RESUMO: Este artigo buscará esclarecer o instituto da delação premiada, os casos em que sua aplicação ocorre, sua importância na elucidação de fatos e esquemas de crime organizado, além de sua efetiva aplicabilidade e os acordos que são feitos, mas, principalmente, abordar o que traz a doutrina a respeito de sua legalidade. Exploramos aqui o conceito de crime organizado e como este instituto foi estabelecido com o intuito de ser eficaz na resolução de crimes, os limites para a aplicação da delação/colaboração premiada, os benefícios do acordo e a insegurança jurídica, a prisão preventiva como coerção e as atenuações de pena prevista. Além disso, é necessário que se façam reflexões com o intuito de entender os princípios constitucionais dentro desse instituto e compreender como o tema vem sendo tratado pela justiça brasileira. Desse modo, pretende-se questionar se a delação premiada obedece ao Estado Democrático de Direito. A metodologia a ser utilizada é de natureza descritiva. Assim o presente estudo se utilizará de artigos científicos, monografias, dissertações, teses, livros e julgados que englobam uma análise pertinente à problemática, inclusive quanto à incidência prática do instituto em estudo, os quais serão imprescindíveis para a elaboração e o desenvolvimento teórico deste artigo. As conclusões a que se chegou é que para um modelo de Estado Democrático de Direito, a não observância de princípios constitucionais e o não respeito ao que está estabelecido no Código de Processo Penal são motivos suficientes para as críticas de doutrinadores diversos.
Palavras-chave: Delação premiada. Crime organizado. Legalidade. Estado democrático de direito.
ABSTRACT : This article will seek to clarify the institute of the awarding of the award, the cases in which its application occurs, its importance in the elucidation of facts and organized crime schemes, besides its effective applicability and the agreements that are made, but mainly, to approach what it brings the doctrine regarding its legality. We explore here the concept of organized crime and how this institute was established to be effective in resolving crimes, limits on the application of award-winning collaboration / collaboration, benefits of agreement and legal uncertainty, preventive detention as coercion and the expected penalty attenuations. In addition, it is necessary to make reflections in order to understand the constitutional principles within this institute and understand how the issue has been addressed by the Brazilian justice system. In this way, it is intended to question whether the award-winning demarcation obeys the Democratic Rule of Law. The methodology to be used is descriptive in nature. Thus, the present study will use scientific articles, monographs, dissertations, theses, books and judgments that include an analysis relevant to the problem, including the practical incidence of the institute under study, which will be essential for the elaboration and theoretical development of this article . The conclusions reached are that for a model of democratic rule of law, non-observance of constitutional principles and non-respect to what is established in the Code of Criminal Procedure are sufficient grounds for criticism from different doctrinators.
Keywords: Awarded giving. Organized crime. Legality. Democratic state.
SUMARIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 O INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA E A CONSTITUIÇÃO. 3 BENEFÍCIOS DE COLABORAÇÃO X INSEGURANÇA JURÍDICA. 4 DELAÇÃO PREMIADA: RISCO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO? 5 CONSIDERAÇÕES. REFERÊNCIAS.
O Brasil vive um momento onde muito se têm falado sobre delação premiada e sua aplicação na Operação Lava Jato, da Polícia Federal, como sendo ela uma técnica de investigação que consiste na oferta de benefícios pelo Estado àquele que confessar e prestar informações úteis ao esclarecimento de fato delituoso, podendo ser requerida pelo próprio réu, por meio de um pedido formal feito por seu advogado, ou sugerida por representação do delegado de polícia e proposta pelo Ministério Público que está investigando o processo criminal. Se o juiz considerar os dados informados pelo réu realmente importantes, consentirá uma atenuação de sua pena.
Apesar de que dizem serem benefícios para os processos de investigação dado o alto índice de pessoas delatadas, inclusive do alto escalão dos cargos públicos, tem se falado sobre sua ilegalidade, afirmando que a mesma é alicerçada sobre bases contrárias ao princípio lógico constitucional, não tendo o amparo legal da Constituição Federal, e dos paradigmas nela consagrados e apoiados em valores éticos e morais que transmitem a humanização, a solidariedade e a compaixão.
