RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo propor uma releitura do regime estatutário à luz do direito de greve e de sindicalização do servidor público. Parte-se da análise das teorias da impermeabilização do Estado e do órgão para analisar o papel dado aos agentes públicos submetidos ao regime estatutário no atual quadro da Administração Pública visando construir um novo ideário acerca do tema com a consagração dos direitos fundamentais inerentes à função pública.
Palavras-chave: Direito Constitucional e Administrativo, Servidores Públicos, Regime Estatutário.
Sumário: 1 Introdução; 2. Administração Pública e seus sentidos; 3. Teoria da impermeabilidade do Estado e Teoria do Órgão: relação estatutária e sujeição agravada; 4. Conclusão. Referências
As relações laborais no seio da Administração Pública no momento pós Constituição de 1988 são marcadas por um estado de sujeição especial dos agentes públicos, em especial os servidores regidos pelo regime estatutário.
O presente trabalho tem como objetivo investigar as origens de tal status e cotejar o substrato fático aos ditames constitucionais, em especial as faculdades de exercício do direito de greve e sindicalização, conferido aos referidos servidores.
Valendo-se das teorias da impermeabilização do Estado e do órgão, o estudo aprofundará a temática e sugerirá medidas a serem adotadas para consagração do ideário constitucional quanto ao aspecto em estudo.
A Administração Pública contemporânea é responsável por uma infinidade de atividades alocadas em vários setores sociais e econômicos, uma vez que a Constituição Federal de 1988 trouxe vários compromissos que vinculam a atuação estatal na consecução dos seus ditames.
A atividade administrativa, também chamada de Administração Pública em sentido objetivo ou material, a qual abarca as atribuições de fomento, polícia administrativa, intervenção no domínio econômico e a prestação de serviços públicos, atua por meio de entidades, órgãos e agentes públicos, os quais são responsáveis pela concretização, no mundo dos fatos, das atividades mencionadas.
Já a Administração Pública em sentido subjetivo, que mais nos interessa nesse estudo, é expressão que comporta o conjunto de agentes públicos, órgãos e entidades que executarão as atividades administrativas antes mencionadas. Nesse sentido, leciona Carvalho Filho (2017, p 12):
A expressão pode também significar o conjunto de agentes, órgãos e pessoas jurídicas que tenham a incumbência de executar as atividades administrativas. Toma- -se aqui em consideração o sujeito da função administrativa, ou seja, quem a exerce de fato. Para diferenciar esse sentido da noção anterior, deve a expressão conter as iniciais maiúsculas: Administração Pública.
Segundo Luísa Cristina Pinto e Netto (2011), a organização administrativa no sentido subjetivo atual, a qual “se forja a disciplina da moderna função pública” é herança do Estado Liberal, no qual a Administração atuava restritivamente na seara de polícia, calcada no princípio da legalidade, atuando precipuamente de maneira unilateral por meio de atos administrativos, senão vejamos:
O Professor Santamaria Pastor vai dizer que o Direito Administrativo que surge neste contexto de Estado Liberal é um Direito Administrativo que representa uma confluência entre técnicas de ação autoritárias, que foram herdadas do período absolutista, e exigências de liberdade que foram trazidas pelo liberalismo. Estas marcas autoritárias vão caracterizar basicamente a Administração do Estado Liberal. Por quê? Porque ela era uma Administração que atuava basicamente na seara de polícia, se relacionando com o cidadão de forma pontual, balizada pela lei. Nestas relações, não se admitia propriamente a existência de direitos subjetivos do cidadão em face do Estado; o Estado atuava principalmente por meio do ato administrativo – ato unilateral, auto executório, de imposição. O Professor lisboeta Vasco Pereira da Silva caracteriza esta Administração do Estado Liberal como “Administração agressiva” exatamente em virtude desta feição que ela assumia.
