RESUMO: O Ativismo Judicial é uma atitude proativa do Poder Judiciário. Os juízes ativistas interpretam de forma expansiva e abrangente a Constituição Federal. Consequentemente, o Judiciário acaba concretizando os valores e fins do Texto Constitucional. Logo, o objetivo do trabalho é estudar o Ativismo Judicial e entender a sua relação com a democracia. A partir da coleta de dados bibliográficos e documentais, o autor utilizou do método analítico-dedutivo, construindo hipóteses com base nos problemas e apresentando possíveis soluções. Sendo assim, o Ativismo Judicial é um destrate à democracia? Ou um ato de solidificação dessa? Em um Estado Democrático de Direito deve-se sempre promover a igualdade, sendo assim, os legisladores a partir do momento que se omitem de decidir sobre certos atos da vida cotidiana dos cidadãos não estão cumprindo com seu papel na democracia. Quando os magistrados atuam interpretando as normas, interferindo na instância política, eles não apenas estão garantindo que as causas minoritárias estejam sendo resguardados, mas também estão efetivando a democracia. Concluiu-se então com essa pesquisa, que o Judiciário é instituição mais do que legitima para tratar de assuntos políticos por meio do Ativismo Judicial, já que essa atitude resulta na efetivação da democracia.
Palavras-chave: Ativismo Judicial. Estado Democrático de Direito. Direito Constitucional. Democracia.
INTRODUÇÃO
O presente artigo disserta sobre uma das origens do Ativismo Judicial, o judicial legislation (legislação judicial) estudada pelo autor no Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Constitucional e Violência. O objetivo do estudo é entender o contexto do Ativismo Judicial: origem, conceito e aplicações. Nesse trabalho será apresentado a contextualização do judiciário legislador, como ele pode e porque deve ser utilizado para efetivação de direitos.
O texto foi divido em três partes. Na primeira, o autor explica o Ativismo Judicial por meio do judicial legislation. Utilizou da pesquisa bibliográfica tanto em artigos de autores norte-americanos como Arthur Schlesinger, Kennan Kmiec, Benjamin Cardozo, Albert Abel, Kent Greenawalt, William Blackstone, Frank Bowman, Ezra Thayer e Joffrey Toobin e também brasileiros: Marcelo Martins, Rafael Koatz, Raquel Sparemberger, Carlos Strapazzon e Rodrigo, assim como teóricos do Direito como Ronald Dworkin, Hans Kelsen e outros. Enquanto pesquisa bibliográfica e documental foram coletados dados da Constituição Federal de 1988 e Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro. Notou-se, inevitavelmente, mesmo que sem intenção, uma participação do Poder Judiciário na Política, interferindo em decisões tomadas pelo Poder Legislativo e Executivo, em alguns atos até mesmo legislando. Contudo, o texto avalia se é possível os juízes interferirem nos outros Poderes sem ferir o Estado Democrático de Direito e, ainda, garantir a eficácia dos Direitos Fundamentais, (trans)formando a Democracia.
Num segundo momento o texto, demonstra o funcionamento da separação de poderes, na situação brasileira em específico, a tripartição. Novamente, utilizou da pesquisa bibliográfica em autores clássicos: Montesquieu, Aristóteles, John Locke e Maquiavel, como também em artigos científicos e complementou-se com uma coleta de dados documentais adquiridos a partir da Constituição Federal. Percebe-se, inicialmente, uma real pretensão de separar os poderes nos Estados Modernos a fim de garantir uma liberdade individual. As origens de impedir que apenas um indivíduo tome controle de todas ações: deliberativas, executivas e jurídicas provém da Grécia Antiga com o objetivo de concretização da Democracia. Após o Absolutismo, surge a ideia de separar os poderes para respeitar os direitos dos indivíduos. Contemporaneamente, no Estado brasileiro, os poderes são separados com o objetivo de garantir os direitos fundamentais a todos.
Por fim, trata da legitimidade democrática do Poder Judiciário enquanto legislador. Esta seção traz construções empíricas, formuladas pelo autor a partir de suas leituras, colocando seus pensamentos referente ao tema. Nota-se que o Poder Judiciário só participa na construção do Direito Positivo pelo fato do Poder Legislativo não cumprir seu papel na democracia, os juízes efetivam os Direitos Fundamentais.