Ultimamente este tema tem ganhado relevância, por ser um assunto midiático devido às investigações de corrupção e lavagem de dinheiro que a Polícia Federal tem realizado, mas o que pouco se esclarece é a respeito de seu funcionamento, sua real eficácia e os princípios constitucionais diante dessa técnica de investigação.
Percebe-se que, cada vez mais, juízes e tribunais têm proferido decisões acatando o instituto da delação premiada. O Supremo Tribunal Federal – STF, recentemente, afirmou que o instituto da delação premiada está fortalecido e que os acordos firmados, desde que obedeçam à legalidade (seguir o que prevê a Lei nº 12.850/2013) e que o colaborador cumpra todas as condições a que se comprometeu no acordo, este será mantido.
Após levantamento bibliográfico, percebe-se que os doutrinadores questionam muito a questão constitucional que engloba a temática, como a não observância dos princípios de contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e não autoincriminação.
Tendo em vista as amplas discussões atuais a respeito desta temática, este artigo tem a pretensão de acrescentar alguns questionamentos e análises, como o fato de que o acordo de delação premiada é firmado em um momento de vulnerabilidade do acusado, tendo em vista a sua prisão temporária. Além disso, a Lei nº 12.850/2013 estabelece atenuações e até perdão da pena em casos que não são citados no Código de Processo Penal.
Para a revisão bibliográfica, foram os utilizados os seguintes autores: Aires (2017), Canotilho & Brandão (2017), Cunha (2014), Costa (2016), Greco (2014), Grossi (2015), Mello (2015), e Zaffaroni (1996).
O termo delação tem sua origem no latim: “delatio”, “de deferre”, na acepção pátria: denunciar, delatar, acusar, deferir. Incorporado ao ordenamento pátrio desde os anos noventa o instituto da delação premiada (ou colaboração premiada) nasceu com o fito de propiciar tanto o descobrimento de infrações penais, quanto a identificação da autoria e participação de agentes em situações singularmente complexas que, na maior parte das vezes, envolvem organizações criminosas cujas estruturas de comando e modus operandi dificultam a persecução penal.
Para Guilherme de Souza Nucci, em “Manual de processo penal e execução penal”, traz o conceito de delação premiada:
[...] a possibilidade de se reduzir a pena do criminoso que entregar o(s) comparsa(s). É o “dedurismo” oficializado, que, apesar de moralmente criticável, deve ser incentivado em face do aumento contínuo do crime organizado. É um mal necessário, pois se trata da forma mais eficaz de se quebrar a espinha dorsal das quadrilhas [...] (NUCCI, 2012, p. 168)
O instituto da delação premiada teve início com a Lei de Crimes Hediondos e, posteriormente, foi utilizado para elucidar crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e contra a ordem tributária. Assim ele foi sendo considerado uma abordagem para resolver casos complexos (CUNHA, 2014).
Para que o delator cumpra pena com condições mais benéficas é necessário que seja feito acordo de delação, com diminuição substancial dos anos de sanção e chance de cumprimento de sanção em prisão domiciliar.
Basicamente, o instituto da delação premiada, para o acusado, consiste em uma forma de atenuação de pena, chegando à total isenção desta pelo juiz, caso se delate os comparsas da organização criminosa.
Fato é que a colaboração premiada tem se mostrado bastante eficaz e tem ganhado, principalmente nos últimos anos, bastante destaque no cenário nacional por conta de várias organizações criminosas que agiam no ambiente político do país. Crimes investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal puderam ser desarticulados mediante ajuda do instituto da colaboração premiada.
É necessário esclarecermos que, apesar desse instituto se apresentar como benéfico para a sociedade, ainda existem diversas controvérsias e posições doutrinárias desfavoráveis. Há divergências que nasceram da questão ética da perfídia. Cabe ressaltar, no entanto, que atualmente há uma lei específica que a fundamenta.
