RESUMO: Trata-se de artigo científico cujo objetivo é a análise da mutação constitucional. Para tanto faz-se uma breve introdução sobre a temática; apresenta-se seu conceito; expõe seus pressupostos e destaca seus limites.
PALAVRAS-CHAVE: Mutação constitucional; conceito; pressupostos; limites; alteração informal.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Conceito. 3. Pressupostos. 3.1 Abertura/elasticidade constitucional. 3.2 Grau de rigidez da Constituição. 3.3 Existência de processos frequentes de alteração formal da Constituição. 3.4 Controle de constitucionalidade. 3.5 Extensão da Constituição. 4 Limites. 5 Conclusão. Referências bibliográficas.
1 Introdução
As Constituições prezam pela estabilidade, no entanto, devem coadunar com a realidade social vigente.
Deste ‘conflito’ surge uma espécie de “tensão entre a Constituição e a realidade constitucional, vindo a demonstrar que, quanto mais uma Constituição se aproximar do presente, maior tenderá a ser a sua força normativa e menor será o risco dela cair em descrédito” (BOTELHO, 2011, p. 26).
Tal aproximação se dá através dos mecanismos de alteração da Constituição, isto é, através de instrumentos hábeis a modificá-la, seja para corrigir normas que nasceram destoantes da realidade social, seja para modificá-las em razão de mudanças sociais posteriores.
Nessa linha de pensamento, Botelho aduz que,
Como é impossível prever todos os desenvolvimentos futuros, as Constituições devem possuir formulação elástica e válvulas de escape que lhes permitam responder à dinâmica da sociedade. Mas os mecanismos institucionais formais, previstos nas próprias Constituições, não são os únicos meios de mudança constitucional, já que as mutações constitucionais podem constituir instrumento de preservação da normatividade constitucional, como serve de exemplo a Constituição norte-americana de 1787, que revelou grande capacidade de adaptação graças à interpretação que lhe é conferida ao longo dos séculos (2011, p. 14).
Ressalta-se, portanto, a importância da mutação constitucional como instrumento de preservação da eficácia da Constituição, mantendo-a atualizada frente às mudanças sociais ocorridas.
Reforçando a existência de tal mecanismo, Kublisckas diz que,
Em face da evolução dos hábitos, costumes e valores da sociedade, da dinâmica econômica, das inovações tecnológicas, das práticas políticas e da atuação dos grupos de pressão, dentre outros inúmeros fatores, as normas constitucionais sofrem alterações profundas e contínuas de sentido, significado e alcance, alterações estas operadas por mecanismos difusos, paulatinos, assistemáticos e que não ensejam a modificação da literalidade do texto dos dispositivos constitucionais (2009, p. 69).
No mesmo sentido, Mendes e Branco defendem que,
O estudo do poder constituinte de reforma instrui sobre o modo como o Texto Constitucional pode ser formalmente alterado. Ocorre que, por vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma (2014, p. 76).
Portanto, nos dizeres de Botelho,
O certo é que as Constituições não mudam somente por procedimentos expressamente previstos no texto constitucional, pois o impacto da evolução política e social pode atuar, ainda que de forma imperceptível, através de outros canais. Paralelamente aos procedimentos de mudança constitucional regulados pela própria Constituição, ocorrem modificações, normalmente lentas, não na letra, mas no significado das disposições constitucionais.
As mutações constitucionais se produzem quando a normatividade constitucional se modifica em razão da realidade político-social, que, sem afetar o texto, transmuda o seu conteúdo. A mudança informal ou mutação constitucional deriva de uma incongruência entre as normas constitucionais e a realidade constitucional, com a constante superação do sentido originário atribuído à norma que busca complementação, através de interpretação integradora (2011, p. 25).
Concluindo-se pela existência, bem como pela importância do instituto, parte-se para a análise mais aprofundada do assunto.