É neste cenário que surge a organização administrativa no sentido subjetivo que hoje nós conhecemos e que se forja a disciplina da moderna função pública. É claro que o Estado de Direito foi um avanço, mas as notas autoritárias destacadas estavam presentes. Nós vamos poder observar os reflexos desta concepção autoritária de Direito Administrativo na função pública, tais reflexos vão fazer com que a concepção de função pública que se tenha neste contexto seja a de uma relação que é travada no interior do Estado, na intimidade do Estado, e voltada à consecução dos fins do Estado.
Apesar de a administração, ainda nesse período do Estado Liberal, pautar-se estritamente pela legalidade para com os administrados, esta legalidade existia apenas para fora da administração. Internamente, o princípio não se aplicava, ou seja, na relação da administração com os agentes públicos, não era necessária a observância da legalidade.
A base teórica que fundamentava essa ausência de legalidade no âmbito interno da Administração residia, especialmente na teoria da impermeabilidade do Estado, a qual, juntamente com a teoria do órgão, culminou na clássica relação estatutária e na consequente posição de subordinação agravada do servidor público.
Isto porque, em todas essas teorias, o agente público não é considerado como indivíduo, destacado do Estado, mas sim meio pelo qual o Estado exerce suas atividades. Nesse sentido destaca Netto (2005, p. 102) sobre a teoria da impermeabilidade do Estado:
Entendia-se que o âmbito interno da Administração era um espaço livre do Direito, o que impedia que aceitassem as relações entre Estado e seus agentes como relações jurídicas internas, com direitos e obrigações recíprocas. Nesta senda, somente haveria relações jurídicas com o Estado quando este estivesse diante do cidadão, ou seja, relações externas ao aparelho estatal. Eram impensáveis as relações internas ao Estado: relação jurídica pressupõe pluralidade de vontades e, no interior do aparelho estatal, o que haveria seria a mesma pessoa Estado, ou seja, uma só vontade.
Nesta senda, a teoria do órgão veio a fomentar a diluição do agente público no interior do aparato estatal. Isto porque, segundo essa teoria os órgãos públicos, por meio dos agentes públicos, manifestam a vontade da pessoa jurídica a qual integram, como se a própria pessoa jurídica o fizesse. Ou seja, o órgão e os agentes não são considerados em si, mas apenas como partes da pessoa jurídica, ou instrumentos pelos quais está manifesta sua vontade.
Ocorre o fenômeno da abstrativização da figura do servidor público, não individualmente referenciado, mas sim com uma engrenagem do órgão ao qual pertence, mero destaque do organograma estatal.
Conceituando a teoria do órgão sobredita, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2017, p. 559) nos traz as seguintes lições:
(...) pela teoria do órgão, a pessoa jurídica manifesta a sua vontade por meio dos órgãos, de tal modo que quando os agentes que os compõem manifestam a sua vontade, é como se o próprio Estado o fizesse; substitui-se a ideia de representação pela de imputação.
Ainda, conceituando a comentada teoria, Hely Lopes Meirelles (2016, p. 73) leciona que os órgãos são meros instrumentos das pessoas jurídicas que integram e que a vontade psíquica do agente se confunde com a do próprio Estado:
Os órgãos integram a estrutura do Estado e das demais pessoas jurídicas como partes desses corpos vivos, dotados de vontade e capazes de exercer direitos e contrair obrigações para a consecução de seus fins institucionais. Por isso mesmo, os órgãos não têm personalidade jurídica nem vontade própria, que são atributos do corpo e não das partes, mas na área de suas atribuições e nos limites de sua competência funcional expressam a vontade da entidade a que pertencem e a vinculam por seus atos, manifestados através de seus agentes (pessoas físicas). Como partes das entidades que integram, os órgãos são meros instrumentos de ação dessas pessoas jurídicas, preordenados ao desempenho das funções que lhes forem atribuídas pelas normas de sua constituição e funcionamento. Para a eficiente realização de suas funções cada órgão é investido de determinada competência, redistribuída entre seus cargos, com a correspondente parcela de poder necessária ao exercício funcional de seus agentes.
(...)
