RODRIGO ANTOLA AITA
Resumo: Versa o presente trabalho acerca do instituto da responsabilidade civil pela perda de uma chance, cuja ocorrência se dá quando estava em curso um processo aleatório que poderia conduzir um indivíduo a uma vantagem futura, porém, em decorrência do ato ilícito do ofensor, esse processo aleatório é interrompido, frustrando a chance de obtenção do resultado final. Diante desta situação há dificuldade em estabelecer o nexo causal entre a conduta lesiva e a perda da vantagem esperada, uma vez que, mesmo inocorrente o ilícito, não se pode afirmar com segurança que a chance se concretizaria. Não obstante, é inegável que existia, dentro do patrimônio jurídico da vítima, uma chance de vitória que, sendo séria e real, poderia constituir um bem jurídico independente do resultado final e, portanto, passível de reparação. Uma vez exposta a problemática, buscou-se demonstrar que a reparabilidade das chances perdidas satisfaz os requisitos do liame de causalidade e da ocorrência de dano ressarcível, tradicionais da responsabilidade civil. Explorando-se o tema sob um enfoque científico e atento para a legislação pátria vigente, procura-se aclarar os fundamentos da responsabilidade civil pelas chances perdidas, fixar critérios razoáveis para a quantificação do dano e expor os motivos de sua aceitação frente ao ordenamento jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil. Responsabilidade Civil. Perda de uma chance. Nexo causal. Dano autônomo.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A RECEPÇÃO DA TEORIA. 3. A CARACTERIZAÇÃO DO DANO. 4. MODALIDADES DE PERDA DE CHANCE. 5. CONCLUSÃO
1. INTRODUÇÃO
Não raro ocorrem, na vida em sociedade, situações nas quais, em decorrência de um ato ilícito, uma pessoa perde a oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo. Fala-se, então, de responsabilidade civil pela perda de uma chance, uma vez que estava em curso um processo que poderia resultar em um benefício para a vítima, mas que foi interrompido pelo comportamento antijurídico do ofensor.
Em que pese seja razoavelmente tranquilo o entendimento de que a chance séria e real perdida em decorrência de ilícito deva ser reparada, a grande problemática que se apresenta é justamente a caracterização daquilo que seria verdadeiramente uma “chance indenizável”. Encontrar a fronteira tênue entre o lucro cessante, a chance perdida indenizável e o dano meramente hipotético não é tarefa fácil e tem atormentado tanto os doutrinadores quanto os magistrados.
Essa dificuldade se apresenta como decorrência natural da circunstância de que, uma vez tendo sido interrompido o processo que poderia resultar em uma vantagem para a vítima, nunca se poderá afirmar ao certo que o resultado efetivamente se produziria no mundo dos fatos.
Foi justamente essa álea, inerente ao próprio conceito de chance (ou oportunidade), por muito tempo, o grande óbice para que se reconhecesse o direito à indenização para o lesado.
Com efeito, dentre os requisitos essenciais para a exsurgência da responsabilidade civil, ao lado da ilicitude do ato e do nexo de causalidade, encontra-se, obviamente, o dano. Este poderá ser presente ou futuro, porém, em ambos os casos deverá ser certo.
Destarte, ao se encarar a exigência de certeza do dano sob a perspectiva do resultado final, ter-se-ia sérios problemas para sustentar a indenizabilidade da chance perdida.
Tome-se como exemplo o advogado que perde o prazo para interpor recurso de apelação contra sentença desfavorável aos interesses de seu constituinte. Se a ação indenizatória, movida posteriormente contra o causídico negligente, tiver como pedido toda a vantagem que se poderia obter com o provimento recursal, com causa de pedir fundada no lucro cessante, inevitavelmente chegar-se-ia a uma sentença de improcedência. Não há como se afirmar, com certeza, que a apelação seria provida; a vantagem esperada com o êxito na ação não pode ser considerada, uma vez perdida, como dano certo.