2 Conceito
Diferentemente das reformas constitucionais que efetivamente alteram o texto da Constituição, as mutações,
por seu turno, não seriam alterações “físicas”, “palpáveis”, materialmente perceptíveis, mas sim alterações no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional. A transformação não está no texto em si, mas na interpretação daquela regra enunciada. O texto permanece inalterado (LENZA, 2016, Ebook).
Trata-se na verdade de mudança de interpretação do texto Constitucional, isto é, nada mais é do que a extração de uma nova norma a partir do mesmo texto. O intérprete, levando em consideração a realidade fática que o rodeia, faz uma releitura do texto constitucional, extraindo uma norma que condiz com os aspectos sociais existentes ao seu tempo. Essa ação é realizada mantendo incólume o texto constitucional, atingindo apenas seu aspecto material.
Neste sentido, Barroso explica que,
[...] a mutação constitucional consiste em uma alteração do significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e, além disso, sem que tenha havido qualquer modificação de seu texto. Esse novo sentido ou alcance do mandamento constitucional pode decorrer de uma mudança na realidade fática ou de uma nova percepção do Direito, uma releitura do que deve ser considerado ético ou justo. Para que seja legítima, a mutação precisa ter lastro democrático, isto é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando respaldada, portanto, pela soberania popular (apud LENZA, 2016, Ebook).
Para Uadi Lammêgo Bulos, mutação constitucional é
[...] o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e dos costumes constitucionais (apud LENZA, 2016, Ebook).
Na mesma linha de pensamento, Padilha aduz que “a mutação constitucional ocorre quando, sem alterar o texto constitucional, há mudança no sentido e alcance do dispositivo da Constituição para atender às novas exigências sociais” (2014, p. 89).
Kublisckas (2009, p.78), por sua vez, dispõe que,
[...] é possível definir a mutação constitucional como sendo o fenômeno por meio do qual, sem emendas ou revisões (processos formais de mudança da Constituição), são introduzidas, no processo de concretização/aplicação, por meio da interpretação constitucional e/ou da integração pelo costume, alterações no sentido, significado e alcance de determinadas normas constitucionais (que tenham o conteúdo minimamente aberto/elástico), desde que estas alterações sejam comportadas pelo ‘programa normativo’, ou seja, promovam o desenvolvimento, complementação, esclarecimento etc., das normas constitucionais escritas, mas não violem nem a sua letra e tampouco o seu espírito.
Reforça-se que a mutação constitucional atua de maneira invisível, vez que não há alterações fáticas na Constituição. Padilha (2014) ratifica esse entendimento dizendo que “na verdade, aparentemente nada acontece, o que muda é a interpretação (significado) de determinado dispositivo” (p.89).
3 Pressupostos
Os pressupostos da mutação constitucional são os fatores que influenciam a existência e a intensidade das mutações constitucionais. São condições hábeis a possibilitar a existência dessa ferramenta de atualização da Constituição.
Segundo Kublisckas, são cinco os pressupostos das mutações constitucionais: abertura/elasticidade da Constituição, o seu grau de rigidez, a existência de processos frequentes de alteração formal da Constituição, o controle de constitucionalidade e a extensão da Constituição.
3.1 Abertura/elasticidade constitucional
Segundo Ana Victória Sanchez Urrutia,
Admitir a possibilidade da ocorrência de mutações pressupõe aceitar a elasticidade da Constituição. Por ‘elasticidade constitucional’ entende-se a capacidade de uma Constituição se adaptar continuamente à realidade sócio-política de um Estado sem a necessidade de modificar formalmente o seu texto. As disposições das constituições elásticas são susceptíveis de múltiplas interpretações e podem ser modificadas informalmente por leis ordinárias, costumes, convenções e pela jurisprudência constitucional (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 88).
A elasticidade da Constituição consiste, portanto, na aptidão de receber influências das mudanças sociais, estando aberta às concepções sujeitas a modificações do entendimento de ‘verdade’ e ‘justiça’.