De maneira geral, utilizou-se o método indutivo e a técnica de pesquisa documental e bibliográfica, fez-se uma extensa interpretação em textos legais. O autor buscou introduzir o tema com as fontes coletadas e concluiu com construções empíricas fundamentadas.
1 ATIVISMO JUDICIAL ENQUANTO JUDICIÁRIO LEGISLADOR
O ativismo judicial pode ser entendido como uma atitude proativa do Poder Judiciário. Esse interpreta a Constituição de maneira extensiva e abrangente. O Ativismo é utilizado devido a omissão do ordenamento frente a casos concretos, a sociedade demanda por atos que não previstos e o legislador não se manifesta para construir Direito Positivo e salvaguardar os casos. Por conseguinte, por não poderem se escusar de decidir alegando que não há norma, os magistrados acabam interpretando a lei existente, aumentando seu campo de atuação.
A ideia do ativismo surge pós Segunda Guerra Mundial, é primeiramente mencionado pelo historiador Arthur Schlesinger (1947) em seu artigo The Supreme Court, publicado para Revista Fortune. Em seu texto, o autor divide a Suprema Corte Norte-Americana em dois grupos, os ativistas (judicial ativists) e os heróis da auto-contenção (heroes of self restraint). Ambos os grupos representavam atitudes dos juízes da época, os ativistas interpretavam a Constituição para fins do bem comum, interferindo na Política enquanto mexiam nas decisões dos legisladores, enquanto os contentadores defendiam que os magistrados deviam apenas aplicar o que os legisladores já haviam criados, se contentando apenas ao que está previsto na lei e se afastar da Política.
As atitudes ativistas, todavia, foram notadas muito antes do surgimento do termo. Como aponta Kennan Kmiec (2004, p.1444, tradução nossa), os juízes já utilizavam da concepção de “judiciário legislador, ou seja, juízes fazendo Direito Positivo”. Em outro artigo, Ezra Thayer (1891) explica o significado de judiciário legislador, ele elucida que o amadurecimento[1] da lei por decisões judiciais possui um sentido, o de juízes legislarem. Não obstante, o autor se contradiz em alguns momentos, ele considera o papel legislativo (construtor do Direito Positivo) e judiciário (aplicador do Direito Positivo) diferentes, sendo assim, ele constata que os juízes não constroem Direito Positivo per si, mas, sim, princípios baseados na interpretação da lei, permitindo que outros magistrados os utilizem.
Outrossim, Benjamin Cardozo (1928 apud KMIEC, 2004) entende que o papel do juiz acaba sendo paradoxal, ele admite que o magistrado, obviamente, não é um legislador, mas esse acaba criando nova norma a casos concretos para preencher lacunas (rules gaps)[2]. Observa-se que o ordenamento positivo não tem como prever todos os casos concretos que possam vir a ocorrer, logo, existem omissões e cabe ao juiz preencher as lacunas da lei: fazendo isso, esse estará intrinsicamente legislando. Cardozo (1928 apud KMIEC, 2004) ainda complementa dizendo que o juiz tecnicamente não cria lei, mas, sim, regras de direito (rulesoflaw)[3] para outros magistrados considerarem. Os conservadores políticos não aceitam o fato de um Poder Judiciário legislar, por ferir a separação de poderes e, ainda, o Estado Democrático de Direito.
Em outro ponto, Greenawalt (1975) aponta que o Judiciário pode atuar como legislador quando estiver a frente de um caso não claro. Para o autor, os casos claros são aqueles previstos expressamente em lei e não necessitam de interpretação. Enquanto os casos não claros são os que a norma não prescreve e cabe ao juiz interpretar as já existentes ou criar uma nova. Na concepção de Greenawalt, o juiz legislaria somente nos casos omissos pelo ordenamento positivo, havendo norma não seria necessário.
