INTRODUÇÃO
A justiça criminal se depara, rotineiramente, com a análise de casos envolvendo o tráfico de drogas, sendo, por isso, relevante diferenciar o tráfico comum do tráfico privilegiado.
Aliás, como bem esclarece Renato Brasileiro, “apesar de muitos se referirem a este dispositivo com a denominação de tráfico privilegiado, tecnicamente não se trata de privilégio, porquanto o legislador não inseriu um novo mínimo e um novo máximo de pena privativa de liberdade”. Trata-se, portanto, de “verdadeira causa de diminuição de pena, a ser sopesada na terceira fase do cálculo da pena no sistema trifásico de Nelson Hungria (CP, art. 68)”[2].
Dessa forma, no presente trabalho será analisada uma das inovações trazidas pela Lei n. 11.343/2006: a figura do traficante privilegiado, ou melhor, a causa especial de diminuição de pena, prevista no seu artigo 33, §4º.
DESENVOLVIMENTO
A causa especial de diminuição de pena, prevista no seu artigo 33, §4º, contém a seguinte prescrição normativa:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
[...]
§ 4º. Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012) (grifo nosso)
É imperioso ressaltar, preliminarmente, que a redação original do artigo 33, §4º, sofreu alteração pela Resolução n. 5, aprovada pelo Senado Federal e, pelo Senador Presidente, promulgada em 15 de fevereiro de 2012, suspendendo-se a expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, prevista no texto oficial. O órgão político assim o agiu com fulcro na competência outorgada pela CRFB/88, no seu artigo 52, X, após o Supremo Tribunal Federal ter declarado a inconstitucionalidade daquela expressão nos autos do Habeas Corpus n. 97.256/RS.
Superada essa explicação prévia, passa-se a analisar os demais aspectos da referida causa de diminuição de pena.
Com efeito, a razão de ser do dispositivo em tela é simples e se fundamenta em um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico, o da isonomia aristotélica, isto é, deve-se igualar os iguais e desigualar os desiguais, na medida das suas desigualdades.
Ora, não seria equânime que um agente, que comprovadamente se dedique a atividades criminosas com habitualidade, integrando uma estrutura organizacional voltada para a prática reiterada de crimes, seja equiparado a outro que, sem vínculo com organização criminosa, venha a praticar, de maneira inédita, a conduta tipificada como tráfico de drogas. Por isso, o legislador, de maneira acertada, resolveu fixar uma minorante àquele que seja considerado “traficante de primeira viagem”[3].
Particularmente, não se acredita que, com essa causa de diminuição de pena, haveria um estímulo à prática do tráfico de drogas. Primeiro porque a pena, mesmo com uma eventual causa de diminuição de um sexto a dois terços, ainda permaneceria alta, haja vista que a pena mínima em abstrato é de cinco anos. Segundo porque doutrina e jurisprudência convergem no sentido de que a concessão do benefício depende, necessariamente, da presença cumulativa dos requisitos previstos no artigo 33, §4º, quais sejam: agente primário, bons antecedentes e sem envolvimento com atividade e organização criminosas.
Então, somente será possível reconhecer a existência de um direito subjetivo do acusado em ter a seu favor a concessão da causa especial de diminuição de pena se, e somente se, estiverem presentes os requisitos cumulativos a que se referiu. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes afirma que[4]:
A simples leitura do parágrafo pode induzir o intérprete a imaginar que o benefício está na órbita discricionária do juiz. Contudo, parece-nos que, preenchidos os requisitos, o magistrado não só pode, como deve reduzir a pena, ficando a sua discricionariedade (motivada) limitada à fração minorante (esta orientada pela quantidade e/ou espécie da droga apreendida)
O entendimento jurisprudencial, como dito, segue a mesma linha. Nesse sentido, a Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus n. 96825/SP, relatado pelo Ministro Paulo Gallotti, no julgamento proferido em 01/04/2008, interpretando a causa de diminuição de pena do artigo 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006, entendeu que, satisfeitos os requisitos necessários para a sua concessão, o acusado gozará de um direito subjetivo, conforme se observa do recorte da transcrição do aresto indicado, in verbis[5]:
Ademais, o termo "poderão", utilizado pelo legislador, muito embora indique uma faculdade do juiz para proceder à diminuição da sanção, constitui, na verdade, um dever judicial, representando um direito subjetivo do réu, desde que preenchidos os requisitos lá previstos, sendo certo que, para afastar a incidência da norma, haverá o magistrado, limitando-se a verificar a primariedade e os bons antecedentes, bem como se ele se dedica a atividades criminosas e, ainda, se integra organização desse gênero, de fundamentar a decisão.