Aires (2017) explica que as críticas à colaboração premiada também são pautadas na sua incompatibilidade com a Constituição Federal de 1988, especificamente no que se refere ao sistema processual penal. O autor a defende, no entanto, tendo em vista que a considera um instrumento de política criminal relacionado com a maior eficiência na resolução de casos jurídico-criminais.
Para que haja uma eficácia de sua aplicação, a delação premiada tem que funcionar da forma já prevista na Lei nº 12.850/13, ou seja, como a perfídia daquele(s) que está(ão) inserido(s) na organização criminosa. Além disso, exige-se um nexo causal entre a colaboração premiada e o efetivo esclarecimento dos delitos e, como consequência, o desmantelamento da organização criminosa.
De acordo com Canotilho e Brandão (2017), há uma diferença entre delação e colaboração premiada, pois na delação ocorre apenas a confissão de crimes e a apresentação de seus comparsas, mas na colaboração processual, o acusado auxilia a autoridade policial no recolhimento de provas contra os coautores de determinado crime, o que coopera com as prisões.
A delação/colaboração ocorre de acordo com, basicamente, as seguintes hipóteses: O delator deve ter informações valiosas, que contribuam com a investigação e o interesse da justiça. As informações prestadas devem colaborar para a identificação de co-autores/partícipes da organização, para o seu devido desmantelamento. Além dessas hipóteses, cada caso é analisado individualmente e estabelecido em acordo formal, inclusive para que o benefício (prêmio) seja efetivado.
A seguir, há a explanação de alguns princípios constitucionais que acabam não sendo respeitados no instituto da delação premiada.
Ao se utilizar a colaboração premiada como ferramenta/instrumento de política criminal, como justifica Aires (2017), inevitavelmente há a desobediência de alguns princípios constitucionais, quais sejam: contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, e não autoincriminação.
A respeito dos princípios do contraditório e ampla defesa, cabe esclarecer que tais princípios estão expressamente previstos no art. 5º, LV, da Constituição da República de 1988, nos seguintes termos: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Ao lado do contraditório, conforme se verifica, está disciplinado o princípio da ampla defesa. A ampla defesa assegura à parte os meios para o exercício do contraditório, entre os quais existe a possibilidade de produzir provas, arrazoar e recorrer em sua defesa.
O princípio da ampla defesa está ao lado dos princípios de contraditório e de isonomia, porque a amplitude da defesa se faz nos limites temporais do procedimento em contraditório. A amplitude da defesa não supõe infinidade de produção da defesa a qualquer tempo, porém, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado na lei (MELLO, 2015).
Há de ser ampla, porque não pode ser estreitada (comprimida) pela sumarização do tempo a tal ponto de excluir a liberdade de reflexão cômoda dos aspectos fundamentais de sua produção eficiente. É por isso que, a pretexto de celeridade processual ou efetividade do processo, não se pode, de modo obcecado, suprindo deficiências de um Estado já anacrônico e jurisdicionalmente inviável, sacrificar o tempo da ampla defesa que supõe a oportunidade de exaurimento das articulações de direito e produção de prova (MELLO, 2015), que é o que ocorre quando se faz um acordo de delação premiada.
Os princípios do contraditório e da ampla defesa, portanto, asseguram às partes a participação em simétrica paridade na construção de provimento jurisdicional final, com possibilidade de utilização de todas as ferramentas disponíveis no ordenamento jurídico para a defesa dos interesses.
Já o princípio constitucional da presunção de inocência (ou de não culpabilidade) é o famoso “até que se prove o contrário”. De acordo com ele, ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado. No caso da colaboração premiada, ao assinar o acordo, o réu está assumindo/confessando a culpa. Ou seja, abrindo mão desse direito e garantia fundamental. O acusado retira a dúvida de se ele é culpado ou inocente, pois ao aceitar o acordo, a confissão é o primeiro passo para sua efetivação, de modo que ele se autoincrimina, até mesmo por fornecer detalhes essenciais para a investigação e desmantelamento da organização criminosa.