A solução da questão encontra-se em dar enfoque, não ao resultado final, mas à chance em si considerada, como bem jurídico autônomo e de expressão patrimonial. Ao se analisar a situação sob a perspectiva da vítima, que contava com uma chance de acréscimo patrimonial, uma oportunidade que, por si só, já integrava o seu patrimônio jurídico e que dele foi tolhido pelo ato ilícito do ofensor, supera-se a questão da certeza do dano. Vale dizer: indeniza-se não pela perda do resultado final incerto, mas sim pela perda da oportunidade de transformar aquela possibilidade/probabilidade em realidade.
Superada a questão de identificar o objeto do dano, qual seja, a chance como bem jurídico por si só considerada, o estudioso do Direito depara-se com questionamentos de difícil resposta. Qual seria o critério para se aferir que uma chance é séria o suficiente para ser relevante para o ordenamento jurídico e, portanto, indenizável caso perdida em virtude de um ilícito? Vencida a etapa de identificar a chance indenizável, como, subsequentemente, fixar o quantum indenizatório?
Essas e outras perguntas correlatas ainda carecem de um enfrentamento mais seguro e científico tanto na doutrina quanto, especialmente, na jurisprudência brasileira. Longe de ter a pretensão de resolver o tema, o presente trabalho procura expor a problemática e manter aceso o debate.
No texto que segue, procurou-se expor, de forma sucinta, a origem do instituto, bem como situá-lo no ordenamento jurídico pátrio, a luz do atual Código Civil.
2. A RECEPÇÃO DA TEORIA
A teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance tem origem na França, onde o tema é amplamente debatido pela doutrina e pela jurisprudência. Nesse país, a responsabilidade civil funda-se na cláusula geral prevista no art. 1382 de seu Code Civil, que preceitua: “Tout fait quelconque de l’homme qui cause à autrui um dommage, obliege celui par La faute duqueil Il est arrivé, à Le réparer”.
Tal dispositivo é ampliativo, abarcando um conceito de dano mais vasto possível, o que justifica a inclusão da chance perdida dentre os danos reparáveis. Demonstrar-se-á, mais adiante, que o mesmo ocorre no caso do ordenamento brasileiro.
Outro país europeu que possui cláusula geral ampla de responsabilidade civil é a Itália, no art. 2043 do seu Codice Civile, in verbis: “qualuque fatto doloso o colposo, Che cagiona ad altri um danno ingiusto, obliga colui Che ha comesso Il fatto a risarcire Il danno”. A abrangência do dispositivo alberga a indenizabilidade da chance perdida, o que permitiu a recepção da teoria francesa.
Em ambos os países europeus supracitados, a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de reparação das chances perdidas em decorrência de ato ilícito ocupa espaço significativo no debate jurídico. Em contrapartida, no Brasil, essa responsabilidade é pouco conhecida e debatida; os advogados raramente a invocam e, quando a fazem, ainda mais dificilmente os julgadores a reconhecem. A justificativa, invariavelmente, repousa na pretensa incerteza do dano.
Com efeito, o jurista que pretender aprofundar-se no estudo da responsabilidade civil pela perda de uma chance no Brasil encontrará dificuldade em decorrência dessa escassa produção doutrinária específica sobre o assunto.
Surpreendentemente, apenas os autores Sérgio Savi, Rafael Peteffi da Silva e Sérgio Novais dedicaram, cada qual, uma obra específica para tratar do tema. Os demais civilistas pátrios limitam-se a dedicar breves tópicos (quando efetivamente os há) em suas obras sobre responsabilidade civil para tratar do tema, sempre de forma superficial.
A jurisprudência brasileira, por sua vez, vem, gradativamente, recepcionando a responsabilização civil pela chance perdida, ainda que se observem dificuldades para estabelecer critérios seguros para aferição daquilo que seria uma “chance indenizável” e para a fixação do quantum indenizatório. Além disso, não raro acontece – isso mais na primeira instância e no âmbito dos tribunais estaduais do que no STJ – de o magistrado negar o pleito indenizatório calcado na ultrapassada ideia de que a chance representa dano incerto.
