Resumo:O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise detalhada da estrutura da Lei nº 12.846/2013, comparando-a com outras normas que compõe o Direito Administrativo Sancionador. Inicialmente, será estudado a modalidade de responsabilização adotada pela Lei, em seguida os sujeitos, os atos puníveis e as sanções previstas.
Palavras- chaves: Lei Anticorrupção; Direito Administrativo Sancionador; Lei nº 12.846/2013; Responsabilidade Objetiva.
1. Responsabilização das pessoas jurídicas por atos de corrupção antes do advento da lei 12.846/2013
Antes do surgimento da Lei nº 12.846/2013, as pessoas jurídicas já podiam ser punidas pelos atos de corrupção por meio da lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), cujo artigo 3º faz referência à figura do “terceiro”. Entretanto, como veremos a seguir, são muitos os obstáculos para que elas possam ser enquadradas nesta lei.
Primeiramente, alguns autores entendem que as pessoas jurídicas não podem ser enquadradas como o “terceiros” na Lei de Improbidade Administrativa, mas tão somente a pessoa física. Isto porque a referida norma exige a indução e/ou o concurso para a prática do ato de improbidade, atitudes que somente poderiam ser praticadas por pessoas físicas. Nesse sentido, leciona José dos Santos Carvalho Filho:
“De qualquer forma, o terceiro jamais poderá ser pessoa jurídica. As condutas de indução e colaboração para a improbidade são próprias de pessoas físicas. (...) Demais disso, tal conduta, como vimos, pressupõe dolo, elemento subjetivo incompatível com a responsabilização de pessoa jurídica”.[1]
Além disso, essa corrente argumenta que o art. 3.º da Lei nº 8.429/1992, ao mencionar os terceiros, refere-se “àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”. Ao utilizar a referência do “agente público”, a norma teria a intenção de restringir a qualificação do terceiro apenas às pessoas físicas. Assim, as sanções de improbidade deveriam alcançar os sócios da pessoa jurídica, que são os verdadeiros beneficiários do ato de improbidade.
Esse é o entendimento sustentado por Waldo Fazzio Júnior:
“Em princípio, esse dispositivo não distingue entre terceiro pessoa física e terceiro pessoa jurídica, mas ao usar a expressão ‘mesmo que não seja agente público’ e ao aludir aos verbos ‘induzir’ e ‘concorrer’, para descrever a conduta do extraneus, certamente está se referindo à pessoa natural, não à jurídica.”[2]
Essa posição não prevalece em nossa doutrina e jurisprudência[3], que entendem ser possível o enquadramento das pessoas jurídicas como “terceiros” na prática de atos de improbidade justificada, principalmente pela ausência de distinção no art. 3.º da Lei nº 8.429/1992, entre pessoas físicas e jurídicas.
Embora aquela posição seja minoritária, já se vislumbrava uma dificuldade inicial.
Em seguida, entendendo ser possível sua aplicação às pessoas jurídicas, existia uma segunda barreira: a identificação de algum agente público como autor da prática do ato de improbidade. Isso porque não é possível propor a ação de improbidade somente contra o terceiro, sem que figure também um agente público no polo passivo da demanda, nesse sentido a melhor doutrina:
“A responsabilização de terceiros está condicionada à prática de um ato de improbidade por um agente público. É dizer: não havendo participação do agente público, há que ser afastada a incidência da LIA, estando o terceiro sujeito a sanções previstas em outras disposições legais. Pelas mesmas razões, não poderá o particular figurar sozinho no polo passivo de uma ação de improbidade administrativa, nele tendo de participar, necessariamente, o agente público.
Vê-se, portanto, que o art. 3.º encerra uma norma de extensão pessoal dos tipos de improbidade, a autorizar a ampliação do âmbito de incidência da LIA, que passa a alcançar não só o agente público que praticou o ato de improbidade, como também os terceiros que estão ao seu lado, isto é, aqueles que de qualquer modo concorreram para a prática da conduta ímproba, ou dela se beneficiaram. Por consectário lógico, os terceiros responderão solidariamente73 pela prática do mesmo ato de improbidade imputado ao agente público.”[4]
Por fim, era necessário também demostrar a existência do elemento subjetivo da pessoa jurídica que lesou a Administração Pública, o que faz gerar outras novas discussões.[5]
Em suma, a Lei de Improbidade Administrativa encontrava grandes dificuldades para ser aplicada às pessoas jurídicas, existindo poucos julgados em nossa jurisprudência que demonstrem sua efetiva aplicação. Com o novel diploma, a situação muda e os problemas parecem estar resolvidos.