Abrindo mão de direitos constitucionais, o acusado se encontra em uma insegurança jurídica, o que Aires (2017) destaca que se dá pela incerteza sobre o veredito final do processo, estando o réu, na maior parte das vezes, detido preventivamente até o provimento jurisdicional. A questão da insegurança jurídica será explorada mais adiante.
Como vimos acima, o instituto da colaboração premiada já foi utilizado para resolução de crimes diversos, mas pretende-se também analisar como ele ocorre no caso de organizações criminosas.
Tendo como especial foco a organização criminosa, o crime organizado, a colaboração premiada caracteriza-se como um evento de natureza processual incidental ao procedimento investigatório ou ao processo criminal, seja antes da instauração da ação penal ou ainda na fase de inquérito, e até mesmo após a sentença ou em fase de execução.
Mesmo com os serviços de inteligência utilizados para combater o crime organizado, as autoridades competentes ainda se sentem, muitas vezes, impotentes diante do crescimento avassalador da criminalidade.
É necessário que se faça a conceituação de organização criminosa. Desse modo, dispõe a Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013, quanto à organização criminosa:
Art. 1º, §1º: Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. (BRASIL, 2013)
Ressalta-se aqui que as atividades criminosas “clássicas” de organizações, são: tráfico ilícito de entorpecentes, extorsões, tráfico de armas e corrupção.
A colaboração deverá resultar na identificação dos demais coautores e/ou partícipes de determinada organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; na revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; na prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; na recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; ou, ainda, na localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
Aires (2017) ressalta, ainda, que, por ser complexo, um acordo de colaboração premiada demanda uma densa elaboração legislativa, sob pena de consentir-se ofensas às garantias do réu, seja este colaborador ou delatado, de modo a lancear a tutela da dignidade humana, princípio norteador de qualquer ação jurídico-criminal, mas que não ocorre no instituto da delação premiada, pois o acusado abre mão de seus direitos fundamentais com vistas a um prêmio.
A Lei nº 12.850/2013 aumentou os benefícios concedidos ao colaborador, prevendo, não apenas redução de pena, como também perdão judicial e substituição da pena corpórea por pena restritiva de direitos. Ampliou significativamente o rol de resultados para a concessão de possíveis benefícios. E, além disso, tanto estabeleceu direitos ao colaborador, como instituiu requisitos de validade do termo de acordo da colaboração.
O colaborador possui alguns direitos, dentre os quais:
I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica;
II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados;
III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes;
IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados;
V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito;
VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados. (BRASIL, 2013)
Destaca-se que ter direitos não é o mesmo que ter benefícios, mas a possibilidade de diminuição de pena e até mesmo de isenção total é o que motiva o acusado a agir com perfídia.
Canotilho e Brandão (2017) tecem comentários sobre a instabilidade jurídica da colaboração premiada, no que concerne às Convenções Internacionais de direitos humanos, que mantém supremacia até mesmo em relação à Constituição de um Estado. Os autores relatam que não há menção ao interesse público, princípio invocado para justificar o uso do instituto da delação premiada.
Para Canotilho e Brandão (2017, p. 137), “a ‘cláusula de supremacia dos direitos humanos’ não implica a neutralização do ‘novo direito penal’”. Ao expor os motivos que não justificariam tal acordo, os autores enfatizam, dentre outros motivos:
[...] qualquer relação jurídica – como é o caso do esquema de “colaboração premiada” – pode desencadear consequências reconduzíveis a ilicitudes e resultados fortemente lesivos de direitos fundamentais; (3) cuja defesa e protecção garantística implica a existência de remédio jurisdicional adequado, começando com as acções constitucionais de defesa (acção e recurso de amparo, habeas corpus) até às acções e recursos legalmente previstos segundo os ditames processuais e materiais de um processo justo e equitativo (CANOTILHO & BRANDÃO, 2017, p. 138)
Além da questão das consequências, do remédio jurisdicional e dos recursos previstos, os autores também citam como preocupantes as questões de legalidade, isonomia, privilégios e imunidades não razoáveis, conexões entre provas e crimes, e obtenção de provas.