Ambos os autores até aqui citados explicam suas teorias no sistema jurídico de common law. Na common law, a fonte do Direito é os costumes, as decisões judiciais geram precedentes, e os demais tribunais devem respeitar esses. Trata-se do stare decisis et non quieta movere (respeitar as coisas decididas e não mexer no que está estabelecido). Diferentemente, na civil law, a lei é fonte do Direito principal, trata-se do Princípio da Legalidade, previsto no ordenamento brasileiro por meio da Constituição Federal vigente no art. 5º, II. Nota-se, portanto, que na família de common law o judiciário legislador se torna mais fácil de ser aplicado, afinal, como destaca Bowman (1893), a common law é o Direito feito pelos juízes. Na mesma linha, Blackstone (1893) conduz que na common law os juízes constroem precedentes que vinculam decisões futuras. Essas concepções são criticadas por cientistas políticos conservadores, por não aceitarem que o Direito Positivo seja construído pelo Poder Judiciário.
Destaca-se que a ideia do juiz legislar para casos omissos é previsto pelo ordenamento brasileiro. Em 1942 com a Lei de Introdução ao Código Civil (atualmente Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro) o legislador previu que quando a lei fosse omissa, o juiz poderia decidir de acordo com a analogia[4], os costumes[5] e os princípios gerais do direito (BRASIL, 1942). A ideia de prever maneiras dos juízes decidirem para casos omissos serve para evitar o non liquet, oriundo do Direito Romano no qual os magistrados se abstinham de decidir alegando que não havia norma. O Direito Brasileiro proíbe, expressamente, o non liquet por meio do Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional: o “juiz não pode deixar de julgar uma causa que lhe foi submetida” (KOATZ, 2005, p. 171).
Como mencionado, na civil law a lei é fonte principal do Direito e deve ser sempre utilizada para as decisões judicias (DWORKIN, 1967). Todavia, o Legislador previu que o Judiciário decidisse diferentemente da lei quando essa for omissa para evitar o non liquet. Nota-se, logo, que o judiciário legislador na situação brasileira seria apenar para completar lacunas na lei. Não obstante, vale ressaltar a existência dos costumes contra legem, caracterizados pelas atitudes reiteradas na sociedade opnione cessitatis que contrariam ao que está previsto por lei. Por conseguinte, mesmo a lei não permitindo certos atos, se essa não possui mais eficácia e a sociedade pratica esses atos, o juiz poderia utilizá-los para suas decisões.
Se antes, como proposto por Cardozo, o judiciário só legislaria para preencher lacunas e Greenawalt para casos que não são claros, o juiz poderia legislar para casos em que a sociedade tomou como costume atos que não permitidos por uma lei não mais eficaz? Estaria o magistrado ultrapassando seus limites? Como aponta da Dra. Raquel Sparemberger (2012), o aplicador do Direito pode criticar o ordenamento analisando valores éticos e sociais quando esse ver necessidade.
Ainda, outra forma do judiciário legislar previstos pelo ordenamento brasileiro são as súmulas vinculantes. Previstas pela Constituição Federal:
O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (BRASIL, 1988, Art. 103-A)
Nota-se que o judiciário por meio dessa pode fazer com que decisões reiteradas pelos tribunais tomem força de lei sem que o Poder Legislativo a faça. A principal função da súmula vinculante é garantir uma segurança jurídica, obrigando todos os tribunais a decidirem como o STF determinou. A súmula vinculante tem força de lei e efeito erga omnes.
De outro modo, Kelsen (1988) apresenta uma nova concepção do que seria legislar. Para o teórico, o papel legislativo é dado aquele que esteja autorizado a criar normas jurídicas gerais, essas não são exclusivamente estatutárias ou consuetudinárias. Ou seja, o Poder Legislativo brasileiro garante ao Poder Judiciário o papel legislativo, como aponta Kelsen. Destarte, o juiz é de certa forma um legislador, “o tribunal é autorizado pela ordem jurídica a decidir o caso de acordo com o seu próprio arbítrio. [...] o tribunal é autorizado a criar para o caso concreto a norma do Direito substantivo que considera satisfatória, justa ou imparcial. O tribunal funciona, então, como um legislador” (KELSEN, 1988, p. 210 - 211). Ainda, nos Estados Modernos, os outros Poderes, não designados como legislativo, exercem o papel na criação de normas jurídicas gerais, podemos utilizar como exemplo, mais uma vez, a criação das súmulas vinculantes pelo Judiciário, e as Medidas Provisórias pelo Executivo.
