RESUMO: O objetivo deste artigo é abordar se a Lei Complementar nº 109, de 2001, teria previsto a figura do patrimônio separado (técnica de segregação patrimonial), permitindo, assim, a ampla atuação dos órgãos de normatização, regulação e fiscalização sobre o tema, ou se é necessária alteração legislativa que possibilite a utilização dessa técnica de segregação patrimonial.
Palavras-chave: Entidades Fechadas de Previdência Complementar. Atuação dos órgãos de normatização, regulação e fiscalização. Técnica de segregação patrimonial. Necessidade de alteração da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001.
INTRODUÇÃO
O Regime de Previdência Complementar, previsto no artigo 202 da Constituição Federal é facultativo e de natureza privada, e é organizado de forma autônoma em relação ao regime geral e aos regimes próprios de previdência social e se baseia na constituição de reservas que garantam o benefício contratado. O legislador constituinte dividiu o sistema de previdência complementar em dois grupos bem definidos: as entidades fechadas e as entidades abertas, deixando no campo de atuação do legislador complementar a sua normatização. A Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, que revogou a Lei nº 6.435, de 15 de julho de 1977, normatiza, tal qual a lei revogada, todo o sistema de previdência privada nacional, classificando essas entidades sob dois aspectos: (i) conforme a relação entre elas (as entidades) e os participantes dos planos de benefícios ofertados, em entidades fechadas e entidades abertas (art. 4º) e (ii) conforme seus objetivos em entidades com fins lucrativos (caput do art. 36) e entidades sem fins lucrativos (§ 1º do art. 31).
As EFPC (conhecidas também como fundos de pensão) são, conforme o art. 31 da LC nº 109, de 2001, entidades sem fins lucrativos e acessíveis, exclusivamente, aos (i) empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (denominados patrocinadores) e (ii) aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial (denominadas instituidores). São reguladas pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar – CNPC e pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC.
Como órgãos de controle estatal, nos seus devidos papeis de normatização, regulação e fiscalização, visando o equilíbrio da relação entre os envolvidos, estão jungidos ao estrito cumprimento do disposto em lei, nos exatos termos do caput do art. 173 da Constituição Federal[1], faz-se mister avaliar se a disciplina da LC nº 109, de 2001, permite a utilização da figura da segregação patrimonial.
DESENVOLVIMENTO
Patrimônio de afetação pode ser entendido como sendo o patrimônio que é separado dos demais bens de um mesmo titular. O patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com a universalidade patrimonial atinente a cada um de seus sócios, independentemente do tipo de responsabilidade pelos negócios sociais a que se submetem[2]. Em outras palavras, é um conjunto de bens – móveis, imóveis, ativos patrimoniais – que não se misturam com os demais bens do seu titular, que os afetou a uma finalidade específica. É uma criação legal de nova universalidade de direito, de unidade autônoma, distinta de seus elementos, destinada à realização de determinado escopo que a unifica.
A principal decorrência da afetação patrimonial a uma finalidade específica é que apenas os credores relacionados a ela (finalidade) podem se tornar credores dos bens que integram o patrimônio de afetação para a satisfação de suas dívidas. Eis o fenômeno da blindagem patrimonial: pessoas estranhas aos negócios do patrimônio de afetação não podem executar os ativos que o integram para satisfazer seus créditos[3].
No tocante à segregação patrimonial prevista pela LC nº 109, de 2001, a doutrina apresenta as suas considerações gerais, não tecendo efetiva distinção com a afetação patrimonial[4]. Não obstante os posicionamentos doutrinários, a segregação patrimonial a que se refere o texto legal somente é explicitada no art. 31, § 3º e apenas se refere à terceirização da gestão dos recursos garantidores das reservas técnicas e provisões, ao tempo em que autoriza a contratação de instituição especializada. Eis o que expressamente prevê o dispositivo:
Art. 31. (...)
