MARIA ANGELITA DE LUCENA E MELO E SOUSA
(orientadora)
“Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre.” (Paulo Freire)
RESUMO: Diante do aumento do número de casos e da atual necessidade de uma nova legislação para acompanhar o desenvolvimento tecnológico e o cometimento de crimes no âmbito da internet, em 2018 foram tipificadas as condutas de Divulgação de cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, conhecida como Pornografia de Vingança, que se configura quando se tem a finalidade de humilhar ou se vingar da vítima, além do Registro não autorizado da intimidade sexual. Diante disso, o presente trabalho tem como escopo analisar os reflexos trazidos pelas leis 13.718/18 e 13.772/18 na persecução penal no âmbito da Lei Maria da Penha, bem como verificar de que forma esses tipos de crimes são tratados pela Polícia Judiciária Alagoana, em especial pela Seção de Crimes Cibernéticos e Delegacias de Defesa das Mulheres de Maceió, já que houve um grande avanço com o advento das novas leis que surgiram inovando e criando novos delitos, todavia apontam-se os avanços trazidos pela lei 13.718, que foi mais além, trazendo pena condizente com o grau de lesividade causado às vítimas, assim trazendo modificações significativas na persecução penal. Dessa forma, a lei 13.772 inova ao trazer a violação da intimidade da mulher como forma de violência doméstica e familiar e ao alterar o artigo 7º da Lei Maria da Penha, mas o legislador não culminou uma pena suficiente aos danos causados à vítima como o fez na lei anterior.
PALAVRAS-CHAVE: Pornografia de Vingança. Lei 13.718. Lei 13.772. Violência contra a mulher. Persecução penal
ABSTRACT: In view of the increasing number of cases and the current need for new legislation to accompany the technological development and the commission of crimes on the Internet, in 2018 the conducts of Disclosure of sex scene, nudity or pornography without the consent of the victim, known as Revenge Pornography for the purpose of humiliating or avenging the victim, and the Unauthorized Registry of Sexual Intimacy. This paper aims to analyze the reflexes brought by Laws 13.718 / 18 and 13.772 / 18 in the criminal prosecution under the Maria da Penha Law, as well as to verify that these types of crimes are dealt with by the Alagoas Judicial Police, especially by the Section Cyber Crimes and Women's Police Departments of Maceió. There was a great advance as the advent of new laws that emerged innovating and creating new crimes, however we point out the advances brought by law 13,718 that went beyond bringing punishment consistent with the degree of injury caused to victims, bringing significant changes in criminal prosecution. Law 13,772 innovates by bringing the violation of women's privacy as a form of domestic and family violence and amending Article 7 of the Maria daPenha Law, but the legislature was not culminating sufficient punishment for the harm caused to the victim as it did in the previous law.
KEYWORDS: Revenge Pornography. Law 13,718. Law 13,772. Violence against women. Criminal prosecution.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. PORNOGRAFIA DE VINGANÇA: do conceito aos casos brasileiros de repercussão. 2.1 Conceito. 2.2 Casos de repercussão nacional. 3. DIREITOS FUNDAMENTAIS: Privacidade e Intimidade. 4. AS LEIS 13.718 E 13.772. 4.1 A Lei 13.718 de 2018. 4.2 As Inovações trazidas pela lei 13.718/18: a tipificação da pornografia da vingança. 4.3 A Lei 13.772 de 2018 e suas inovações: Do registro à montagem, vai entrar na “Maria” se violar a violar a intimidade! 5. OS REFLEXOS DAS INOVAÇÕES LEGISLATIVAS NA PERSECUÇÃO PENAL: PERSPECTIVA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA ALAGOANA. 5.1 Seção de Crimes Cibernéticos. 5.2 Delegacia de Defesa dos Direitos das Mulheres - DMM2. 5.3 Delegacia de Defesa dos Direitos das Mulheres - DMM1. 6. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. ANEXO.
Filmar, distribuir e compartilhar imagens e vídeos, com o avanço tecnológico vivenciado hoje, se tornou algo extremamente fácil, principalmente em um ambiente de relacionamento doméstico e familiar. Porém, quando uma relação se finda em conflito, muitas vezes as mensagens e fotografias, antes de cunho íntimo, se tornam públicas. Com a internet, isso foi facilitado, pois as redes sociais e os aplicativos são os mais utilizados para a divulgação de material íntimo. Grandes redes sociais como WhatsApp, FaceBook, SnapChat, entre outros, tornaram-se verdadeiros locus de compartilhamento, já que através de um “click” as postagens atravessam as barreiras cibernéticas.
Diante disso, o ato de enviar, receber, compartilhar, imagens ou vídeos de cunho erótico, sensual ou explícito, o chamado “sexting”, principalmente entre pessoas envolvidas em um relacionamento amoroso, na sociedade cibernética na qual vivemos, é cada vez mais comum. Dessa forma, o problema inicia-se quando um dos envolvidos nessa relação difunde algo inconveniente, ignorando dessa forma, a dignidade, a intimidade, a privacidade e, sobretudo a nocividade trazida à vítima por esse tipo de conduta. Na maioria dos casos, as vítimas tratadas aqui, são mulheres que tendem a mobilizar o Poder Judiciário a fim de ter seu direito à intimidade, a honra e a privacidade protegido e garantido, como também sua imagem retirada do mundo virtual.