Tal confusão, contudo, não é exclusiva de alguns juízes: também se deve estender a “culpa” a alguns advogados desavisados, que baseiam seu pedido indenizatório no instituto dos lucros cessante, quando se trata nitidamente de perda de uma chance, o que leva inexoravelmente à improcedência da ação.
3. CARACTERIZAÇÃO DO DANO
Consoante já se procurou aclarar logo na introdução, o operador do direito, ao se deparar com o instituto da perda de uma chance deve partir de uma premissa básica, qual seja: o dano que se busca reparar não consiste no resultado final, na vantagem possível ou provável que restou impossibilitada pelo ilícito, porque aqui, naturalmente, o dano é incerto, pois a álea está ínsita ao próprio conceito de chance (ou oportunidade). O dano é consistente, portanto, na própria chance, considerada um bem jurídico em si mesmo. Posto em outras palavras: o patrimônio jurídico do indivíduo contava com uma chance, uma oportunidade de obter uma vantagem futura ou de evitar um prejuízo a porvir e tal chance foi eliminada desse patrimônio jurídico em decorrência de um ilícito perpetrado pelo ofensor.
Assim, v.g., no caso clássico do advogado que perde o prazo recursal para apelar contra decisão desfavorável a seu cliente, este demandará aquele, em sede de ação indenizatória, não pelo valor total correspondente ao que ele obteria em caso de provimento de seu recurso pelo tribunal, mas pela chance de ver seu pleito ser reexaminado pela segunda instância.
Para que o juiz da ação indenizatória possa aferir se a chance do demandante, no processo anterior em que foi sucumbente (no qual seu advogado atou negligentemente), era realmente séria e, portanto, passível de indenização, deverá adentrar no mérito da ação anterior e averiguar quais eram as reais probabilidades de sucesso de um recurso de apelação, caso tivesse sido interposto tempestivamente.
Caso chegue à conclusão de que, uma vez interposta a apelação dentro do prazo, o recurso seria necessariamente provido – em decorrência de ter havido um erro crasso do magistrado de primeiro grau, por exemplo – o advogado negligente deverá ressarcir toda a vantagem patrimonial correspondente à vitória de seu cliente, descaracterizando-se a perda de uma chance.
De outra sorte, caso esse mesmo julgador da ação indenizatória verifique, no caso concreto, que, a despeito da interposição ou não do apelo, o destino inarredável da ação seria a improcedência – em razão de a sentença de primeiro grau estar em perfeita sintonia com súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal, por exemplo – o advogado ficaria desincumbido do dever de indenizar, não sendo caracterizada a chance indenizável.
Ocorre, porém, que existe uma vasta zona intermediária entre essas duas situações limites, expostas nos parágrafos anteriores, onde não se pode afirmar ao certo nem que o recurso seria provido, nem que ocorreria o desprovimento. Esse é exatamente o campo de atuação da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance. São essas as situações nas quais o juiz da ação indenizatória proposta contra o advogado negligente deverá analisar o processo anterior a fim de averiguar se a chance perdida pela vítima era séria o suficiente para gerar direito à indenização. Em caso afirmativo, o montante condenatório será sempre inferior ao valor do resultado final (caso o recurso fosse provido).
Para a fixação desse quantum, infelizmente faltam critérios objetivos e cem por cento seguros. Pode-se afirmar, não obstante, que quanto maior for o grau de probabilidade de que a chance se concretize, maior será o montante indenizatório. Esse mesmo raciocínio - de gradação da probabilidade e seu reflexo no valor da indenização - aplica-se não apenas para os casos de responsabilidade do advogado, mas para todos os demais casos de responsabilidade civil por chances perdidas.
