais tendem a exigir que o Estado intervenha na ordem social, diferentemente dos direitos de liberdade.
Desse modo, os direitos sociais (também chamados de direitos de segunda geração) representam a interrupção do Estado Liberal para que possa surgir o Estado Social de Direito, que exige ações estatais positivas a fim de que tais direitos sejam preservados e efetivamente concretizados. Em resumo:
Os direitos sociais caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que confira um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, conforme preleciona o art. 1°, inciso IV (MORAES, 2013, p. 24).
Lado outro, o inciso XXXV, do art. 5°, da Constituição Federal/88, traz que a lei não poderá excluir lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário. É de conhecimento geral que a autotutela é proibida no ordenamento jurídico brasileiro e que, com isso, tem-se o Estado como titular exclusivo da jurisdição. Como contrapartida a este monopólio, foi conferido aos particulares o direito de ação. Assim, tem-se, por direito de ação, o direito à sentença de mérito. Contudo, o direito a sentença de mérito, por si só, não satisfaz nem corresponde ao direito à tutela jurisdicional efetiva: é preciso que, além de ser reconhecido pelo Estado, o direito material seja realizado. Destarte, tal direito fundamental deve ser entendido como a junção de outros dois, quais sejam, o direito à sentença e o direito aos meios executivos para que o provimento seja efetivamente concretizado no mundo dos fatos.
De modo mais simples, não basta que o juiz declare o direito, é preciso, também, que sejam garantidas formas eficazes para a satisfação dele. Nas lições de MARINONI:
A coisa julgada material, além de se constituir em pilar do Estado Democrático de Direito, é corolário do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. (...) O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva não significa apenas a resolução adequada do litigio, mas também direito fundamental à tutela jurisdicional que ponha término à contenda ou que finalize a disputa (MARINONI, 2011, p. 138).
Nesse contexto, o credor que executa judicialmente seu crédito tem o direito de o ver quitado. Por conseguinte, é possível dizer que, uma vez constituída a obrigação e não cumprida voluntariamente, cabe ao Estado compelir o devedor a satisfazê-la e, ao Direito fornecer os instrumentos necessários para que, na coerção, não haja lesão à dignidade de nenhuma das partes. Outrossim, a jurisdição não se restringe à solução dos impasses e conflitos individuais, possuindo, ainda, um caráter social de mantença do próprio Estado. Não há que se falar em justiça se, reconhecido um direito através da jurisdição, o Estado não empreender ou não for capar de empreender os esforços e meios necessários à execução da tutela concedida.
Com efeito, o Direito – e sua efetiva aplicação – mostra-se essencial à sociedade, uma vez que possui como objetivos a ordem das relações sociais e a harmonia entre os interesses privados e públicos, através da realização dos direitos fundamentais sem aniquilar ou mitigar injustificadamente os demais direitos.
Por todo o exposto, inegável o caráter fundamental do direito à tutela jurisdicional efetiva, tendo em vista ser decorrente da própria existência dos direitos. Em outras palavras, a tutela jurisdicional efetiva é essencial para a própria execução e efetivação dos demais direitos que, quando lesados ou ameaçados, dela invariavelmente dependem. Quando, no feito executivo, o devedor alegar possuir apenas um bem passível de satisfazer o débito, bem como alegar ser este utilizado por si e por seu núcleo familiar como residência, isto é, suscitar a impenhorabilidade sob a égide de se tratar de bem de família, é provável que haja conflito entre o direito de moradia do executado e o direito à tutela jurisdicional efetiva do exequente.
Nessa esteira, a Lei 8.009/90 estabelece a impenhorabilidade da imóvel utilizado como morada, excepcionando somente raras hipóteses, as quais já foram elencadas neste trabalho. Não há, assim, no ordenamento jurídico brasileiro atual, qualquer distinção entre o imóvel residencial de elevado e o de baixo valor, o de vasta ou o de diminuta extensão, ou cuja finalidade ultrapasse a morada, sendo todos impenhoráveis frente a uma execução.