§ 2º As entidades fechadas constituídas por instituidores referidos no inciso II do caput deste artigo deverão, cumulativamente:
I - terceirizar a gestão dos recursos garantidores das reservas técnicas e provisões mediante a contratação de instituição especializada autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil ou outro órgão competente;
(...)
§ 3º Os responsáveis pela gestão dos recursos de que trata o inciso I do parágrafo anterior deverão manter segregados e totalmente isolados o seu patrimônio dos patrimônios do instituidor e da entidade fechada.
A previsão legal, portanto, limita o campo de atuação da EFPC no que pertine à utilização da técnica da segregação patrimonial. A sua ampliação, para além da previsão contida no § 3º do art. 31 da LC nº 109, de 2001, embora possa ser bastante salutar ao sistema[5], requer autorização legislativa.
Outrossim, extrai-se que o legislador complementar emanou uma ordem à EFPC, como gestora e não como titular de direitos e obrigações:
Art. 32. As entidades fechadas têm como objeto a administração e execução de planos de benefícios de natureza previdenciária.
Parágrafo único. É vedada às entidades fechadas a prestação de quaisquer serviços que não estejam no âmbito de seu objeto, observado o disposto no art. 76[6].
A lógica do sistema de previdência complementar é a captação de recursos dos beneficiários e dos patrocinadores (sociedades empresárias e entes da administração pública direta e indireta), investindo esses valores em ativos financeiros diversificados para preservação do valor do capital tomado.
Com isso, preserva-se o valor da moeda com riscos administrados e se torna possível arcar com as aposentadorias e pensões dos beneficiários. Esses pressupostos são alcançados por organizações jurídicas com objeto essencialmente vinculado à administração atuarial de ativos para fazer frente aos benefícios pretendidos. A atuação das entidades passa a ser a administração dos recursos transferidos pelos patrocinadores ou instituidores e participantes[7].
Com esse objetivo traçado legalmente, extrai-se que não há, por parte das EFPC, comunhão de interesses ou de obrigações nos planos. Em termos mais claros, a EFPC não é titular do conjunto patrimonial de ativos e passivos do plano em relação ao objeto que ele está afetado, motivo pelo qual, do modo como está previsto na legislação, a segregação patrimonial não pode ser utilizada.
Isso por que para que se considere um patrimônio afetado (separado), o seu titular deve ser dono dos ativos patrimoniais que apenas podem ser destinados à finalidade para a qual foram afetados[8]. E, conforme se extrai da concepção traçada pela LC nº 109, de 2001, a EFPC não é titular do patrimônio, motivo pelo qual não há campo para se falar em afetação patrimonial, considerando que esse conceito se baseia na possibilidade de o titular de patrimônio (o sujeito de direito) possuir vários patrimônios, afastando-se a concepção clássica de que o patrimônio é uno e indivisível. O que a LC nº 109, de 2001 pretendeu (e pretende) é a gestão de vários patrimônios pela EFPC.
À EFPC somente se destina o patrimônio apto a que ela atinja a sua finalidade: a gestão de planos de benefícios. O legislador complementar, assim, conservou-se aquém da afetação patrimonial, referindo-se apenas à gestão de planos pela EFPC.
À EFPC somente se destina o patrimônio apto a que ela atinja a sua finalidade: a gestão de planos de benefícios. O legislador complementar, assim, conservou-se aquém da afetação patrimonial, referindo-se apenas à gestão de planos pela EFPC. Não obstante, a adoção de um detalhamento da segregação patrimonial (utilização da técnica da segregação patrimonial) pode ser, inclusive, uma forma de fomento do segmento de fundos de pensão, dependendo, claro, de avaliação técnica adequada, considerando todas as nuances do sistema de previdência complementar fechado, notadamente os custos da medida e o que se espera atingir com a sua adoção.