Não existe nenhuma ordem jurídica, de nenhum Estado moderno, segundo a qual os tribunais e autoridades administrativas sejam excluídas da criação de normas jurídicas gerais, isto é, da legislação, e da legislação não apenas com base em estatutos e regras de costume, mas também diretamente baseada na constituição (KELSEN, 1988, p. 386).
Em contraponto, Albert Abel (1953) em uma análise dos juízes Holmes e Harold Laski, esse processo de legislação judicial atrapalha a democracia. Nesse sentido, os magistrados devem apenas aplicar a regras criadas pelos representantes eleitos pelo povo e não criá-las, não é função típica do poder judiciário legislar. Na mesma linha, contrapondo Kmiec (2004) os juízes não constroem Direito Positivo, aplicam normas, asseguram que essas sejam cumpridas (TOOBIN, 2009). Outrossim, “o judiciário [...] é função subordinada às instituições representativas da democracia. A República é uma forma; as instituições democráticas perfazem a substância” (STRAPAZZON; GOLDSCHMIDT, 2013, p. 571, grifo nosso). Ainda, Locke não admite que um mesmo Poder crie leis e as executem:
Não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram, e adequar a lei à sua vontade. (LOCKE, 1998, p. 82).
Dessa maneira, deve-se agora entender a separação de poderes, como essa faz parte do Estado Democrático de Direito e de que forma o Poder Judiciário está atuando.
2 SEPARAÇÃO DE PODERES
Antes de propor a importância do Ativismo Judicial para a Democracia, faz-se necessário entender o conceito de separação de poderes: origem, conceito e sua inserção no Estado Democrático de Direito. Em suma da seção anterior, mostrou-se uma atitude legislativo do Poder Judiciário: seria essa correta em um Estado Democrático de Direito onde preza-se a separação de poderes: autônomos e harmônicos entre si com funções predeterminadas?
Primeiramente, a ideia de separar os poderes surge com a intenção de garantir a liberdade individual. Recebe força nos Estados Modernos, pós Absolutismo, assegurando que o governante não seja tirano, separando as três funções do Estado: legislar, administrar e julgar a três órgãos diferentes.
Isto posto, Aristóteles (2006) introduz a ideia de um Estado Democrático formado por Três Poderes: deliberativo, executivo e judiciário. Para o filósofo, o Estado é como um organismo vivo, formado por órgãos que exercem funções importantes para que esse sobreviva.
O Poder Deliberativo de Aristóteles é aquele encarregado de criar as leis, esse precisa necessariamente ser eleito ou sorteado. O Poder Executivo é o responsável por fazer com quem as normas deliberadas sejam efetivadas por meio de políticas, também deve ser um poder eleito ou sorteado. O último poder, o Jurídico é incumbido de julgar o povo com as leis criadas pelo Poder Deliberativo, diferentemente dos Estados Modernos, no caso o Brasil, para Aristóteles, o Poder Judiciário também deveria ser eleito para garantir legitimidade democrática.
Em suma, os Três Poderes de Aristóteles se assemelham a concepção moderna, com exceção do Jurídico eleito. Sabe-se que o Brasil sofre com uma crise de representatividade e legitimidade, o Poder Legislativo não cumpre com suas funções corretamente, não representa as minorias, logo, o Poder Judiciário toma a frente, faz com que as minorias sejam atendidas.
O processo dos juízes legislarem disposto na seção anterior, analisando à luz do Estado Democrático Aristotélico, não o fere. A partir do momento que um poder não cumpre seu papel, cabe ao outro fazê-lo. É dever dos legisladores criarem normas para garantir a eficácia dos Direitos Fundamentais, como por exemplo a tutela das uniões homoafetivas, todavia, esse não as faz. O Judiciário acaba então tomando atitude, ele interpreta a Constituição Federal e cria regras gerais de Direito, utiliza de mecanismos legais e fazem com que os Direitos Fundamentais sejam assegurados.
Se o objetivo de um Estado Democrático se baseia em certificar os Direitos Fundamentais, se um dos Poderes está realizando-os não há problemas em legitimidade Democrática, como propõe alguns teóricos da Ciência Política.
