Resumo: O Direito, atualmente, não encontra na doutrina as mesmas ideologias sobre sua aplicação que outrora foram aceitas. Hoje, seguindo os avanços do neoconstitucionalismo, com a superação do positivismo e o destaque à interpretação como forma de criação do Direito, percebe-se que a aplicação das normas deve dar-se por meio de procedimento democrático, guiado por princípios hermenêuticos específicos. No Direito Eleitoral não poderia ser diferente. As normas eleitorais, constitucionais por essência, devem ser interpretadas sob o escopo dos princípios interpretativos constitucionais, observando-se a segurança jurídica quando de sua aplicação. O presente artigo resgatará o histórico avanço dos métodos de interpretação e aplicação do Direito, sob a ótica do (neo)constitucionalismo, para que então proceda à conclusão acerca da criação de uma interpretação constitucional eleitoral.
Palavras-chave: Interpretação constitucional. Normas eleitorais. Processo constitucional democrático.
Abstract: The law currently does not find in doctrine the same ideologies on its application that were once accepted. Today, following the progress of neoconstitutionalism with the overcoming of positivism and the emphasis on interpretation as a way of creating the law, it is clear that the application of the standards should be given through democratic procedure, guided by specific hermeneutic principles. The Electoral Law could not be different. Electoral rules, constitutional by essence, must be interpreted within the scope of constitutional interpretive principles, observing the legal certainty upon its application. This article redeem historic breakthrough methods of interpretation and application of law, from the perspective of (neo)constitutionalism, to then proceed to the conclusion on the creation of an electoral constitutional interpretation.
Keywords: Constitutional interpretation. Electoral norms. Democratic constitucional procedure.
1. PREFÁCIO
O homem, ao ceder parte de sua liberdade em prol da existência do Estado, firmando um verdadeiro contrato social, aspirou ver-se protegido por essa figura jurídica superior, a qual aplicaria a justiçapor meio da coerção aos que conturbassem a ordem e a paz.
O Estado, então, no intuito de corresponder aos anseios dos indivíduos incluídos em um grupo social, passou a resguardar a segurança e a estabilidade sociais, utilizando-se, para tanto, da legislação em sentido amplo.
As leis, nesse panorama, confundiam-se como instrumentos de correção dos atos imorais e antiéticos, assegurando aos integrantes de uma comunidade organizada a possibilidade de terem seus conflitos resolvidos pelo Poder Judiciário.
Entretanto, as leis, como normas jurídicas,não são devem ser tomadas por sinônimos de normas de ética ou de moral: estas são cambiantes e alteráveis, residindo no imaginário social e se originando de costumes, cultura e demais fatores sociológicos; aquelas são perenes e se originam de procedimentos específicos previamente estabelecidos pelo poder constituinte originário.
Por outro lado, também é certo que a lei possui uma estreita relação com a moral e a ética, uma vez que encontra sua origem nas normas de conduta vigentes em determinada nação. Tentar segregar a lei da moral e da ética, no intuito de alcançar-se uma norma pura e indene de valores abstratoscomo liberdade e justiça, ensejaria a criação dos mais variados atentados aos direitos básicos do homem, a exemplo do que ocorreu com o fascismo e o nazismo durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
Nesse desiderato, a doutrina constitucional vem se mostrando cada vez mais preocupada com a inserção de normas com alta carga valorativa em um documento solene, rígido e superior. É o que se pode chamar de proteção constitucional das normas éticas e morais de conduta, ou, acompanhando o estado de arte do assunto, de princípios constitucionais.
No que diz respeito ao Direito Eleitoral, é correto afirmar que, como qualquer dos ramos do direito, encontra-se guiado por determinados valores de base ética e moral. De tal forma, estes valores, ou melhor, princípios possuem extrema importância tanto para a criação de regras eleitorais quanto para a solução dos casos difíceis (hard cases) que são levados ao Judiciário Eleitoral.
Para que se tenha uma maior compreensão sobre o tema, é necessário que sejam delineadas as diferenças entre princípios e regras. Após, deve-se analisar o papel da interpretação como forma de aplicação do Direito ao caso concreto, sob o prisma dos princípios hermenêuticos constitucionais. Por fim, munido com informações suficientes, analisar-se-á a interpretação como chave para a solução de conflitos entre princípios eleitorais.