Destarte, a impenhorabilidade do bem de família, por vezes, revela-se desproporcional e até injusta, visto que protege, além da residência do devedor e de sua família, o supérfluo e o luxuoso. Nesse momento, o instituto impede a execução e, consequentemente, a tutela jurisdicional efetiva. Em tais casos, por se vislumbrar possível colisão de direitos fundamentais, o instrumento adequado à solução do impasse e à melhor aplicação do direito ao caso concreto é o princípio da ponderação.
4.1 ANÁLISE QUANTO À OCORRÊNCIA DE COLISÃO ENTRE ESSES DIREITOS TRATANDO-SE DE IMÓVEL DE ELEVADO VALOR
A Constituição Federal é composta por um conjunto de princípios e regras que possuem o mesmo grau de hierarquia e que formam um todo harmônico. Dessa feita, nenhum direito fundamental é ilimitado e absoluto, possuindo, como margem, os demais direitos fundamentais. Justamente por esse caráter harmônico da Constituição, é possível que haja conflito entre dois ou mais direitos fundamentais quando o exercício de um direito pelo seu titular for de encontro ao exercício de direito fundamental diverso pelo outro titular.
Assim, quando, no caso concreto, houver colisão de direitos fundamentais, as circunstâncias e características inerentes a ele deverão ser analisadas para que se alcance a solução mais justa. Em outras palavras, quando dois direitos fundamentais se opuserem, um deles deverá ceder. Entretanto, não há que se falar em aniquilamento ou mitigação total de um dos direitos, ocorrendo tão somente um balanceamento entre eles a fim de se identificar qual atinge melhor, naquele caso específico, a justiça buscada pelo Direito. Logo, não obstante os direitos estarem no mesmo nível hierárquico, um deles terá maior peso diante das particularidades do caso. Tem-se, aqui, a aplicação do princípio da ponderação.
Relembrando o exposto em outros trechos deste trabalho, a dignidade da pessoa possui uma enorme abrangência, uma vez que dela decorrem inúmeros direitos, sendo frequentemente suscitada nas mais diversas celeumas dos mais diversos ramos. Moraes (2013, p. 48) afirma, a título de exemplo, que “o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil”.
Todavia, devido a essa grande aplicabilidade, faz-se necessária extrema cautela ao se arguir a dignidade da pessoa humana, pois, se aplicada ilimitadamente, poderá ferir os demais direitos considerados fundamentais. Assim como todos os demais direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana não é absoluta. Com efeito, o Estado poderá privar o cidadão, em situações específicas, de um de seus direitos fundamentais em razão de outro, garantindo, desta forma, a harmonia do ordenamento jurídico.
Nesse sentido:
Percebe-se, assim, que a dignidade, como um valor individual de cada ser humano, deverá ser avaliada e ponderada em cada caso concreto. Não devemos nos esquecer, contudo, daquilo que se denomina como sendo um núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, que jamais poderá ser abalado (GRECO, 2011, p. 73).
Nesse contexto, quando se prioriza o direito à moradia do executado, há restrição, invariavelmente, do direito do exequente, que deixa de possuir garantia à quitação da dívida. Com isso, impede-se o exercício do direito à tutela jurisdicional efetiva, já que impossível a penhora. Todavia, como já mencionado antes, o conflito entre direitos fundamentais é inevitável, uma vez que a Constituição Federal a eles atribui o mesmo valor, estando todos no mesmo nível. E, em grande parte dos casos em que a impenhorabilidade do bem de família é levantada, esta é concedida, tendo em vista que não é razoável subjugar o devedor à miséria, isto é, atingir o seu mínimo existencial e, consequentemente, a sua dignidade, para que o crédito seja satisfeito.