A ação de divulgar por meio da internet fotos ou vídeos contendo cenas de sexo ou nudez sem o consentimento da pessoa que está sendo exibida, com o intuito de provocar dano à vítima, ficou conhecida como “Pornografia da Vingança”. Esse tipo de conduta é praticado principalmente por homens ou companheiros/as de mulheres que por não se contentarem com o fim do relacionamento, acabam por divulgar nas redes sociais e/ou aplicativos vídeos e/ou imagens que teriam sido obtidas, inicialmente, com o consentimento da vítima quando na constância do relacionamento, contudo, posteriormente, inconformados com o término da relação, resolvem causar dano e/ou humilhação à vítima disseminando o conteúdo na internet.
Durante muito tempo, esse tipo de conduta não tinha tipificação específica na lei e raras eram às vezes em que era tratado como uma modalidade de violência contra a mulher. Em sua maioria, esse tipo de ação criminosa era tipificado como um dos crimes contra a honra, tendo sua pena aumentada, se cometido por meio que facilitasse a sua divulgação, além de ser indenizada de acordo com o Código Civil.
Mesmo diante do aumento de pena, esses crimes eram considerados de menor potencial ofensivo, o que gerava nas vítimas o sentimento de impunidade, ademais, a falta de uma legislação específica e que acompanhasse o desenvolvimento da sociedade em termos tecnológicos para conseguir enquadrar os infratores, que dessa forma eram encorajados ao cometimento de tal conduta e à reincidência.
Segundo dados recolhidos pela Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos em 2018, foram registradas 16.717 denúncias de crimes ligados à violência contra mulher; em 2017 foram 916. Um dado alarmante é o fato de que em 2018 foram 669 casos registrados de exposição de imagens íntimas, em que 440 tiveram mulheres como vítimas e 229 homens na mesma situação.
Diante do aumento do número de casos e da atual necessidade de uma nova legislação para acompanhar o desenvolvimento tecnológico e o cometimento de crimes no âmbito da internet, tornou-se necessária a tipificação penal específica para o tipo de conduta supracitado, o que só aconteceu em 24 de setembro de 2018 com a edição da lei 13.718, que cria o artigo 218-C no Código Penal, em que criminaliza a conduta de divulgar cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, dessa forma trazendo em seu parágrafo 1º uma causa de aumento de pena, caso o agente mantenha ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
Corroborando com essa mudança no Código Penal, em 19 de dezembro do mesmo ano, foi publicada a lei 13.772, que traz importante alteração na Lei Maria da Penha à medida que reconhece a violação à intimidade da mulher como forma de violência doméstica e familiar, e, introduzindo no Código Penal o artigo 216-B, que criminaliza o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privativo.
A falta de Delegacias especializadas nesse tipo de crime, assim como a dificuldade de se punir também a todos os que registram, divulgam e compartilham as imagens e vídeos trazem consequências às vítimas e geram danos irreparáveis, tais como perda de emprego, de relações pessoais e íntimas, além do grave dano psicológico, algumas chegando até ao cometimento de suicídio. Por isso a necessidade de analisarmos se as leis 13.718/18 e 13.772/18 realmente objetivam uma efetiva resposta às vítimas desses atos, para que condutas como essa sejam prevenidas e mais fácil e naturalmente punidas, posto que muitas vezes as próprias vítimas são taxadas como as causadoras da sua exposição, revelando, dessa forma, a nossa cultura machista de julgamento e linchamento social, tirando assim a culpa dos agressores.
Ante o exposto, o presente estudo tem como objetivo analisar os reflexos trazidos pelas leis 13.718/18 e 13.772/18 na persecução penal no âmbito da Lei Maria da Penha, pois durante anos a sensação de impunidade não somente pela falta de uma lei específica que tipificasse a Pornografia da Vingança, mas também pela tipificação dada à prática de tais condutas como crimes contra honra – tendo uma pena mais branda – estimulavam a reincidência por parte dos autores de tais condutas. Diante disso, faz-se necessário também verificar como esses tipos de crimes são tratados pela Polícia Judiciária Alagoana, em especial pela Seção de Crimes Cibernéticos e Delegacias de Defesa das Mulheres de Maceió.
Diante das recentes inovações legislativas, é mister investigar quais são os reflexos trazidos pelas leis 13.718/18 e 13.772/18 na persecução penal no âmbito da Lei Maria da Penha, pois se acredita que, apesar do avanço na tipificação de tais condutas, a pena cominada a elas ainda se mostra insuficiente diante dos artifícios que se tem para evitar que o criminoso cumpra com tais penalidades e volte a reincidir, além da morosidade da justiça em julgar os casos que na maioria das vezes prescreve, fazendo com que o sentimento de impunidade continue.
2.1 Conceito
A Pornografia de Vingança – pornografia da revanche ou ainda “estupro virtual” – é uma agressão sexual que envolve a distribuição de imagens e vídeos íntimos sem o consentimento da vítima. De acordo com Buzzi (2015), quando essa distribuição é feita com o objetivo de alcançar o maior número de pessoas possível, de forma a causar humilhação e dores psicológicas à vítima, é denominado de revenge porn.
