RESUMO: O presente artigo propõe-se a analisar o artigo 165 A, da lei 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), que traz obrigatoriedade ao cidadão em realizar exame de alcoolemia, ou outros capazes de comprovar embriaguez. Por conta de vários casos, principalmente relacionados com resultado morte, a alteração da lei parecia inadiável. Neste contexto destacamos (e estudaremos) as situações de pessoas que negam-se a realizar os exames, agora obrigatórios, porém não encontram-se em situação de ebriedade. Em seguida, serão analisadas algumas práticas históricas de combate a bruxaria. Histórias condenadas e inaceitáveis, que podem ser comparadas com situações que vivenciamos nos dias de hoje, quando da aplicação da legislação estudada em determinados contextos.
Palavras-chave: Caça às Bruxas. Código de Trânsito Brasileiro. Nemo Tenetur Se Detegere. Princípio da Legalidade
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo tem por finalidade principal analisar a inobservância de princípios constitucionais, ao aplicar em determinadas situações práticas da legislação vigente no país, em relação a coibir conduta de pessoas que utilizam-se de álcool durante a condução de veículos automotores.
Este tema precisa ser analisado de forma a distinguir as situações passivas de sofrer intervenção pelo agente público, não restando qualquer crítica quando da aplicação das diversas sanções possíveis em detrimento daquele que conduz o veículo automotor sob o efeito de álcool ou substâncias análogas.
Nesse contexto, a crítica surgirá tão somente, em relação à punição ao indivíduo que não faz uso de substâncias proibidas, e que mesmo assim, poderá ser punido na esfera administrativa, e de forma severa, quando se opor a submeter-se a determinadas posturas.
Por derradeiro, far-se-á um comparativo entre aquele que “não colabora” com a autoridade de trânsito e o indivíduo que era acusado de bruxaria nas idades média e moderna, chegando-se a uma curiosa relação entre as duas situações, distante cronologicamente, porém próximas em relação a tirania suscetível de ser atribuída aos casos.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Dentro do estudo do Direito em vigor no Brasil, encontramos no texto Constitucional, mais precisamente no art. 5º inciso II, o que os doutrinadores chamam de princípio da legalidade.
Para Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, trata-se a lei de um instrumento garantidor da liberdade:
A Constituição de 1988, em seu art. 5º, II, traz incólume, assim, o princípio liberal de que somente em virtude de lei podem-se exigir obrigações dos cidadãos. Ao incorporar essa noção de lei, a Constituição brasileira torna explícita a intrínseca relação entre legalidade e liberdade. A lei é o instrumento que garante a liberdade.[1]
Nathalia Masson faz interessante análise sobre o instituto, ao entender que o indivíduo poderá se opor a uma lei, quando esta apresentar algum abuso, ainda que estas tenham sido dotadas das formalidades legais em sua produção.
Há que se dizer, porém, que a liberdade aqui em estudo exige mais do que unicamente o respeito formal ao processo legislativo na instituição dos comandos normativos: o conteúdo da lei há de ser compatível com os valores expressados pelo texto constitucional e, especialmente, não deve afrontar direitos fundamentais. Leis que sejam produto de um abusivo poder de legislar não serão legítimas, de forma que o indivíduo terá, diante delas, o mesmo direito de resistência que possui diante de ordens que não tenham sido fundamentadas em atos normativos válidos.[2] (grifo nosso)
Alexandre de Moraes faz menção a um objetivo deste princípio em evitar as arbitrariedades por parte do Estado:
Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei.[3] (grifo nosso)
Verificar-se-á nesse estudo, que em alguns casos, o Estado ao produzir determinadas leis, poderá sujeitar o cidadão a situações inaceitáveis perante o texto constitucional.