Percebe-se, portanto, que, da mesma forma como ocorre na seara da responsabilidade civil por danos extrapatrimoniais, não se escapa do arbitramento do valor indenizatório pelo juiz. Tal arbitramento, contudo, deverá ser pautado pela prudência, pela razoabilidade e pela proporcionalidade. Além disso, terá sempre como baliza a proporção entre a probabilidade de se concretizar a chance e o montante indenizatório, e igualmente, como limite máximo – que não deverá ser atingido, para que não se descaracterize a chance – o valor do benefício final que poderia ter ocorrido, não fosse o ilícito.
4. MODALIDADES DE PERDA DE CHANCE
Classificam-se as chances perdidas em três categorias, quais sejam: A) a perda da chance de se obter uma vantagem futura, B) a perda da chance de evitar um prejuízo já ocorrido e C) perda de uma chance por falta de informação.
A primeira e mais recorrente das modalidades é a perda de uma chance de obter uma vantagem futura (A), também conhecida como “perda de chance clássica”. Aqui, está-se diante de uma série ordenada de acontecimentos que teria a probabilidade ou possibilidade de conduzir a uma vantagem futura, que era razoavelmente esperada. Com o advento do ato ilícito do ofensor, a vítima viu esse processo benéfico, outrora em curso, interrompido, sem que se possa afirmar ao certo se o evento vantajoso ocorreria.
A título de exemplo, poderíamos imaginar situações as seguintes situações hipotéticas: um indivíduo pretensamente faz jus a uma indenização, mas se vê privado da oportunidade de tentar obtê-la porque o advogado por ele contratado deixa correr o prazo prescricional antes de ingressar com a ação; um candidato aprovado nas três primeiras etapas de um concurso público fica impedido de realizar a quarta e última etapa porque, em seu percurso para o local da prova, tem seu carro abalroado por um motorista embriagado; um casal está prestes a fechar um bom negócio de venda de um imóvel de sua propriedade por um valor acima do de mercado, porém o comprador, na última hora, é dissuadido do negócio por um terceiro que dolosamente faz considerações depreciativas e inverídicas sobre o imóvel.
Como submodalidades da perda de chance clássica (de obter um benefício futuro), além da perda da chance de se realizar um benefício futuro, tem-se a perda de chance de se evitar um prejuízo futuro. Trata-se, à evidência, do verso e anverso de uma mesma moeda, visto que no primeiro caso há frustração da chance de lucrar, ao passo que, no segundo, a frustração da chance de evitar prejuízo.
A fim de elucidar claramente a diferença entre as referidas submodalidades da perda de chance clássica, é de extrema utilidade o caso clássico, reiteradamente ilustrado pela doutrina, do advogado que perde o para interposição de recurso de apelação contra sentença desfavorável aos interesses de seu constituinte. Caso este tenha sido autor da ação que foi, por sentença, julgada improcedente, tendo ocorrido o trânsito em julgado em decorrência da desídia do causídico, está-se diante da primeira submodalidade, a perda da oportunidade de obter uma vantagem futura.
De outra banda, fosse o cliente do malfadado advogado réu na ação cuja procedência transitou em julgado por culpa de seu procurador, estar-se-ia diante da segunda modalidade, a de perda da oportunidade de se evitar um prejuízo futuro.
Tanto no primeiro caso quanto no segundo, jamais se poderá afirmar, com absoluta certeza – salvo raríssimas exceções – que ocorreria a reforma da sentença de primeiro grau. Não obstante, não há dúvida de que ocorreu um prejuízo para o indivíduo que não teve sequer a oportunidade de ver seu pleito analisado pela instância superior. Destarte, não o benefício final, mas a chance por si só, entendida como um bem jurídico bastante em si, quando revestir-se de possibilidade relevante, de robustez, deverá ser indenizada pelo advogado negligente.
Diante do exemplo exposto reiteradamente, fica intuitivo que a procedência da ação reparatória movida em face do advogado dependerá de uma análise dos autos do processo no qual o prazo foi perdido, a fim de perquirir as reais possibilidades de sucesso do ex-cliente naquela demanda.