Tal característica da Constituição pode ser observada no seu caráter principiológico, na necessidade de harmonização das normas constitucionais, na existência de normas a serem complementadas e na necessidade de integração de lacunas constitucionais.
O caráter principiológico é observado quando da existência de normas constitucionais dotadas de alto grau de abstração, isto é, com pouca densidade jurídica. Trata-se de normas que deixam ao aplicador do direito um grau razoável de discricionariedade no entendimento de seu alcance e significado. Cita-se como exemplo, o princípio do devido processo legal, constante no art. 5º, LIV da Constituição Federal.
A necessidade de harmonização decorre do entendimento de que
[...] a Lei Fundamental tem que ser interpretada como um documento único, cujas normas possuem a mesma hierarquia e dignidade, devendo ser aplicadas harmonicamente e sem exclusões, uma vez que a Carta Magna expressa um ‘consenso fundamental’ da comunidade quanto a determinados temas. Em outras palavras, a Constituição não pode ser interpretada ‘em tiras’ (KUBLISCKAS, 2009, p. 85).
Não raro, ocorrem conflitos entre normas constitucionais. Em razão da aplicação do princípio da unidade da Constituição, corroborado pelo que foi dito acima, não há a possibilidade de aplicação da regra do ‘tudo ou nada’, típica dos conflitos de normas infralegais. O conflito de normas constitucionais deve ser resolvido através da ponderação; da aplicação do princípio da harmonização ou concordância prática. Da aplicação deste princípio abre-se uma oportunidade para que o aplicador do direito amplie e restrinja o alcance de determinada norma constitucional, situação que pode contribuir para a existência da mutação constitucional.
A necessidade de integração das lacunas constitucionais surge da imperfeição da Constituição, visto tratar-se de uma obra humana sujeita a erros, omissões, contradições etc. A existência dessas omissões faz surgir a chamadas ‘lacunas constitucionais’. A existência dessas lacunas
também é um fator que influi na ocorrência e na intensidade das mutações constitucionais na medida em que abre espaço, no âmbito do processo de integração (por interpretação analógica, construtiva ou costumes), para o desenvolvimento, complementação e alteração do significado, alcance ou sentido das normas constitucionais (KUBLISCKAS, 2009, p. 87-88).
Portanto, quanto mais aberta/elástica for uma Constituição mais passível será de incidência de alterações informais de suas normas.
3.2 Grau de rigidez da Constituição
O grau de rigidez das Constituições varia conforme a dificuldade de alteração de seu texto.
Conforme Kublisckas (2009), “ainda que não se possa estabelecer uma relação matemática entre ambos, os autores têm destacado que o grau de rigidez constitucional exerce influência decisiva para a ocorrência de modificações informais da Constituição” (p. 89).
Neste sentido, Sanchez Urrutia observa que,
O grau de rigidez constitucional determina a quantidade e a qualidade das modificações informais da Constituição. Assim, uma Constituição com uma cláusula de reforma mais rígida terá uma tendência maior de se modificar pelas vias informais em comparação com uma Constituição que estabeleça um mecanismo de reforma mais ‘flexível’ (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 89).
O entendimento é extremamente defensável, visto que, se as formalidades existentes para a alteração do texto constitucional fossem de fácil cumprimento, a necessidade de aplicação do instituto informal de modificação constitucional perderia bastante utilidade, em razão de uma maior segurança jurídica que está no bojo de uma mudança formal.
Um exemplo trazido pela doutrina é a Constituição dos Estados Unidos da América que, em razão do alto grau de rigidez, vem sofrendo diversas mutações em suas normas.
3.3 Existência de processos frequentes de alteração formal da Constituição
A ocorrência de constantes reformas constitucionais influencia também na questão das mutações constitucionais.
Pedro de La Veja enfatiza que,
A frequência em que ocorrem as reformas e as mutações constitucionais é inversamente proporcional: por um lado, nos países em que são frequentes as reformas constitucionais, há menor predisposição para a ocorrência de mutações constitucionais; e, por outro, nos países em que o texto constitucional é submetido a menor número de alterações formais, registra-se uma incidência maior das mudanças informais (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 89).