2.2 NEMO TENETUR SE DETEGERE
A expressão em latim que significa importante instituto de proteção ao direito do cidadão, possui embasamento no chamado Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos-1969):
Artigo 8. Garantias judiciais
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.[4]
Decorre deste direito outros tantos, trazendo entendimento de que ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo:
Consiste, grosso modo, na proibição de uso de qualquer medida de coerção ou intimidação ao investigado (ou acusado) em processo de caráter sancionatório para obtenção de uma confissão ou para que colabore em atos que possam ocasionar sua condenação.[5]
Nessa linha de pensamento corrobora o professor Eugênio Pacelli de Oliveira:
No Brasil, com a Constituição de 1988 (art. 5º, LXIII) e com o art. 8º, 1, do Pacto de San José da Costa Rica (Decreto nº 678/92), há regra expressa assegurando ao preso e ao acusado, em todas as fases do processo, o direito a permanecer calado. Embora não haja previsão expressa do direito à não autoincriminação, pode-se, contudo, extrair o princípio do sistema de garantias constitucionais.[6]
Embora seja de aplicação junto ao Processo Penal, o estudo deste princípio é bastante importante para o posicionamento aqui estudado, pois a omissão do autor submetido a fiscalização, pode ocorrer por intenção de não lhe atribuir prejuízo na persecução penal, trazendo porém, reflexos em âmbito administrativo.
Ainda sobre esta obrigação de agir contra si mesmo, Cesare Beccaria nos idos de 1764 já trazia interessante posicionamento:
Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião![7] (grifo nosso)
Dito isto, avancemos nosso estudo tratando do dispositivo legal que será alvo de análise por este trabalho.
2.3 RECUSA A PROCEDIMENTO PARA VERIFICAÇÃO DE ALCOOLEMIA
Em polêmica alteração ao Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997) o artigo 165-A, instituiu no ano de 2016, através da Lei 13.281, uma obrigatoriedade ao cidadão em submeter-se ao teste de bafômetro, exame clínico, ou outro procedimento semelhante:
Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.
Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.[8] (grifo nosso)
Claramente o texto da legislação nos traz uma obrigação ao cidadão que se apresenta submetido a vontade do agente público. Nesse sentido a recusa, independente da motivação, sujeitará às sanções administrativas, multa de valor excessivamente elevado, suspensão do direito de dirigir, entre outras.
Não se busca nesse breve estudo, críticas em relação a adoção de medidas que permitam diminuir o número de pessoas embriagadas guiando seus veículos em vias públicas de nosso país.
Sem dúvida as sanções administrativas são eficientes ferramentas para coibir as condutas antissociais desenvolvidas por determinadas pessoas, práticas prejudiciais contaminadas de uma série de problemas que vêm a trazer inúmeros transtornos para nossa sociedade.
2.4 A CAÇA ÀS BRUXAS
Prosseguindo o estudo, encontramos na obra de Penny le Couteur e Jay Burreson, de título Os Botões de Napoleão, interessante abordagem a respeito da “Caça ás Bruxas”:
De meados do século XIV até o fim do XVIII, um grupo de moléculas contribuiu para a desgraça de milhares de pessoas. Talvez nunca venhamos a saber exatamente quantas, em quase todos os países da Europa, foram queimadas na fogueira, enforcadas ou torturadas como bruxas durante esses séculos. As estimativas variam de 40 mil a milhões. Embora, entre os acusados de bruxaria, houvesse homens, mulheres e crianças, aristocratas, camponeses e clérigos, em geral os dedos eram apontados para as mulheres — sobretudo pobres e idosas. Propuseram-se muitas explicações para o fato de as mulheres terem se tornado as principais vítimas das ondas de histeria e delírio que ameaçaram populações inteiras durante centenas de anos.[9]
Estas práticas bastante conhecidas durante o estudo da história mundial, principalmente nos períodos da Idade Média e da Idade Moderna, foram praticamente rechaçadas dentro do convívio social contemporâneo.