2. O avanço do direito e o constitucionalismo: um resumo histórico-teórico
Inicialmente, antes de adentrar-se no cerne do presente estudo, faz-se mister discorrer, resumidamente, sobre as nuances que envolvem o avanço do Direito, sob o prisma do constitucionalismo, a fim de revelar a suainfluênciano desenvolvimento de uma interpretação e aplicação constitucional das normas.
Para alcançar o estado científico atual, o Direito ultrapassou diversos marcos teóricos através dos tempos. Partindo da sua confusão com a Moral e a Ética, passando pela busca de um conceito indene de subjetivismos e chegando na sua reaproximação da Filosofia, o Direito sofreu diversas transformações ideológicas até alcançar o estado de arte contemporâneo.
Relevando-se apenas os registros mais importantes para o assunto aqui tratado, ecom base no desenvolvimento de um novo constitucionalismo, tem-se o Direito sob a visão jusnaturalista. Para esta corrente, os direitos seriam decorrentes da própria natureza das coisas, inerentes ao homem pela simples razão de sê-lo.
Conforme Barroso (2015), o jusnaturalismo, desenvolvido no séc. XVI, era inspirado por princípios de justiça universalmente válidos, servindo como impulsionador para as revoluções liberais. Tais princípios tinham por base ideais éticos e morais, aproximando a lei da razão e dos costumes arraigados na sociedade.
Porém, o grau de abstração das normas jusnaturalistas era tamanho que, com o advento do iluminismo e consequente afastamento de tudo o que não possuía embasamento científico (derrocada da mitologia), acabaram por ser superadas.
Mais adiante, com a marginalização do jusnaturalismo, deu-se a ascensão do positivismo no final do século XIX. Com o positivismo jurídico, o Direito equiparou-se à lei, distanciando-se da filosofia e das preocupações com conceitos como justiça e legitimidade (BARROSO, 2015).
Inclusive, no âmbito do constitucionalismo — “técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos” conforme leciona Canotilho(2008 apud LENZA, 2009, p. 4) —, o positivismo exerceu grande influência na conceituação de Constituição como norma positiva suprema (LENZA, 2009).
Contudo, o positivismo encontrou seu fim nas atrocidades ocorridas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Sob a égide da legalidade, cometeram-se diversos atentados à dignidade física e moral dos seres humanos, a exemplo do ocorrido na vigência dos regimes nazista, na Alemanha, e fascista, na Itália.
Com isso, notou-se que o Direito não se resumia apenas à lei; entendê-lo dessa forma, separando-o dos princípios universais de justiça, mostrou-se inadequado e até mesmo perigoso. Foi então que adveio a corrente teórica denominada pós-positivismo e a reaproximação entre Direito e Filosofia.
É importante frisar que a superação do positivismo ocorreu de maneira concomitante ao surgimento de um novo constitucionalismo, conforme menciona Barroso (2015). Como consequência, a Constituição passou a ser considerada não mais apenas a norma positiva suprema, mas igualmente o centro de todo o ordenamento jurídico moderno, servindo de filtro para a aplicação das demais normas.
Ressalve-se que a doutrina estrangeira, embora reconheça os avanços trazidos pelo neoconstitucionalismo aos paradigmas do positivismo, não ratifica a existência de um pós-positivismo, porquanto não se encontrariam os ideais positivistas superados, mas somente incrementados (BERNARDES e FERREIRA, 2016).
De qualquer modo, como decorrência dos avanços acima apontados, é de se afirmar que o Direito atualmente se pauta por um novo norte: a Constituição. A filtragem constitucional das normas deu ensejo ao desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional, com princípios próprios que se agregam aos tradicionais.
Para melhor se compreender a sistemática da interpretação constitucional, é necessário que se definam as diferenças entre princípios e regras, tanto intrinsecamente (o que são), quanto extrinsecamente (como se aplicam).
3. Princípios, regras esuas diferenciações
Amudança do Direito, sob o prisma de um novo constitucionalismo, oportunizou a origem de uma forma de interpretar e aplicar normas até então inédita. Mas não é só; o neoconstitucionalismo também trouxe à tona a necessidade de se reinventar o próprio sistema normativo.