O problema se apresenta na falta de critérios para a identificação do bem de família: se nenhum outro bem for encontrado, além do imóvel residencial, o credor terá obstado seu direito à satisfação da dívida independentemente da utilidade, valor ou extensão do bem. Obrigatório reconhecer que, além das hipóteses constantes do rol do art. 3°, da Lei 8.009/90, há casos em que o direito à moradia e, consequente o direito à dignidade da pessoa e ao seu patrimônio mínimo, não serão atingidos se perfectibilizado o direito à tutela jurisdicional efetiva.
Permitir que a lei supracitada seja utilizada como óbice à penhora de imóvel de elevado valor, ainda que este seja utilizado, de fato, como residência da família, feriria gravemente o princípio da ponderação. Isso porque não seriam observadas a razoabilidade e a proporcionalidade entre o bem jurídico tutelado – o patrimônio excedente àquele que se caracteriza como indispensável a uma vida digna, supérfluo – e o bem jurídico sacrificado – a pretensão do exequente em ter seu crédito satisfeito.
Assim, possível dizer que a proteção conferida pela Lei não objetiva assegurar a manutenção de seu padrão de vida, mas sim resguardar ao executado um conjunto de bens indispensáveis e essenciais para que viva dignamente. Em outras palavras, luxo e ostentação transcendem o conceito de dignidade guardado pela Lei. Forçoso concluir que a dignidade, o direito à moradia e, até mesmo o direito ao patrimônio mínimo do executado, não sofrem lesão quando o imóvel a ser penhorado possuir alto valor, uma vez que, caso realizada a constrição e paga a dívida, o remanescente poderá ser utilizado para que se adquira outro imóvel de menor valor.
Nesse contexto, ante a ausência de choque entre direitos fundamentais, poder-se-ia falar em constrição de imóvel, a priori impenhorável sob a égide da Lei 8.009/90, que supere ostensivamente o patrimônio necessário à constituição de uma moradia digna, não havendo que se falar em lesão a este direito. Tem-se:
De um modo geral, considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide com o exercício de um direito fundamental por parte de outro titular. A colisão de direitos em sentido impróprio tem lugar quando o exercício de um direito fundamental colide com outros bem constitucionalmente protegidos (CANOTILHO, 1991, p. 1.253).
Contudo, na presente hipótese, não há nem que se falar em colisão de direitos em sentido impróprio, uma vez que se vê totalmente possível - e justo - que se efetue a penhora de imóvel de alto valor para que se atinja o direito à tutela efetiva do credor e o de moradia do devedor, doravante mais modesta. Por todo o exposto, seria desproporcional e inconstitucional crer que a impenhorabilidade do bem de família é absoluta, especialmente no que se refere a imóveis de alto valor, devendo ser afastada a possibilidade de colisão entre direitos fundamentais nessa hipótese.
5 INOVAÇÕES JURISPRUDENCIAIS
Tem-se na jurisprudência uma importante fonte para a solução de conflitos jurídicos, bem como um filtro para possíveis litígios. Ao consultar qual o entendimento dos tribunais sobre o assunto cerne do conflito a parte terá maiores condições de analisar a viabilidade da propositura da ação. Nesse sentido, visando a decisões sólidas e justas, é função do juiz assegurar que o processo tramite de acordo com os preceitos constitucionais, legais e processuais. Devem-se ser observados, por exemplo, os princípios do contraditório, da ampla defesa, da celeridade, da economicidade e da boa-fé processual. De outra banda, diferentemente do tempo em que o direito dispensava sua proteção prioritariamente ao patrimônio, restringindo-se, assim, a poucos indivíduos, atualmente ele serve ao homem, enquanto sujeito de direito, exaltando a sua dignidade.
