Resumo: O presente trabalho visa a estudar a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, dando ênfase à sua aplicação no processo do trabalho e os problemas que foram enfrentados pela ausência de regulamentação específica na sua operacionalização. Para tanto, após uma breve exposição da essência e características da pessoa jurídica e sua personalidade, analisar-se-á o instituto da desconsideração. Será abordado o seu surgimento e história, tanto no mundo como no Brasil, a fim de possibilitar a compreensão dos motivos de sua criação, bem como o porquê de sua consolidação no direito moderno. Por derradeiro, será analisado o novel incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sua compatibilidade e aplicabilidade no âmbito trabalhista.
Palavras-chave: Desconsideração. Pessoa jurídica. Processo do trabalho. Justiça do trabalho. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Sumário: 1. Introdução; 2. A pessoa jurídica e suas características; 3. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica; 3.1. Origem e evolução; 3.2. A disseminação da doutrina no Brasil; 4. Aspectos gerais sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Processo do Trabalho; 4.1. Código Civil 4.2. Código Tributário Nacional 4.3. Código de Defesa do Consumidor 5. Problemas enfrentados pela ausência de normas processuais para regular a aplicação do instituto 6. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica; 7. A aplicabilidade no Processo do Trabalho; 8. Conclusão; Referências.
1. Introdução
Um dos maiores problemas enfrentados pelo Poder Judiciário na atualidade é garantir a plena eficácia da prestação jurisdicional. É comum se ter notícia de sentenças que, por um motivo ou outro, se tornam simples pedaços de papel, incapazes de prover os comandos emanados em seus bojos.
Justamente por esse motivo, jurisprudência e doutrina buscam incessantemente novos meios aptos a conferir às decisões judiciais os efeitos esperados. Grandes são as inovações com esse intuito, algumas não exercem qualquer resultado prático, outras funcionam tão bem que acabam virando lei.
Nas condenações de cunho patrimonial, em que a parte sucumbente deve ressarcir o vencedor materialmente, dispondo de parcela de seu patrimônio para tal, mostra-se costumaz a prática de artifícios obscuros para escondê-lo. Da transferência a terceiros de bens saudáveis, capazes de quitar o débito judicialmente reconhecido, à simulação de situações que possam evitar a constrição ou expropriação, muitas manobras são utilizadas por aqueles que, agindo de má-fé, pretendem resistir à execução judicial.
Um dos comportamentos fraudulentos mais constatados na prática trabalhista é a tentativa de utilização da personalidade jurídica de forma abusiva, em que os sócios utilizam-se da inerente independência patrimonial da pessoa jurídica na tentativa de dívidas contraídas junto a seus empregados.
É por esse motivo que o levantamento do “véu” patrimonial da pessoa jurídica na seara laboral é o objeto do presente trabalho, já que, apesar de maciçamente difundido na prática, foi durante anos negligenciado pelo legislador e até mesmo pela doutrina especializada.
Assim sendo, serão abordados aqui os aspectos gerais e as variadas facetas em que esta figura se apresenta, dando enfoque especial à sua utilização na Justiça do Trabalho, onde, apesar da significância, não possuía qualquer previsão legal de utilização até a edição da Lei n. 13.467/17. Nesse passo, serão analisados os posicionamentos conflitantes acerca da forma de sua utilização, bem como a profunda revolução causada pela criação do instituto do incidente de desconsideração da personalidade jurídica pelo Código de Processo Civil de 2015.
Para tanto, serão analisados os mais diversos entendimentos das principais Cortes Trabalhistas do país, além do posicionamento dos nomes mais importantes do Direito do Trabalho nacional, sem, contudo, olvidar do Direito Comparado, a fim de se dar consistência à tese sob defesa.
2. A pessoa jurídica e suas características
Não há como se estudar a desconsideração da personalidade jurídica sem antes estudar-se a própria pessoa jurídica e as características da personalidade que lhe é conferida.
A ideia de pessoas se juntarem para formar um ente com personalidade jurídica própria não é nova. O Código de Hamburabi, um dos mais antigos diplomas legais de que se tem notícia, já previa as chamadas “sociedades”; os romanos, por sua vez, admitiam a existência de órgãos colegiados criados para determinados fins; não se esquecendo das companhias comerciais da era da expansão marítima, como a famigerada Companhia das Índias Ocidentais, criada pelos holandeses.
Existem várias teorias para definir a natureza das pessoas jurídicas. Atualmente, a mais aceita é a de que a pessoa jurídica é considerada uma ficção, ou seja, um ente que não possui existência real, mas tão somente jurídica, justificando-se sua criação como forma de simplificar determinadas relações sociais. Assim, pode-se apresentar, por exemplo, como uma sociedade de pessoas que se juntam com o objetivo de obter lucros, as chamadas sociedades empresárias, ou como um patrimônio destinado a determinado fim, como são as fundações.
São, então, requisitos para a existência da pessoa jurídica a organização de pessoas ou bens, a licitude de propósitos e capacidade reconhecida por norma.
Muito embora possuam essa existência virtual, a lei confere-lhes personalidade jurídica e, em decorrência disso, capacidade para praticar os mais diversos atos jurídicos, salvo aqueles vedados expressamente pelo próprio ordenamento e os exclusivos das pessoas físicas. Ressalte-se, ainda, que tal personalidade nasce a partir do momento do registro dos atos constitutivos atinentes a cada espécie de pessoa jurídica.