Antes da superação do positivismo, entendia-se que o Direito se cingia às leis. Estas se consubstanciavam em regras que previam fatos, com certa abstratividade e generalidade, no escopo de abarcarem o máximo de situações possíveis, uma vez que seriam, dentro do ideal positivista, suficientes para a solução de qualquer conflito social.
Entretanto, com a derrocada do positivismo e a reaproximação entre Direito e Filosofia, a ideia de onipotência das leis não mais condizia com os anseios sociais. É que as normas, ainda que almejassem solucionar todas as mazelas da sociedade, por se apresentarem como puro dever-ser, não eram suficientes para uma justa solução de todos os conflitos.
Necessária era a reaplicação de postulados morais e éticos básicos na composição dos litígios, principalmente quando as regras deixavam lacunas a serem preenchidas pelo aplicador do Direito. E foi então queos princípios ganharam destaque.
Consagrando valores abstratos, tais como liberdade, igualdade e fraternidade, os princípios possuíam alta carga axiológica, aplicando-secomo forma de solução de omissões legislativas, ou seja, como ferramentas de integração do Direito e, igualmente, como norte para a interpretação das normas.
Com avanço do constitucionalismo e de sua incessante busca pela limitação do poder, por meio de um documento formal dotado de normatividade (a Constituição), entendeu-se ser de suma importância a elevação dos princípios mais basilares ao nível de princípios constitucionais.
A partir desse panorama, verifica-se uma escalada dos princípios de meros instrumentos subjacentes à aplicação das leis (de integração, fontes ou mesmo norteadores do Direito, desmuniciados de normatividade) a verdadeiras normas.
Na tradicional acepção do contrato social, os cidadãos abriam mão de uma parcela de suas liberdades em prol da segurança social. Assim, embora o poder lhes pertencesse, era preciso um limite em sua manifestação, a fim de que o interesse supostamente coletivo não fulminasse direitos individuais básicos fundados em valores morais e éticos.
Então, para que se impusessem os limites perquiridos, as Constituições, as quais passaram a enunciar um rol de princípios carregados de valores voltados à proteção dos indivíduos contra o excesso estatal, teriam de conter força normativa e aplicabilidade imediata.
O texto constitucional, nesse compasso, adquire “(…) o caráter de norma jurídica, dotada de imperatividade, superioridade (dentro do sistema) e centralidade, vale dizer, tudo deve ser interpretado a partir da Constituição.” (LENZA, 2009, p. 10), não se podendo enxergar o Direito apartado das noções de justiça e de valores ético-morais.
Os princípios, então, ganharam força bastante para serem aplicados a casos concretos, tornando-se espécies, ao lado das regras, do gênero norma jurídica. As normas outrora tidas como meramente morais e éticas, as quais influíam nas decisões judiciais mas não as vinculavam, nesse momento passaram a ter aplicabilidade imediata.
Contudo, pelo seu alto grau de abstratividade e sua imensa carga axiológica, o princípio não poderia ser aplicado pelos métodos comuns de interpretação, ainda mais quando surgiam situações de tensão entre dois ou mais princípios de igual importância.
É dizer, os métodos hermenêuticos tradicionais (gramático, histórico, sistemático e teleológico) não ofereciam subsídios suficientes para que se concretizassem os princípios, e menos ainda as ferramentas clássicas de solução de conflitos de normas (critérios temporal, hierárquico e de especialidade) tinham funcionalidade quando valores constitucionais se chocavam.
Por esta razão, era necessária a criação de um novo método de aplicação de normas, não mais focado na subsunção de fatos aos tipos normativos, tomando por pressuposto uma nova definição dos conceitos de princípios e normas.
Assim, tem-se que os princípios atualmente são considerados normas jurídicas com aplicabilidade imediata. Não restam dúvidas acerca dessa força normativa, sobrando à doutrina delinear o modo se sua aplicação.
As regras são espécies de normas jurídicas as quaisestipulam consequências a determinados atos praticados no mundo dos fatos. São dotadas, desse modo, de certo grau de generalidade e coercitividade. Aplicam-se pela subsunção, ou seja, pelo enquadramento do fato à norma. Em caso de colisão de regras, ou a norma é válida e plenamente aplicável aos fatos que prevê, ou é inválida e deve ser extirpada do ordenamento jurídico, ao estilo do “tudo ou nada” (BERNARDES e FERREIRA, 2016).
