Resumo: O presente ensaio tem por escopo analisar, com a profundidade inerente de uma singela reflexão, o delito de uso de informação privilegiada, sob o prisma da regulação do mercado de capitais no direito brasileiro. Além disso, visa abordar as implicações legislativas e jurisprudenciais da matéria no âmbito do direito interno, em especial o artigo art. 27-D da Lei 6.385/1976, que a partir da edição da Lei 10.303/2001, passou a criminalizar a conduta do uso indevido de informação no mercado de capitais.
Palavras-chave: Crimes Corporativos; Responsabilidade Penal; Insider Trading; Mercado de Capitais
SUMÁRIO: 1. Considerações Iniciais; 2. Aspectos Importantes Sobre o Crime de Uso de Informação Privilegiada; 3. O Enfrentamento da Matéria pelos Tribunais Brasileiros; 4. Considerações Finais; 5. Referências Bibliográficas.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na sociedade atual, marcada pela globalização econômica, desenvolvimento tecnológico e estreitamento das relações socioeconômicas entre as nações, a expansão e desenvolvimento do mercado de capitais foram marcadas pela velocidade, fluidez e complexidade. Em meio a esse cenário de constante crescimento, novos meios de controle foram sendo adotados pelo Estado, tanto para proteger os investidores, quanto para monitorar o fluxo de capital e ampliar a transparência do mercado de valores, atraindo, assim, novos investimentos.
No entanto, apesar do esforço contínuo do aparato estatal em criar normativas que busquem fortalecer o mercado, fiscalizá-las e aplicar sanções em casos de descumprimento, sempre haverá indivíduos com acesso a informações relevantes que ainda não foram divulgadas aos demais investidores e ao público em geral e que, por esse motivo, encontrar-se-ão em posição indevidamente favorecida.
Sob este prisma, o presente trabalho busca tecer breves considerações acerca do delito de uso indevido de informação privilegiada (insider trading) previsto, no Brasil, no artigo 27-D, da Lei nº 6.385/76, assim como das implicações jurisprudenciais até então experimentadas em nosso país.
2. ASPECTOS IMPORTANTES SOBRE O CRIME DE USO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA
O mercado de capitais, como conceitua a Comissão de Valores Mobiliários, consiste em um sistema de distribuição de valores mobiliários que proporciona liquidez aos títulos de emissão de empresas e viabiliza o processo de capitalização (Cartilhas CVM). Integrado pelas bolsas de valores, sociedades corretoras e outras instituições financeiras autorizadas, o mercado de capitais é reconhecido por ser um dos principais impulsores da economia, sobretudo por seu papel de incrementar a eficácia do capital disponível.
Sob esse prisma, o Estado, atuando não mais como mero espectador das relações econômicas após a crise de 1929, passou a intervir nessa esfera, a fim de garantir o correto desenvolvimento do mercado de capitais, através de normas de organização e condutas relativas aos agentes operadores e ao funcionamento igualitário do próprio mercado. Uma dessas obrigações previstas em nossa legislação, importada das fiduciary duties do direito norte-americano (ZANINI, 1998), é o dever de guardar sigilo, inscrito no artigo 8º da Instrução CVM 358/2002:
“Cumpre aos acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, e empregados da companhia, guardar sigilo das informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar para que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam, respondendo solidariamente com estes na hipótese de descumprimento.”
O dever de sigilo objetiva resguardar certas informações de empresas que ainda não foram divulgadas abertamente no mercado. Isso representa extrema importância para o funcionamento do mercado de valores mobiliários, já que a posse de informação relevante ainda não publicizada, pode valer fortunas ou constituir enorme desvalorização de determinado ativo. Caso tais fatos sejam revelados de forma precoce, pode haver influência na cotação das ações da companhia, trazendo vantagens ilegítimas a quem negociou com base nessas informações detidas em detrimento dos demais participantes do mercado de capitais.
Dessa forma, o surgimento da preocupação com o uso indevido destas informações levou ao desenvolvimento de mecanismos jurídicos que visam impedir referida conduta, como por exemplo o crime de insider trading, previsto na legislação brasileira no art. 27-D da Lei 6.385/1976 (Lei do Mercado de Valores Imobiliários), acrescentado pela Lei 10.303/2001, com a seguinte redação:
Art. 27-D. Utilizar informação relevante, ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de proporcionar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.