A Lei Anticorrupção prevê expressamente o enquadramento das pessoas jurídicas como sujeitos ativos do ato lesivo contra a Administração Pública. Consta, também, que a sua responsabilização passa a ser independente da responsabilização da pessoa natural[6]. Além disso, a responsabilização se torna objetiva, não se perquirindo mais sobre a culpa ou dolo da conduta da pessoa jurídica.
Vale destacar que os comportamentos ímprobos gerados por pessoas jurídicas passam a ter uma tutela punitiva autônoma em relação à da Lei nº 8.429/1992, o que não significa que essa legislação não será mais aplicada; vai além disso, assegura que agora também serão punidos de acordo com a Lei nº 12.846/2013[7].
Assim, pela novidade do tema, ainda está incerto como se dará a compatibilização da Lei de Improbidade Administrativa com a Lei Anticorrupção quando envolverem a mesma pessoa jurídica. Será essa uma tarefa que deverá ser enfrentada e decidida por nossos tribunais daqui pra frente, ficando a esperança de que ao aplicarem as duas legislações maximizem os seus efeitos em busca de um tratamento mais rigoroso contra à corrupção.
2. Responsabilização objetiva das pessoas jurídicas
O artigo 2º da Lei nº 12.846/2013 estabelece a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas pelos atos de corrupção causados à Administração Pública, nesses termos:
Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.
Por opção legislativa expressa, uma vez constatado o dano contra Administração Pública nacional ou estrangeira, haverá a responsabilização da pessoa jurídica com a simples prática da conduta lesiva, sendo desnecessário analisar o seu elemento subjetivo. Ou seja, basta que seja comprovado o ato de corrupção e o nexo de causalidade entre ele e conduta de qualquer representante das pessoas jurídicas envolvidas.
Não se trata de inovação no ordenamento jurídico, na medida em que a responsabilização objetiva de pessoas jurídicas já tem sido adotada, como, por exemplo, no âmbito da legislação ambiental (art. 14, §1º, da Lei nº 6.938/1981[8] c/c art. 3º da Lei nº 9.605/1998[9]) e nos artigos 932, inciso III, e 933, ambos do Código Civil[10].
Ademais, o fato de ser responsabilidade objetiva não significa dizer que será responsabilidade pelo risco integral. Pelo contrário, se a pessoa jurídica acusada de atos de corrupção fizer prova de que não houve violação à ordem jurídica, ou de que tal evento não decorreu da conduta de seus representantes, rompendo o nexo de causalidade, não há que falar na aplicação das sanções previstas na Lei. Ou seja, não se adotou a responsabilidade objetiva pelo risco integral na Lei nº 12.846/2013.
Nesse sentido, devemos ter cuidado com a leitura da parte final do artigo 2º da Lei que traz como requisito para a incidência da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas, que os atos de corrupção sejam praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.
O artigo é confuso e sua interpretação literal poderia gerar um resultado indesejado, isso porque o único critério que é utilizado para a punição da pessoa jurídica é se ela possuía interesse ou auferiu benefício, ainda que não exclusivo, como consequência do ato de corrupção.
Nota-se que a redação sequer exige que o ato tenha sido praticado por representante legal, empregado, procurador, ou qualquer pessoa representante da pessoa jurídica, ou que a entidade tenha algum envolvimento ou participação no ato de corrupção. Basta, na literal dicção da lei, que o ato lhe seja benéfico, assumindo assim uma responsabilidade objetiva amplíssima. Cria-se, assim, a possibilidade de situações em que ente beneficiado por ato de corrupto (não exclusivamente), possa ser punido por ato de terceiro totalmente estranho às suas atividades, sem que tenha qualquer participação no ato irregular, e mais ainda, devendo fazer prova de fato negativo de seu envolvimento[11].