Posteriormente, Maquiavel (1973) propõe que exista um Poder independente e autônomo que não seja político responsável por julgar os indivíduos, esse Poder faria com que os mais fracos e vítimas dos poderosos sejam protegidos. É notável a participação de um Judiciário Maquiavélico no Brasil, as mulheres que carregavam fetos anencefálicos não receberam o Direito Positivo de abortarem, pois os legisladores regressistas e conservadores se inibiram de decidir sobre e restou ao Judiciário defender essas mulheres.
Todavia, foi com Montesquieu (1996) que a separação de poderes do Estado Moderno recebeu conceito forte. Para o filósofo político, o Poder não poderia estar nas mãos de um mesmo indivíduo, como acontecia no Estado Absoluto, o Poder deveria ser separado a três entidades: Legislativo, Executivo e Judiciário. Cada Poder teria funções específicas e uma delas seria controlar os outros para não haver arbitrariedade, sendo o Judiciário independente da política.
Em um Estado de Direito a lei é reguladora de todas as relações. A Constituição Federal regula como os demais poderes devem agir e os únicos legítimos a modifica-la é o Poder Constituinte Derivado, ou seja, os legisladores. Sendo assim, o Legislativo é o real soberano[6], como já apontava Aristóteles (2006). Sendo assim, o papel dos deputados e senadores, como também vereadores, é fundamental em um Estado Democrático de Direito por serem os responsáveis pela criação do próprio Direito. Da mesma forma, trata Locke:
Em todo caso, enquanto o governo subsistir, o legislativo é o poder supremo, pois aquele que pode legislar para um outro lhe é forçosamente superior; e como esta qualidade de legislatura da sociedade só existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execução em caso de transgressão, o legislativo é forçosamente supremo, e todos os outros poderes, pertençam eles a uma subdivisão da sociedade ou a qualquer um de seus membros, derivam dele e lhe são subordinados. (LOCKE, 1998, p. 83)
Todavia, apesar do Poder Legislativo ser encarregado de todo o processo legislativo[7], o Constituinte Originário concedeu ao Poder Judiciário atitudes legislativas: controle de constitucionalidade, podendo retirar a eficácia das normas criadas pelos legisladores, como também, súmulas vinculantes, tratada na seção anterior, criando regras de direito com força de lei e efeito erga omnes.
Sendo assim, a ideia de separação dos poderes de Montesquieu é ultrapassada para um Estado Democrático de Direito, pois não se trata mais de um Estado Democrático, exclusivamente, nem um Estado de Direito, é uma fusão de ambos os modelos. Trata-se de um Estado onde preza-se pelo Direito Fundamentais tutelados a todos a partir de normas que garantem segurança jurídica. Além disso, Montesquieu simplesmente pretendia propor uma ideia de acabar com o Poder Absoluto, não garantir Direitos Fundamentais a todos.
Logo, a ideia regressista de impedir que o Poder Judiciário interfira na política é muito mais que retrógrada, é, também, antidemocrática. Como aponta Manoel Peixinho (2008), “a judicialização da política[8] é um instrumento democrático de concretização dos direitos fundamentais mediante a atuação do Poder Judiciário sempre de acordo com a Constituição e com os princípios democráticos”.
Outro ponto a ser criticado na separação de poderes, onde caberia ao Judiciário simplesmente aplicar a norma criada pelo Legislativo, é a injustiça. Aplicar de mais a norma em sua literalidade gera, inevitavelmente, injustiça. A ideia do juiz ser a “boca da lei”, não criticar a norma e nem interpretá-la origina injustiça. Não se deve julgar um indivíduo que furta um pão para alimentar sua família da mesma forma que se julga aquele que roubou um carro por diversão. São casos diferentes que só existe uma norma para ambos, logo, um bom juiz interpretaria a norma, aplicaria ela da melhor forma analisando o caso concreto em sua unicidade e exclusividade. O ordenamento não é construído para casos concretos e sim para casos gerais, exigir do magistrado utilizar a literalidade da lei não é cabível. Como aponta Anderson Lobato (2018), o julgamento por simples aplicação da lei sem interpretação, feito por um magistrado boca da lei, não é eficaz para o Direito. Complementando, segundo Raquel Sparemberger (2013), o aplicador do Direito deve criticar o ordenamento analisando os valores éticos e sociais.