Esse tipo de conduta criminosa teve seu início nos anos 80, quando um casal americano se fotografou nu durante um acampamento e ao retornar para casa guardou as fotos em um local que acreditava ser seguro. Um amigo e vizinho do casal, Steve Simpson, invadiu o apartamento e encontrou as fotos da vizinha nua, em seguida as enviou para a revista “Hustler”, especializada em publicação pornográfica para homens, que tinha uma sessão chamada “Beaver Hunt”, composta por imagens amadoras, fornecidas pelos leitores, de mulheres nuas e desconhecidas. As imagens foram enviadas junto com o número de telefone da vítima, o que gerou uma grande exposição, ocasionando no recebimento de diversas ligações de homens assediando-a.
Dessa forma entendemos que o exercício da sexualidade feminina ainda está circunscrito aos espaços privados e ao suposto domínio de um único homem, em uma sociedade onde ainda vigem normas morais de cunho machista, tais condutas causam às vítimas danos de proporções incomensuráveis, pois as sujeitam a uma exposição descontrolada, além de humilhação, constrangimento e reprovação social generalizada.
A conduta consiste, portanto, na transposição da sexualidade feminina exercida na esfera íntima, de forma livre dos padrões sociais rígidos, para esfera pública, transformando a intimidade em práticas discriminatórias sustentadas por discursos sexistas. Subjacente a isso, com uma velocidade extrema, o espaço público promove, a partir da intimidade feminina exposta, o divertimento e o entretenimento à custa da humilhação experimentada pelas vítimas, que dessa forma são sujeitas à visibilidade invasiva e pejorativa. Sendo assim, distantes do acolhimento natural da esfera privada, as vítimas vivenciam o linchamento moral, que abrange também seus familiares e amigos mais próximos.
É no âmbito do relacionamento com vínculo afetivo e/ou sexual, baseado na confiança depositada pelas vítimas, que se materializa o compartilhamento de conteúdo sexual ou na permissão para registro de momentos íntimos. A partir daí, os agressores utilizam o material obtido para prática de ameaças, constrangimentos, difamações etc.
É importante ressaltar que qualquer pessoa pode ser vítima do crime, tanto mulheres quanto homens, no entanto não podemos deixar de observar que o perfil majoritário das vítimas são mulheres que mantinham um vínculo afetivo e/ou sexual preexistente com os autores, em sua maioria homens, que reproduzem discursos institucionalmente fincados em nossa sociedade e que dessa forma tentam naturalizar o seu comportamento agressor, reprovando a conduta desenvolvida pelas vítimas. Como afirmado por Rocha (2017), esse ciclo é exclusivamente alimentado pelo machismo e pelo conservadorismo, tornando a Pornografia da Vingança uma violência de gênero, já que é um ato violento baseado no gênero do indivíduo, que resulta em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico.
Segundo Rocha (2017, p. 27),
“Apesar de toda a evolução cultural que ocorreu nas mais diversas sociedades e países, bem como dos avanços e quebras de paradigmas, sobretudo referentes às tradições conservadoras, o sexo ainda é considerado tabu. No que se refere ao Brasil, isso pode ser explicado pelo fato de o país ainda possuir forte raízes religiosas, nas diversas camadas sociais, não obstante ser um Estado laico, segundo dispõe a Constituição da República. Destaca-se aqui a religião cristã, cujos integrantes compõem-se basicamente de católicos e evangélicos. Pouco mais de 85% da população brasileira declara-se cristã, sendo que 123 milhões de fiéis fazem do Brasil o maior país católico do mundo. Isso significa que o conservadorismo, sobretudo nas questões atinentes à sexualidade, ainda é muito presente, o que resulta num fator de contribuição para o “sucesso” da prática da pornografia de vingança. (...). Isso ocorre porque ainda é comum a visão de que a sexualidade é “pecaminosa”, e a mulher que se permite filmar em atos sexuais ou fotos íntimas é considerada imoral e devassa, não sendo digna de respeito. Dessa forma, está consolidada a culpabilização da vítima. Ao final de tudo, é como se todo o sofrimento e humilhação fossem apenas consequências devidas a essas mulheres, consistindo em verdadeiro castigo merecido.”
Como forma de vingança pelo fim do relacionamento, o ex-companheiro envia para sites de pornografia os conteúdos que expõe fotos e vídeos contendo cenas de sexo do casal, muitas das vezes divulgando também os contatos e endereço das vítimas nas redes sociais, o que agrava ainda mais a situação, posto que essa atitude propicia a perseguição por estranhos. O autor da divulgação de imagens ou vídeos com conteúdo sexual, a faz justamente com a finalidade de humilhar publicamente a vítima, expõe-na a um verdadeiro linchamento moral. Conforme afirmado por Buzzi (2015, p.30), “as vítimas dessa divulgação não consensual, expostas na internet para o livre acesso de qualquer interessado passam a ser humilhadas, intimidadas, perseguidas e assediadas (...)”.
Diante disso, a vítima passa por um processo de vulnerabilização, visto que está exposta aos constantes ataques virtuais e até mesmo ataques físicos, o que evidencia ainda mais a magnitude dessa violência praticada no meio digital.
2.2 Casos de repercussão nacional
Infelizmente práticas de pornografia de vingança tem se tornado comuns, entre os casos mais conhecidos no Brasil estão o da colunista social e apresentadora de um programa de televisão na cidade de Maringá/PR, Rose Leonel; e da vendedora de uma loja na cidade de Goiânia/GO, Francyelle dos Santos Pires, os quais relataremos com o intuito de demonstrar o impacto negativo e destruidor que essa prática tem sobre a vida de suas vítimas.