Na mesma linha de intelecção, a Quinta Turma da Egrégia Corte de Legalidade, nos autos do Habeas Corpus n. 115473/SP, relatado pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima, no julgamento proferido em 04/12/2008, interpretou a aludida causa de diminuição de pena como sendo um direito subjetivo do acusado, desde que preenchidos os seus requisitos, somente se admitindo o seu afastamento por meio de motivação expressa pelo julgador no caso concreto, consoante se verifica do trecho do acórdão a que se referiu, ipsis litteris[6]:
O juiz, no exercício de suas funções judicantes, atendendo ao princípio do livre convencimento motivado, deve fundamentar a não-aplicação do percentual de 2/3 de redução, sob pena de violação ao art. 93, IX, da CF/88, uma vez que é direito subjetivo do réu a redução prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, desde que preenchidos os requisitos previstos no referido parágrafo.
Destarte, reverberada a imprescindibilidade da satisfação cumulativa de todos os quatro requisitos (agente primário, de bons antecedentes, não dedicação a atividades criminosas e não integração de organização criminosa) para a concessão da causa especial de diminuição de pena, resta analisá-los individualmente.
Nesse seguimento, Renato Brasileiro de Lima leciona que a primariedade é definida com base na interpretação a contrario sensu da reincidência, prevista legalmente no artigo 63 do Código Penal, levando a concluir que primário “é o acusado que pratica determinado crime sem que tenha contra si, à época do fato delituoso, sentença condenatória transitada em julgado referente à prática de outro crime”[7]. Não é excessivo lembrar, ainda, que, considerando o prazo depurador de cinco anos da reincidência, conforme preceitua o artigo 64, I, do Código Penal, “pode-se dizer que, expirado este prazo, mesmo aquele acusado que já fora condenado irrecorrivelmente pela prática de crime anterior deverá ser tratado como se fosse primário”[8].
O mesmo raciocínio de exclusão utilizado para definir a primariedade serve para a conceituação de bons antecedentes. Portanto, será detentor de bons antecedentes o acusado que não tiver maus antecedentes[9]. Deve-se ressaltar, nesse ínterim, o entendimento majoritário de que não podem ser considerados como “maus antecedentes” inquéritos instaurados e processos criminais em andamento, absolvições por insuficiência de provas, prescrições abstratas, retroativas e intercorrentes, isso tudo sob pena de violação do princípio constitucional do estado de inocência[10]-[11]. Dessa forma, são considerados maus antecedentes “apenas condenações criminais com trânsito em julgado que não mais geram reincidência, em virtude do lapso temporal de 5 (cinco) anos previsto no art. 64, inciso I, do CP”[12].
Por sua vez, pelo critério da não dedicação a atividades criminosas, tem-se que “o acusado deve desenvolver algum tipo de atividade lícita e habitual, não apresentando personalidade voltada para a criminalidade, sendo o crime de tráfico a ele imputado naquele processo um evento isolado em sua vida”[13]. Ressalte-se, por fim, que, conforme restou assentado no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do HC n. 253.732/RJ[14], o afastamento da aplicação da referida minorante em decorrência do exercício do tráfico como atividade criminosa somente é admissível quando o órgão julgador se baseia em dados concretos que indiquem, de maneira inequívoca, tal situação, “sob pena de toda e qualquer ação descrita no núcleo do tipo ser considera incompatível com a aplicação da causa especial de diminuição de pena”[15].