Percebe-se que a responsabilidade civil pela perda de uma chance envolve sempre um juízo prognóstico, no intuito de, na medida do possível, avaliar a grau de probabilidade da chance perdida. A doutrina, nacional e estrangeira, costuma usar os termos chance “real” e “séria”, conceitos jurídicos indeterminados, que revelam a dificuldade que se apresenta no enfrentamento do tema.
Em que pese se reconheça que o arbitramento do valor da chance perdida não seja tarefa fácil nem automática, essa mesma dificuldade apresenta-se nos casos de arbitramento de indenizações por danos morais, não constituindo, evidentemente, óbice para que se reparem os danos extrapatrimoniais sofridos, apenas reclamando prudência e proporcionalidade na sua fixação. O mesmo deve ocorrer com a fixação do quantum indenizatório no caso de chances perdidas, levando-se em consideração o grau de probabilidade de a chance se concretizar, jamais podendo atingir-se o patamar de 100% (cem por cento) pois, em tal caso, não se cuidaria de chance, mas de certeza do resultado final.
A segunda modalidade de perda de chance, ao lado daquela clássica, é a perda da chance de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido (B). Consubstancia-se na situação em que estava em curso um processo que acabou por acarretar um dano, o qual poderia ter sido evitado pela atuação de um responsável, do qual se poderia exigir tal atuação.
Mais uma vez, nada garante que, tendo sido adotada a conduta exigível do responsável, o dano não se produziria. Apenas existe uma possibilidade/probabilidade de que, caso fosse adotada tal conduta, o dano não chegaria a se produzir.
Em contraposição à perda de uma chance clássica, na qual a chance diz respeito a algo que poderia vir a acontecer no futuro, nesta outra modalidade a chance é relativa a algo que poderia ter sido feito no passado, para que se pudesse evitar o dano já constatado.
Rafael Peteffi da Silva, em sua excelente dissertação de mestrado[1], traz-nos um exemplo julgado pela Corte de Cassação francesa. Cuida-se de um estabelecimento comercial o qual possuía um sistema de alarme que não funcionou durante um assalto. O tribunal entendeu que o assalto “poderia ter ocorrido mesmo que o alarme funcionasse de maneira conveniente”, porém condenou a empresa responsável pelo alarme antifurto, não pela ocorrência do assalto, mas pela perda de chance de poder ter evitado o assalto.
Um dos campos mais férteis para a modalidade de perda de uma chance que ora se estuda é o da responsabilidade médica. Os franceses falam em “perte de cahnces de guérison ou de survie” (perda de chances de cura ou de sobrevida), nas situações em que não se consegue afirmar ao certo se se a morte do paciente foi ocasionada pelo agravamento da doença ou se por culpa do médico. Como exemplo, poderíamos imaginar o caso em que, por um erro no diagnóstico perpetrado pelo médico, o paciente acabou vindo a óbito. Não há como afirmar que, caso o diagnóstico tivesse sido perfeito, o paciente sobreviveria à doença, mas houve uma perda da chance de combater, da melhor forma, a doença.
A extensão, por parte da jurisprudência francesa, da teoria clássica da responsabilidade por perda de uma chance aos casos de danos efetivamente ocorridos gerou grande debate doutrinário na França, em especial no que respeita à referida perda de chance de cura. Houve quem enaltecesse a criação jurisprudencial, encarada como um avança. De outro lado, houve severas críticas às decisões que indenizaram a chance de cura perdida, feitas por significativa parte da doutrina. Aqueles contrários a essa extensão sustentavam que seria impossível falar em perda de uma chance, pois esta pressupõe a prova do nexo de causalidade entre a conduta e o dano. O problema se resolveria, portanto, na responsabilidade civil convencional, pairando o cerne da discussão sobre a prova do nexo de causalidade, sem a prova do qual o réu deve ser absolvido por ser o dano incerto.