Os princípios, também integrantes do gênero norma jurídica, consistem em valores positivados em determinado documento solene dotado de normatividade e, por mais das vezes, de superioridade hierárquica. O grau de abstração destes é maior que o das regras, e não há previsão de uma consequência para sua violação.
A aplicação dos princípios e a solução das tensões entre dois ou mais deles são o que se extrai de mais importante neste estudo para a compreensão da nova interpretação constitucional. Isto porque, em razão das suas peculiaridades e diferenças em relação às regras, não se mostra adequado que sejam aplicados à maneira do “tudo ou nada”.
Devido à sua alta carga axiológica, os princípios possuem uma “dimensão de peso” e devem ser aplicados de modo que se garanta a sua máxima efetividade. Quando colidem, é necessário que se faça um juízo de ponderação concreta ou mesmo abstrata, para que todos sejam aplicados no grau máximo que os fatos permitam. Frise-se que a utilização de um princípio em determinado caso de tensão não invalida o outro que foi afastado, inexistindo falar em extirpação de princípios pelos critérios hierárquico e temporal de solução de conflitos normativos.
Dessa forma, nota-se que a aplicação dos princípios é subjetiva, porquanto se delega ao aplicador e intérprete da norma um alto poder de escolha, com base na situação apresentada, a fim de que osutilize de tal forma que nenhum seja afastado.
A interpretação, nesse quesito, é que norteará a correta utilização dos princípios e servirá como base para o controle das decisões judiciais. É dizer, embora caiba ao aplicador do direito a escolha, com base nos fatos, do princípio que prevalecerá, é seu dever fazê-la dentro de certos parâmetros interpretativos que ofereçam estabilidade e segurança na solução de conflitos.
4. A interpretação constitucional
As normas principiológicas, em virtude de sua peculiaridade, passam por um processo de aplicação diferenciado. A interpretação, nesses casos, exerce papel primordial para uma decisão justa e fundamentada.
É patente que o ato de interpretar também é de extrema importância na aplicação das regras. Não existe aplicação do direito a casos concretos sem uma dose de interpretação. Nesse sentido, inclusive, a velha máxima in claris non fit interpretatioparece incongruente com a doutrina jurídica contemporânea(BERNARDES e FERREIRA, 2016).
Porém, tendo em vista que os princípios consagram valores subjetivos e de elevada abstratividade (liberdade, segurança, saúde, etc), a interpretação se torna ferramenta essencial à concretização destes, sob a luz dos fatos concretos ou hipotéticos.
Assim, considerando ainda que os métodos de interpretação tradicionais não se adequavam às normas principiológicas, solidificou-se na doutrina constitucional uma nova classificação de princípios hermenêuticos norteadores da aplicação das normas. São os denominados princípios da interpretação constitucional.
Para Barroso (2016, p. 8), esta “(…) circunstância é uma decorrência natural da força normativa da Constituição, isto é, do reconhecimento de que as normas constitucionais são normas jurídicas, compartilhando de seus atributos.”
São princípios interpretativos tipicamente constitucionais: o princípio da unidade da constituição; o princípio da máxima eficácia; o princípio da concordância prática; o princípio da justeza; o princípio do efeito integrador; o princípio da interpretação conforme a constituição(BERNARDES e FERREIRA, 2016).
A Constituição, sob a ótica do princípio da unidade, é um documento indene de antinomias e incongruências. Todas as normas constitucionais, sejam regras ou princípios, existem harmonicamente em nome de um todo. Como consequência, atualmente é impossível falar-se em normas constitucionais inconstitucionais.
O princípio da máxima efetividade, por seu turno, informa que as normas constitucionais principiológicas devem ser aplicadas de forma que se garanta a otimização de sua eficácia, levando em consideração que possuem uma dimensão de peso e podem ser aplicadas em variáveis graus.
Como consequência dos princípios da unidade da constituição e da máxima efetividade, na ocorrência de tensão entre normas constitucionais principiológicas, deverá o aplicador se utilizar da ponderação a fim de aplicar ambas no máximo que as circunstâncias fáticas permitam, eliminando o conflito aparente sem afastar nenhum dos princípios.