O festejado Fabio Ulhoa Coelho[1] ao tratar dessa personalização, estabelece três consequências básicas que dela decorrem, in verbis:
“a) Titularidade negocial – quando a sociedade empresarial realiza negócio jurídicos (compra matéria prima, celebra contrato de trabalho, aceita duplicata etc.), embora ela o faça necessariamente pelas mãos de seu representante, é ela, pessoa jurídica, como sujeito de direito autônomo, personalizado, que assume um dos pólos da relação negocial. O eventual sócio que a representou não é parte do negócio, mas sim a sociedade.
b) Titularidade processual – a pessoa jurídica pode demandar e ser demanda em juízo; tem capacidade para ser parte processual. A ação referente a negócio da sociedade deve ser endereçada contra a pessoa jurídica e não os seus sócios ou seu representante legal. Quem outorga mandato judicial, recebe citação, é ela como sujeito de direito autônomo.
c) Responsabilidade Patrimonial – em conseqüência, ainda, de sua personalização, a sociedade terá patrimônio próprio, seus, inconfundível e incomunicável com o patrimônio individual de cada um de seus sócios. Sujeito de direito personalizado autônomo, a pessoa jurídica responderá com o seu patrimônio pelas obrigações que assumir. Os sócios, em regra, não responderão pelas obrigações da sociedade. Somente em hipóteses excepcionais, que serão examinadas a seu tempo, poderá ser responsabilizado o sócio pelas obrigações da sociedade. (original sem grifos)”
Nota-se, de forma cristalina, que, em razão da personalidade que lhe é conferida, a pessoa jurídica distingue-se por total das pessoas físicas que a integram. São, portanto, pessoas inconfundíveis e independentes, autônomas sob os mais diversos prismas analisados.
Das três características acima entabuladas, a que mais interessa para o desenvolvimento desse estudo é a responsabilidade patrimonial. O patrimônio da pessoa jurídica é completamente distinto dos de sócios, respondendo, a princípio, de forma exclusiva pelas obrigações assumidas por aquela. A regra é incomunicabilidade dos patrimônios, admitindo-se, em casos pontuais, o alcance do conjunto de bens das pessoas que compõe a pessoa jurídica, o que ocorre quando da desconsideração de sua personalidade.
Destarte, tem-se que a personalidade da pessoa jurídica é capacidade conferida por lei para esta praticar atos jurídicos e contrair obrigações, o que repercute em sua aptidão para realizar negócios em nome próprio, demandar e ser demandada judicialmente e possuir autonomia patrimonial, mesmo sendo um ente fictício, que a age de acordo com a vontade das pessoas físicas que a administram.
3. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica
A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto do direito utilizado nas hipóteses de abuso da personalidade jurídica, ou seja, quando os responsáveis pela pessoa jurídica tiram proveito de sua independência e incomunicabilidade patrimonial para cometer fraudes, lesando seus credores, consumidores e não cumprindo devidamente as obrigações fiscais e trabalhistas. Nestes casos, admite-se, sob certas condições, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, que possui o condão de ultrapassar a barreira patrimonial natural da pessoa jurídica e atingir o patrimônio de seus sócios e/ou administradores, sejam eles pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas.
Há de se ressaltar que comumente é utilizada a expressão “despersonalização da pessoa jurídica” para designar este instituto, o que deve ser evitado. Explica-se: ao se falar em despersonalização entende-se pela desconstituição da personalidade jurídica, o que não acontece, eis que esta é apenas relevada para se chegar ao patrimônio de seus responsáveis.
Traçadas essas linhas iniciais, cabe agora o aprofundamento no estudo deste tema, analisando-se sua origem, evolução e manifestação nos mais diversos ramos do Direito.
3.1 Origem e evolução
As primeiras notícias da utilização da desconsideração da personalidade jurídica vêm dos países que têm seus sistemas jurídicos baseados no direito consuetudinário, o “common law”, em que os costumes constituem-se como a principal fonte do direito, decidindo o juiz com base na equidade e nos princípios gerais do direito, mormente a boa-fé.
Segundo Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas[2], a primeira utilização registrada deste instituto deu-se em no ano de 1809 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. No julgamento do caso “Bank of the United States vs. Deveneaux”, o relator, Juiz Marshal, entendeu que para solucionar celeuma relativa a competência e jurisdição, devia-se levar em consideração a origem dos indivíduos que participavam sociedade. Note-se que o cenário da primeira aplicação da doutrina foi bem diferente dos que são vislumbrados atualmente, mas que, ao se considerar condições pessoais dos membros da pessoa jurídica, a personalidade jurídica foi efetivamente desconsiderada.
Apesar de relatos de que tal decisão foi duramente repudiada por boa parte dos doutrinadores da época, não há como se contestar que foi um marco na história do Direito, servindo de inspiração para o desenvolvimento e consolidação da doutrina da desconsideração.
Outro acontecimento que merece destaque ocorreu em 1897 na Inglaterra, no julgamento de Salomon vs. Salomon & Co. Ltd., apreciado pela Câmara dos Lordes (House of Lords).