Rose Leonel era noiva de Eduardo Gonçalves Dias, um relacionamento que durou quatro anos. Em 2005, a jornalista decidiu por fim ao noivado. Inconformado com o fim da relação, em outubro do mesmo ano, seu ex-parceiro, Eduardo Gonçalves Dias, passou a proferir ameaças contra a Rose Leonel, afirmando que destruiria a vida da ex-noiva, caso a mesma não reatasse o relacionamento. Em janeiro de 2006, Eduardo chegou a enviar mais de 15 mil e-mails contendo imagens íntimas da vítima, compartilhando dolosamente as imagens e dados pessoais com amigos, familiares e até mesmo colegas de trabalho da vítima.
A ação do ex-companheiro de Rose foi planejada e executada de modo cruel e egoístico. Havia a clarividente intenção de prejudicar a vítima. Os e-mails eram enviados semanalmente em forma de capítulos. As fotos foram compiladas em uma apresentação de slide, sugerindo que Rose era “garota de programa”. Além disso, suas fotos foram publicadas em sete milhões de sites de conteúdo pornográfico espalhados por todo mundo virtual.
A jornalista conta que descobriu o plano do ex-parceiro antes de ter seu conteúdo divulgado. Logo após a descoberta, procurou um advogado, mas foi informada que não poderia processá-lo por um crime que ainda não ocorrera. Rose avisou a Eduardo que iria denunciá-lo e registrou um Boletim de Ocorrência na delegacia, imaginando que ele não levaria o plano adiante, mas afirma que na cidade ninguém sabia lidar com crime virtual – o cibercrime.
No mesmo dia, em que Rose tomou conhecimento das fotos e e-mails, o seu ex-parceiro deu início ao plano de divulgação que transformara a vida da vítima em um verdadeiro inferno. Foram três anos e meio de reiterados envios de e-mails. As mensagens virtuais continham fotos íntimas da vítima e até mesmo montagens em que o rosto de Rose era inserido em fotografias de publicações pornográficas. Além disso, dados pessoais da vítima, como números de telefone celular, telefone residencial e até mesmo do trabalho, foram expostos e compartilhados com milhares de pessoas.
A partir desse momento, a vítima passou a sofrer todas as consequências da exposição virtual de sua imagem: sair de casa transformou-se em uma verdadeira luta diária, na qual ela precisava enfrentar comentários machistas, discriminatórios, misóginos e humilhantes.
Rose perdeu o emprego, e sua família sofreu profundamente com os efeitos da divulgação das imagens. Seus filhos de apenas 8 e 11 anos, na época, precisaram ser submetidos a tratamento psicológico. O filho mais velho não suportou a pressão social dos comentários envolvendo sua mãe e foi morar com o pai no exterior.
Sobre o caso, Rose diz que,
“Sofri um assassinato moral e psicológico, perdi tudo. Vi a vida dos meus filhos desabando. Meus telefones não paravam de tocar. A cada dez dias ele disparava uma leva de fotos para 15 mil e-mails da região e imprimiu centenas de panfletos para distribuir no comércio. Foi uma campanha contra mim.”
Após anos de repercussão e quatro processos na Justiça contra o ex-parceiro, em junho de 2010, ele chegou a ser condenado a uma pena de detenção de 1 ano, 11 meses e 20 dias. Contudo, a decisão foi convertida em pena restritiva de direitos (doação de cestas básicas e trabalho comunitário). A sentença também determinou ao condenado o pagamento mensal de R$: 1.200,00 (um mil e duzentos reais) em benefício da vítima, durante o período do cumprimento da pena. Em outra ação judicial, Eduardo foi condenado a pagar R$ 30 mil reais de indenização por danos morais, mas Rose recorreu, pois o valor não cobria os R$ 28 mil que ela já havia gasto com o processo.
Atualmente, a jornalista é fundadora da ONG Marias da Internet, que disponibiliza apoio psicológico e jurídico para vítimas de pornografia de vingança, sendo vista como símbolo de combate a esse tipo de crime, ressalta que se trata de uma violência baseada no gênero: “quando imagens íntimas de homens caem na web, eles não são demitidos ou humilhados, pelo contrário, passam a ser valorizados pela sua virilidade. A sociedade só condena as mulheres”, disse. E continua: “a mulher está ali exposta, acuada, e mesmo assim ainda condenam essa vítima, punem. Sem nenhuma empatia de se colocar no lugar dela. Nós precisamos parar de punir as vítimas”, conclui.
Ainda sobre o mesmo viés da pornografia de vingança, no ano de 2013, veio à tona o caso de Francyelle dos Santos Pires, Fran, como ficou conhecida na internet, a vendedora de uma loja na cidade de Goiânia/GO. Durante três anos manteve um relacionamento conturbado com Sérgio Henrique de Almeida Alves.
Apesar de sentir-se desconfortável com a ideia de ser gravada, mas por confiar em seu ex-parceiro e sob a alegação de que era uma maneira de mantê-la por perto em sua ausência, além de que era seguro, já que o vídeo estaria guardado por senhas em seu celular, dessa forma Fran aceitou ser filmada enquanto eles mantinham relações sexuais.