No entanto, a existência de corriqueiras alterações formais não impede a coexistência das mudanças informais. Neste sentido, Cunha Ferraz afirma que “mesmo nos países que utilizam com frequência (por vezes até alarmante) a reforma ou emenda formal à Constituição, o recurso à interpretação constitucional, como processo de mutação constitucional, é inegável e necessário” (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 90).
3.4 Controle de constitucionalidade
A doutrina afirma que após a Segunda Grande Guerra o Direito Constitucional passou por transformações significativas. Consolidou-se a ideia de ser a Constituição uma norma jurídica especial hierarquicamente superior a todas as outras existentes no ordenamento jurídico de um Estado; houve o fortalecimento dos mecanismos de controle de constitucionalidade (concentrado e difuso), bem como o fortalecimento do Poder Judiciário como garantidor e protetor da Constituição.
Nesse sentido, Sanches Urrutia aduz que,
As constituições atuais – editadas a partir da II Guerra Mundial – se caracterizam, ademais, pela existência de mecanismos para a sua proteção. O controle de constitucionalidade das leis limita o aparecimento de mutações constitucionais por via dos instrumentos normativos, mas privilegia a possibilidade da transformação gradual da Constituição através das decisões dos órgãos encarregados do referido controle (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 93).
O controle de constitucionalidade influencia na questão das mutações constitucionais, uma vez que faz com que o Poder Judiciário analise mais frequentemente matérias constitucionais. As diversas discussões que surgem da análise das leis, bem como dos atos administrativos estudados à luz da Constituição fomentam o debate sobre o alcance e o significado das normas extraídas dos textos constitucionais.
O resultado desses debates pode ser pela mudança informal das normas constitucionais.
Dentre as diversas classificações das Constituições, quanto à extensão elas podem ser classificadas em sintéticas e analíticas.
Nas palavras de Lenza (2016),
Sintéticas seriam aquelas enxutas, veiculadoras apenas dos princípios fundamentais e estruturais do Estado. Não descem a minúcias, motivo pelo qual são mais duradouras, na medida em que os seus princípios estruturais são interpretados e adequados aos novos anseios pela atividade da Suprema Corte. O exemplo lembrado é a Constituição americana, que está em vigor há mais de 200 anos (é claro, com emendas e interpretações feitas pela Suprema Corte).
[...]
Analíticas, por outro lado, são aquelas que abordam todos os assuntos que os representantes do povo entenderem fundamentais. Normalmente descem a minúcias, estabelecendo regras que deveriam estar em leis infraconstitucionais, como, conforme já mencionamos, o art. 242, § 2.º, da CF/88, que dispõe que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal. Assim, o clássico exemplo é a brasileira de 1988 (Ebook).
A depender da extensão da Constituição, a doutrina entende que haverá maior ou menor incidência da mutação constitucional. Neste sentido, Antunes Rocha pontua que,
Constituições mais extensas e minudentes em suas normas cujas matérias pormenorizam o tratamento dos temas nelas cuidados são menos susceptíveis às mutações, em que pese ser bem certo que em qualquer sistema a força dos desempenhos sócio-políticos arrasta em seu caudal movimentos paralelos impossíveis de serem contidos e percebidos. Por adotar o modelo de Constituição escrita e, historicamente, fazer conter nos textos constitucionais a pormenorização das matérias tratadas, o Brasil sempre relevou a reforma como processo devido para as mudanças que se pretendam levar a efeito no sistema constitucional (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 94).
Muito embora o que foi dito acima, parte da doutrina ressalta que mesmo em Estados que adotam as Constituições analíticas a mutação constitucional se faz presente com certa frequência.