De acordo com os ensinamentos do professor Alexandre Couto[3], a Salomon & Co. Ltd. foi constituída por um comerciante de nome Aaron Salomon em conjunto com outros membros de sua família, o qual resguardou para si a maioria absoluta do capital, ao passo que o restante dos integrantes só detinha uma ação cada, uma verdadeira sociedade fictícia. Com o controle acionário, Salomon constituiu um grande crédito preferencial para ele próprio, o qual, segundo as normas vigentes, teria preferencia sobre qualquer outro débito da companhia.
Após algum tempo de atividade, a empresa passou a enfrentar sérias dificuldades, entrando em liquidação um ano após o início dessa crise. Na liquidação, figura que estava para o direito britânico daquela época como a falência está para o nosso atual ordenamento jurídico, foi onde constatou-se que com o pagamento dos créditos preferenciais de Aaron nada sobraria para se quitar as obrigações assumidas com os credores quirografários.
Vislumbrada essa situação, o liquidante – cargo semelhante ao do administrador judicial –, em defesa dos credores quirografários, sustentou que a atividade da companhia confundia-se com a atividade pessoal de Aaron Salomon, havendo, por certo, um manifesto abuso cometido por este no controle daquela, pleiteando, dessa forma, a sua condenação para que só recebesse seus créditos após a satisfação dos direitos dos credores quirografários.
O pedido do liquidante foi deferido pelo Juízo e a Corte de Apelações, sendo, contudo, reformado pela Câmara dos Lordes, que decidiu pela legitimação da conduta de Aaron, sob fundamento de que o objetivo da sociedade não era o de servir de agente para os atos dos sócios, privilegiando as formalidades em detrimento das situações fáticas.
O precedente aberto, todavia, difundiu de uma vez por todas a desconsideração da personalidade jurídica, originalmente “disregard of legal entity”, que expandiu-se para outros países europeus de reconhecida reputação nos estudos jurídicos, como a Alemanha (“durchrigft der juristischen Person”), Itália (“superamento della personalità giuridica”), Espanha (“teoría de la penetración”) e Portugal.
Na evolução da doutrina, três nomes merecem destaque: o do norte-americano Maurice Wormser, o do alemão Rolf Serik e o do italiano Pierro Verrucoli. As pesquisas de de todos eles foram de suma importância para a atualização do instituto, bem como de sua delimitação e conceituação, elevando-o de um entendimento bastante minoritário a uma unanimidade no mundo jurídico. Conforme pesquisa realizada por Ticiana Benevides Xavier Correi[4], as principais obras dos mencionados juristas que revolucionaram os estudos sobre a desconsideração da personalidade jurídica são: “Disregard of corporate fiction and allied corporation problems”; “Forma e realtà dellla persona giuridica”; e “Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella ´common law´ e nella ´civil law”, respectivamente.
3.2 A disseminação da doutrina no Brasil
Em 1919, com a criação no Brasil da Sociedade por Quota de Responsabilidade Limitada, o número de empresas formais passou a crescer de forma exponencial, haja vista que essa espécie de sociedade possuía constituição bem mais informal do que as Sociedade Anônimas. A principal característica dessas sociedades é a limitação da responsabilidade do sócio ao valor do capital investido, existindo, como nas demais pessoas jurídicas, a natural resguarda do patrimônio de seus integrantes.
Essa explosão de novas sociedades trouxe diversas consequências, algumas benéficas, outras preocupantes. Se por um lado evidenciou-se um aquecimento econômico, por outro mostrou-se como a perfeita oportunidade para pessoas desonestas utilizarem-se de empresas para aplicar as mais diversas fraudes, o que, consequentemente, veio a ocasionar diversas demandas judiciais.
Tendo em vista a inexistência de normas legais que visassem coibir o cometimento desses atos ilícitos, tampouco de doutrina nacional a esse respeito, os julgadores viram-se obrigados a recorrer à doutrina estrangeira para solucionar tais casos, sobretudo a europeia. Todavia, durante muito tempo o “levantamento do véu patrimonial” das pessoas jurídicas foi um tabu no Brasil, a maioria esmagadora das decisões entendia pela incomunicabilidade absoluta entre o patrimônio da sociedade e o de seus sócios.
Todavia, um fato foi determinante para o desenvolvimento do pensamento da desconsideração no país: a conferência denominada “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, ministrada pelo jurista paranaense Rubens Requião, a qual foi posteriormente incluída como capítulo de sua obra “ASPECTOS MODERNOS DE DIREITO COMERCIAL”.
Os estudos do mestre Requião foram desenvolvidos com o intuito de adequar a doutrina da desconsideração à realidade brasileira, levando em consideração as especificidades do nosso ordenamento jurídico e da nossa sociedade. A partir de sua obra, o instituto ganhou força e começou a ter espaço nos nossos tribunais, que passaram a vislumbrar a necessidade de um provimento jurisdicional mais voltado aos anseios sociais e menos dogmáticos.
Todo esse cenário favorável foi importante para a positivação do instituto em nosso ordenamento jurídico. Isso se deu através da promulgação da Lei 6.404/76, que regulamenta a sociedades por ações. Em seu art. 117[5], o referido diploma legal elenca situações em que o acionista controlador responde pessoalmente por abusos cometidos na administração da sociedade.
Alguns anos mais tarde, a desconsideração da personalidade jurídica voltou a figurar em um texto legal, no Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90. Todavia, foi com o Novo Código Civil de 2002 que a doutrina consolidou-se completamente no Direito brasileiro, constando expressamente em seu texto, mais especificamente no art. 50.