Não há entre a entidade e seus órgãos relação de representação ou de mandato, mas sim de imputação, porque a atividade dos órgãos identifica-se e confunde-se com a da pessoa jurídica. Daí por que os atos dos órgãos são havidos como da própria entidade que eles compõem. Assim, os órgãos do Estado são o próprio Estado compartimentado em centros de competência, destinados ao melhor desempenho das funções estatais. Por sua vez, a vontade psíquica do agente (pessoa física) expressa a vontade do órgão, que é a vontade do Estado, do Governo e da Administração. (grifo nosso)
Com a teoria da impermeabilidade do Estado, a qual negava a necessidade de aplicação do princípio da legalidade no âmbito interno da Administração, combinada com a teoria do órgão, a qual considera os agentes públicos meros instrumentos, diluídos na pessoa jurídica estatal, criou-se terreno fértil para uma situação de sujeição agravada aos servidores públicos estatutários.
Ora, se os funcionários públicos são partes integrantes da pessoa jurídica estatal, e sua vontade é a vontade do Estado, não se poderia imaginar que tais agentes tivessem interesses conflitantes com a entidade pública. Ainda, seria incongruente pensarmos em direito de sindicalização dos servidores, muito menos o exercício do direito de greve.
Esta relação de sujeição acentuada do servidor público é retratada diante do modelo estatutário adotado, uma vez que este é imposto e modificado unilateralmente pelo Estado.
Conforme Di Pietro (2017, p. 556) tal regime é imposto unilateralmente, sem a possibilidade de qualquer modificação consensual entre os interessados, nem mesmo com a concordância da Administração contratante, senão vejamos:
Os da primeira categoria submetem-se a regime estatutário, estabelecido em lei por cada uma das unidades da federação e modificável unilateralmente, desde que respeitados os direitos já adquiridos pelo servidor. Quando nomeados, eles ingressam numa situação jurídica previamente definida, à qual se submetem com o ato da posse; não há possibilidade de qualquer modificação das normas vigentes por meio de contrato, ainda que com a concordância da Administração e do servidor, porque se trata de normas de ordem pública, cogentes, não derrogáveis pelas partes.
No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho (2017, p.400) destaca a característica não consensual do regime estatutário:
A outra característica concerne à natureza da relação jurídica estatutária. Essa relação não tem natureza contratual, ou seja, inexiste contrato entre o Poder Público e o servidor estatutário. Tratando-se de relação própria do direito público, não pode ser enquadrada no sistema dos negócios jurídicos bilaterais de direito privado. Nesse tipo de relação jurídica não contratual, a conjugação de vontades que conduz à execução da função pública leva em conta outros fatores tipicamente de direito público, como o provimento do cargo, a nomeação, a posse e outros do gênero.
A conclusão, pois, é a de que o regime estatutário, como tem em vista regular a relação jurídica estatutária, não pode incluir normas que denunciem a existência de negócio contratual.
Por outro lado, a Constituição Federal franqueou aos servidores públicos o direito à livre associação sindical além do direito de greve, senão vejamos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)
VI - é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical;
VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;
Ao nosso sentir, o regime estatutário merece uma releitura à luz da Constituição Federal. Isso porque, de nada adiantaria garantir aos servidores os direitos de greve e sindicalização se não fosse possível a negociação de condições melhores de trabalho.
Portanto, a Constituição ao garantir os direitos mencionados, deve ser levada em consideração – ou levada “a sério”, na consagrada expressão de Dworkin (2007) - quando da interpretação do regime estatutário, caso contrário, o conteúdo mínimo das normas previstas no art. 37 incisos VI e VII da Constituição Federal restaria esvaziado.
Nesse sentido, leciona Luiza Netto (2011):
E, por fim, eu queria chamar a atenção para a necessária incidência dos direitos fundamentais no que tange aos direitos coletivos na função pública. O nosso quadro jusfundamental da função pública na Constituição de 1988, no meu entendimento, leva necessariamente ao reconhecimento da autonomia coletiva na seara da função pública.