4 Limites
Já foi dito que a mutação constitucional é um meio informal de alteração da Constituição, cuja modificação se dá na norma extraída do texto constitucional sem alterá-lo. Tal modificação ocorre principalmente em razão de um descompasso entre a realidade fática e as normas constitucionais.
Diante do ‘sentimento constitucional’ que paira atualmente sobre os estudiosos do Direito, logo se crê que as mutações constitucionais não são ilimitadas; são submetidas a diversos limites, entre eles a própria Constituição.
Tal linha de pensamento, contudo, não era, no início dos estudos das mutações constitucionais, a prevalecente. Neste sentido, George Jellinek chegou a afirmar que “as proposições jurídicas são incapazes de dominar, efetivamente, a distribuição do poder estatal” e que “as forças políticas reais operam segundo as suas próprias leis e atuam independentemente de qualquer forma jurídica” (apud Kublisckas, 2009, p. 149).
Num segundo momento, ocorre uma completa inversão no posicionamento dos juristas que estudavam o tema das mutações; passa-se a defender a existência de limites, em razão de o instituto não ser um fenômeno fático, mas também jurídico.
Konrad Hesse, por exemplo, aduz que um dos limites da mutação constitucional é a própria Constituição. Segundo ele, ao falar da interpretação constitucional, “é o texto limite insuperável de sua atividade. A amplitude das possibilidades de compreensão do texto delimita o campo de suas possibilidades tópicas” (KUBLISCKAS, 2009, p. 150).
No mesmo sentido, Cunha Ferraz pontua que a “mutação constitucional altera o sentido, o significado e o alcance do texto constitucional sem violar-lhe a letra e o espírito [...] Trata-se, pois, de mudança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que direta ou indiretamente é acolhida pela Lei Maior” (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 151).
Reforçando tal entendimento, José Afonso da Silva diz que,
Nesse contexto, admitindo a possibilidade da existência de mutações constitucionais, ou seja, mudanças de significado, sentido e alcance das normas constitucionais sem a alteração do texto escrito, ganha relevância a questão dos limites das mutações constitucionais. Admitir que as mutações constitucionais são ilimitadas eliminaria o caráter normativo da Constituição e colocaria em risco seu caráter estabilizador (apub KUBLISCKAS, 2009, p. 152).
Destoando dessa linha de pensamento, Uadi Lâmmego Bulos, entende que a mutação somente estaria submetida a limites subjetivos, isto é, à consciência do intérprete da Constituição de estar ou não a ferindo. Isso se justifica em razão do caráter informal da mutação constitucional.
Aceitando parcialmente tal entendimento, Kublisckas aduz que
Contudo, há outros limites além daqueles de natureza meramente subjetiva do aplicar que impedem que as mutações constitucionais ocorram indiscriminadamente e em contrariedade com a Constituição. Com efeito, uma mutação constitucional apenas é aceitável quando o ato que a origina (i) não contraria de modo evidente a letra ou o espírito da Constituição; (ii) está devidamente fundamentado nos preceitos constitucionais interpretados; (iii) é racional; e (iv) é legitimamente aceito pela comunidade (jurídica e não jurídica) (2009, p. 153).
Botelho, por sua vez, identifica três limites para a mutação constitucional, expondo que
Se admitir várias possibilidades de interpretação não se confunde com aceitar qualquer interpretação como possível e se é a efetiva mudança social que desperta a necessidade de evolução da interpretação constitucional, daí se inferem ao menos três limites à mutação constitucional: esta deve se circunscrever aos sentidos possíveis do texto; deve decorrer de genuína mudança na sociedade; e, justamente em face dos limites anteriores, não deve avançar no campo próprio da reforma constitucional (2011, p. 34).
Nesta linha de pensamento, as mutações constitucionais, mecanismo informal de alteração da norma constitucional, encontram um de seus limites na própria Constituição. Não pode tal mudança destoar do texto ou espírito da Constituição sob pena de feri-la, o que torna a mutação inconstitucional. A novel interpretação/costume constitucional deve ir ao encontro da Constituição, estando de acordo com a sua essência.