Para tanto, criaram-se mecanismos que buscam desestimular qualquer atuação contrária à boa-fé, à morosidade injustificada e aos demais atos que possuam como finalidade obstar ou dificultar a tutela jurisdicional efetiva. Sendo o juiz a representação do Estado na solução dos litígios, natural que ele seja o principal fiscal da obediência aos preceitos do ordenamento jurídico. Corroborando essa afirmação:
A responsabilidade pela adequada repressão à má-fé processual e pela necessária valorização do processo justo repousa muito mais sobre o julgador do que sobre o legislador. Este pôs nas mãos daquele poderosos instrumentos éticos para moralizar o processo e tornar a prestação jurisdicional compatíveis com os anseios do Estado Social Democrático (THEODORO JÚNIOR, 1996, p. 61).
Dessa forma, é papel do juiz o combate a qualquer tipo de fraude, uma vez que não se pode permitir que o credor tenha seu direito lesado por artifícios escusos e imorais. Assim, mais do que repreender os atos das partes que sejam lesivos ao processo, o juiz deve agir ativamente na relação processual. Por tal razão, o juiz, não apenas de forma passiva, deve atuar no processo sempre que assim as partes requererem, pronunciando-se sobre os atos processuais e atuando no litígio ainda que não haja previsão legislativa para o caso concreto, isto é, é dever do juiz agir ainda que haja omissão legislativa do ordenamento jurídico brasileiro. Não raras vezes, chegar à solução do conflito só é possível através de interpretação sistematizada de normas e princípios. Surge, então, a jurisprudência.
A título de exemplo da importância da atuação dos magistrados é possível citar o próprio conceito de bem de família, uma vez que este não pode ser reduzido à letra da lei, sob pena de desamparar aqueles indivíduos que não estão inseridos em uma família tida como tradicional, ou seja, composta por pai, mãe e filhos.
É possível estender esse raciocínio ao bem de família. A legislação atual não traz qualquer limitação de valor do imóvel a ser qualificado como bem de família e, portanto, impenhorável. Quando não se criam limites razoáveis, abre-se caminho para que injustiças – e até mesmo fraudes – aconteçam, ao se permitir que o exequente não tenha seu crédito satisfeito para que o imóvel impenhorável do executado, de valor muito acima ao de imóvel considerado como de padrão médio de vida, seja preservado. Nesse sentido:
O juiz tem o poder-dever de negar a aplicação à lei infraconstitucional, na medida e na extensão em que se revele, no caso concreto, contrária a um direito fundamental, ou mesmo impondo-lhe limitações excessivas (GUERRA, 1998, p. 58)
Destarte, ainda que não haja previsão legislativa acerca do valor do bem de família, o magistrado possui, no ordenamento jurídico, as técnicas e instrumentos necessários para permitir a penhora do imóvel utilizado como residência do devedor e que, em muito, supere o considerado necessário para a mantença de uma vida digna. Não obstante, não há dúvidas de que essa falta de previsão de limite de valor a fim de configurar um imóvel como bem de família é um dos maiores empecilhos dos juízes ao interpretar a legislação de maneira sistemática a fim de restringirem a proteção do instituto àqueles que realmente dele necessitam.
Nesse contexto, os tribunais brasileiros, felizmente, começam a reconhecer a relativização da impenhorabilidade do imóvel luxuoso utilizado como residência da família e que, a princípio, é tido como bem de família. A Justiça do Trabalho tem se mostrado pioneira quanto à penhora de imóvel suntuoso utilizado pelo devedor como moradia. O Tribunal Regional do Trabalho da 2° Região, ao julgar Agravo de Petição dos autos n° 01549005819885020008, entendeu pela possibilidade da penhora do imóvel estimado em R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), consoante avaliação de oficial de justiça, para quitação da dívida de R$ 41.123,50 (quarenta e um mil cento e vinte três reais e cinquenta centavos). Dessa forma, embora tenha restado comprovado nos autos que o imóvel, de fato, era o único do devedor, bem como a inexistência de má-fé, o fundamento da decisão se pautou na razoabilidade. Explica-se: não é razoável que esse vultoso patrimônio encontre-se em reunido em um único imóvel, resguardado pela impenhorabilidade, quando se encontram insolventes seus titulares por um débito proporcionalmente ínfimo. Assim, a penhora, neste caso, além de viabilizar o pagamento da dívida, possibilitaria ao devedor, com o dinheiro que lhe fosse devolvido, a obtenção de outro imóvel equivalente ou ligeiramente menos suntuoso do que o constrito. Dessa forma, teve-se reconhecida a impenhorabilidade, porquanto se tratava de bem de família; todavia, esta foi afastada pela desproporcionalidade de sua mantença ante o elevado valor do bem, não havendo que se falar em lesão à dignidade da pessoa humana e ao seu mínimo existencial caso efetivada a constrição.