Porém, a forma como eram executadas as perseguições e a maneira utilizada pelos perseguidores medievais servirá ao nosso estudo sobremaneira:
No auge da paranoia da caça às bruxas, de cerca de 1500 a 1650, quase não sobrou uma mulher viva em algumas aldeias da Suíça. Em certas regiões da Alemanha houve algumas aldeias cuja população inteira foi queimada na fogueira. Na Inglaterra e na Holanda, contudo, a perseguição frenética às bruxas nunca se tornou tão encarniçada como em outras partes da Europa. A tortura não era permitida sob as leis inglesas, embora suspeitos de bruxaria fossem submetidos à prova da água. Amarrada e jogada num poço, uma bruxa de verdade flutuava e era então resgatada e devidamente punida — por enforcamento. Caso afundasse e se afogasse, considerava-se que fora inocente da acusação de bruxaria — um consolo para a família, mas de pouca valia para a própria vítima.[10] (grifo nosso)
É nesse contexto que ampara-se nosso estudo, sendo aqui depositada as críticas a legislação em vigor em nosso país que obriga a realização de testes de alcoolemia, vindo a punir aquele que se nega a realizar o exame, independente da motivação.
Imagine-se alguém que não queira realizar o teste, mesmo sem ter consumido qualquer das substâncias proibidas, por receio das questões penais, por desinformação, ou por qualquer outro motivo (ter utilizado um antisséptico bucal).
Ainda dentro dessa hipótese, suponha-se que a autoridade policial, desconfiada do indivíduo, conduza essa pessoa a delegacia, a fim de realizar o flagrante delito. Por conta da falta de elementos comprobatórios em relação ao suposto crime, nada se comprova contra o indivíduo, vindo este a ser este inocentado na esfera criminal (após lavratura de flagrante, durante um processo, ou mesmo em fase pré-processual).
Dentro deste contexto questiona-se: O que restará da questão administrativa? As pesadas sanções existentes no Art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, imputar-se-ão ao acusado?
Por óbvio que a resposta será afirmativa, porém trata-se de decisão eivada de injustiça, assim como a morte das supostas “bruxas”. Ora, eram punidas (mortas), e o consolo para a família era o fato de que na verdade não se tratavam de praticantes de feitiçaria.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Punir alguém pela simples negativa de submeter-se ao exame não trata-se de medida razoável, principalmente pensando na hipótese de futura inocência em relação a questão criminal pela embriaguez.
Obrigar o cidadão a produzir uma prova, que poderá ser utilizada na esfera criminal, afasta-se da razoabilidade, princípio exigido nas condutas praticadas pelo Estado.
Esta obrigatoriedade, maquiada por uma obrigação administrativa, ultrapassa os limites aceitáveis em relação ao poder que é atribuído ao gestor, conflitando com as normas internacionais de Direitos Humanos.
O próprio Código de Trânsito Brasileiro deveria apresentar em seu texto, antídoto para o indivíduo que não teve comprovada sua condição de embriagado. Algo que não foi possível na abordagem medieval às bruxas, pois não se pode remediar a morte.
Não encontra-se durante o estudo da história, alguém que não se assombre com a injustiça praticada às pessoas acusadas de feitiçaria. Desta forma, verifica-se situação semelhante nos dias de hoje, vislumbrando-se a necessidade de correção do texto legal, para que se obtenha um razoável consenso de justiça em relação aquelas pessoas que não praticam a conduta-alvo desse moderno e importante texto normativo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de trânsito brasileiro.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas – tradução: vicente sabino junior. São Paulo: Pillares, 2013.
LE COUTEUR, Penny. BURRESON, Jay. Os botões de Napoleão - Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges: Zahar, 2006.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito co
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.
Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969.
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
[1] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 849.
[2] MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 238.
[3] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 51.
[4] Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969.
[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 496.
[6] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 383.
[7] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas – tradução: vicente sabino junior. São Paulo: Pillares, 2013. p. 35 e 37.
[8] BRASIL. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 24 set. 1997. Disponível em: Acesso em 1º jun. 2018.
[9] LE COUTEUR, Penny. BURRESON, Jay. Os Botões de Napoleão - Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges: Zahar, 2006, p. 400.
[10] Idem.
Servidor Público do Estado do Paraná, Mestre em Ciência Jurídica - Universidade Estadual do Norte do Paraná, Especialista em Direitos Humanos e Cidadania - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Bacharel em Direito - Faculdade Estácio de Curitiba,
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Robyson Danilo. A obrigatoriedade de realizar exame de alcoolemia x caça às bruxas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51838/a-obrigatoriedade-de-realizar-exame-de-alcoolemia-x-caca-as-bruxas. Acesso em: 22 nov 2024.
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