A última condição cumulativa refere-se à não integração de organização criminosa, cujo conceito encontra-se previsto no artigo 1º, §1º, da Lei n. 12.850/2013, a seguir transcrito[16]:
Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.
§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
É válido pontuar, por fim, que, em virtude de o artigo 33, §4º, não fazer qualquer ressalva quanto à natureza das infrações penais praticadas pela organização criminosa, a melhor interpretação é no sentido de que o simples fato de integrar organização criminosa serve de obstáculo à concessão da causa especial de diminuição de pena, “pouco importando se tal associação está voltada para a prática de crimes de tráfico de drogas ou de infrações penais de natureza diversa com pena máxima superior a 4 (quatro) anos ou de caráter transnacional”[17].
A causa especial de diminuição de pena, prevista no artigo 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006, é um consectário lógico do princípio da isonomia, diferenciando-se o traficante comum daquele que é primário, de bons antecedentes e que não se dedica às atividades criminosas nem integra organização criminosa.
É forçoso reconhecer que o entendimento doutrinário majoritário e a jurisprudência dos tribunais brasileiros compreendem que apenas quando estiverem presentes os requisitos cumulativos previstos no artigo 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006 (agente primário, bons antecedentes e sem envolvimento com atividade e organização criminosas), é que o será possível reconhecer a existência de um direito subjetivo do acusado em ter a seu favor a concessão da causa de diminuição de pena.
BRASIL. Lei n. 12.850 de 2 de agosto de 2013. Dispõe sobre organização criminosa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas comentada: artigo por artigo: Lei 11.343, de 23.08.2006. 2013.
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 7ª ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013.
STJ, QUINTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC n. 115473/SP. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Data do julgamento: 04/12/2008, DJ: 02/02/2009. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=846064&num_registro=200802020222&data=20090202&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
___, QUINTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 253.732/RJ. Relator: Ministro Jorge Mussi. Data do julgamento: 06/12/2012. DJ: 01/02/2013. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=25884439&num_registro=201201899730&data=20130201&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
___, SEXTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 96825/SP. Relator: Ministro. Paulo Gallotti. Data de julgamento: 01/04/2008. DJ: 29/09/2008. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=3805502&num_registro=200702992599&data=20080929&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[1] O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.
[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 756.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 7ª ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013, p. 327.
[4] GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas comentada: artigo por artigo: Lei 11.343, de 23.08.2006. 2013, p. 178.
[5] STJ, SEXTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 96825/SP. Relator: Ministro. Paulo Gallotti. Data de julgamento: 01/04/2008. DJ: 29/09/2008. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=3805502&num_registro=200702992599&data=20080929&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[6] STJ, QUINTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC n. 115473/SP. Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. Data do julgamento: 04/12/2008, DJ: 02/02/2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=846064&num_registro=200802020222&data=20090202&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[7] Op. cit, p. 757.
[8] Idem. Ibidem, p. 757.
[9] Idem. Ibidem, p. 757.
[10] Idem. Ibidem, p. 757.
[11] Oportuno se faz trazer à baila o entendimento constante do enunciado 444 da Súmula do STJ, a saber: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena base”.
[12] Idem. Ibidem, p. 757.
[13] Idem. Ibidem, p. 757.
[14] STJ, QUINTA TURMA. HABEAS CORPUS: HC 253.732/RJ. Relator: Ministro Jorge Mussi. Data do julgamento: 06/12/2012. DJ: 01/02/2013. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=25884439&num_registro=201201899730&data=20130201&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[15] Idem. Ibidem, p. 758.
[16] BRASIL. Lei n. 12.850 de 2 de agosto de 2013. Dispõe sobre organização criminosa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[17] Idem. Ibidem, p. 758.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. A causa especial de diminuição de pena ("tráfico privilegiado"): contextualização e requisitos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jun 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53047/a-causa-especial-de-diminuicao-de-pena-quot-trafico-privilegiado-quot-contextualizacao-e-requisitos. Acesso em: 22 nov 2024.
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