O delito de insider trading, também conhecido como uso indevido de informação privilegiada, punido apenas a título de dolo, pois, consiste na utilização de informações relevantes sobre valores mobiliários, antes que tais informações sejam de conhecimento público. Percebe-se, de uma leitura do tipo penal, que para a consumação do crime é desnecessária a obtenção da vantagem ilícita por seu autor, caracterizando-se, pois, de delito formal. A exigência, portanto, diz respeito apenas a potencialidade de proporcionar qualquer vantagem, sem que seja necessária a real aquisição de lucro ou evitação de prejuízo (CORSETTI, 2013).
Em sentido semelhante, Helena Regina Lobo da Costa, Leonardo Alonso e Marina Pinhão Coelho, chegam à conclusão de que basta objetivar uma vantagem indevida, não sendo necessária a ocorrência de um resultado, conclusão alcançada “em decorrência da utilização pelo legislador do termo ‘capaz de propiciar’ vantagem indevida, tratando-se, dessa forma, de crime formal” (COSTA, et al, 2004).
Outrossim, o objeto material do delito, a informação privilegiada, deve ser precisa, concreta, factível e possível de ser verificada quanto a seu conteúdo. Não é toda e qualquer informação que pode ser rotulada como privilegiada, a fim de subsunção ao tipo penal. A própria Instrução CVM 358/2002, além de definir o conceito de informação relevante, arrola as características para ser considerada privilegiada:
a) caráter não público da informação;
b) capacidade para influenciar de maneira sensível o preço das ações; e
c) caráter concreto (preciso) da informação.
Sobre o bem jurídico tutelado, não há consenso da doutrina brasileira, tampouco na estrangeira, de qual seja. Todavia, é possível delimitar a transcendência da proteção deste tipo penal, destinado não apenas a proteger direitos individuais, mas sim interesses coletivos, representados pela confiança depositada no mercado e em seu bom funcionamento, que só pode ser alcançado pela igualdade de informações (EIZIRIK, 1983).
3. O ENFRENTAMENTO DA MATÉRIA PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS
No Brasil, mesmo após mais de 15 anos da existência do delito de insider trading na legislação interna, são raros os casos em que efetivamente houve investigação, processo ou até condenação de alguém pela prática do crime. Isso decorre, à primeira vista, da dificuldade em se perquirirem os requisitos objetivos necessários à configuração do tipo penal, como, por exemplo, a existência de informação, de fato, relevante; a precisa identificação desta; o dever de sigilo imposto ao sujeito ativo; a potencialidade de resultar em vantagem indevida; a utilização da informação, mediante negociação, com valores mobiliários; entre outros.
Nesse contexto, o primeiro caso de condenação por esse tipo de delito, e a primeira oportunidade em que uma Corte Superior brasileira se manifestou sobre o crime deu-se no case Sadia-Perdigão, cujo Recurso Especial foi julgado em 16.02.2016 (REsp nº 1.569.171-SP). Em resumo, o caso decorreu da Oferta Pública de Aquisição (OPA) da empresa Sadia pelo controle acionário da sua concorrente, a Perdigão, que se concretizou em 2009 com a segunda adquirindo a primeira, resultando no conglomerado “Brasil Foods”.
Naquela oportunidade, mais precisamente no ano de 2006, o ex-diretor de finanças e relações com investidores e o ex-conselheiro de administração da Sadia S.A., insiders – já que eram responsáveis pelo zelo e divulgação dos “fatos relevantes ao mercado” –, participaram das discussões e tratativas dessa negociação. Em posse de informações relevantes sobre as negociações de aquisição das ações da Sadia S.A. pela Perdigão S.A., ao invés de cumprirem com seus deveres de manter em sigilo, negociaram, valendo-se delas, com valores mobiliários, em duas ocasiões, antes que as empresas publicizassem a oferta de aquisições das ações de uma por outra, o que fez com que o valor das ações valorizasse em 21,22%.
O relator do processo no Superior Tribunal de Justiça, o ministro Gurgel de Faria, ressaltou que o insider participou das discussões, negociações e tratativas visando à elaboração da oferta pública de aquisição de ações da Perdigão, obtendo, em razão disso, informações relevantes e confidenciais sobre sua empresa, sobre as quais tinha o dever de manter em sigilo, conforme disposto no § 1º do artigo 155 da Lei n. 6.404/1976 e do artigo 2º da Instrução 358/2002 da CVM. Sendo assim, foi mantida a condenação das instâncias ordinárias, pelo crime de insider trading, à pena de 2 anos, 6 meses e 10 dias de reclusão, além do pagamento de multa no valor de R$ 349.711,53, para aquele que não teve a prescrição declarada.