Contrário a esse entendimento, Fernando Noronha a ele tece interessante crítica, a qual se transcreve:
“[...] Como se vê, para todos estes autores valeria, nesta matéria, a regra do “ou tudo, ou nada”: ou se prova que a falha terapêutica contribuiu efetivamente para o dano, e o médico será responsável, e pela integralidade dela, ou não se faz prova cabal dessa relação de causa e efeito, e ele não responderá por nada.
Não nos parece que seja a melhor solução. Cremos que são apenas parcialmente procedentes as críticas à extensão da teoria clássica aos casos de perda da chance de evitar que outrem sofresse um prejuízo. Se fossem inteiramente válidas, procederiam também contra a teoria clássica, porque também nela se poderia ver “um instrumento de equidade que permite ao juiz ter um gesto em favor da vítima, todas as vezes que uma incerteza sobre o nexo de causalidade interdita uma reparação integral [...]”.[2]
Mostra-se perfeitamente coerente o entendimento esposado pelo supracitado autor. Com efeito, o problema central reside em saber se o médico deverá indenizar quando houver prescrito uma terapêutica inadequada, havendo agravamento do quadro do paciente, sem, contudo, haver certeza de que tal agravamento foi fruto do erro médico ou da própria evolução da doença.
Caso se conhecesse a causa que deu origem ao agravamento do estado do paciente, não haveria problemas maiores: fosse o erro do médico, este seria inteiramente responsável; fosse o decurso natural dos acontecimentos (seja pela evolução normal da doença, que sobrepuja o tratamento, seja em decorrência do próprio tratamento, nos casos em que é o recomendado, ainda que represente certo risco) o médico não responderia.
Os casos, porém, em que se pode falar em responsabilidade por perda de uma chance são aqueles em que o tratamento realizado pelo médico mostra-se equivocado para aquela situação, caracterizando-se o erro médico, porém não se pode afirmar ao certo se foi causa exclusiva para o agravamento do estado do paciente. Tivesse sido feito o tratamento adequado, o paciente teria provavelmente apresentado uma melhora. Aqui entra em cena a responsabilidade por perda de uma chance, pois estão presentes o ato ilícito (erro médico), o dano (perda da chance de melhora) e o nexo causal (concausalidade ou causalidade alternativa entre fato do responsável e caso fortuito ou força maior).
Evidentemente, não se pretende aqui superar a questão, longamente debatida na doutrina, acerca da existência ou não do nexo de causalidade, nos casos em apreço. Ocorre que, para o tratamento pormenorizado da questão específica da responsabilidade por perda de chance de cura por erro médico demandaria um estudo à parte, extrapolando os objetivos gerais deste trabalho.
Por derradeiro, alguns autores ainda tratam de uma terceira modalidade: a perda de chance por falta de informação (C). Ocorre em situações nas quais a vítima sofre um dano em razão de não ter tomado a melhor decisão, decisão esta que viria a ser tomada se o lesante tivesse cumprido seu dever jurídico de informar ou aconselhar a vítima. Vale dizer: uma decisão mais esclarecida possivelmente/provavelmente teria o condão de eliminar o dano ou, ao menos, reduzi-lo.
Diferentemente da modalidade analisada anteriormente, qual seja, a de evitar um prejuízo já ocorrido, no caso da perda de chance por quebra do dever de informar a realização do dano depende de uma atitude da própria vítima.
A obra de Fernando Noronha[3] mais uma vez é de importante valia, ao fornecer exemplo da Corte de Cassação francesa. Trata-se de uma paciente com problemas de surdez, que foi operado. Apesar de a surdez ter sido corrigida, resultou dela um dano colateral: o paciente ficou com uma paralisia facial. Embora a paralisia fosse um risco conhecido do médico, embora pouco provável, tal risco não foi informado ao paciente; se dele soubesse, talvez não teria optado pela intervenção cirúrgica. Além do mais, havia uma alternativa à cirurgia, consistente na correção parcial da surdez por meio do uso de aparelhos.