Em suma, a separação de poderes, apesar de ser importante para garantir a liberdade individual, é ineficaz em um Estado Democrático de Direito quando o Poder Legislativo não cumpre sua função. A função legislativa pode ser dada ao Judiciário ao momento que o Poder Legislativo não cumpre o seu papel, sendo assim, os juízes não estão transformando o Estado Democrático de Direito, mas, sim, formando.
3 ATIVISMO JUDICIAL VERSUS LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
Agora que já foi abordado o Ativismo Judicial enquanto atitude legislativa e, também, a separação de poderes a partir de uma análise do Estado Democrático de Direito, tratarei da legitimidade democrática referente ao ativismo. É possível que os juízes legislem legitimamente?
Primeiramente, deve-se remeter quem é legítimo ao processo legislativo no Brasil. De acordo com a Constituição Federal, o Poder Legislativo é legitimado competente para criar leis, o processo ocorre em três etapas: iniciativa (nessa, tanto o Executivo quanto o Judiciário, assim como por iniciativa popular, podem participar), votação (nesse momento, apenar o Poder Legislativo age, é a principal etapa do processo legislativo, é votado se o projeto de lei terá efeito ou não) e em último, a promulgação e publicação (feita pelo Poder Executivo ou Legislativo). Nota-se que mesmo os outros Poderes terem legitimidade para iniciar o processo legislativo, somente o Poder Legislativo fará com que um projeto se torne lei.
Todavia, como já mencionado, o Poder Executivo tem competência para criar Medidas Provisórias, ou seja, instaurar regras temporárias com força de lei e eficácia erga omnes. Não obstante, o Poder Judiciário também pode tomar atitude semelhante, as súmulas vinculantes são decisões votadas pelo Supremo Tribunal Federal que se aprovada recebem força de lei e efeito erga omnes. Nota-se, então, que o processo de criação das leis por mais que sejam incumbidos do Poder Legislativo, a Constituição Federal permite que outros poderes sejam legitimados a tomar atitudes de construir normativas.
Neste sentido, o Poder Judiciário é mais do que legitimo para legislar, desde que seja por meio das súmulas vinculantes e ou para o exercício de suas funções atípicas conforme disciplina a Constituição Federal de 1988.
Do mesmo modo, tratou-se na primeira seção das atitudes legislativas dos juízes referentes a omissão do ordenamento jurídico. Um magistrado poderia completar uma lei que é omissa?
A reposta é sim, a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro garante ao Poder Judiciário a capacidade de decidir a partir da analogia, costumes e princípios gerais do direito quando a lei for omissa. Como já mencionado, a ideia de garantir que os magistrados completem o ordenamento é impedir o non liquet, trata-se do Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional.
Todavia, essas decisões de completarem a norma não são vinculativas, quando um juiz decide o caso concreto, demais casos semelhantes não precisam ser decididos da mesma forma. Por exemplo, antes da Resolução do Conselho Nacional de Justiça sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, se um magistrado houvesse decidido, utilizando da analogia, um caso concreto a favor da união de casais homoafetivo, um outro juiz que recebesse caso semelhante não é obrigado a decidir da mesma maneira, podia esse decidir de forma totalmente contrária. Isso ocorre pois no sistema jurídico brasileiro, civil law, não está presente o stare decisis, que faz com que uma decisão tomada por tribunal superior seja seguida por tribunais inferiores.
Uma das críticas a inexistência do stare decisis é apresentada por Martins (2018) referente a segurança jurídica. Para este autor, necessita-se de segurança jurídica, as pessoas devem saber como os juízes irão decidir para tomarem suas atitudes, trata-se de uma isonomia. O autor recomenda que tribunais inferiores não tomem decisões contramajoritárias aos superiores. Todavia, isso somente depende da índole do jurista, afinal esse só é obrigado a seguir ao que está previsto na lei.