4. Aspectos gerais sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Processo do Trabalho
O Direito do Trabalho, cuja natureza é essencialmente social, busca incessantemente a melhoria das condições de trabalho, sem, contudo, inviabilizar o desenvolvimento socioeconômico de um Estado. Para tanto, dispõe de um conjunto de normas que tem por escopo principal balancear a relação havida entre empregado e empregador, já que existe uma natural desigualdade decorrente da subordinação jurídica daquele a este, e, em decorrência disso, alguns maus empresários acabam coagindo seus empregados a dispor de alguns de seus principais direitos trabalhistas, utilizando-se do temor a sanções patronais ou até mesmo do desemprego.
Outra característica importante do Direito Laboral é a natureza dos créditos provenientes das sentenças trabalhistas, os quais, em sua maioria, possuem caráter alimentar, pois decorrem da inadimplência de verbas salariais. Por caráter alimentar, entenda-se que são valores percebidos pelo empregado para que possa prover seu próprio sustento e o de sua família, para que possa alimentar-se, daí a necessidade de sua mais rápida satisfação, já que a falta deles põe em risco não só a dignidade do trabalhador, mas sua própria existência.
Estas duas características básicas são capazes de deixar clara a essência especial do Processo do Trabalho, que, por isso mesmo, possui princípios e padrões próprios, não podendo jamais ser vinculada à frieza formalista que outrora regeu o Processo Civil. Por consequência, assim também deve ser encarada a execução trabalhista, que deverá utilizar-se de todos os meios possíveis para proporcionar a mais rápida satisfação do crédito exequendo.
Em razão da falta de regulamentação específica, os operadores do direito utilizam-se das mais diversas formas para justificar a aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho. Do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor, passando pelo Código Tributário Nacional, diversos diplomas legais são invocados como fundamento, seja através da analogia ou da subsidiariedade legalmente permitida. Passa-se a analisar cada uma delas.
4.1. Código Civil
Há quem defensa que a desconsideração da personalidade jurídica na seara trabalhista deve obedecer à disposição contida no Código Civil vigente. No art. 50 deste diploma, o legislador civil foi extremamente cauteloso quanto à possibilidade de aplicação da doutrina da desconsideração. Isso se torna claro quando se percebe o rol taxativo das hipóteses caracterizadas como de abuso da personalidade jurídica, que são: a) desvio de finalidade: o desvio de finalidade pode ser entendido como a utilização indevida ou destinação diversa dada à pessoa jurídica, distintas daquelas previstas em seus estatutos, divergindo dos fins sociais neles previstos. A forma mais corriqueira de desvio de finalidade é quando a sociedade é utilizada para atender a finalidades que em nada beneficiam a pessoa jurídica, mas tão somente seus sócios ou terceiros; b) confusão patrimonial: a confusão patrimonial, por sua vez, acontece quando se torna difícil diferenciar o patrimônio da empresa dos patrimônios de seus sócios, prejudicando, assim, a delimitação da responsabilidade. Acontece, por exemplo, quando o sócio utiliza sua conta bancária pessoal para realizar a movimentação financeira da sociedade, ou quando esta é extinta de forma irregular, dividindo-se aleatoriamente seu patrimônio entre os sócios.
Assim, para a Lei Comum, tem-se que o abuso da personalidade jurídica constitui espécie do abuso de direito a que se refere o disposto no art. 187, materializando-se quando a pessoa jurídica é utilizada para encobrir finalidades diversas do seu fim institucional ou quando ocorre confusão patrimonial entre a pessoa jurídica e a(s) pessoa(s) física(s) beneficiada(s).
Ressalte-se que apesar da objetividade da lei ao exigir a ocorrência dessas situações, não há a necessidade que elas ocorram de forma cumulativa, sendo bastante a comprovação de apenas uma delas para que se torne viável a decretação da desconsideração da personalidade jurídica.
Outra condição contida no dispositivo sob análise que visa evitar o uso indiscriminado do instituto nas demandas civis é a exigência de que sua aplicação seja necessariamente requerida por uma das partes ou pelo Ministério Público. Dessa forma, mesmo que o magistrado vislumbre a ocorrência das situações autorizadoras da desconsideração, não poderá declará-la de ofício, devendo sempre ser provocado. Isso, sem sombra de dúvidas, resulta numa considerável diminuição da utilização da disregard nas lides submetidas ao Código Civil.
Perceba-se que o alcance da aplicação de tal legislação é bastante extenso, já que há de surtir efeitos sobre grande parte das relações entre as sociedades empresárias e praticamente todas que envolvam as demais espécies de sociedades e pessoas jurídicas.
Com a devida vênia, não parece ser essa a forma de aplicação mais acertada. Apesar de o art. 8º da CLT admitir a aplicação da legislação comum na Justiça do Trabalho, o disposto no art. 50 do Código Civil não se coaduna com os princípios trabalhistas, haja vista que regula outra realidade: relações em que as partes gozam da mesma força. É justamente por essa paridade que nos termos do referido dispositivo a desconsideração da personalidade jurídica só pode haver “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”, condições restritivas que vão de encontro com os ideais do Direito do Trabalho, já que limitam fatalmente a aplicação da doutrina a essas duas situações, que não exaurem todas as possibilidades de abuso da personalidade jurídica.