Os princípios da justeza e do efeito integrador possuem o escopo de proteger o ordenamento jurídico estatal, estatuindo que o intérprete deve tanto abster-se de subverter as instituições constitucionais quanto promover a integração e a unidade política do Estado.
Pedra de toque da hermenêutica constitucional é o princípio da interpretação conforme a constituição. Tal postulado se aplica na existência de normas infraconstitucionais polissêmicas, ou seja, que possuam mais de uma interpretação possível, impondo que deve ser adotado o sentido que mais se aproxime das normas constitucionais.
Konrad Hesse, inspirador da criação dos postulados até então conceituados, afirma não ser o princípio em questão “(…) ligado à interpretação da constituição em si, mas dos atos normativos infraconstitucionais” (BERNARDES e FERREIRA, 2016, p. 255).
Porém, discordando-se dessa opinião, tem-se que a interpretação conforme diz respeito, em muito, à proteção do texto constitucional. Isso porque não se pode enxergar a interpretação de normas infraconstitucionais sem uma interpretação conjunta dos primados constitucionais. Para aplicar-se uma norma infraconstitucional, é importante que se interprete e se aplique em conjunto uma norma constitucional.
A título de ilustração, utilizando-se do Direito Eleitoral, pode-se usar a colisão hipotética entre os princípios da lisura nas eleições, como desdobramento do princípio da cidadania, e da liberdade de expressão.
A solução desse caso envolve não apenas estes princípios, mas outros como devido processo legal, direito de resposta, proteção à imagem e outros. Faz-se uma análise profunda de todos os princípios inerentes à colisão, interpretando-se tanto normas infraconstitucionais quanto constitucionais, no intuito de saber o que e em que medida prevalecerá: a idoneidade do procedimento eleitoral ou a liberdade de manifestação das informações.
Desse modo, nota-se que a aplicação do direito se confunde com a própria aplicação das normas constitucionais. A técnica de interpretação guiada pelos princípios até então apresentados, acompanhada dos tradicionais métodos gramático, histórico, sistemático e teleológico, mostra-se como a mais indicada para a solução dos conflitos normativos hodiernos.
Resta, portanto, delinear o modo como deve realizar-se a interpretação, começando com a definição do que seria o ato de interpretar para, depois, traçar algumas considerações sobre sua limitação sob o escopo constitucional.
5. Limites à interpretação como método de criação do Direito
Como visto, a interpretação exerce uma enorme importância na aplicação das normas jurídicas, com maior destaque quando se tratam de princípios. Por isto, urge tecer considerações acerca do papel da interpretação no cenário jurídico atual.
Tradicionalmente, a interpretação da norma se construía sobre dois fundamentos: a norma, por meio de sua previsão dos fatos, era a fonte de solução dos problemas jurídicos; o intérprete apenas se encarregava de revelar a vontade da norma, trazendo à tona a solução nela contida (BARROSO, 2015).
Com base no que já fora discorrido, é perceptível que essa corrente interpretativa foi fortemente influenciada por ideais positivistas. O direito resumido à lei, sem oportunidade de subjetivismos ou moldagem às nuances fáticas, transformava o juiz em mera “boca da lei”, consolidando-se o brocardo dura lex, sed lex.
No entanto, ultrapassado o paradigma teórico clássico, com a construção e solidificação do neoconstitucionalismo, deixou-se de considerar a lei como norma onipotente. Não poderia ela prever todos os acontecimentos futuros, porquanto estes são incertos e criativos; nem poderia o juiz, intérprete da lei, agir sem uma dose de inventividade, a depender dos fatos levados a sua apreciação.
De tal modo, a norma não mais era aplicada de maneira pura aos casos, já que não poderia um texto escrito acompanhar a liquidez das mudanças sociais. O intérprete, por sua vez, era agora coparticipante do processo de criação do Direito (BARROSO, 2015). Mas então, como se daria o processo de interpretação sob este prisma?