Como podemos perceber, não é a interpretação pura e literal que devemos fazer do referido artigo. Realizando uma análise sistemática da legislação e buscando a própria ratio legis, verifica-se que o ato corrupto deve ter sido praticado por agente que de alguma forma representava o interesse da empresa envolvida na prática corrupta.[12]
Após os esclarecimentos acerca da responsabilidade das pessoas jurídicas, insta acrescentar que a responsabilidade da pessoa física pelos atos de corrupção será subjetiva, conforme consta no artigo 3º, §3º, da Lei nº 12.846/2013. Assim, os dirigentes ou administradores das pessoas jurídicas só serão responsabilizados pelos atos de corrupção se for comprovado que agiram com dolo ou culpa. Ademais, de acordo com o §1º do art. 3º da Lei nº 12.846/2013, a pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais.
Outro ponto interessante da responsabilização trazida pela Lei nº 12.846/2013, e que não pode deixar de ser mencionado, é a escolha que o legislador fez pelo Direito Administrativo Sancionador, ao invés do Direito Penal.[13]
A opção pelo Direito Administrativo Sancionador se deu, em grande parte, no intuito de fugir da discussão acerca da aplicação do Direito Penal às pessoas jurídicas[14]. Em verdade a escolha por uma ou por outra tem se demonstrado uma discricionariedade do legislador que, para proteger o mesmo bem jurídico, dispõe de diferentes técnicas. Nesse sentido, também entende Francisco de Octavio Almeida Prado:
“Apesar de existir certa autonomia dogmática entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, por se tratarem de ramos distintos e por possuírem estruturas diferentes, os valores jurídicos protegidos muitas vezes são os mesmos. A constante descriminação de condutas delituosas e suas transformações em ilícitos administrativos tem demonstrado a inexistência de diferenças ontológicas entre sanções administrativas e penais.” [15]
Não devemos nos esquecer que, por beber da mesma fonte que o Direito Penal, alguns dos benefícios conquistados no âmbito penal devem ser garantidos ao sujeito passivo do direito administrativo sancionador. Tais restrições são importantes pois o exercício do poder punitivo acaba de alguma forma restringindo direitos fundamentais dos indivíduos, como a liberdade e a propriedade. Assim, deve-se garantir, na aplicação das sanções administrativas sancionatórias, a exigência de que a pena imposta pelo Estado tenha fundamento em lei formal; que a pena imposta seja proporcional à gravidade do fato; o respeito ao contraditório e à ampla defesa; a observância do devido processo legal, entre outras garantias.
Nos parece que o legislador foi feliz na escolha pelo Direito Administrativo Sancionador, pois, além de evitar as discussões já vistas pelo Direito Penal, garantiu que a aplicação da norma se desse de maneira objetiva, dando assim uma resposta estatal compatível com a natureza da infração. Ademais, o legislador previu, por meio da Lei, um modelo de processo administrativo que garante o respeito às garantias individuais dos acusados, prevendo assim critérios específicos para aplicação das sanções, assegurando a ampla defesa e o contraditório, exigindo fundamentação das decisões, etc.
Nesse sentido, aprovando a escolha feita pelo legislador e sintetizando muito bem o que foi dito, André Pimentel Filho descreve que:
“Essa política foi feliz não só do ponto técnico-jurídico, como também sob a perspectiva sociológica, de eficácia da legislação, eis que a criação de disposições sancionadoras desenhadas especialmente para a sanção de pessoas jurídicas tem potencial de surtir efeito muito superior no objetivo e prevenir e punir práticas corruptas, em especial por permitir que se utilizasse de técnicas de responsabilização que dispensasse a perquirição, tão somente as sanções aplicável as pessoas jurídicas, de elemento subjetivo, justamente que pelo fato de que tal indagação sobre a vontade, sobre o elemento subjetivo que comandou o ato de corrupção, é incabível em se tratando de pessoa coletiva, que age sob influencia de múltiplas condutas e desígnios”. [16]
3. Sujeitos da Lei 12.846/2013
Estão previstos como destinatário da responsabilização pela Lei nº 12.846/2013, de acordo com o artigo 1º, parágrafo único, as sociedades empresárias e as sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
É importante destacar que, apesar da literalidade do artigo, parte da doutrina acredita que a pessoa jurídica causadora do ato lesivo não necessita possuir sede ou administração no Brasil para ser enquadrada como sujeito ativo do ato de corrupção. Basta, portanto, que haja realizado uma das condutas presentes no artigo 5º da Lei contra a Administração Pública Nacional, uma vez que vivemos em uma realidade em que as transações comerciais ocorrem de maneira interligada em todo o mundo, dispensando uma sede fixa em território nacional.