Em 03 de outubro de 2013, dia em que gravaram o vídeo que acabou viralizando na internet, o casal discutiu mais uma vez e Fran acabou a relação dizendo que nunca mais queria vê-lo. Seu ex-parceiro tentou contatá-la ao longo do dia, mas ela não retornou. Ele, inconformado com o fim do relacionamento, enviou vídeos íntimos do casal para os amigos, família e colegas de trabalho da ex-namorada, em todos os vídeos somente a vítima era facilmente identificada.
No mesmo dia, o vídeo viralizou através do aplicativo WhatsApp e após descobrirem a identidade da vítima foram publicados na internet seu contato, endereço e local de trabalho. Logo após tomar conhecimento do que acontecera, Francyelle registrou um Boletim de Ocorrência na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher da cidade, mas alegou que não foi dado muita importância ao caso.
As gravações foram compartilhadas milhares de vezes, em um dos vídeos a vítima aparece fazendo um sinal de “ok”, esse gesto virou motivo de piada na cidade e na internet. Milhares de pessoas, inclusive celebridades, compartilharam fotos em que apareciam repetindo o sinal, pouco se importando para a seriedade do fato.
Depois da publicação do vídeo, ela perdeu o emprego, não pode mais frequentar a faculdade, além de diversos homens tentarem entrar em contato buscando encontros sexuais. Francyelle entrou em depressão e só saia de casa para conversar com os advogados do processo que movia contra Sérgio.
O processo correu em segredo de justiça, e, em outubro de 2014, seu ex-parceiro aceitou o acordo proposto pelo Ministério Público e foi condenado a prestar serviços comunitários durante cinco meses e ainda saiu zombando da situação, rindo da vítima ao final da audiência. Para ela e tantas outras vítimas, condenações como esta sobre os seus agressores morais não são suficientes.
Depois disso, Francyelle passou a defender ferrenhamente a criação de uma lei para proteger outras mulheres e punir acusados de divulgarem material íntimo sem autorização, o que aconteceu em meados de setembro de 2018 com a publicação da lei 13.718/18[1].
Ante toda a gravidade do que expomos, apenas em setembro de 2018 foi que o Brasil editou a lei 13. 718, que modifica o Código Penal criando o artigo 218-C que tipifica a prática da pornografia de vingança, criminalizando a conduta de divulgar cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, trazendo em seu parágrafo 1º uma causa de aumento de pena, caso o agente mantenha ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. Solucionando o dissenso jurídico que havia anteriormente quanto à aplicação da legislação pertinente aos casos, haja vista o rol de leis nas quais a conduta da pornografia de vingança poderia ser associada, quais sejam: Código Penal, Lei Maria da Penha, Marco Civil da Internet e a Lei Carolina Dieckmann.
Além de na esfera cível, o entendimento acerca da pornografia de vingança pelos juízes e tribunais era de que a conduta agredia a intimidade, a honra, bem como a vida privada da vítima, acarretando a obrigação de indenizar por danos morais. Já na esfera criminal, o delito vinha sendo tipificado como crime contra a honra, delito previsto do art. 138 ao art. 145 do Código Penal. Ambas as abordagens, ainda assim, possuindo falhas no sentido de não tutelar a integridade física e psicológica da vítima.
3. DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE TUTELADOS: PRIVACIDADE E INTIMIDADE
A violência de gênero assume várias formas, uma delas é a violação da intimidade e privacidade da mulher, especialmente quando esta ocorre através da divulgação de materiais de cunho íntimo por parte de seu companheiro/a.
O direito à privacidade e a intimidade está contemplado no inciso X, do art. 5º do nosso texto constitucional, demonstrando a importância do tema ao tutelar os chamados direitos da personalidade:
Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...) grifo nosso
Para Masson (2019), o direito à privacidade representa o pleno domínio do indivíduo em reger a sua vida como quiser, mantendo o controle exclusivo das informações atinentes a sua vida afetiva e familiar: seus segredos, suas escolhas, sem se submeter à opinião de ninguém. Ao resguardar o direito genérico à privacidade, o constituinte destacou autonomamente a intimidade e a vida privada, nos indicando, portanto, tratar-se de diferentes e específicas manifestações desse direito.
Desse modo, como parte mais restrita do direito a privacidade,
(...) a intimidade compreende as relações e opções mais íntimas e pessoais do indivíduo, compondo uma gama de escolhas que se pode manter ocultas de todas as outras pessoas, até das mais próximas.(...) A vida íntima e, assim, aquela relacionada à identidade da pessoa humana, sua particularidade de foro moral, abrangendo sua sexualidade, sua autoestima, seus segredos e informações mais pessoais. (MASSON, 2019, p.261) grifo nosso
Alexandre de Morais (2006, p. 47) leciona que a intimidade consiste em “relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade”. Dessa forma, ocupa o plano íntimo das pessoas e suas relações interpessoais com os indivíduos de seu convívio.
Godoy (2008, p. 40) vai mais além afirmando que a intimidade é tratada como a exclusividade que alguém reserva para si, sem repercussão social, nem alcançando status de vida privada que envolve um viver entre os outros, como a família, com o trabalho, no lazer etc. Logo, esse direito fundamental não traduz nenhuma relação com terceiros, sendo apenas reflexos internos que cada indivíduo possui e que não podem ser violados.
