Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Jurisprudência. Supremo Tribunal Federal.
INTRODUÇÃO[1]
Um dos postulados do direito brasileiro, a dignidade da pessoa humana vem sendo enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal sob vários aspectos. Para melhor compreender os contornos que envolvem a matéria, o presente trabalho será baseado, essencialmente, na obra de Ingo Wolfgang Sarlet[2].
O primeiro ponto que se coloca em discussão refere-se ao status jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana no campo constitucional, isto é, o constituinte atribuiu à dignidade da pessoa humana o patamar de fundamento da República (art. 1º, III, da CRFB/88) e entendeu por bem não a incluir expressamente no rol dos direitos e garantias fundamentais[3].
Essa opção legislativa não infirma e sequer atenua a fundamentalidade da dignidade da pessoa humana. Assim, como bem observa Ingo Wolfgang Sarlet[4]:
além de os direitos fundamentais expressamente consagrados na Constituição encontrarem – pelo menos em grande parte – seu fundamento na dignidade da pessoa humana, também é possível reconhecer que do próprio princípio da dignidade da pessoa humana podem e também devem ser deduzidas posições jusfundamentais (direitos e deveres), ainda que não expressamente positivados, de tal sorte que, neste sentido, é possível aceitar que se trata de uma norma de direito fundamental, muito embora daí não decorra, pelo menos não necessariamente, a existência de um direito fundamental à dignidade.
Em seguida, Ingo Wolfgang Sarlet destaca que o próprio Supremo Tribunal Federal vem seguindo o entendimento doutrinário majoritário no sentido de compreender a dignidade humana como valor-fonte da ordem jurídica, conforme restou consignado no acórdão proferido no HC n. 87.676/ES, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, cujo julgamento ocorreu em 06.05.2008[5]-[6].
Superada, então, a controvérsia acerca da natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, revela-se necessário analisar a dignidade da pessoa humana sob o manto da “abertura material” dos direitos e garantias fundamentais, a partir da jurisprudência da Suprema Corte brasileira.
DESENVOLVIMENTO
A atual ordem constitucional, influenciada pela evolução constitucional desde a proclamação da República (1889, seguida da primeira Constituição Federal e Republicana de 1891) e ancorada no espírito da IX emenda da Constituição norte-americana, assegurou o que se passou a denominar de “abertura material do sistema constitucional dos direitos e garantias fundamentais”, que, de maneira breve, nada mais representa do que o reconhecimento de direitos fundamentais assegurados esparsamente pelo texto constitucional – isto é, além daqueles previstos no Título II – , bem como dos direitos positivados nos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos[7]. Assim, Ingo Wolfgang Sarlet relembra que o constituinte estabeleceu a existência de direitos, mesmo que não direta e expressamente previstos no texto constitucional, decorrentes do regime e dos princípios da Constituição, consoante norma ínsita no artigo 5º, §2º, da CRFB/88[8].
Nesse cenário, Ingo Wolfgang Sarlet sublinha que a atribuição de identificar posições fundamentais esparsas na Constituição e a possibilidade de reconhecer a existência de direitos fundamentais implícitos e/ou autonomamente desenvolvidos com base no regime e nos princípios da Constituição passa, necessariamente, pela construção de um conceito material de direitos fundamentais, o qual dialoga fortemente com a noção de dignidade da pessoa humana[9].
Ciente do elevado grau de indeterminação e do caráter polissêmico do princípio da dignidade da pessoa humana, adverte o jurista brasileiro que, com algum esforço argumentativo, tudo o que se consta no texto constitucional, ainda que de maneira indireta, pode ser reconduzido ao valor da dignidade da pessoa[10]. No seu entender, entretanto, não é neste sentido que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser utilizado na condição de elemento integrante de uma ideia material de direitos fundamentais, vez que, se assim fosse, “toda e qualquer posição jurídica estranha ao catálogo poderia (em face de um suposto conteúdo de dignidade da pessoa humana), seguindo a mesma linha de raciocínio, ser guindada à condição de materialmente fundamental”[11]. Esclarecendo melhor o tema, assevera que[12]:
O que se pretende demonstrar, neste contexto, é que o princípio da dignidade da pessoa humana assume posição de destaque, servindo como diretriz material tanto para a fundamentação de direitos implícitos (no sentido de posições jusfundamentais de cunho defensivo e/ou prestacional subentendidas nos direitos e garantais fundamentais da Constituição), quanto – e, de modo especial – para a identificação de direitos sediados em outras partes da Constituição.