Tendo em vista as amplas discussões atuais a respeito desta temática, este artigo tem a pretensão de acrescentar alguns questionamentos, como o fato de que o acordo de delação premiada é firmado em um momento de vulnerabilidade do acusado, tendo em vista a sua prisão temporária.
Tal discussão ganha vulto após a edição do Projeto de Lei 4.372/16, com objetivo de alterar a Lei 12.850/13 e estabelecer como condição para a homologação da colaboração premiada o fato de o réu, necessariamente, responder em liberdade à investigação ou ao processo instaurado em seu desfavor. Tal alteração da regulamentação jurídica do instituto iria de encontro às principais críticas ao instituto, que prevê a colaboração “voluntária”, e não por meio de coerção.
Costa (2016) faz um levantamento de operações da Polícia Federal e constata que em diversas vezes a delação premiada foi precedida de prisão preventiva. Desse modo, a autora destaca os casos em que a prisão preventiva está descrita, que estão dispostos nos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. Dentre o rol, não há nenhuma menção à utilização coercitiva para obtenção de acordo de delação premiada.
Mas a utilização da prisão preventiva está pautada no que prevê o art. 312, que é “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal”.
O que se apresenta como controverso tem a ver com o fato de que o pré-requisito para o acordo de colaboração ser firmado é de que este seja voluntário e efetivo, conforme dispõe o artigo 4º da norma infraconstitucional.
Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal [...] (BRASIL, 2013, grifos nossos)
Ou seja, a voluntariedade é um requisito legal, de modo que muito se questiona a ilegalidade causada pela não obediência a essa regra, tendo em vista que a coação por meio de prisão preventiva para obter a delação retira qualquer voluntariedade.
Além disso, não há uma interpretação desta lei conforme o estabelecido na Constituição da República, respeitando-se o que prevê o próprio Processo Penal. O respeito ao devido processo não pode ser relegado em virtude de prisão com fins de obtenção de que o investigado confesse e faça acordo para fornecer informações sobre o esquema criminoso.
Costa (2016) também faz duras críticas à aplicação de prisões, que na Lei nº 12.850/2013 está fora do previsto no art. 33 do Código Penal, tendo em vista que prevê regime fechado para penas superiores a 8 anos e semiaberto para condenações superiores a 4 anos de detenção.
No caso da Lei nº 12.850/2013, a prisão domiciliar está prevista para penas superiores a 4 anos. No Código de Processo Penal, esta modalidade está prevista no art. 318 e no rol não há a premiação por colaboração de réu.
Atualmente, nos noticiários de todo o país o que mais ouvimos é a questão da prisão domiciliar. Muitos presos se encontram em casa, cumprindo penas em regime de prisão domiciliar (ou semiaberto), possível por meio de tornozeleiras eletrônicas, benefício advindo de acordos de delação/colaboração premiada firmados.
Além do que prevê o Código de Processo Penal, a Lei de Execuções penais, no art. 117, também cita as hipóteses, que estão ligadas a questões de doença e impossibilidade de cumprimento da pena por idade avançada.
Desse modo, o que é questionado é o fato de penas elevadas e que não se coadunam com o disposto no Código de Processo Penal serem cumpridas na residência do réu, o que causa ilegalidade.
Em relação ao perdão judicial, este se encontra também no art. 4º da Lei nº 12.850/2013. Além disso, ele está previsto no Código de Processo Penal.
Por não haver amparo legal na Constituição Federal e até mesmo no Código de Processo Penal, o instituto da delação premiada é visto como uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, pois suas bases estão pautadas na ilegalidade, conforme demonstrado neste artigo.