Já a vida privada é mais abrangente, leva em consideração hábitos, dados pessoais, bancários, relações familiares, pessoais, negociais, diferenciando-se da intimidade, pois esta busca tutelar segredos, particularidades confidenciais dos indivíduos.
Há, segundo Gilmar Mendes, quatro meios básicos de se afrontar à privacidade: “(i) intromissão na reclusão ou na solidão do indivíduo; (ii) exposição pública de fatos privados; (iii) exposição do indivíduo a uma falsa percepção do público (falseligth), que ocorre quando a pessoa é retratada de modo inexato ou censurável; (iv) apropriação do nome e da imagem da pessoa, sobretudo para fins comerciais”. (MENDES, 2010, p.471 apud MASSON 2019, p.261)
Segundo Alves (2004), atualmente vivemos na chamada “era da tecnologia”, época em que são desenvolvidos meios com o fim de facilitar a vida das pessoas, e o pleito da intimidade, dignidade e vida privada deve ser analisado sob vários aspectos. Ao perder a sua individualidade, o ser humano contemporâneo acaba por deixar exposta sua vida, afetando, assim, sua intimidade.
O processo de afirmação do homem como portador de valores éticos indiscutíveis e insuprimíveis, como a dignidade, a honra, a intimidade, a liberdade resulta de todas as conquistas alcançadas no campo dos direitos humanos. Novos fenômenos sociais, como por exemplo, o avanço tecnológico, a omissão dos nossos legisladores em acompanhá-los, torna-se por sua vez complicadores para a efetivação desses direitos.
4. AS LEIS 13.718 E 13.772
4.1 A lei 13.718/18
Nos últimos anos, várias leis foram editadas com objetivo de aproximar o Direito da Evolução Digital e atualizar as disposições legais, a exemplo da lei nº 12.737/2012 – Lei Carolina Dieckmann, lei nº 12.965/2014 – Marco Civil da Internet, lei nº 13.441/2017, lei nº 13.642/2018 - Lei Lola, lei nº 13.709/2018 – Lei da Proteção de Dados Pessoais e outras (Queiroz, 2019, p.162).
Nessa conjuntura, é publicada a lei nº 13.718/2018, pois, apesar de todas as leis supracitadas, o certo é que a conduta de divulgar e compartilhar conteúdo sem o consentimento da vítima de cena de sexo, nudez, pornografia carecia ainda de medidas legislativas que permitissem a responsabilização criminal de forma efetiva.
A referida lei tem seu embrião diante do assombroso crescimento dos casos de estupro coletivo que assolavam o país em 2015, quando a senadora Vanessa Grazziotin apresenta o projeto de lei nº 618 com o objetivo de aumentar a pena especificamente nesses casos. Dessa forma, para tramitação conjunta a este se juntaram outros de matérias correlatas que também tipificavam crimes contra a dignidade sexual, criando as figuras típicas da importunação sexual, estupro coletivo e divulgação de imagens e vídeos de estupro, de cena de sexo, nudez ou pornografia que não tenham o consentimento da vítima, estabelecendo inclusive causas de aumento de pena. E, em 25 de setembro de 2018, dá-se a publicação no Diário Oficial da União da lei 13.718 de 24 de setembro de 2018.
Essa lei alterou o Código Penal Pátrio tipificando os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, estupro de vulnerável, de cena de sexo ou pornografia, tornando pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável estabelecendo causas de aumento de pena para esses crimes, além de definir como causa de aumento de pena o estupro corretivo e o estupro coletivo.
Neste trabalho trataremos da alteração que introduz no Código Penal o artigo 218-C, especificamente em seu parágrafo 1º, que tipifica a conduta da pornografia de vingança e as inovações trazidas por esta lei nesse contexto.
4.2 As Inovações trazidas pela lei 13.718/18: a tipificação da pornografia de vingança
A lei nº 13.718 acrescentou no Código Penal Brasileiro o artigo 218- C que prevê como crime:
Divulgação de cena de estupro e de estupro de vulnerável, e de sexo ou pornografia
Art.218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Aumento de pena:
§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. (grifo nosso)
Exclusão de Ilicitude
§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos. (BRASIL, 2019)
Como afirma Cunha (2019), não obstante a divulgação ilícita de fotos de uma pessoa nua possa caracterizar ofensa à dignidade sexual em sentido amplo, é sabido que, anteriormente a esta lei, não havia amparo adequado a quem fosse vitimado por essa espécie de conduta, se subsumindo este comportamento ao tipo penal da injúria majorada na forma do artigo 141, inciso III, do CP, em razão de ter sido cometida por meio facilitador da divulgação da ofensa. A pena era muito mais branda e não punia efetivamente o ato do agressor.
Vale lembrar que o objetivo do presente trabalho é verificar quais as consequências desse novo tipo penal na persecução penal da Lei Maria da Penha, principalmente nas condutas que se enquadram no que chamamos de pornografia de vingança. Logo, nos ateremos ao parágrafo 1º do referido artigo que traz as majorantes aos casos em que esse crime seja praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima, bem como para quando a conduta for praticada com fins de vingança ou de humilhação.
Segundo o parágrafo 1º, o crime tem a pena majorada à razão de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) em dois casos específicos: caso haja ou tenha havido uma relação íntima de afeto ou se o crime foi praticado com a finalidade de vingança ou humilhação.