Entretanto, decisões como essa acabam sendo reformadas quando chegam ao Tribunal Superior do Trabalho, apesar de representarem importante avanço jurisprudencial. A Corte Superior as reforma sob o fundamento de que não há, na Lei 8.009/90, qualquer limitação de valor para que o imóvel seja qualificado como de família, não sendo o fato de ele ser luxuoso suficiente para afastar a impenhorabilidade.
Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça analisou a questão em recente julgado, no Recurso Especial n° 1351571/SP (2012/0226735-9). O relator, ministro Luis Felipe Salomão propôs uma releitura da jurisprudência acerca da possibilidade de penhora do único imóvel de família quando de alto padrão. No caso em tela, o valor do débito era de R$ 70.000, 00 (setenta mil reais) à época da execução, no ano de 2003, e o imóvel foi avaliado entre R$ 470.000,00 (quatrocentos e setenta mil reais) e R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais). Em seu voto, o ministro, em suma, afirma que o Superior Tribunal de Justiça apresenta, de fato, interpretação literal e restrita da Lei 8.009/90 há anos, ressaltando que chegou o momento de uma visão mais consoante com a evolução da sociedade brasileira. Nesse contexto, preceitua que a negativa de penhora do imóvel de elevado valor feriria o princípio constitucional da razoabilidade, uma vez que não há que se considerar razoável a intangibilidade do patrimônio que exceda o necessário a uma vida digna, em detrimento da pretensão do credor em haver seu crédito satisfeito. Termina dizendo que os objetivos da lei protetiva do bem de família – a dignidade humana e o direito à moradia – não serão prejudicados caso perfectibilizada a constrição, tendo me vista que a parte executada poderá continuar residindo de maneira digna em imóvel ainda assim de padrão superior ao médio. Dessa forma, o ministro Salomão inovou ao prelecionar o afastamento da absoluta impenhorabilidade determinada pela lei a fim de permitir a penhora de fração ideal de imóvel de elevado valor, objetivando, mediante a razoabilidade, resguardar tanto a satisfação do crédito do exequente quanto a dignidade do executado.
Contudo, o voto do relator foi vencido pelos os dos três outros ministros que atuaram no julgamento do referido recurso especial. Em síntese, em seus votos, os ministros alegaram que não é possível promover a penhora total ou parcial do único imóvel residencial do devedor por duas razões: não há previsão de ressalva ou de regime jurídico distinto em razão do valor econômico do bem e questões afetas a luxo, suntuosidade, grandiosidade e alto valor são indiscutivelmente subjetivas, inexistindo, até o momento, parâmetro legal ou margem de valoração.
Pelo acima colocado, fácil perceber que o fundamento essencial das reformas das decisões que acolhem a possibilidade de penhora do bem de elevado valor é a ausência de previsão legislativa, não obstante a faculdade dos magistrados de interpretarem a lei baseados nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Assim, visando a uma proteção do direito do credor, nos casos em que a dignidade do devedor e de seu núcleo familiar não sofre lesão ou ameaça de lesão pela penhora, mudanças legais poderiam ser a solução para a celeuma.