Coadunando com tal entendimento, Kublisckas aduz que
Apesar de as normas constitucionais serem, em grande parte, abertas, polissêmicas e indeterminadas, a sua interpretação não é anárquica. Nesse sentido, o intérprete não pode inserir no programa normativo significados que ele evidentemente não comporta bem como não pode dar interpretações ao texto que sejam forçadas ou antinaturais da linguagem constitucional (2009, p. 154).
Vale enfatizar ainda a questão do respeito às cláusulas pétreas, isto é, normas constitucionais que não são passíveis de reforma nem de mutação constitucional tendente a aboli-las. Nada impede, no entanto, mutações constitucionais que visam ampliar o alcance das cláusulas petrificadas.
Outro limite às mutações constitucionais é sua pertinência com as mudanças sociais, “eis que a mudança de significado da norma constitucional está atrelada à necessidade de sua adequação à realidade, de forma a garantir-lhe as desejadas efetividade e normatividade”. Neste sentido, “as mutações constitucionais devem estar respaldadas em mudanças sociais que lhes confiram algum lastro democrático” (BOTELHO, 2011, p. 35).
Trata-se de um limite que decorre da lógica do instituto, pois, se as mudanças sociais são o fundamento básico para a mutação constitucional, vez que esta existe para adequar a Constituição a tais mudanças, seria questionável uma alteração informal na Lei Maior que ultrapassasse a necessidade de correlacioná-la com a realidade fática cambiante. O limite encontra-se respaldado justamente nessa linha de pensamento, pois não há necessidade de alterá-la a ponto de ultrapassar o estritamente necessário para que a Constituição esteja de acordo com o contexto social em que está inserida.
Outrossim, o método informal de alteração da Constituição não pode substituir inteiramente os métodos formais. Existem alterações que, dada a sua importância e seus efeitos sobre o ordenamento jurídico, só podem ser realizadas pelos meios formais de alteração da Constituição. Neste sentido, Botelho
Mas qualquer que seja a importância conferida às mutações constitucionais, não se pode perder de vista que a Constituição escrita é o parâmetro e, num sistema de Constituição rígida, a reforma se faz indispensável quando se pretende alterar o texto constitucional, quando são necessárias mudanças sistêmicas ou estruturais, bem como quando tal mudança deva ser mais estável, sendo este procedimento essencialmente democrático, controlável e transparente (2011, p. 38).
Portanto, conforme exposto, não é pelo fato de ser um mecanismo informal de alteração da Constituição que a mutação constitucional será ilimitada. Assim como aos métodos formais, a mutação constitucional deve observar os mais variados limites, sob pena de ser caracterizada como uma interpretação/costume inconstitucional, sofrendo as consequências desse enquadramento.
5 Conclusão
De tudo que foi exposto, conclui-se, portanto, que a mutação constitucional possui significativa importância na manutenção da efetividade do ordenamento jurídico-constitucional, haja vista a necessidade de que este coadune com a realidade vigente e as dificuldades enfrentadas para a alteração formal da constituição.
O processo de alteração informal da constituição, contudo, não é livre, isto é, deve observar limites existentes principalmente na própria constituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOTELHO, Nadja Machado. Mutação constitucional: a constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2011.
KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e mutações constitucionais. São Paulo: Atlas, 2008.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2016 (Ebook).
MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2014 (Ebook).
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017 (Ebook).
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014 (Ebook).
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 11. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
PADILHA, Rodrigo. Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Método, 2014 (Ebook).
Graduado pela Faculdade de Ciências Jurídicas, Gerenciais e Educação de Sinop - Campus Industrial. Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade Damásio. Membro da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JACOBS, Paulo Eduardo Furtunato. Mutação constitucional: conceito, pressupostos e limites Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52528/mutacao-constitucional-conceito-pressupostos-e-limites. Acesso em: 22 nov 2024.
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