Além disso, ficaram consignadas na decisão algumas importantes balizas que nortearão a interpretação do delito pelos operadores do direito brasileiros, bem como posteriores decisões acerca do tema. Dentre elas, destacamos as seguintes:
(i) O crime de insider trading é de natureza formal e de perigo abstrato e, portanto, independe de resultado;
(ii) Ainda que se trate de operação societária não concluída, a informação pode ser considerada relevante, mesmo na fase inicial de tratativas e negociação, e desde que ela seja capaz de influir na decisão de investimento;
Por conseguinte, vislumbra-se que o Superior Tribunal de Justiça, alinhado às tendências modernas de hermenêutica do crime de uso de informação privilegiada, a partir da condenação de insider de prestigiada empresa no cenário brasileiro, deu passo importante no sentido de ressaltar a relevância de garantir, os ideais de segurança e transparência das relações negociais, a higidez de um sistema jurídico eficaz no campo do mercado de capitais brasileiro.
Outro importante caso, este mais recente e amplamente divulgado pelas mídias, é o envolvendo os irmãos Wesley e Joesley Batista, donos dos Grupos J&F e da JBS. Eles são acusados pelo crime de uso de informação privilegiada e manipulação de mercado, em razão de, segundo a acusação, terem ordenado operações fraudulentas na bolsa de valores, como a venda e posterior recompra de ações da JBS S/A, para lucrar com suas delações premiadas, antes de a informação de que tinham delatado o presidente Michel Temer fosse divulgada publicamente. Atualmente, o processo tramita perante a 6º Vara Criminal Federal de São Paulo, tendo sido recebida a denúncia contra ambos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi possível observar deste ensaio, a título de uma singela nota conclusiva, foi no contexto de crescimento do risco nas diversas relações econômicas e do chamamento da intervenção estatal para controlar o mercado de forma mais profunda, que surgiu a tipificação do crime de insider trading, o qual visa coibir e prevenir, no âmbito criminal, o uso de informação privilegiada no mercado de capitais.
Desse modo, a imposição de uma tutela penal na repressão ao uso indevido de informação privilegiada no mercado de capitais deu-se justamente para assegurar a todos os investidores o direito à equidade da informação e igualdade de condições de acesso às informações relevantes do mercado, sem as quais perde-se sua essência, qual seja, a captação de recursos para as grandes empresas.
Ademais, muito embora o uso indevido de informações, no Brasil, seja criminalizado desde 2001, o primeiro caso julgado em definitivo em nosso país sobre o tema consiste no case Sadia-Perdigão, que teve pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça em fevereiro de 2016. Por isso, ainda que a Corte Superior tenha fixado importantes balizas para nortear a interpretação do delito, resta manifestação definitiva sobre a temática, sob a ótica da Constituição Federal, do Supremo Tribunal Federal, que possivelmente será instado a discorrer sobre o delito na famigerada ação penal envolvendo os irmãos Wesley e Joesley Batista.
4. REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.569.171/SP. Quinta Turma. Rel. Min. Gurgel de Faria. Julgado em 16/02/2016. Disponível aqui.
Cartilha Mercado de Capitais, CVM, Comissão de Valores Mobiliários. Disponível aqui.
CORSETTI, Michelangelo. Insider trading: Informação Privilegiada - o uso indevido no mercado de capitais. Curitiba: Juruá, 2013.
EIZIRIK, Nelson. “Insider Trading” e Responsabilidade de Administrador de Companhia Aberta. Revista de Direito Mercantil. São Paulo, v. 22, n. 50, p. 42-56, abril/jun., 1983.
Instrução CVM 358/2002. Disponível aqui.
Especialista em Direito Penal Empresarial pela PUCRS; Graduado com Láurea Acadêmica pela PUCRS; Advogado Criminalista e ex-assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GIACOMOLLI, Felipe Mrack. Reflexões sobre o crime de uso de informação privilegiada (insider trading) e o panorama brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51996/reflexoes-sobre-o-crime-de-uso-de-informacao-privilegiada-insider-trading-e-o-panorama-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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