Aos intérpretes cabe aplicar as normas com certa dose de liberdade, não havendo confundir essa discrição com arbitrariedade. É que, embora os aplicadores do Direito tenham uma margem criativa, não podem usá-la para subverter o sistema jurídico-constitucional, muito menos criar normas que sublimem
Caso o Poder Judiciário, no exercício de sua atividade, passe a interpretar arbitrariamente as normas, tanto ferirá o princípio da separação de funções do poder, por criar normas em confronto com o texto da lei, quanto da segurança jurídica, uma vez que as decisões se tornariam voláteis.
De acordo com Gadamer (1991 apud OLIVEIRA, 2016, p. 46), “Toda interpretação, é preciso aprender com a Hermenêutica Filosófica, assim como toda a atividade humana, dá-se num contexto histórico, sob o pano de fundo de tradições.”
Portanto, para que proceda à interpretação da norma, o aplicador deve estar atento ao contexto em que se encontra inserto, tanto social, pelas movimentações das massas pensantes, quanto jurídico, pelos julgamentos que o precederam.
O intérprete, nesse compasso, encontra-se vinculado ao passado, não podendo renegá-lo no ato de decisão. Por outro lado, não se pode dizer que o aplicador do direito adotará sempre o entendimento dos intérpretes pretéritos. Ter-se-ia, neste caso, o engessamento do direito.
É interessante utilizar as lições de Dworkin (2000 apud OLIVEIRA, 2016, p. 70), no intuito de ilustrar a aplicação do direito ligada ao passado, mencionado a sua versão da metáfora do “romance em cadeia” deChueiri, assim apresentada:
Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está escrevendo um capítulo a esse romance, não começando outro e, depois, manda os dois capítulos para o número seguinte, e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então. (…)
Assim, deve o aplicador do direito estar atento ao que fora produzido anteriormente, com o duplo trabalho de conhecer o desenvolvimento jurisprudencial até o momento da decisão e de interpretá-lo a fim de amoldá-lo ao caso concreto. Sem observar essas especificidades, o intérprete arrisca transformar a jurisprudência em um romance sem coesão.
Adiante, é cediço que se desvincular do passado requer cautela. Modelar as normas, por meio da interpretação, a cada novo caso apresentado em juízo, ao alvedrio de qualquer limitação, criaria um cenário permeado pela insegurança jurídica.
Para que o intérprete inove, então, com a aplicação da norma, deve declinar os motivos que o levaram a dar novo rumo ao entendimento até então em voga. É necessária, portanto, que a decisão seja devidamente fundamentada.
A fundamentação servirá de controle da viabilidade das escolhas adotadas pelo intérprete, dando oportunidade à comunidade para que participe e entenda as razões que influíram na mudança do norte interpretativo.
6. A interpretação constitucional e a aplicação das normas eleitorais
Toda a exposição até aqui feita servirá de base para a análise de uma interpretação constitucional em matéria eleitoral, considerando esse ramo do Direito como um desdobramento direto da Constituição.
O poder, em uma república democrática, é um bem jurídico/político pertencente ao povo. Contudo, por questões de ordem prática (quantidade de cidadãos em determinada nação, extensão de território e outros), não se mostra conveniente a sua manifestação pelos próprios integrantes do Estado. É necessária, portanto, a efetivação de uma democracia representativa.
A escolha dos representantes do povo, os quais exercerão as funções do poder, é matéria de extrema importância relacionada à própria organização do Estado, uma vez que é o ato em que o povo manifesta sua vontade, em um exercício claro de democracia. Desse modo, é imprescindível sua regulação por meio de normas, no intuito de se evitar que esse processo de escolha sofra com maculações que subvertam a vontade popular.
Assim, é inegável que, por se tratarem de assuntos afetos à organização política de um território, as supracitadas normas eleitorais possuem caráter materialmente constitucional, devendo ser positivadas no bojo da própria Constituição como matérias de ordem pública.
Por essa razão, todo o paradigma acima sobre aplicação de regras e princípios por meio de uma interpretação constitucional é plenamente aplicável ao Direito Eleitoral, apenas merecendo retoques para melhor adequação às peculiaridades deste ramo.
O cenário normativo eleitoral hodierno encontra previsão na Constituição, não havendo maior margem para as normas infraconstitucionais (PEREIRA, 2010), isto é, o legislador ordinário encontra-se vinculado às normas constitucionais.