A Constituição Federal prevê no art. 5º que ninguém deve ser considerado culpada antes de a ação estar transitada em julgado, de modo que a colaboração premiada vai totalmente contra este princípio. Desse modo, a colaboração visa ao benefício da coletividade em detrimento dos direitos individuais.
Art. 5º da Constituição Federal, LXIII: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
A origem desse direito remonta ao século XVI e encontra-se incorporado às convenções internacionais de direitos humanos e aos ordenamentos jurídicos das nações democráticas. No Brasil, onde se opera o direito ao silêncio, em razão do princípio da legalidade, e de um processo penal garantista; o silêncio do investigado só pode ser vencido por procedimentos penais, jamais pela força, intimidação, ou por meio da coerção.
Destaca-se ainda que o direito ao silêncio contrapõe-se frontalmente ao instituto da confissão como prova cabal de um crime dos regimes inquisitoriais. O conceito tradicionalista de que a confissão era a “rainha das provas” não mais se coaduna com o devido processo legal, e destoa da evolução das garantias fundamentais da pessoa humana, especialmente nos séculos XIX e XX.
Além disso, para Grossi (2015), o instituto da delação premiada está baseado em conflito, pois, na medida em que oferece vantagem, qualquer boa-fé é expurgada. O medo de penas exemplares também aflora o egoísmo do condenado, que se vê diante de um benefício inconteste.
A norma infraconstitucional incentiva a traição, comportamento nada moral e ético, sobretudo quando no art. 3, inciso I, da Constituição, há os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, fica explicito que o legislador não admite normas que fomentem a traição e o egoísmo, de modo que tal instituto, apesar de estar previsto na Lei nº 12.850/2013, é considerado inconstitucional.
Bitencourt e Busato também atentam para os motivos da delação ser feita, tendo em vista que ela pode ter motivação vingativa, de vaidade ou ódio ao grupo criminoso, motivo que é imperscrutável e gera desconforto, apesar da exigência de provas além da delação, de acordo com o art. 4º, §16, da Lei nº 12.850/2013, que traz que: “§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”.
Zaffaroni (1996) também tece críticas aos “arrependidos” delatores, questiona a impunidade e considera a delação premiada uma lesão à eticidade do Estado. “O Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprado ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria” (1996, p. 45).
O autor coloca em evidência que o medo da condenação é o mais eficaz para motivar um acordo do que o arrependimento e a voluntariedade do acusado. O que o Estado faz é promover a perfídia como forma de obtenção de benefícios processuais.
Além de tudo isto que foi explicitado, cabe ressaltar que, ao promover tais acordos, há uma clara confissão de incapacidade estatal de investigação de crime organizado, tendo em vista que o delator poupa tempo, deixando às autoridades apenas a apuração e a punição. Ao se ignorar a questão ética que envolve a delação, privilegia-se a figura do “justiceiro”, entende-se que os “fins justificam os meios”, e que uma investigação está acima do Estado Democrático de Direito.
Uma das oposições levantadas contra a delação premiada diz respeito ao suposto conflito ético que seu manejo pelo Estado implicaria. Encontrando-se a ética, de modo geral, no pilar dos preceitos normativos ao estabelecer implícita ou explicitamente o que não se deve fazer para que outrem não sofra prejuízos, sendo, portanto, um ponto de convergência entre as normas e a liberdade do próximo.
É a inoperância estatal que ainda incentiva a utilização de tal instituto, que é contrário às normas constitucionais e traz resquícios da legislação da Idade Média, em que o delator recebia privilégios ao trair seus comparsas.
Em um modelo de Estado Democrático de Direito, a não observância de princípios constitucionais e a não supremacia da dignidade humana causa estranhamento. Nesse sentido, mesmo ao se oferecer um “prêmio”, o fato de não ocorrer a tutela de direitos e princípios fundamentais é motivo suficiente para as críticas de doutrinadores diversos.
O posicionamento da maioria dos doutrinadores, nesse sentido, é de que a eficácia do instituto da delação premiada apoia-se na rescisão com o Estado democrático de direito, de modo que sua inconstitucionalidade é evidente.