Note-se que, muito embora o cirurgião não tenha operado de forma imperita, a cirurgia não era impositiva, residindo a responsabilidade do profissional justamente no fato de não ter advertido, como deveria, seu paciente acerca dos riscos do procedimento, bem como das eventuais alternativas a ele. A falta dessas informações, às quais o lesado fazia jus, fez com que ele perdesse a chance de optar pelo tratamento alternativo.
Importante ressaltar, acerca do caso em comento, que o valor da reparação deve ficar restrito à chance perdida, e não à totalidade do dano experimentado pelo lesado. Isso porque a paralisia facial não foi decorrente de erro médico, stricto sensu, mas era risco inerente ao procedimento. O erro do médico consistiu na quebra do dever de informar seu paciente acerca dos riscos e alternativas à cirurgia, caracterizando-se o dano como sendo a chance perdida de fazer uma opção melhor e não propriamente a paralisia facial.
Por fim, no intuito de sedimentar melhor a distinção entre a modalidade de perda de chance sub examine e aquela exposta no item anterior (B), faz-se referência a mais um caso da Corte de Cassação francesa, trazido à luz por Peteffi da Silva[4]. Tratava-se de um tabelião que fizera seguro de vida e pagava os prêmios através de bloquetos de cobrança bancária, que eram enviadas a seu tabelionato. Em um determinado momento, o tabelião teve de se afastar temporariamente de sua atividade, sendo o tabelionato, nesse período, administrado por um substituto temporário. Na medida que novos bloquetos chegavam, tal substituto não enviou-os ao tabelião (como fazia com a correspondência pessoal deste) e nem sequer informou-lhe acerca de sua chegada. O não pagamento do prêmio gerou rescisão do contrato de seguro, pouco antes de o tabelião falecer. A Corte de Cassação anulou acórdão da Corte de Apelação que havia concedido aos herdeiros a reparação por perda de uma chance, sob a justificativa de que não era possível saber se o tabelião teria pagado os prêmio faltantes.
Essa decisão foi criticada pela doutrina. Segundo Peteffi da Silva, o autor Huet chegou a afirmar que a solução implicava uma total irresponsabilidade pelo quebra do dever de informar, nos casos em que não houvesse total certeza de que a falha do responsável fora causa do dano final; afirma que se é certo que a jurisprudência não pode reparar danos hipotéticos, “no caso em tela havia grandes possibilidades de o tabelião ter pagado a integralidade do prêmio, desde que devidamente informado”.
Percebe-se, portanto, a ocorrência de um típico caso de quebra do dever de informar, ocasionando um dano por perda de chance. Esta chance de ter evitado o prejuízo estava com o próprio lesado, o qual dela não fez uso em decorrência da falta de informação. Distintamente, portanto, do que ocorria com a modalidade de perda de uma chance de evitar um prejuízo já ocorrido (B), onde a chance de ter evitado o dano estava com o lesante, não com próprio lesado.
5. CONCLUSÃO
Ao longo deste texto, demonstrou-se que a perda da chance de se obter posição futura vantajosa, em decorrência da prática de um ilícito, constitui lesão a legítima expectativa, merecedora de tutela pelo ordenamento jurídico.
Há duas grandes modalidades de perda de uma chance. Na primeira delas, conhecida como clássica, o ilícito interrompe inexoravelmente um processo aleatório que poderia culminar em benefício para a vítima. Já na perda de uma chance de ter evitado um prejuízo ocorrido, o processo aleatório que acabou acarretando um dano à vítima tinha chances de ter sido interrompido, não fosse a omissão culposa do responsável.
Em ambos os casos, é impossível responsabilizar o agente pelo dano final, o qual poderia vir a ocorrer independentemente da conduta do ofensor. Ele é responsável, contudo, justamente pela perda da própria chance, considerada em si como um bem integrante do patrimônio da vítima, do qual ela foi ilicitamente privada.
Encarando-se, nesta esteira de pensamento, a chance perdida como dano autônomo e divorciado do resultado final, atende-se ao requisito da certeza do dano. Destarte, fica fácil perceber o estabelecimento do liame de causalidade entre o ilícito e, não o prejuízo final, mas o prejuízo autônomo representado pela chance que se perdeu. Tal dano poderá ser tanto de natureza patrimonial, como extrapatrimonial, dependendo da natureza do próprio dano final.