6 NECESSIDADE DE CRITÉRIOS LIMITADORES À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA
Semelhante a todos os procedimentos jurídicos, o de execução necessita constantemente de inovações para que consiga efetivamente promover a eficácia da tutela jurisdicional. Ademais, tais inovações precisam estar em consonância com mecanismos que tragam ao processo celeridade, tendo em vista que a lentidão do Judiciário, por si só, já é um forte fator de desestimulação àquele que busca a satisfação de seu crédito judicialmente. Assim:
A morosidade gera a descrença do povo na justiça; o cidadão se vê desestimulado de recorrer ao Poder Judiciário quando toma conhecimento da sua lentidão e dos males (angústias e sofrimentos psicológicos) que podem ser provocados pela morosidade da litispendência. Entretanto, o cidadão tem direito a uma justiça que lhe garanta uma resposta dentro de um prazo razoável (MARINONI, 2000, p. 36).
Destarte, é natural que sempre haja mudanças legislativas que possibilitem a adequação do processo às novas realidades e demandas sociais, almejando a plena eficácia do feito processual, através de procedimentos mais ágeis e justos. Pode-se citar, a título de exemplo de inovação relativamente recente e extremamente importante para o sucesso do procedimento executivo, a penhora online realizada através do sistema BacenJud.
No que diz respeito à limitação do valor do imóvel residencial considerado de família, já houve algumas tentativas de sua implantação no ordenamento jurídico brasileiro.
Como dito alhures, o patrimônio mínimo é o conjunto patrimonial capaz de assegurar vida com dignidade à pessoa humana, agindo como um verdadeiro instrumento de cidadania e justificando a separação de uma parcela básica de bens para atender às necessidades elementares do indivíduo. Desse modo, a proteção do patrimônio mínimo não pode ser atrelada à exacerbação da pessoa.
Importante trazer, neste momento, o art. 833, inciso II, do atual Código de Processo Civil, que claramente teve como fulcro a concepção do patrimônio mínimo, senão vejamos:
Art. 833. São impenhoráveis:
II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.
Assim, considerando o dispositivo em questão, infere-se que a impenhorabilidade do bem de família, ao menos no que diz respeito aos bens móveis, alcança somente o que for essencial para a mantença de um padrão médio de vida. Tem-se, então, a concretização da teoria do patrimônio mínimo, consagrando-se a ideia de que a lei deve resguardar apenas o que é necessário ao devedor para que este viva dignamente, e não o que é supérfluo. Ademais, ao se proteger bem de elevado valor, tal ato estaria desprovido de fundamento jurídico ante a ausência de dignidade do titular a ser resguardada.
Todavia, no que diz respeito a bens imóveis, não se consagraram as mesmas mudanças. Nesse contexto, o Projeto de Lei n° 51, de 2006, n° 4.497/04 na Câmara dos Deputados, que alterou dispositivos do então Código de Processo Civil relativos à execução, trazia, em seu teor, previsão normativa que deferia a alienação de imóvel cujo valor ultrapassasse 1000 (mil) salários mínimos. Verificada a possibilidade e efetivada a constrição, o valor até esse limite deveria ser devolvido ao executado ante o seu caráter impenhorável. Confira-se:
Art. 649: (…)
Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade.
Entretanto, o seguinte dispositivo foi abolido, em veto presidencial, sob a justificativa de que romperia a tradição trazida pela Lei 8.009/90 de que a impenhorabilidade não se vinculada a qualquer valor. Ressalva-se que, não obstante o parágrafo único não ter sido sancionado, no veto presidencial, foi-lhe reconhecida razoabilidade.
Na mesma senda, houve a apresentação da Emenda n° 358, de autoria do Deputado Federal Júnior Coimbra, ao projeto da Lei 13.105/15, isto é, ao atual Código de Processo Civil. A proposta muito se assemelha à que acima fora apresentada, objetivando que a impenhorabilidade restrinja-se a imóveis cujo valor econômico não supere 1000 (mil) salários mínimos. Assim o é que:
Art. 790. São absolutamente impenhoráveis:
(…)
XII – o bem imóvel de residência do devedor e sua família até o limite de 1000 salários mínimos.