O tema da delação premiada, indubitavelmente ganha cada vez mais relevância, ainda mais após a operação Lava Jato, assunto tratado exaustivamente nas mídias brasileiras. A polícia federal utilizou-se da colaboração de delatores para investigar e prender réus em casos de corrupção e lavagem de dinheiro.
Apesar de os acordos de delação premiada terem obedecido à legislação infraconstitucional (Lei nº 12.850/2013) e ter representado o sucesso de diversas investigações contra o crime organizado, muito se tem falado a respeito da sua inconstitucionalidade.
O alicerce do instituto da delação premiada está em bases contrárias aos princípios constitucionais, e de paradigmas éticos e morais que envolvem a perfídia, apesar dos incontestáveis benefícios para os processos de investigação, dado o alto índice de pessoas delatadas, inclusive do alto escalão dos cargos públicos, e o desmantelamento de grupos criminosos.
Neste artigo não se pretendeu questionar a questão dos benefícios gerados pela celeridade e eficiência das demandas do sistema jurídico-penal no que concerne ao crime organizado. É indubitável que o instituto da delação ou colaboração premiada é um instrumento eficaz na resolução de crimes, mas não podemos deixar de questioná-lo pela visão de doutrinadores que questionam a sua legalidade.
Por meio de levantamento bibliográfico, percebe-se que os doutrinadores questionam muito a questão constitucional que engloba a temática, principalmente no que se refere à não observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência e da não autoincriminação.
Pretendeu-se, com este artigo, colaborar com as discussões atuais a respeito desta temática, além de acrescentar alguns questionamentos e análises, como o fato de que o acordo de delação premiada é firmado em um momento de vulnerabilidade do acusado, tendo em vista a sua prisão preventiva, o que compromete a questão da voluntariedade, exigida no art. 4º da Lei nº 12.850/2013.
Para a revisão bibliográfica, utilizamos diversos autores, dentre os quais destacam-se: Aires (2017), Canotilho & Brandão (2017), Cunha (2014), Costa (2016), Greco (2014), Grossi (2015), Mello (2015), e Zaffaroni (1996).
Constatou-se, nesta pesquisa, que há graves falhas na aplicação da Lei que prevê a colaboração premiada, como vimos, não somente questões éticas, mas legais, tendo em vista que ela já traz a não observância de princípios fundamentais e constitucionais, como é o caso dos princípios de contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e não autoincriminação.
Além disso, o instituto da delação premiada é causa de instabilidade jurídica por alterar penas previstas no Código de Processo Penal e se basear na celeridade de uma investigação e eficiência das autoridades policiais, em detrimento da ameaça ao Estado Democrático de Direito.
É altamente questionável o fato de o Estado prometer ao réu impunidade e atenuação de responsabilidade em troca de provas que incriminem terceiros e desmantelem a organização criminosa a qual este pertence. Do ponto de vista ético, muito se tem discutido.
A prisão preventiva também se apresenta como um modo coercitivo de obter o acordo de delação premiada, hipótese que também não está prevista no Código de Processo Penal. De modo que são muitos os motivos de questionamento de doutrinadores.
Em palestra proferida a magistrados, o ministro Marco Aurélio de Mello chamou a delação premiada de um ato de covardia, devido a não espontaneidade de sua colaboração, pautada no medo da condenação.
Desse modo, tendo em vista a pesquisa bibliográfica feita, entende-se o instituto da colaboração premiada uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, principalmente pela sua inconstitucionalidade. Em um país que valoriza o bom andamento da justiça, é imperativo que as leis estejam pautadas na legalidade, e não a uma “justiça a qualquer preço”.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOLETO, Laiza Mendes Silva. Delação premiada no combate ao crime organizado no Brasil: um risco ao Estado Democrático de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52473/delacao-premiada-no-combate-ao-crime-organizado-no-brasil-um-risco-ao-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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