Ainda em relação à identificação de direitos fundamentais implícitos ou positivados esparsamente na Constituição, Ingo Wolfgang Sarlet alerta para a necessidade de cautela por parte do intérprete, especialmente pelo fato de estar-se ampliando o rol de direitos fundamentais da Constituição com as consequências práticas a serem extraídas, não se devendo, por isso, desconsiderar o risco de uma possível desvalorização dos direitos fundamentais, que, vez ou outra, é indicada pela doutrina[13].
No que se refere à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a multirreferida abertura material dos direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet evoca alguns exemplos, quais sejam: 1) em relação aos direitos de personalidade, onde o laço com a dignidade se exterioriza com extensão, reconheceu-se, no âmbito do RE n. 248.869-1, tanto um direito fundamental ao nome quanto ao estado de filiação, sob o argumento de que “o direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz a sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é indisponível”; 2) em relação ao direito à ressocialização do apenado, o STF entendeu que deve servir de parâmetro para a interpretação e aplicação da legislação em matéria de execução penal, a obrigação de se assegurar ao preso a possibilidade de reinserção na vida social de modo livre e responsável; 3) por fim, tem-se a extensão à união homoafetiva da proteção com base na união estável e de entidade familiar, nos termos do artigo 226 da Constituição, onde os parâmetros de dignidade da pessoa humana tiveram particular relevância[14].
Além das lições expostas, a dignidade da pessoa humana relaciona-se com as faces negativa e positiva dos direitos fundamentais. Pela primeira face, reconhece-se na dignidade da pessoa humana uma espécie de “Sinal de Pare”, no sentido de um obstáculo absoluto e intransponível inclusive para os atores estatais, tutelando a individualidade e autonomia da pessoa contra qualquer espécie de interferência do Estado e da sociedade, assegurando, assim, o papel do ser humano como sujeito de direitos; pela segunda, a dignidade da pessoa humana relaciona-se tanto com a noção de mínimo existencial e dos direitos sociais considerados, analisados sob um enfoque mais restrito, como direitos a prestações materiais (ou fáticas), quanto com a noção de direitos a prestações em sentido amplo, que, como identificou Robert Alexy, abarcam também prestações de cunho não tipicamente social[15].
Oportuno se faz sublinhar, nesse particular, que da dupla função de proteção (e promoção) e de defesa deduz-se a imposição de implantar medidas de precaução procedimentais e organizacionais, no sentido de evitar uma lesão da dignidade e dos direitos fundamentais, ou, quando isto não ocorrer, com o intuito de aniquilar ou reduzir os efeitos das violações, inclusive assegurando a reparação do dano[16].
Com base nisso, Ingo Wolfgang Sarlet identifica vasta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal abordando a dignidade da pessoa humana sob os aspectos positivos e negativos dos direitos fundamentais.[17]
Identifica-se, inicialmente, a aplicação da dignidade da pessoa humana como regra impeditiva de determinadas condutas, a exemplo da vedação da tortura e de todo e qualquer tratamento desumano ou degradante, conforme previsão constitucional constante do artigo 5º, III, por meio da qual se verifica uma manifestação do direito de defesa (negativo), sendo relevante o precedente da Corte Maior relatado pelo Ministro Decano Celso de Mello, nos autos do HC n. 70.389-SP, “no qual estava em causa a prática de tortura contra criança e adolescente, por parte de policiais, e onde restou consignada a absoluta vedação da tortura na ordem jurídico-constitucional brasileira”[18].
Visando, igualmente, a evitar a negação de uma redução de ser humano a objeto da ação estatal, merecem destaque as decisões do Supremo Tribunal Federal envolvendo o enunciado de Súmula Vinculante n. 11, relativamente à necessidade de fundamentação por parte das autoridades policiais e judiciárias sobre a imposição do uso de algemas[19]-[20].
Por sua vez, no âmbito dos direitos sociais em sentido amplo, especialmente em observância ao mínimo existencial – conjunto das condições que asseguram o indivíduo a ter uma vida com dignidade, aqui se assemelhando à concepção de qualidade de vida –, também há manifestações da face negativa dos direitos fundamentais e, portanto, da dignidade da pessoa humana. Reverberando o entendimento aqui esposado, têm-se diversas decisões do STF pertinentes à proibição do confisco (atos com efeitos confiscatório) e que chancelam a vedação da tributação do mínimo existencial, sendo memorável o julgamento proferido nos autos do RE n. 397744, relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa[21].