Pode-se perceber que o diploma normativo não poderá ser aplicado às pessoas físicas, mas tão somente às pessoas jurídicas. Além disso, o legislador procurou abranger toda e qualquer pessoa jurídica, sendo elas personificadas ou não.
Como destinatários da proteção da Lei Anticorrupção, conforme o artigo 5º, caput §§ 1º e 2º, será a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Assim, compreende-se por Administração Pública nacional os entes políticos que compõem a Administração Direta (União, estados, Distrito Federal e municípios) e as pessoas jurídicas de direito público e de direito privado da Administração Indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista). Por outro lado, entende-se por Administração Pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro.
A Lei nº 12.846/2013 tem como objetivo combater todos os comportamentos das pessoas jurídicas que, de alguma forma, procurem corromper, influir ou prejudicar a Administração Pública, para beneficiar a si mesmas ou favorecer terceiros. Nesse sentido, são elencados no caput do artigo 5º alguns tipos administrativos gerais, que são divididos em três: i) atos que atentam contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro; ii) atos que atentam contra os princípios da Administração Pública e iii) atos que atentam contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
A sistemática do artigo é trazer os preceitos gerais no caput e, em seguida, especificar em seus incisos quais seriam as condutas puníveis, satisfazendo, assim, um dos postulados do Direito Administrativo Sancionador: a tipicidade.[17]
Ademais, o diploma normativo busca punir não só os atos de corrupção propriamente ditos (prometer, oferecer ou dar vantagem indevida), mas também todos os atos que de certa forma violam regras e princípios da Administração Pública, ainda que não haja pagamento propriamente dito a funcionários públicos. Também vale acrescentar que muitas das condutas previstas na Lei Anticorrupção já estão especificadas em outras legislações, como nas leis 8.666/1993 e 8.429/1992, entretanto, como já dito anteriormente, o seu âmbito de aplicação e o seu objetivo são distintos, na medida em que se busca punir as pessoas jurídicas e não as pessoas naturais.[18]
O inciso I do artigo 5º tipifica a corrupção ativa, assim definido: “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada”. Trata-se de um tipo formal, cuja consumação independe do seu resultado, gerando a lesão ao bem jurídico com a simples conduta.
Em seguida, o inciso II tipifica o financiamento de ato lesivo à Administração Pública como sendo aquele que: “comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos”. No inciso III, o legislador lista condutas que visam se utilizar de pessoas interpostas para prática de atos lesivos, assim previsto: “comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”. Nestes dois incisos temos tipos materiais, os quais dependem de resultado naturalístico para sua consumação, que deverão ser devidamente comprovados no âmbito do processo administrativo.
No inciso IV o legislador traz os atos lesivos relacionados com licitações e contratos, sendo condutas que demandam a comprovação da intenção do agente privado de violar o princípio da competitividade das licitações.
Por fim, no inciso V o legislador tipifica as condutas que dificultam a investigação ou fiscalização da Administração Pública, sendo assim previsto: “dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”. Esta previsão se coaduna com o programa de compliance, que é uma novidade inserida pela legislação e que será posteriormente analisada.
Dessa forma, configurada qualquer dessas condutas previstas no artigo 5º, deverão ser aplicadas as sanções previstas na Lei Anticorrupção, hajam elas ocorrido em território nacional ou no exterior. A extraterritorialidade da Lei está expressamente prevista em seu artigo 28, caso em que atos lesivos praticados por pessoas jurídicas brasileiras em detrimento da Administração Pública estrangeira estarão sujeitas também às sanções da nossa legislação. Previsão que está em consonância com as determinações da OCDE, da qual o Brasil é signatário e que segue os passos da principais legislações estrangeiras que visam combater a corrupção, como a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e a Bribery Act (UKBA).