Deve-se preferir, portanto, uma interpretação lógico-sistemática do dispositivo do §1º do art. 8º da CLT a uma meramente gramatical.
Assim, admitir a utilização do Código Civil para regular a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito laboral é colocar em risco a plena satisfação dos direitos trabalhistas e privilegiar a prática de ações empresariais condenáveis.
4.2. Código Tributário Nacional
O direito tributário, no que tange aos meios utilizados para a plena satisfação do crédito tributário, sempre se mostrou bastante inovador e flexível, o que é facilmente explicável pela implacável sede arrecadadora da Fazenda Pública. Como não poderia deixar de ser, a desconsideração da personalidade jurídica também não ficou de fora, já que as empresas são, sem sombra de dúvidas, as maiores arrecadadoras de impostos de todo o sistema tributário nacional.
Assim, para se evitar que as pessoas jurídicas sejam utilizadas como empecilho à arrecadação de tributos, o legislador brasileiro inseriu no Código Tributário Nacional o art. 135, que versa[6]:
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatuto;
(...)
III - os diretores, gerentes ou representante de pessoa jurídica de direito privado;
A corrente jurisprudencial reinante sobre essa matéria é no sentido de que, por substituição, o sócio responsável pela administração e gerência de sociedade limitada é objetivamente responsável pela dívida fiscal, contemporânea ao seu gerenciamento ou administração, constituindo violação à lei o não recolhimento de dívida fiscal regularmente constituída e inscrita. [7]
Ademais, da redação do dispositivo acima transcrito, fica claro que a responsabilidade fica condicionada aos débitos decorrentes dos atos praticados com “excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatuto”. Dessa feita, não se trata de responsabilidade objetiva, mas subjetiva, restrita à constatação de tais situações. Não restam dúvidas de que este dispositivo do Código Tributário Nacional mostra-se como incontestável recepção da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica pelo referido diploma legal, já que admite a responsabilidade pessoal dos gestores das pessoas jurídicas.
Destaque-se, ainda, que, assim como o crédito trabalhista, o crédito tributário também possui natureza privilegiada, característica que lhe confere algumas prerrogativas especiais, como, por exemplo, a desnecessidade de se sujeitar “a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”, como dita o art. 187 do próprio Código Tributário Nacional. Por essa razão, a desconsideração da personalidade jurídica neste âmbito se apresenta de forma menos rígida, visto que quando a lei autoriza sua aplicação pela mera constatação de infração legal, abre um leque de inúmeras situações possíveis.
Nessa toada, forte é o posicionamento no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho deve obedecer o disposto no art. 135, III, do Código Tributário Nacional. Os defensores dessa corrente justificam que a aplicação do referido dispositivo encontra fundamento na Lei de Execuções Fiscais (6.830/80), que tem sua aplicação admitida de forma subsidiária na execução trabalhista por força do art. 889 da CLT e assim estabelece no inciso V de seu art. 4º:
Art. 4º - A execução fiscal poderá ser promovida contra:
(...)
V - o responsável, nos termos da lei, por dívidas, tributárias ou não, de pessoas físicas ou pessoas jurídicas de direito privado;
(...)
Dessa forma, quando o inciso supra transcrito fala “nos termos da lei”, tem-se que ele está fazendo menção ao Código Tributário Nacional, que é a legislação que regula as obrigações fiscais.
A aplicação da legislação tributária para a desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho possui fundamentação legal válida e evidente compatibilidade principiológica, vez que, como já exposto neste trabalho, o crédito tributário, assim como o trabalhista, goza de alguns privilégios quando de sua execução judicial.
Dessa forma, não se vislumbra nenhum empecilho à aplicação do Código Tributário Nacional como fonte legal da utilização da desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista, desde que observados seus termos, que, apesar de vanguardistas, possuem claras limitações às pessoas físicas que serão responsabilizadas e às ações que autorizam a desconsideração, como já demonstrado.
4.3. Código de Defesa do Consumidor
A promulgação do Código de Defesa do Consumidor pode ser considerada como um dos fatos mais relevantes da história recente do país. As relações de consumo, até então, não possuíam a devida atenção legal que sempre ensejaram, ante a natural hipossuficiência dos consumidores, e necessitavam urgentemente de uma legislação forte, de caráter garantista e que pudesse efetivamente combater os abusos cometidos pelos prestadores de serviços e fornecedores de produtos.
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor veio dar essa indispensável proteção, ganhando a força de um verdadeiro microssistema legal, e sendo reconhecido "como lei moderna e tecnicamente adequada à realidade atual das relações de consumo" segundo Nelson Nery Júnior[8], vez que, além de proteger as relações de consumo, consegue ao mesmo tempo propiciar o pleno desenvolvimento da atividade empresarial.
Esse moderno e eficaz diploma legal não poderia deixar de privilegiar a doutrina da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, que goza das mesmas características e se adapta como uma luva à proteção almejada pelo Código de Defesa do Consumidor. Há quem diga, inclusive, que este foi o precursor da doutrina no ordenamento jurídico nacional, desprezando as disposições da Lei das Sociedades Anônimas e do Código Tributário Nacional. Explique-se: anteriormente, nenhuma outra legislação havia utilizado a expressão “desconsiderar a personalidade jurídica”, o que só veio a ocorrer com o código consumerista, que em seu art. 28 dispõe[9]:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
(...)