Portanto, deve sempre o aplicador de normas eleitorais guiar-se pelo que informa a Constituição. É de se ver que tal premissa em muito se assemelha com o que preleciona o princípio hermenêutico da interpretação conforme.
Não se pode enxergar, nos tempos atuais, um ordenamento jurídico desvencilhado de uma Constituição como norma suprema, ao redor da qual gravita o restante das espécies normativas que lhe têmcomo fundamento de existência.
Nesse passo, nota-se que o papel do intérprete eleitoral não é apenas o de informar a vontade da norma, mas de dá-la um sentido prático com base nas circunstâncias que lhe são apresentadas.
A título de exemplo, toma-se a colisão entre a liberdade de expressão e o direito de resposta em matéria eleitoral. Chocam-se, na questão, dois princípios de índole constitucional. Não há como, pois, resolver o conflito por meio dos métodos básicos de interpretação, frente à abstratividade dos valores colidentes.
O aplicador das normas eleitorais deve guiar-se pelos preceitos interpretativos constitucionais historicamente construídos, utilizando-se da ponderação para que, com base nos fatos concretos, chegue a uma decisão inventiva, é dizer, criadora do Direito.
Em outra mão, como já discorrido, necessita-se que as decisões judiciais sigam uma linha histórico-teórica lógica, ou seja, devem ter coesão com as que foram exaradas no passado, buscando escrever um romance com certa dose de coesão.
Na seara eleitoral, tal questão toma contornos específicos. É porque a Justiça Eleitoral tem seus membros renovados de maneira periódica, o que, a uma primeira vista, dificultaria a criação de uma jurisprudência consistente.
No entanto, não se pode utilizar a temporariedade de exercício da magistratura como égide para decisões cambiantes e sem elo com o passado. Os juízes eleitorais, como intérpretes e aplicadores do Direito, devem ter consciência de que fazem parte de um projeto maior que suas decisões individuais.
É certo afirmar que os aplicadores das normas eleitorais expressam, de maneira marcante, a metáfora do “romance em cadeia”. Isto pois necessitam (mais do que em relação a outros ramos do Direito) ter um conhecimento acerca da história das decisões até então tomadas, para interpretá-las e escrever seu próprio capítulo do romance.
Desta sorte, a interpretação constitucional é de grande importância para a construção de uma Justiça Eleitoral estável, no que tange às suas decisões, estabelecendo-se como dever dos intérpretes eleitorais observarem o passado, quando da concretização normativa, formando uma linha coesa de decisões jurisprudenciais.
Ressalte-se, por fim, que não se fala em estagnação das decisões judiciais. O instrumento fundamental, no entanto, para que uma decisão destoe do restante dos capítulos da construção jurisprudencial pátria, é a fundamentação, a qual deverá demonstrar a lógica por detrás do decisório.
7. Considerações finais
A aplicação do Direito encontra força, atualmente, na interpretação constitucional. O Direito Eleitoral, especificamente, sendo matéria essencialmente constitucional, deve se guiar pelos princípios hermenêuticos próprios decorrentes do novo constitucionalismo.
A temporariedade que identifica o exercício do cargo de magistratura eleitoral não pode servir como égide para a criação de jusrisprudência desorientada e divergente. A hermenêutica constitucional, guiada pelos princípios interpretativos até aqui delineados, mostra-se como a chave para a solução dessa problemática.
Dessa forma, o Direito Eleitoral atual se encontra norteado pela Constituição, e a aplicação das normas de matéria eleitoral, criadoras de direito, não pode ocorrer de maneira arbitrária, sob pena de descredibilização da instituição judiciária eleitoral.
Referências
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, jan. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: . Acesso em: 25 Out. 2016.
BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional (TOMO I – Teoria da constituição). Coleção Sinopses para Concursos. Vol. 16. 6. ed. rev. e atual. Bahia: Juspodivm, 2016.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Processo Constitucional. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
PEREIRA, Erick Wilson. Direito Eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010.
Bacharel em Direito. Aluno-Residente da Escola Superior da Defensoria Pública do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TELES, Paulo Guilherme Amorim. A interpretação constitucional e a aplicação das normas eleitorais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52517/a-interpretacao-constitucional-e-a-aplicacao-das-normas-eleitorais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: SABRINA GONÇALVES RODRIGUES
Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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