Assim, como o limite para a atuação dos órgãos cuja função é normatizar, regular e fiscalizar a atuação das EFPC é o estrito cumprimento do disposto em lei (caput do art. 173 da Constituição Federal e art. 5º da LC nº 109, de 2001[9]), não há espaço legal para a ampliação da utilização da técnica da segregação patrimonial, na medida em que (i) o legislador complementar limitou-a à terceirização da gestão dos recursos garantidores das reservas técnicas e provisões, e (ii) a EFPC não é titular do patrimônio a ser segregado.
CONCLUSÃO
É inegável que o órgão de normatização e regulação do sistema de previdência complementar fechada, assim como as agências reguladoras, possui certa independência, na medida em que foi criado para exercer funções normativas, administrativas e, por vezes, decisórias. Entretanto, não se pode confundir poder regulatório com poder regulamentar. E isso o legislador complementar, no art. 5º da LC nº 109, de 2001, deixou bem claro ao remeter a disposições legais – conforme disposto em lei e observado o disposto no inciso VI do art. 84 da Constituição Federal.
Logo, o que cabe ao órgão regulador é a expedição de atos com conteúdo técnico e/ou econômico, necessários ao fiel desempenho da sua função e que só podem ser praticados com autorização legal e nos limites autorizados pela lei. Esse, inclusive parece ser o escopo da previsão contida no parágrafo único do art. 7º da LC nº 109, de 2001[10], ao estabelecer, claramente, o requisito da evolução técnica para que o órgão regulador e fiscalizador possa normatizar os planos de benefícios, até prevendo outras formas de planos a par das já existentes, flexibilizando o regime. A normatização deve refletir a evolução técnica.
Com isso, observa-se que no bojo da LC nº 109, de 2001, não há a previsão da figura do patrimônio separado (técnica de segregação patrimonial), e, portanto, o órgão regulador não está legalmente autorizado a dispor sobre o tema, na medida em que, consonante assinalado alhures, que o campo de sua atuação é o afeto à expedição de atos com conteúdo técnico e/ou econômico, que, sob hipótese alguma invadam o campo de atuação legislativa.
BIBLIOGRAFIA:
BRASIL. Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966. Dispõe sôbre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e resseguros e dá outras providências. Brasília, DF, ago. 2018. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/Decreto-Lei/Del0073.htm>. Acesso em: 28 de ago. 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 28 de ago. 2018.
BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001.
Dispõe sobre o Regime de Previdência Complementar e dá outras providências. FUNDOS DE PENSÃO: coletânea de normas. Brasília: Ministério da Fazenda, Subsecretaria do Regime de Previdência Complementar, 2017.
DINIZ, Gustavo. Responsabilidade do administrador de entidades fechadas de previdência complementar. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242903/000926841.pdf?sequence=1. Acesso em: 29 de ago. 2018.
OLIVA, Milena Donato. Desvendando o patrimônio de afetação. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desvendando-o-patrimonio-de-afetacao-25102017. Acesso em: 28 de ago. 2018.
_____________________. Patrimônio Separado – herança, massa falida, securitização de créditos imobiliários, incorporação imobiliária, fundos de investimento imobiliário, trust. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
[1] Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.(...)
[2] OLIVA, Milena Donato. Patrimônio Separado – herança, massa falida, securitização de créditos imobiliários, incorporação imobiliária, fundos de investimento imobiliário, trust. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, P. 219.
[4] No direito brasileiro, há patrimônio de afetação na atividade de incorporação imobiliária, que foi introduzida pela Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2014[4], que incluiu os arts. 31-A a 31-E à Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. A opção pela afetação do patrimônio à incorporação possui caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação, que, dentre outras obrigações, institui um Regime Tributário Especial – RET, na medida em que o patrimônio afetado à incorporação constitui unidade autônoma. Havendo a opção por esse regime, o conjunto de ativos destinado à realização de determinado empreendimento forma patrimônio separado, que não se mistura com os demais bens integrantes do patrimônio pessoal do incorporador. Segundo Milena Donato Oliva, outras atividades também utilizam a técnica da afetação patrimonial. A autora destaca os seguintes: o fundo de investimento imobiliário, regulado pela Lei nº. 8.668/1993; a securitização de créditos imobiliários, prevista na Lei nº. 9.514/1997; o sistema de consórcio de que trata a Lei no. 11.795/2008; o sistema brasileiro de pagamentos, constante da Lei no. 10.214/2001; e o depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários, com previsão na Lei no. 12.810/2013. (idem, ibidem).