5. Sanções e Instrumentos de Responsabilização
A Lei nº 12.846/2013 traz sanções diferentes para cada esfera de responsabilização, bem como instrumentos que buscam efetivar sua aplicação. Em se tratando do âmbito administrativo, as sanções estão elencadas no artigo 6º, enquanto na esfera judicial as punições constam em seu artigo 19. Antes de analisarmos cada uma delas, vale registrar que a maioria das sanções não são novidades em nosso sistema, podendo ser várias delas encontradas em outras leis, como na Lei de Licitações e Contratos (8.666/1993), na Lei de Improbidade Administrativa (8.429/1992), na Lei do CADE (12.529/2011), entre outras. O que irá diferenciá-las das demais será o seu procedimento e as pessoas que serão punidas, mas não o seu conteúdo em si. Ademais, o fato de possuírem o mesmo conteúdo não impede que sejam aplicadas conjuntamente, devendo ser compatibilizadas sempre que possível. E não devemos esquecer que, em qualquer hipótese, as pessoas jurídicas infratoras deverão reparar integralmente o dano causado.
Insta mencionar que, além de serem punidas na esfera administrativa (responsabilização administrativa), as pessoas jurídicas também poderão ser responsabilizadas na esfera judicial. Assim, se uma determinada pessoa jurídica praticar algum dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei 12.846/2013, o ente público deverá instaurar um processo administrativo para apurar o fato e ajuizar uma ação contra a pessoa jurídica infratora.
Iniciando pelo processo administrativo, os artigos 8º, 9º e 10 conferem à Administração Pública lesada ou ao órgão competente (que deverá estar previsto no decreto regulamentador de cada ente federativo) a competência para instaurar o processo contra as pessoas jurídicas infratoras. No caso da Administração Pública Federal, além da entidade em face da qual foi praticado o ato lesivo, terá também competência a Controladoria Geral da União (CGU), isto é, tanto esta quanto aquela poderá instaurar o processo administrativo, salvo se uma ou outra já tiver instaurado. Ademais, caso a entidade lesada tenha instaurado o processo e esteja agindo com desídia, negligência ou dolo, poderá a CGU avocar o processo para examiná-los e corrigi-los, garantindo-se assim a devida responsabilização e punição dos infratores.
As penas do processo administrativo estão previstas no artigo 6º, que poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. São elas: (i) multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, ou quando não for possível sua estimação, será de R$ 6.000,00 (seis mil) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões), jamais podendo ser inferior a vantagem auferida; (ii) publicação extraordinária da decisão condenatória, que será nas forma de extrato de sentença e deverá ser publicado em meio de comunicação de grande circulação, além de ser afixado no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade e publicada também em seu sítio eletrônico.
A respeito da multa, vale mencionar que sua aplicação em nada impede que também seja aplicada a multa civil prevista no artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa, pois além de ser previstas para diferentes instâncias (uma é multa administrativa e a outra é multa civil), a base de cálculo também é distinta. Além disso, de maneira acertada, o legislador previu que a pena de multa será aplicada levando em consideração o faturamento da empresa e não a natureza do ato em si, o que faz com que ela se dissocie do ato ilícito, criando um risco e desestimulo ainda maior para sua prática.
Ainda em relação à multa, o legislador estabeleceu alguns parâmetros objetivos no artigo 7º que deverão orientar a autoridade administrativa na fixação do seu valor. Assim, serão levados em consideração a gravidade da infração, a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator, a consumação ou não da infração, o grau de lesão ou perigo de lesão, a dimensão econômica dos contratos, a cooperação da pessoa jurídica para a apuração dos ilícitos, bem como a previsão de mecanismos internos de integridade, auditoria e incentivo à comunicação de irregularidades e aplicação efetiva de códigos de éticas e de conduta no âmbito interno da pessoa jurídica. No âmbito Federal, o Decreto nº 8420/2015 traz, nos artigos 17 a 23, os critérios que serão utilizados para fixação da multa, dando um maior detalhamento dos parâmetros que serão adotados pela autoridade administrativa. Assim, alguns parâmetros deverão ser levados em conta como o valor do contrato com a Administração Pública, a reincidência da conduta, a consumação ou não do ato, a realização de acordo de leniência, a existência de um bom programa de compliance, entre outros.