Não será, todavia, qualquer chance perdida digna de tutela pelo ordenamento. Apenas aquelas que se revestirem dos requisitos de realidade e seriedade deverão ser reparadas. Vale dizer: não se indenizam meras esperanças subjetivas, cuja ocorrência é de baixíssima probabilidade, sob um ponto de vista objetivo e racional.
Estando configurada a seriedade da chance perdida, cuja aferição deverá ser feita caso a caso, não há qualquer óbice para que se conceda reparação, à luz do ordenamento pátrio. Isso porque o sistema brasileiro, à semelhança do que ocorre na França e na Itália, está calcado em regra geral de responsabilidade civil, a qual reputa indenizável qualquer espécie de dano, uma vez preenchidos os demais requisitos do dever de indenizar.
Em sede de quantificação do dano, evidenciou-se regra fundamental, a qual prescreve que o valor da reparação pela chance perdida será necessariamente inferior ao valor da vantagem final almejada.
Dever-se-á, na fixação do quantum debeatur, observar a relação direta entre a probabilidade que a vítima tinha de alcançar o resultado pretendido e o valor do montante indenizatório. Posto em outras palavras: o juiz deverá partir do valor do dano final e fazer incidir sobre ele o percentual representado pela chance perdida e o resultado de tal operação será o valor da condenação.
Reconhece-se que tal apuração nem sempre será tarefa simples. Não obstante, tal circunstância não pode servir de entrave à concessão da indenização pela chance perdida, pois tal reparação é exigência que se impõe frente ao princípio da reparação integral do dano injusto.
De mais a mais, em caos de responsabilização por danos morais puros, ou de perquirição dos lucros cessantes, dificuldades equivalentes na fixação do montante indenizatório não são raras, e nem por isso se questiona o dever de reparação.
Reforce-se, outrossim, que, para o arbitramento do valor da chance perdida, o magistrado poderá - e, em certos caos, deverá - valer-se do auxílio de peritos técnicos para a fixação mais precisa possível do quantum indenizatório.
Ainda, pôde-se constatar que, no Brasil, embora a esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência seja favorável à reparação das chances perdidas, muito comumente o instituto não é tratado com o cuidado e o rigor necessários.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a aplicação da teoria da perda de uma chance já se encontra em grau mais avançado de desenvolvimento. Nas instâncias ordinárias, contudo, são frequentes as confusões conceituais e consequentes equívocos.
Dentre os mais recorrentes erros estão a concessão da reparação integral da vantagem final almejada - em nítida confusão com o instituto dos lucros cessantes - e a percepção distorcida de que a perda de uma chance apenas ensejaria danos de natureza extrapatrimonial.
Por todo o exposto, resta evidente a necessidade de, cada vez mais, intensificar o estudo sistemático da teoria da perda de uma chance, cujas características fundamentais procurou-se esboçar no presente trabalho.
Apenas assim se disporá do arcabouço teórico necessário para o bom enfrentamento da teoria da perda de uma chance, cuja aplicação sistemática é exigência incontestável da evolução da noção de responsabilidade civil, focada na reparação de toda e qualquer espécie de dano injusto.
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[1] PETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade civil pela perda de uma chance no direito francês. Dissertação de mestrado. UFRGS, 2001.
[2] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 710.
[3] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 716-17.
[4] PETEFFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade civil pela perda de uma chance no direito francês. Dissertação de mestrado. UFRGS, 2001. P. 45-46.
Advogado. Graduado com Láurea pela UFRGS e Pós-Graduado em Processo Civil pela Rede LFG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AITA, Rodrigo Antola. A responsabilidade civil por perda de uma chance Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53158/a-responsabilidade-civil-por-perda-de-uma-chance. Acesso em: 22 nov 2024.
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