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Note-se que o legislador foi incisivo ao deixar claro que estava adotando a doutrina da desconsideração, tanto é que a seção do capítulo onde inclui-se o referido artigo denomina-se “Da Desconsideração da Personalidade Jurídica”.
Todavia, faz-se necessária uma análise mais complexa acerca da desconsideração regulada pelo Código de Defesa do Consumidor. A interpretação literal do dispositivo legal supra colacionado é suficiente para se constatar que sua utilização nesta seara é admitida de forma bem mais ampla do que nas habituais relações privadas, reguladas pelo Código Civil. Além do abuso de direito, do excesso de poder, da infração da lei, do cometimento de fato ou ato ilícito e da violação dos estatutos ou contrato social, é possível desconsiderar-se a personalidade jurídica também quando da falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Por fim, o legislador ainda incluiu o parágrafo 5º a tal artigo, autorizando a utilização da doutrina da disregard sempre que a personalidade jurídica constituir-se como “obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
Toda essa flexibilidade permissiva justifica-se pela natureza das relações de consumo que, como já dito, apresentam habitualmente uma parte hipossuficiente, o consumidor, que se submete à superioridade econômica dos empresários. Assim, para tornar essas relações mais igualitárias, a legislação consumerista estabelece normas de caráter protecionista, como a utilização da desconsideração da personalidade jurídica de forma mais ampla.
Destaque-se, finalmente, que essa disparidade existente entre as partes aproxima as relações de consumo das relações de trabalho, visto que nestas o trabalhador também não dispõe dos mesmos recursos que goza o patrão, necessitando também da proteção estatal para poder relacionar-se de forma equitativa, pressupondo-se, pois, que no âmbito trabalhista a desconsideração da personalidade jurídica deve ser utilizada nas mais variadas hipóteses.
Nessa toada, deve-se destacar que as duas searas comungam de princípios e sistemática semelhantes, motivo pelo qual algumas normas de um, por diversas vezes, acabam se inspirando em inovações contidas nas do outro. É por esses motivos e com a autorização legal dos arts. 8º e 769 da CLT que cresce cada vez mais o número dos que defendem a aplicação do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor na execução trabalhista.
A lei consumerista não se limitou a dispor um mero rol taxativo, elencou algumas ocasiões e deixou a porta aberta para subsunção de diversas outras ao utilizar expressões como “infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos”.
Abarca também os casos de decretação de falência, que ocorre com grande frequência e que em outros tempos culminava na frustração da satisfação dos créditos trabalhistas, já que não é raro que o Juízo Falimentar não surta os resultados esperados.
Dessa maneira, vislumbra-se na utilização do Código de Defesa do Consumidor a fonte de direito material mais adequada para se fundamentar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho e, sobretudo, de atender aos anseios de efetividade e celeridade da satisfação do crédito alimentar trabalhista.
5. Problemas enfrentados pela ausência de normas processuais para regular a aplicação do instituto
Definida a norma de direito material utilizável, surgia, ainda, mais um problema: como operacionalizar a desconsideração da personalidade jurídica?
Apesar da grande utilização, não havia nenhuma regulamentação específica para o uso deste procedimento dentro da relação processual, o que acarretava na sua aplicação sem qualquer tipo de uniformidade. Essa variedade de procedimentos gerava, inegavelmente, insegurança jurídica para as partes e confusão para os advogados – que eram obrigados a se adequar ao entendimento de cada Juízo –, além de uma desnecessária demanda para as instâncias superiores, que eram acionadas para resolver conflitos de entendimentos acerca do tema.
Eram comuns as alegações de ofensas ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, mormente em razão de constrições abruptas e inesperadas dos patrimônios dos sócios.
Tentando amenizar esse problema, a Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho enviou recomendação às Corregedorias Regionais acerca da sequência de atos executórios que deve ser seguida, nos seguintes termos[10]:
(...)
R E S O L V E:
RECOMENDAR às Corregedorias dos Tribunais Regionais do Trabalho que orientem os Juízes de Execução a adotarem a seguinte estrutura mínima e sequencial de atos de execução, antes do arquivamento dos autos:
a) citação do executado;
b) bloqueio de valores do executado via BACEN-JUD;
c) desconsideração da personalidade jurídica da empresa executada, nos termos dos artigos 79 e 80 da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho;”
(…)
Ocorre que, ainda assim, vários Juízos Trabalhistas insistiam em avançar ao patrimônio dos responsáveis pela pessoa jurídica sem qualquer possibilidade manifestação prévia, muitas vezes sob a frágil justificativa de que a necessidade de celeridade e efetividade da execução do crédito trabalhista justificaria a relativização de direitos fundamentais do executado. Assim, preenchidos os requisitos previstos na lei material, a execução era direcionada aos sócios sem qualquer tipo de contraditório.
A defesa acontecia de forma posterior, após a constrição dos seus bens, através de embargos à execução ou até mesmo embargos de terceiro.
A constatação de várias situações temerárias, em que a execução inadvertida e ilimitada do patrimônio pessoal dos sócios causava constrangimentos e prejuízos muitas vezes irreparáveis, fez com que a regulação do procedimento para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica fosse uma das pautas do Projeto do Novo Código de Processo Civil.