O fundamento apresentado para a emenda é de que ela se apresentaria como óbice àqueles devedores abastados que se valem do instituo do bem de família para se esquivarem de suas obrigações, constituindo situação de verdadeiro abuso de direito, bem como de que a jurisprudência já aponta a possibilidade de afastamento da impenhorabilidade, uma vez que a ideia do instituto é garantir um patrimônio mínimo capaz de proporcionar dignidade ao devedor e sua família. Mais uma vez, a tentativa de inclusão de critério limitador quanto ao valor do imóvel considerado bem de família não prosperou.
Contudo, entende-se que a criação de um critério mais objetivo se faz urgente para que sejam solucionados de forma justa os casos concretos. Se, de um lado, tem-se o devedor, que não pode ter seu patrimônio retirado de forma com que se veja reduzido a um patamar de indignidade, do outro, tem-se o credor, também sujeito de direitos, e, por conseguinte, merecedor de idêntico respeito. É fácil inferir que a negativa de penhora de imóvel de elevado valor, com base na lei que prevê a impenhorabilidade do bem de família, ofende os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.
Ora, é impossível considerar razoável a intangibilidade do imóvel que excede o essencial e imprescindível a uma vida digna, em detrimento da pretensão totalmente legítima do credor em ter seu crédito satisfeito. No entanto, percebe-se que, ante a ausência legislativa acerca do tema, os tribunais vêm decidindo majoritariamente pelo caráter absoluto da impenhorabilidade do único imóvel residencial do executado.
Com base nas disposições acima apresentadas, acredita-se ser imprescindível a atualização da legislação, havendo previsão de limites valorativos quando da caracterização do bem de família, a fim de que se alcance efetivamente a justiça, resguardando o direito do devedor ao mínimo existencial e o do credor à satisfação da obrigação.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A impenhorabilidade do bem de família, seja na sua modalidade legal seja na voluntária, isto é, seja pela Lei 8.009/90 seja pelo Código Civil, representa importante instrumento de proteção ao devedor e ao seu núcleo familiar. Assim o é que tal garantia não se restringe a instrumento de proteção do direito à moradia e à dignidade humana da pessoa, mas também se mostra como exemplo concreto do Brasil como Estado Social de Direito, que prioriza os direitos do indivíduo ante os patrimoniais.
Ademais, essa proteção não se restringe aos sujeitos integrantes de famílias tidas como tradicionais, ou seja, compostas por pai, mãe e filhos. Cada indivíduo é sujeito de direitos, devendo ser a ele proporcionadas condições mínimas de dignidade para que desfrute de uma vida digna. Nesse contexto, desfrutam de impenhorabilidade os imóveis pertencentes aos solteiros, aos viúvos, aos casais homoafetivos e a qualquer outra pessoa que o tenha como única residência.
Lado outro, a impenhorabilidade do bem de família não tem como objetivo aniquilar o direito do credor de ter seu crédito satisfeito. O instituo foi criado para que se resguardasse a esfera mínima de patrimônio do indivíduo, de modo que um direito de caráter patrimonial não se sobreponha sobre direitos de caráter fundamental, especificamente os relativos à dignidade da pessoa. Ademais, a Constituição Federal traz que a função social da propriedade deve ser observada, o que se respeita com a aplicação da impenhorabilidade em questão.
Contudo, é importante que não seja dado caráter absoluto à impenhorabilidade do imóvel bem de família, até mesmo para que esta não seja utilizada como instrumento de fraude pelos devedores alheios às normas legais e aos deveres éticos. Prevendo tal desvio, a própria Lei 8.009/90 traz, em seu art. 3°, hipóteses de exceção à impenhorabilidade. Cite-se, como exemplo, o crédito referente a impostos, taxas e contribuições inerentes ao próprio imóvel residencial.
Todavia, a legislação não prevê todas as hipóteses em que seria razoável desconsiderar a impenhorabilidade conferida ao bem de família, a fim de que fosse efetivamente encontrada a solução mais justa para os direitos conflitantes do exequente e do executado. Nesse time, incluem-se os imóveis de elevado valor que, em muito, superam o conceito de patrimônio mínimo.