Na primeira parte, no que tange ao termo relação íntima de afeto, este abrange o casamento, a união estável ou o namoro, não sendo aplicável a casos de relacionamentos fugazes, esporádicos e passageiros, sem maior vínculo entre o autor e a vítima. Geralmente são casos em que o vídeo, a fotografia, enfim, o registro audiovisual foi feito de forma consentida, mas sua divulgação não foi autorizada.
Conforme leciona Cunha (2019), o fundamento da punição mais severa é a traição da confiança normalmente existente entre pessoas que mantêm ou mantiveram um relacionamento por relevante período de tempo.
A majorante que envolve as relações de afeto trata dos agentes que são cônjuges, companheiros ou namorados durante ou após o término do relacionamento, não importando se a relação é hetero ou homoafetiva. Vale ressaltar que às relações de parentesco entre ascendentes, descendentes ou colaterais devem ser aplicadas o artigo 226, II do Código Penal. Apesar de ser possível e recorrente que a divulgação ocorra por vingança ou com o fim de humilhação, não se exige, nessa primeira parte, o fim específico de agir do autor, pois quando isso ocorre confunde-se com a hipótese prevista na segunda parte do parágrafo 1º.
Na segunda parte do parágrafo supracitado, a pena é majorada quando a conduta do caput for cometida com o fim específico de vingança ou humilhação, não existindo aqui a necessidade de prévia relação íntima de afeto, ainda que o mais comum seja que essa relação exista.
O termo vingança é sinônimo de revide, retaliação, revanche. De acordo com os ensinamentos de Queiroz (2019), para que haja vingança é necessário que exista ato anterior da vítima, seja ele idôneo ou inidôneo, que leve o agente a querer revidar. Logo, apesar de não haver no dispositivo legal a exigência, mas pressupõe contato preexistente entre os sujeitos. Trata-se aqui de punir, a chamada pornografia de vingança ou revenge porn, praticada por ex-cônjuges, ex-companheiros, ex-namorados que inconformados com o término do relacionamento amoroso divulgam na internet imagens ou vídeos íntimos do ex-parceiro.
A palavra humilhar é sinônimo de envergonhar, rebaixar, ridicularizar. Não pressupõe qualquer ato anterior da vítima como na vingança ou contato preexistente entre os envolvidos, podendo ocorrer a divulgação do material por qualquer pessoa. Essa majoração pode incidir ainda que o autor e a vítima não tenham tido um relacionamento afetivo considerável, podendo ser aplicada em casos de encontros casuais.
Quais as inovações trazidas por essa lei? Como já foi tratado neste trabalho, ainda que superficialmente, quando uma mulher tinha sua intimidade e privacidade violada através da divulgação de imagens e/ou vídeos contendo cena de sexo ou nudez sem o seu consentimento por parte de seu/sua ex-companheiro/a, por não haver tipificação penal específica para tal conduta, geralmente o caso se subsumia, como falamos anteriormente, aos crimes de difamação ou injúria (artigos 139 e 140 do Código Penal), já que por não haver a majoração da pena quando a conduta era cometida com o fim específico de se vingar ou humilhar ou por ter uma relação íntima de afeto entre os sujeitos, os julgadores somente aumentavam a pena em 1/3 (um terço) caso a conduta fosse cometida por meio que facilitasse a divulgação do material, subsumindo tal comportamento ao artigo 141, III, também do Código Penal.
As penas cominadas a esses delitos eram irrelevantes se comparadas às consequências trazidas à vida das vítimas da pornografia de vingança. O crime de difamação tem pena máxima de um ano, a injúria tem pena máxima de 6 meses. Por serem considerados crimes de menor potencial ofensivo, são compatíveis com os benefícios da lei nº 9.099/95, quais sejam transação penal e suspensão condicional do processo.
Mesmo havendo ou tendo havido relação íntima de afeto com a vítima, podemos perceber que os crimes não eram tratados no âmbito da violência doméstica, desconsiderando, portanto, a questão como de violência de gênero, continuando a serem tipificados como injúria e difamação, tendo a vítima que procurar a reparação do dano também na esfera civil. Tendo em vista as penas aplicadas a esses delitos, as penas privativas de liberdade eram substituídas por penas restritivas de direitos, prestação de serviços à comunidade e uma multa.
A partir da publicação da lei 13.718, a pena passa a ser de 1 (um) a 5 (cinco) anos de reclusão, sendo possível apenas a suspensão condicional do processo. No entanto, essa pena pode ser majorada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), logo, esse novo patamar traz mudanças significativas, pois a pena mínima a ser considerada passa a ser de 1 ano e 4 meses, e a pena máxima podendo passar de quatro anos, impossibilitando a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, deixando a punição muito mais severa, dessa forma acompanhando e, muitas das vezes, ultrapassando as legislações de países do primeiro mundo em relação à criminalização desse tipo de delito.
Com a criação do parágrafo 1º do artigo 218-C fica claro o tratamento que se dá, mais rigoroso, a punição do que chamamos de pornografia de vingança, bem como, de quando esse tipo de conduta é praticada pelo ex-companheiro, ex cônjuge, ou seja, nota-se que o legislador passa a entender que deve-se aplicar o sistema de proteção especial em decorrência da violência doméstica e familiar, conforme estabelece o artigo 5º da lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha.