Isso ficou evidente na Exposição de Motivos[11] do aludido diploma legal:
Esta Exposição de Motivos obedece à ordem dos objetivos acima alistados.
1) A necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual. Por outro lado, muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que prevêem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou “às avessas”.
Nota-se, portanto, que era urgente a ação do legislador para pacificar o tema, diante do caos constatado na prática.
6. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica
O Novo Código de Processo Civil instituiu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como uma espécie de intervenção de terceiros que é “cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial”. Como o próprio nome sugere, o legislador atribuiu ao procedimento a natureza de incidente, e não de ação autônoma.
A principal razão da sua criação foi a premente necessidade de estabelecimento de um procedimento próprio para a desconsideração da personalidade jurídica, independentemente da fonte de direito material utilizada.
A seguir, uma apertada síntese desse procedimento, conforme os arts. 133 a 137 do Código de Processo Civil de 2015.
Cabe à parte ou ao Ministério Público a iniciativa do requerimento do incidente, oportunidade em que já deverá demonstrar o atendimento dos requisitos legais para seu acolhimento, sendo vedada a instauração de ofício pelo Magistrado. Recebido o requerimento, o processo ficará suspenso até a decisão do incidente.
Nessa hipótese, o distribuidor deve ser comunicado, a fim de proceder à inclusão do sócio no cadastro da demanda.
Em seguida, o sócio será citado para, no prazo de quinze dias, se manifestar e, eventualmente, produzir provas.
Concluída essa possibilidade de instrução, o incidente é resolvido através de decisão interlocutória.
Como se pode perceber, trata-se de um procedimento célere, simplificado e que observa os princípios do contraditório, da ampla defesa e a novel vedação à decisão surpresa (art. 9º do Código de Processo Civil). Sua adoção confere maior segurança jurídica à relação processual e evita situações abusivas.
Ressalte-se, por fim, que também há previsão legal de requerimento de desconsideração já na petição inicial, hipótese em que o incidente não será instaurado e o processo não será suspenso. Contudo, trata-se de situação excepcional, pois, na maioria das vezes, a necessidade de desconsideração só é constatada no curso da relação processual.
7. A aplicabilidade ao Processo do Trabalho
Com o advento do Novo Código de Processo Civil, muito se discutiu acerca da compatibilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com o Processo do Trabalho.
As primeiras impressões doutrinárias apontavam a incompatibilidade. Argumentava-se que, na execução trabalhista, em caso de omissão do texto consolidado, dever-se-ia, preferencialmente, aplicar a Lei dos Executivos Fiscais (Lei n. 6.830/80), e só se esta também fosse omissa é que seriam aplicáveis as regras do Código de Processo Civil.
Outros defendiam a inaplicabilidade em razão do filtro axiológico contido no art. 769 da CLT, que exige, para fins de aplicação subsidiária de norma do direito processual comum, a compatibilidade com as regras e princípios do Processo do Trabalho. Segundo essa corrente, o incidente prejudicaria a celeridade e a oralidade inerentes ao Processo do Trabalho, bem como dificultaria a efetividade da execução.
A primeira tese mostrou-se nitidamente inadequada. A Lei n. 6.830/80 não estabelece regras procedimentais para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, mas apenas dispõe acerca da possibilidade de se direcionar a execução fiscal às pessoas físicas responsáveis pelas jurídicas, conforme se percebe em seu art. 4º, §3º, que já foi analisado neste trabalho.
Em relação à segunda, é feita uma análise isolada do Processo do Trabalho, totalmente dissociada da sistematicidade do ordenamento jurídico atual, mormente à luz da Constituição da República. Não se pode simplesmente ignorar direitos fundamentais, caros à sociedade, sob o argumento da necessidade de celeridade e oralidade. Os fins não justificam os meios.
Além disso, como visto no capítulo anterior, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica, além de garantir o contraditório e a ampla defesa dos sócios, é manifestamente informal e célere. O simples fato de se suspender o processo não modifica essa constatação, tendo em vista a pequena quantidade de atos processuais necessários à decisão. Não se pode olvidar, ademais, da possibilidade de, apenas situações justificáveis, utilizar-se da tutela de urgência prevista no art. 301 do Código de Processo Civil, a fim de garantir o resultado útil do processo e postergar o exercício do contraditório para depois do ato cautelar/constritivo.
Nesse sentido, inclusive, o Tribunal Superior do Trabalho posicionou-se através da Instrução Normativa n. 39/16:
Art. 6°. Aplica-se ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137), assegurada a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução (CLT, art. 878).
§ 1º Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente:
I – na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do art. 893, § 1º da CLT;
II – na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo;
III – cabe agravo interno se proferida pelo Relator, em incidente instaurado originariamente no tribunal (CPC, art. 932, inciso VI).
§2º. A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 do CPC.
Nota-se que o Tribunal Superior do Trabalho, ao admitir essa possibilidade, realizou algumas adequações, a fim de compatibilizar o procedimento com as particularidades do Processo do Trabalho.