[5] Um exemplo de utilização da técnica da segregação patrimonial seria a total afetação do patrimônio de cada plano gerido pela EFPC (no caso de multiplanos, de acordo com o art. 34, I “b” da LC nº 109, de 2001) apenas para pagamento dos benefícios contratados por cada plano específico, não sendo possível serem utilizados para pagamentos relativos a outros planos, ainda que por ordem judicial.
[6] Serviços assistenciais à saúde poderão continuar a ser prestados, desde que seja estabelecido um custeio específico, mediante contabilização e patrimônio mantido em separado em relação ao plano previdenciário.
[7]Diniz, Gustavo. Responsabilidade do administrador de entidades fechadas de previdência complementar. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242903/000926841.pdf?sequence=1.
[8] “O titular do patrimônio de afetação tem um poder-dever. O poder decorre da sua situação de dono dos ativos que integram o patrimônio. E o dever decorre do caráter fiduciário da sua titularidade: o sujeito apenas pode dar aos ativos destinação compatível com a finalidade do patrimônio de afetação. Veja-se que os patrimônios de afetação são previstos em lei para o alcance de determinado escopo. Por isso que o sujeito do patrimônio não é livre para fazer o que bem entender. Deve agir para realizar, da melhor maneira possível, a destinação daqueles bens – o que inclui alienar ou substituir os bens, quando for o caso. Vale lembrar que os ativos, pelo só fato de integrarem um patrimônio de afetação, não ficam onerados ou gravados e podem ser objeto de livre alienação ou substituição – desde que esses atos sejam realizados para concretizar o escopo que justificou a criação do patrimônio separado. Exemplo disso é a comercialização de frações ideais do terreno sobre o qual haverá a construção do condomínio edilício em empreendimento imobiliário sujeito ao regime do patrimônio de afetação.” (Oliva, Milena Donato. Desvendando o patrimônio de afetação. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desvendando-o-patrimonio-de-afetacao-25102017. Acesso em: 28 de ago. 2018.).
[9] Art. 5o A normatização, coordenação, supervisão, fiscalização e controle das atividades das entidades de previdência complementar serão realizados por órgão ou órgãos regulador e fiscalizador, conforme disposto em lei, observado o disposto no inciso VI do art. 84 da Constituição Federal.
[10] Art. 7o Os planos de benefícios atenderão a padrões mínimos fixados pelo órgão regulador e fiscalizador, com o objetivo de assegurar transparência, solvência, liquidez e equilíbrio econômico-financeiro e atuarial.
Parágrafo único. O órgão regulador e fiscalizador normatizará planos de benefícios nas modalidades de benefício definido, contribuição definida e contribuição variável, bem como outras formas de planos de benefícios que reflitam a evolução técnica e possibilitem flexibilidade ao regime de previdência complementar.
Procuradora da Fazenda Nacional. Coordenadora de Assuntos Previdenciários da PGFN. Especialista em Direito Público e Direito Tributário. Pós graduanda (lato sensu) em Direito Previdenciário. Foi representante da Coordenação Geral Jurídica da PGFN no Grupo Permanente de Representantes junto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro - GPR-ENCCLA, entre 2010 e 2013. Atuou na Divisão de Assuntos Fiscais da Procuradoria Regional da Fazenda Nacional da 3ª Região entre 2008 e 2009.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Thaisa Juliana Sousa. Patrimônio de afetação à luz dos elementos que circundam as Entidades Fechadas de Previdência Complementar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 set 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52209/patrimonio-de-afetacao-a-luz-dos-elementos-que-circundam-as-entidades-fechadas-de-previdencia-complementar. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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