Este reconhecimento da autonomia coletiva na função pública – os direitos de greve e de sindicalização nos mostram isto de forma muito clara – impõe ao Estado deveres, o Estado tem que parametrizar a sua atuação legislativa na área da função pública em 2 sentidos. O primeiro é a criação da disciplina legislativa necessária para o exercício destes direitos coletivos (e quiçá também o seu corolário – a contratação coletiva – que é o tema da exposição do Professor Florivaldo Dutra de Araújo). As greves estão acontecendo e nós ainda não temos uma lei tratando da greve na função pública. O Estado também tem que parametrizar a sua atuação legislativa, no meu entender, para deixar espaço na disciplina legislativa da função pública para que haja algum âmbito de consenso, para que haja algum espaço para que a autonomia coletiva incida sobre a disciplina da função pública, pois não cabe mais uma disciplina totalmente unilateral.
Ainda que não se contratualize a função pública, do meu ponto de vista, tem que haver alguma participação co-constitutiva dos agentes públicos na definição da sua disciplina jurídica. Esta para mim é a verdadeira razão de ser da previsão constitucional destes direitos coletivos de greve e de sindicalização
Ademais, a contemporânea procedimentalização da Administração pública e o espaço cada vez maior aos meios consensuais de resolução de conflitos também deve irradiar as relações internas da Administração com seus servidores.
Assim ensina a professora (NETTO, 2011):
No caso da função pública, eu considero que esta necessidade de participação dos agentes públicos no exercício do poder administrativo e na determinação da sua disciplina jurídica tem que se dar de 2 formas. Em primeiro lugar, tem que haver o que chamamos de participação dialógica, que significa o servidor público participar de procedimentos trazendo informações, deduzindo interesses, “dialogando” com a Administração. Mas esta participação dialógica não é suficiente em termos jusfundamentais, tem que haver também a chamada participação co-constitutiva.28 O que é isto? O agente público tem que ser chamado igualmente a ser coautor, em determinados casos, das decisões que a Administração toma.
Neste sentido, visualizando a participação do agente público inserida na concepção que temos de procedimento, colocamos um questionamento muito sério sobre o modelo unilateral estatutário clássico, uma vez que neste modelo não há espaço para verdadeira autonomia, o que afastaria, de certa forma, a participação co-constitutiva. Eberhard Schmidt-Assmann ressalta a influência que a opção constitucional em favor da democracia exerce sobre a construção sistemática do Direito Administrativo, tem-se que adotar um outro estilo de administrar: a Administração cooperativa.
Deste modo, é importante conceber tais direitos constitucionalmente concedidos à função pública como direitos fundamentais, o que culmina na obrigação de o Estado legislar, conformando a ordem jurídica nos termos dirigidos pela Constituição, criando o aparelhamento, órgãos, e procedimentos imprescindíveis para garantir eficácia aos direitos fundamentais nas relações de função pública.
A consagração de direitos relacionados à busca de melhorias laborais para os servidores públicas na Constituição de 1988 ostenta diretriz cuja aplicação vem sendo deixada de lado por governantes e legislaturas desde seu advento.
Urge uma atuação proativa dos órgãos competentes para a adoção de medidas tendentes a dar efetividade às faculdades de greve e sindicalização do servidor público, sob pena de fazer letra morta o texto constitucional e enfraquecer a força normativa da Constituição.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo. 30.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Taking rights seriously. Tradução de Nelson Boeira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
NETTO, Luísa Cristina Pinto e. A contratualização da função pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 102.
NETTO, Luísa Cristina Pinto e. Função Pública e direitos fundamentais. In: I Fórum Brasileiro de Direito Disciplinário, 2011, Belo Horizonte. Congresso. Belo Horizonte, 2011.
Bacharela em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Uniderp Anhanguera. Pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC Minas. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAVI, Jéssica Campos. Uma releitura do regime estatutário à luz da Constituição de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 set 2019, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53447/uma-releitura-do-regime-estatutrio-luz-da-constituio-de-1988. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Danilo Eduardo de Souza
Por: maria edligia chaves leite
Por: MARIA EDUARDA DA SILVA BORBA
Por: Luis Felype Fonseca Costa
Por: Mirela Reis Caldas
Precisa estar logado para fazer comentários.