Outro ponto a ser analisado referente a decisões legislativas por parte do Poder Judiciário refere-se às contra legem. O ordenamento é mecânico, ele não sofre mudanças a não ser que um Poder Legitimado as faça. No caso brasileiro, as leis só serão modificadas pelo processo legislativo, sem esse elas ficam paradas no tempo. Em contraponto, a sociedade é orgânica, vive em constante mudança, e necessita que as normas a acompanhe. Devido a isso, muitas leis acabam ficando ineficazes com o tempo, e sociedade acaba tomando atitudes de forma reiterada opnio necessitatis, constituindo costume contra legem. Como mencionado anteriormente, os juízes podem decidir de acordo com os costumes quando a lei for omissa, pode-se considerar uma lei não mais eficaz como uma omissão? Sim, se a lei não possui eficácia, não deve ser aplicada, sendo assim, o magistrado pode tomar para sua decisão o costume contra legem, dessa forma, perfaz função do Judiciário atualizar o ordenamento jurídico quando o Poder Competente não faz.
Finalmente, deve-se analisar a legitimidade democrática dessas ações mencionadas. Sabe-se que os juízes, desembargadores e ministros não são eleitos, diferentemente do que propõe Aristóteles (2006). Sendo assim, poderia um Poder não eleito modificar decisão tomada por um Poder eleito? A resposta é fluída, desde que esse Poder não esteja violando os direitos fundamentais e o texto constitucional, não é ilegítimo que esse modifique decisões. Se o Poder Competente não toma atitudes, é omisso e “inativista”, os demais devem tomar essas atitudes. No caso do Poder Judiciário, esse possui a obrigação de guardar a Constituição Federal e promover os direitos fundamentais, se a ele é apresentado casos concretos que violem o Texto Maior e elidem os direitos fundamentais, compete a esse propor soluções, mesmo que essa seja legislar.
Utilizando de Aristóteles (2006), democracia é muito mais que atender a maioria, mas sim, atender a sociedade como um todo. Na situação brasileira, a maioria segrega as solicitações das minorias. Os legisladores são eleitos por conservadores: a favor de uma “família tradicional”, machistas, misóginos e alguns até mesmo racistas. Dessa maneira, as minorias: mulheres, LGBTT+, negros, etc. acabam não sendo protegidas pela lei, afinal, são os legisladores que as constroem. O Legislativo se nega a tratar de assuntos como aborto e união homoafetiva, se negou por anos a tratar de violência contra mulher e medidas inclusivas, como as cotas. Quando o Poder Judiciário constrói o Direito Positivo, ele não está ferindo a democracia, ele está formando-a, cumprindo o papel de uma instituição que não cumpre.
Em suma, o Poder Judiciário é mais do que legítimo para legislar em uma democracia, onde o Poder incumbido de legislar não cumpre suas funções, pois os juízes então concretizando a ideia dessa: fazendo com que todos sejam protegidos pela lei, não apenas as maiorias. O Ativismo Judicial não seria necessário, se o Poder Legislativo não fosse “inativista”[9].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo, o Ativismo Judicial é uma atitude proativa do Poder Judiciário que pode se manifestar por meio de um judiciário legislador. A ideia dos juízes criarem Direito Positivo é criticado por cientistas políticos conservadores por ferir o Estado Democrático de Direito e os magistrados não serem indivíduos legítimos democraticamente.
Todavia, percebeu-se com a pesquisa que ocorre uma omissão por parte do Poder Legítimo a legislar, o Poder Legislativo. Esse, além de não representar as minorias, não legisla sobre temas solicitados pela população. Por ser conservador em demasiado, assuntos como união homoafetiva e aborto não são tratados pelos legisladores. Isso se ocorre pelo fato desse depender de ser eleito, ele necessita que seus eleitores votem neles, e como os eleitores são conservadores, tomar esse tipo de decisões não seria favorável a seus interesses. Contudo, a Constituição Federal garanta a todos os direitos fundamentais, então, é dever do legislador criar leis que salvaguardem a todos, independentemente de quem seja. Como esse não faz, cabe ao Judiciário fazer.
Enquanto separação de poderes, é imprescindível que ocorra, porém, as funções de cada Poder devem ser respeitadas taxativamente. Como apresentado, isso não ocorre. Dessa forma, não se necessita uma delegação de função, o Poder Judiciário nunca trataria do processo legislativo, porém, pode tomar medidas constitucionalmente previstas para completar as omissões de outros Poderes.
Sendo assim, o Poder Judiciário pode legislar, ora completando omissões do ordenamento, ora retirando a eficácia de leis por meio do Controle de Constitucionalidade, ora por súmulas vinculantes.