Ao final do processo administrativo, a autoridade máxima da pessoa jurídica lesada ou do órgão competente deverá fixar as sanções administrativas (cujo relatório é realizado por uma comissão por ele designada) e, em seguida, deverá se dar conhecimento ao Ministério Público para que apure eventuais delitos.
Finalmente, não podemos deixar de mencionar que a Lei nº 12.846/2013 traz a possibilidade de haver a desconsideração da personalidade jurídica no processo administrativo para que sejam aplicadas as sanções aos administradores e sócios-administradores. Isso ocorrerá sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, conforme consta no artigo 14 da Lei.
Por outro lado, na responsabilização judicial, quem terá a competência para ajuizar a ação será o ente público contra quem foi praticado o ato lesivo (União, estados, DF e municípios) ou o Ministério Público. Ademais, o procedimento adotado será o mesmo utilizado no rito da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85).
Apesar da omissão legal, Rafael Oliveira acrescenta que a legitimidade deve ser reconhecida também às entidades da Administração Indireta, tendo em vista a sua autonomia administrativa e o objetivo do legislador em proteger a Administração Pública, sem distinção.[19]
As sanções judiciais vêm previstas no artigo 19 da Lei nº 12.846/2013, sendo possível sua cumulação com as penalidades já vistas. São elas: (i) perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; (ii) suspensão ou interdição parcial de suas atividades; (iii) dissolução compulsória da pessoa jurídica; (iv) proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo Poder Público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.
Deve-se ressaltar que a dissolução da pessoa jurídica deve ser uma medida excepcional, ocorrendo somente quando restar comprovado ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos ou ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.
A Lei também traz, como efeito secundário da condenação, a reparação integral do dano causado. Essa reparação, conforme consta no artigo 37, §5º, da Constituição Federal, é imprescritível, podendo ser demandada a qualquer tempo pelo Poder Público. Entretanto, conforme acrescenta Ronaldo Pinheiro de Queiroz, a pessoa jurídica pode ser condenada em diversas esferas a ressarcir o dano (CP, art.91; CPP, arts.63,387,IV; Lei 8.429/92, artigos 12, I, II e III; Lei nº 8.443/92, art.19), mas o pagamento da quantia certa, na expressão monetária que alcance a reparação integral, somente ocorrerá uma vez, não podendo o Estado se valer de excesso de execução para viabilizar um enriquecimento sem causa.[20]
Outro ponto importante trazido pela Lei é a possibilidade de o Ministério Público, ao constatar que o ente público está sendo omisso e que não instaurou o processo para a responsabilização administrativa da pessoa jurídica, requerer a aplicação não apenas das sanções previstas no art. 19, mas também das punições administrativas elencadas no art. 6º.
Por fim, a novel legislação cria, no âmbito do Poder Executivo federal, o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), que reunirá e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base na Lei nº 12.846/2013. Também serão incluídas no CNEP as informações acerca de acordos de leniência celebrados (e seu eventual descumprimento), exceto se esse procedimento vier a causar prejuízo às investigações e ao processo administrativo.
Depois de decorrido o prazo previamente estabelecido no ato sancionador ou do cumprimento integral do acordo de leniência e da reparação do eventual dano causado, os registros das sanções e acordos de leniência serão excluídos, mediante solicitação do órgão ou entidade sancionadora.
6. Conclusão
A Lei nº 12.846/2013 representa um grande avanço legislativo no combate à corrupção e na defesa ética administrativa. Com sua publicação, o Brasil preenche uma lacuna que até então existia em nosso sistema jurídico, além de cumprir compromissos internacionais que exigiam uma legislação dessa magnitude.
A Lei Anticorrupção surge com o objetivo de colocar na zona de responsabilização as empresas corruptas, que, até sua edição, gozavam da liberdade de poderem praticar atos de corrupção e não serem responsabilizadas e punidas por isso. Portanto, surge com a pretensão de corrigir uma omissão ilógica e irracional de proteção ao corruptor.
Trata-se de um diploma moderno, que reconhece as dificuldades em se descobrir e punir os atos de corrupção praticados por pessoas jurídicas e, por isso, prevê mecanismos compatíveis e eficientes que se amoldam a essas dificuldades.