Para arrebatar, a Lei 13.467/17, a famigerada Reforma Trabalhista, inseriu o art. 855 à CLT, que praticamente copiou o texto da instrução da Corte Superior Trabalhista. Restou suprimida, no entanto, a possibilidade de instauração de ofício na fase de execução, em razão da alteração da redação do art. 878 da CLT, que agora exige a iniciativa das partes para a promoção da execução – com exceção da situação em que o exequente se vale do jus postulandi. Perceba-se:
Art. 855-A. Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 1º. Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente: (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
I - na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do § 1o do art. 893 desta Consolidação; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
II - na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
III - cabe agravo interno se proferida pelo relator em incidente instaurado originariamente no tribunal.(Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 2º. A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Por consequência lógica, remanesce a possibilidade de instauração de ofício quando a parte não se encontra assistida por advogado.
Portanto, atualmente, resta superada qualquer discussão acerca da compatibilidade do incidente com o Processo do Trabalho, sendo necessária sua aplicação.
8. CONCLUSÃO
Diante do exposto, tem-se que a doutrina, ou instituto, da desconsideração da personalidade jurídica surgiu nos países que adotam o sistema jurídico do common law e evolução através do tempo, o que só foi possível em razão da inestimável contribuição de notáveis juristas das mais diversas nacionalidades. Ressaltou-se a jornada enfrentada pela doutrina no Brasil, onde, efetivamente introduzida por Rubens Requião, passou a ser figura comum nas decisões judiciais e, mais tarde, nas mais diferentes legislações.
Analisou-se, ainda, as peculiaridades das manifestações da desconsideração da personalidade jurídica nos ramos do direito em que é aplicada nacionalmente, discutindo-se sua abrangência e enfatizando sua importância atual, mormente no que se refere à conferência de eficácia às decisões judiciais. Para tanto, foram comparadas suas aparições na Lei das Sociedades Anônimas, no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Tributário nacional.
Esclarecidas as diversas formas de aplicação da doutrina da disregard no ordenamento jurídico pátrio, traçaram-se suas linhas gerais no âmbito da execução trabalhista, destacando-se a habitual aplicação e sua compatibilidade com os princípios processuais trabalhistas, fatores que a tornaram indispensável para essa espécie de processo judicial nos dias atuais. Ademais, foi abordada toda a problemática envolvendo em tal seara, avaliando-se as mais diversas formas de aplicação consequentes da falta de regulamentação específica, concluindo-se pela inaplicabilidade do disposto no Código Civil e pela possibilidade de aplicação dos termos do Código Tributário Nacional e do Código de Defesa do Consumidor, filiando-se à utilização deste último como melhor norma capaz de disciplinar a matéria atualmente no âmbito trabalhista.
Deu-se, também, enfoque aos problemas causados pela falta de uniformidade na aplicação da doutrina outrora existente, principalmente à insegurança jurídica causada, que põe em xeque a credibilidade da Justiça do Trabalho e causa inegáveis transtornos sociais. Além disso, destacou-se o problema da aplicação abusiva, que por diversas vezes simplesmente ignora a independência patrimonial da pessoa jurídica e passa à constrição do patrimônio de seus responsáveis sem qualquer fundamento, causando prejuízos muitas vezes irreversíveis através de ato arbitrário.
Por fim, mostrou-se que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Código de Processo Civil de 2015 é uma excelente ferramenta para possibilitar a aplicação racional do instituto. Por essa razão, sua utilização no Processo do Trabalho já era admitida pelo TST, e foi ratificada pela Lei n. 13.467/2017. Ao se possibilitar o prévio contraditório, possibilita-se que o cumprimento da sentença seja realizado de forma digna, respeitando o devido processo legal e o direito de defesa do executado, sem perder de vista a celeridade necessária à execução do crédito trabalhista.
REFERÊNCIAS
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[1] ULHOA COELHO, Fábio. Manual de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 15a. ed., 2004, p. 113
[2] FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsideração da personalidade jurídica: análise à luz do código de defesa do consumidor e do novo código civil. São Paulo: Atlas, 2002, apud FRARE, Allan Michel. Desconsideração da Personalidade Jurídica, 2008. Disponível em <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/30846/M%201000.pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em 04 abr 2018.
[3]SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999, p. 31, apud CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8589>. Acesso em: 4 abr 2018.
[4] CORREIA, Ticiana Benevides Xavier. A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1100, 6 jul. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8589>. Acesso em: 4 abr. 2018.
[6]BRASIL. Lei nº. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm >. Acesso em 02/04/18.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Julgamento do recurso especial nº. 33.731-1-MG. Relator: Ministro Milton Luiz Pereira. Disponível em <www.stj.jus.br>. Acesso em 02/04/18.
[8]JUNIOR, Nelson Nery. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentados pelos Autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 8ª ed. rev. ampl. e atual. 2004, p. 31.
[9]BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm >. Acesso em 02/04/18.
[10] BRASIL. TST, CGJT, Recomendação CGJT nº 001/2011. Disponível em <www.tst.jus.br>. Acesso em 13/04/18.
[11] SENADO FEDERAL. Código de processo civil e normas correlatas – 7. Ed. – Brasília : Coordenação de Edições Técnicas, 2015.
Bacharel em Direito. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Emanuel Holanda. A compatibilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com o Processo do Trabalho e a necessidade de sua aplicação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51862/a-compatibilidade-do-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica-com-o-processo-do-trabalho-e-a-necessidade-de-sua-aplicacao. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria D'Ajuda Pereira dos Santos
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