A justificativa para o judiciário legislador ser legítimo democraticamente, apesar de não eleito, é que esse está efetivando a democracia. Ele faz com que os direitos fundamentais cheguem a todos, sem distinção, ele pode decidir independentemente dos interesses de um eleitorado, a única base de decisão deve ser a Constituição Federal.
Em suma, o Poder Judiciário pode construir Direito Positivo, afinal, esse não está transformando o Estado Democrático de Direito, mas, sim, formando-o.
REFERÊNCIAS
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[1] No texto, o autor utiliza do termo growth of the law by judicial decision. Sendo assim, pode-se interpretar de três formas a aplicação da palavra growth no artigo: amadurecimento (a lei é atualizada por decisões judiciais); intensificação (a lei se torna mais eficaz ou menos eficaz por decisões judiciais) ou, ainda, propagação (a lei se torna mais abrangente por decisões judiciais).
[2]He legislates only between gaps. He fills the open space in the law. Cardozo (1928 apud KMIEC, 2004) informa que o juiz somente legisla entre lacunas, ele preenche as lacunas da lei.
[3] Podemos considerar as rules of law como princípios dentro do ordenamento ou, também, como precedentes. Por se tratar de um sistema de common law, as decisões judiciais nos Estados Unidos de tribunais inferiores geram precedentes para decisões de tribunais inferiores. Ao tribunal superior decidir sobre tal matéria, todos os outros tribunais inferiores devem decidir da mesma forma, essa decisão criou, então, uma regra de direito, a rule of law. A importância dessa obrigatoriedade das decisões de tribunais inferiores de acordo com os superiores serve para garantir uma isonomia (MARTINS, 2018), que é fator relevante para a segurança jurídica.
[4]“Consiste em um método de interpretação jurídica utilizado quando, diante da ausência de previsão específica em lei, aplica-se uma disposição legal que regula casos idênticos, semelhantes, ao da controvérsia” (ANALOGIA, 2012, online).
[5]Trata-se do uso reiterado, da repetição constante e uniforme de determinado ato social. Deve haver consciência social, convicção de que essa prática reiterada e uniforme é fundamental para a sociedade, eis então que surgirá a sua obrigatoriedade. Não há um tempo determinado para que efetivamente se reconheça determinado costume como fonte formal, válida para o Direito” (COSTUMES, 2015, online)
[6] Ler Dois tratados sobre o governo, de John Locke (1998). No livro, o autor considera que o legislador detém o real poder no Estado, e os demais são apenas funções subordinadas desse. Nota-se, no Brasil, uma situação análoga ao que diz Locke, os legisladores além de terem a competência de construir as leis, podem modificar Constituição Federal, texto que regula as ações dos demais Poderes.
[7] Apesar do Poder Executivo atuar no momento do veto ou sanção da lei, essa atitude executiva pode ser revogada pelo Legislativo, sendo assim, a função executiva no processo legislativo é irrelevante.
[8] Judicialização ou politização da justiça é a ideia do Poder Judiciário interferir nas decisões políticas a partir da previsão constitucional. Como aponta Barroso (2012), a Judicialização é consequência do modelo constitucional, o controle de constitucionalidade é um exemplo de judicialização. O Poder Judiciário revoga a eficácia de uma norma, criada e aprovado por um Poder eleito e legítimo, um Poder político.
[9] Ver O Inativismo Legislativo versus o Ativismo Judicial de Vigliar (2018)
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Monitor em Teoria Geral do Direito. Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Constitucional e Violência (GEPDCV/FURG), Grupo de Estudos sobre o Constitucionalismo Latino-Americano (GEDCONST/FURG) e no Grupo de Pesquisa Sociedade da Informação, Liberdade de Expressão e Democracia Constitucional (SIDC/FMP). Estagiário na Procuradoria Federal junto à Universidade Federal do Rio Grande. http://lattes.cnpq.br/7844682367156320
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Jonathan Morais Barcellos. Ativismo judicial: o Poder Judiciário como construtor do direito positivo, (trans)formando o estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52251/ativismo-judicial-o-poder-judiciario-como-construtor-do-direito-positivo-trans-formando-o-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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