Assim, a Lei adota a responsabilidade objetiva pelos atos de corrupção causados por pessoas jurídicas e traz ferramentas compatíveis com o seu “modus operandi”, como o Acordo de Leniência e o Cadastro Nacional de Pessoas Punidas.
Enfim, enxergamos a Lei nº 12.846/2013 como um marco no combate à corrupção. Não só por preencher um vazio que existia em nosso ordenamento jurídico, mas também por trazer instrumentos importantes que são capazes de alterar radicalmente o comportamento e a visão que a iniciativa privada possuía da corrupção. Assim, a Lei Anticorrupção consegue provocar algo inédito em nossa sociedade, que vai muito além da responsabilização das pessoas jurídicas infratoras: ela promove a união do setor público e do setor privado em torno de um mesmo objetivo- por fim à corrupção.
Bibliografia
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SOUZA, Jorge Munhos; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (Org.). Lei Anticorrupção. Salvador: Juspodivm, 2015.
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 993.
[2] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 266
[3] Conforme se vê no julgado: STJ. REsp 1.122.177/MT, DJE 27/04/2011
[4] ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber. Interesses difusos e coletivos esquematizado. 4. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 714/715.
[5] Nesse sentido, várias são as dificuldades em se comprovar o elemento subjetivo da pessoa jurídica, isso porque ela é desprovida de sentimentos e assim não poderia externar os elementos caracterizadores do dolo tradicional, entendido como a vontade e consciência. Nesse sentido, passa a ser necessário averiguar o elemento subjetivo da pessoa física que agiu em nome da empresa.
[6] Conforme consta no art. 3º, §1º da Lei 12.846/2013: A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput.
[7] Nesse sentido prevê o artigo 30 da lei 12.846/2013: “A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de: I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992; II - atos ilícitos alcançados pela Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da Administração Pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC instituído pela Lei no 12.462, de 4 de agosto de 2011”.
[8] Art. 14. [...] §1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
[9] Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
[10] Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: [...] III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; [...] Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.
[11] FILHO, André Pimente. In: SOUZA, Jorge Munhos; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (Org.). Lei Anticorrupção. Salvador: Juspodivm, 2015. Pg. 78
[12] Vale dizer que não é necessário a demonstração de nenhum vinculo formal entre o agente e a pessoa jurídica, sendo suficiente a demonstração de um vínculo real.
[13] Entende-se por Direito Administrativo Sancionador o ramo do Direito Público que, por meio de sanções administrativas, exerce o ius puniendi estatal.
[14] Muitos juristas entendem (entre eles Pierangelli, Zafaroni, René Ariel Dotti, Luiz Regis Prado, Alberto Silva Franco, Fernando da Costa Tourinho Filho, Roberto Delmanto, LFG, entre outros) baseados na Teoria da Ficção Jurídica de Savigny, que não seria possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por serem desprovidas de consciência, vontade e finalidade (societas delinquere non potest). Meio Ambiente. Lei 9.605, 12.02.1998. In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (Coord.). Legislação Criminal Especial. São Paulo: RT, 2009, p. 691.
[15] PRADO, Franciso de Octavio Almeida. Improbidade Administrativa. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[16] FILHO, André Pimente. In: SOUZA, Jorge Munhos; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (Org.). Lei Anticorrupção. Salvador: Juspodivm, 2015. Pg.74/75
[17] PFAFFENZELLER, Bruna. No rastro da corrupção praticada por pessoas jurídicas: da lei 12.846/2013ao Projeto de Novo Código Penal. In: VITORELLI, Edilson (Org.). Temas atuais do Ministério Público Federal. Salvador: Juspodivm, 2015. Pg.889
[18] Isso não quer dizer que não haja conflitos entre elas, entretanto, nesse casos, deverá o aplicador do direito, sempre que possível, compatibilizá-las.
[19] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Sistema Brasileiro de Combate à Corrupção e a Lei 12.846/2013. In: NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa. 2 ed. São Paulo: Método, 2014. Página 246
[20] SOUZA, Jorge Munhos; QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro (Org.). Lei Anticorrupção. Salvador: Juspodivm, 2015. Pg.329
Advogado. Bacharel em Direito pela UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Edmilson Machado de Almeida. Análise da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 fev 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51369/analise-da-lei-anticorrupcao-lei-no-12-846-2013. Acesso em: 22 nov 2024.
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