Por outro lado, no que se refere à dimensão positiva (ou prestacional) da dignidade da pessoa humana e do direito ao mínimo existencial, segundo o magistério de Ingo Wolfgang Sarlet, na seara da jurisprudência do STF, entende-se que ao Estado incumbe, primordialmente, o dever de assegurar as prestações indispensáveis ao mínimo existencial, reconhecendo em favor do cidadão um direito subjetivo (judicialmente exigível) à satisfação das necessidades vinculadas ao mínimo existencial e, portanto, à dignidade da pessoa humana[22]. A título exemplificativo, o jurista brasileiro aponta que a nossa Suprema Corte possui diversas decisões que asseguram às crianças com menos de seis anos de idade o acesso gratuito a creches mantidas pelo poder público, além de outras relativas à saúde, que, não raro, relativizam, em favor da vida e dignidade, limitações de ordem organizacional e orçamentária, a exemplo do julgamento proferido nos autos do RE n. 573061, relatado pelo Ministro Carlos Ayres Britto[23].
Em linha de desfecho, resta analisar a dignidade da pessoa humana enquanto parâmetro interpretativo na aplicação dos direitos fundamentais.
É de se observar, como bem ressalta Ingo Wolfgang Sarlet, que, no contexto da problemática envolvendo os limites e as restrições, inclusive colisão, dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana relaciona-se tanto com a noção de conteúdo essencial dos direitos fundamentais quanto com a aplicação do princípio da proporcionalidade[24]. Revela-se oportuno evidenciar, à vista disso, os fatos singularizados no Habeas Corpus n. 71.374-44, relatado pelo Ministro Francisco Rezek, onde se questionava a legitimidade constitucional da condução coercitiva do suposto pai, réu em ação investigatória de paternidade, para fins de realização, em laboratório, de exame de sangue com vistas à verificação da existência do vínculo de paternidade do investigante, autor da ação, sendo relevante a transcrição de trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, cujo entendimento prevaleceu, in verbis[25]:
A recusa do Paciente há de ser resolvida não no campo da violência física, da ofensa à dignidade humana, mas no plano instrumental, reservado ao Juízo competente – ou seja, o da investigação de paternidade – a análise cabível e a definição, sopesadas a prova coligida e a recusa do réu. Assim o é porque a hipótese não é daquelas em que o interesse público sobrepõe-se ao individual, como a das vacinações obrigatórias em época de epidemias, ou mesmo o da busca da preservação da vida humana, naqueles conhecidos casos em que convicções religiosas arraigadas acabam por conduzir à perda da racionalidade.
Ingo Wolfgang Sarlet sublinha, por fim, que outra hipótese da dignidade da pessoa humana enquanto critério para a interpretação envolve tanto a identificação de um conteúdo em dignidade de outros direitos fundamentais, quanto a interpretação “conforme a dignidade” de institutos jurídicos que geram a restrição de direitos, sendo que, em alguns casos, o espectro de tutela de direitos e garantias fundamentais resta delimitado de maneira mais extensiva, assegurando, assim, um nível mais contundente de proteção dos direitos[26].
CONCLUSÃO
Como visto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, manifestou a sua compreensão da dignidade da pessoa humana como sendo valor-fonte da ordem jurídica brasileira, cuja fundamentalidade reflete em vários ramos do direito.
Espera-se que o presente trabalho sirva de contribuição para as próximas reflexões envolvendo a dignidade da pessoa humana, axioma valorativo do direito brasileiro.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, 2017.
[1] O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, 2017.
[3] Idem. Ibidem, p. 29.
[4] Idem. Ibidem, p. 30.
[5] Idem. Ibidem, p. 31.
[6] No julgamento histórico, o STF entendeu que a dignidade humana representa “verdadeiro valor- fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo”.
[7] Idem. Ibidem, pp. 33-34.
[8] Idem. Ibidem, p. 34.
[9] Idem. Ibidem, pp. 34-35.
[10] Idem. Ibidem, p. 35
[11] Idem. Ibidem, p. 35.
[12] Idem. Ibidem, pp. 35-36.
[13] Idem. Ibidem, p. 37.
[14] Idem. Ibidem, p. 38.
[15] Idem. Ibidem, pp. 39-40.
[16] Idem. Ibidem, p. 40.
[17] Idem. Ibidem, p. 40.
[18] Idem. Ibidem, pp. 40-41.
[19] Idem. Ibidem, p. 41.
[20] O referido enunciado consagra a excepcionalidade do uso de algemas, nos seguintes termos: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
[21] Idem. Ibidem, p. 42.
[22] Idem. Ibidem, p. 43.
[23] Idem. Ibidem, p. 43.
[24] Idem. Ibidem, p. 45.
[25] Idem. Ibidem, pp. 45-46.
[26] Idem. Ibidem, p. 46.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. Dignidade da pessoa humana à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jun 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53065/dignidade-da-pessoa-humana-a-luz-da-jurisprudencia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
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