A princípio, vislumbra-se uma colisão entre dois direitos fundamentais quando se fala em penhora de imóvel de elevado valor, quais sejam, o direito à moradia e, consequentemente, à dignidade e o direito à tutela jurisdicional efetiva. No entanto, o exercício do direito á tutela jurisdicional efetiva através da penhora de referido imóvel não fere a dignidade do devedor, uma vez que, com o saldo remanescente, este poderia adquirir outro imóvel de menor valor. Portanto, necessário reconhecer que não há sobreposição de direito patrimonial sobre social tampouco conflito entre normas constitucionais fundamentais no caso em tela.
Nesses casos, não há que se falar em razoabilidade se o devedor permanece com seu imóvel suntuoso e luxuoso intacto em detrimento da pretensão do credor, que vê seu direito à tutela jurisdicional efetiva completamente frustrado. Destarte, imprescindível que seja concebida limitação valorativa do imóvel bem de família, tendo em vista que sua impenhorabilidade tem como fundamento e objetivo a proteção da dignidade do devedor e não do vasto patrimônio dele.
Logo, se, por um lado, no curso do processo executivo, deve-se proteger o devedor para que lhe seja resguardada àquela parcela de patrimônio imprescindível à dignidade dele, por outro lado, não se pode olvidar por completo do credor, que ingressa no Judiciário e nele deposita confiança de que terá seu crédito quitado.
Nesse contexto, já houve algumas tentativas de mudança legislativa e alguns julgados afastando a impenhorabilidade absoluta quando se trata de imóvel de elevado valor. Entretanto, nenhuma alteração foi sancionada e a jurisprudência é minoritária, sendo as decisões reformadas constantemente quando analisadas pela instância superior.
Não obstante o fracasso dessa vertente até o momento, a incipiente mudança de pensamento dos magistrados e legisladores apresenta-se como importante conquista para o avanço do Direito e sinal de que, no futuro, a limitação de valor do imóvel pode ser tida como instrumento de uma solução mais justa em feitos executivos.
Importante ressaltar que não se defende a alteração irresponsável do ordenamento jurídico tampouco de seus princípios. Com a criação de limite de valor para a qualificação de um imóvel como bem de família, busca-se, pelo contrário, a reafirmação e convivência harmônica de todos os valores jurídicos do sistema brasileiro. Em outras palavras, não se busca a ruína do instituto da impenhorabilidade, mas somente sua interpretação em consonância com o ordenamento constitucional, respeitando garantias e direitos fundamentais, especificamente o direito à tutela jurisdicional efetiva do credor.
Como dito alhures, ainda que seja possível ao magistrado, atualmente, o afastamento da impenhorabilidade após interpretação sistemática do ordenamento jurídico, tais decisões são pouco aceitas pela corrente majoritária e frequentemente reformadas pelos tribunais. Por esta razão, entende-se que uma inovação legislativa, que apresentasse critérios objetivos de caracterização do bem de família, especificamente sobre o seu valor, traria maior efetividade e justiça ao processo de execução.
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** Doutoranda em Direito Civil Comparado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP, Mestre em Direito das Relações Econômico-Empresarias pela Universidade de Franca-UNIFRAN, `Pós- Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de Franca- UNIFRAN, Professora de Direito Civil, Processo Civil e Direito do Consumidor no Centro Universitário do Planalto de Araxá- UNIARAXA, advogada militante na Comarca de Araxá-MG.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Planalto de Araxá- UNIARAXÁ, Advogada militante na Comarca de Araxá-MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Verônica Miranda. Penhorabilidade do bem de família imóvel de alto valor: análise sob o prisma do mínimo existencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50874/penhorabilidade-do-bem-de-familia-imovel-de-alto-valor-analise-sob-o-prisma-do-minimo-existencial. Acesso em: 22 nov 2024.
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