Assim sendo, segundo o que preconiza a Súmula 536 do STJ não se aplicam aos delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha a transação penal e a suspensão condicional do processo. Esse crime é de ação penal pública incondicionada e de competência da justiça estadual comum, devendo o processo correr em segredo de justiça.
Um importante fato a ser mencionado é que a lei 13.718 criminalizou a conduta de divulgação de cena de sexo ou pornografia, mas não tipificou o simples registro, captação sem a divulgação, deixando uma lacuna.
Ao encontro desta lei, em 19 de dezembro de 2018, foi publicada a lei 13.772 que traz importante alteração na Lei Maira da Penha à medida que reconhece a violação à intimidade da mulher como forma de violência doméstica e familiar, e introduz no Código Penal o artigo 216-B, criminalizando o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privativo, sobre a qual passaremos a discorrer.
4.3 A lei 13.772/18 e suas inovações: Do registro à montagem, vai entrar na “Maria” se violar a violar a intimidade!
Conhecida como Lei Rose Leonel ou ainda Lei Maria da Penha Virtual, a Lei 13.772 teve sua origem em meados de 2013, a partir de uma audiência pública proposta pela jornalista Rose Leonel, que contou com a participação do Deputado João Arruda, com o intuito de demonstrar a importância e necessidade de uma lei que protegesse as mulheres vítimas da conduta criminosa da pornografia de vingança. Dali nascera o projeto de lei nº 5555/2013.
O supracitado Projeto de Lei recebeu várias emendas dentre as quais a sugestão da criação do tipo penal denominado Registro Não Autorizado de Intimidade Sexual. Durante a tramitação do mesmo, foi promulgada a lei 13.718, o que acabou deixando parte do objeto do referido projeto inócuo, posto que um dos objetivos era o de criminalizar exposição pornográfica, o que foi feito com o advento da supracitada lei, já que nas condutas da mesma estão os nove verbos que caracterizam realmente a exposição, sendo eles: oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar sem o consentimento da vítima cena de sexo, nudez ou pornografia.
Após várias modificações, o projeto de lei 5555/2013 é aprovado, sendo que em 19 de dezembro de 2018 é sancionada a lei 13.772, que reconhece que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar modifica a Lei Maria da Penha e altera o Código Penal, criando o artigo 216-B, tipificando o registro não autorizando de conteúdo de cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado.
A lei altera o artigo 7º da lei 11.340 de 2006 – Lei Maria da Penha:
Art. 1º. Esta lei reconhece que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar e criminaliza o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado.
Art.2º. O inciso II do caput do art. 7º da lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art.7º(...) II - A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (...)” (grifos nossos)
Trata-se de um grande avanço o reconhecimento da violação da intimidade da mulher enquanto uma nova forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, passando a ser encarada como violência psicológica, e ao ser vista desse modo incide sobre o autor todas as peculiaridades que a Lei Maria da Penha traz, tais como a vedação da aplicação dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, com isso a obrigação do autor de integrar programas de reeducação e recuperação, a concessão de medidas protetivas e a decretação de prisão preventiva.
A intimidade discutida pela lei é a intimidade sexual, tendo em vista as discussões desde o projeto que deu origem a nova legislação, que desde o início visam proteger a mulher que sofreu a violação através da coleta ou exposição de fotos, filmagens, imagens, vídeos de cunho sexual.
Ademais, em seu artigo 3º, a Lei Rose Leonel modifica o Código Penal, criando o Capítulo I-A da Exposição da Intimidade sexual e insere o artigo 216-B no referido diploma legal conforme o exposto:
Art. 3º. O Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo I- A:
CAPÍTULO 1-A – DA EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL
Registro não autorizado da intimidade sexual
Art.216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único: na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.
Antes de discorrermos sobre o objeto em si do tipo penal em questão, a lei insere o Capítulo I-A, denominado “DA EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL”, porém não vislumbramos no restante do texto nenhum tipo relacionado à exposição, mas apenas ao registro não autorizado e a figura equiparada que consiste na montagem de material com conteúdo de mesma natureza. As condutas que se amoldam a exposição estão relacionadas no artigo 218-C do Código Penal, inserido pela lei 13.718, que traz verbos nucleares compatíveis a ação de expor, de colocar em evidência, a intimidade sexual de outrem e não no aludido artigo 216-B.
Corroborando os dizeres de Sydow (2019), não se está diminuindo a importância de um tipo incriminante para a conduta de registro não autorizado, mas apenas apontando o defeito formal e de alocação do tipo.
Conforme nos ensina Rogério Sanches Cunha:
“O tipo preenche a lacuna que existia em relação à punição da conduta de indivíduos que registravam a prática de atos sexuais entre terceiros. Foi grande a repercussão quando, em janeiro de 2018, um casal alugou um apartamento para passar alguns dias no litoral de São Paulo e, depois de se instalar, percebeu uma pequena luz atrás de um espelho que guarnecia o quarto. O inusitado sinal faz com que um deles vistoriasse o espelho e, espantado, descobrisse que ali havia uma câmera instalada. O equipamento foi imediatamente desligado e, logo em seguida, o casal recebeu uma ligação do proprietário do imóvel, que indagou se havia ocorrido algum problema, o que indicava que as imagens estavam sendo transmitidas em tempo real. Embora se tratasse de conduta violadora da intimidade e que inequivocamente dava ensejo a indenização por danos morais, o ato – não tão incomum – de quem instalava um equipamento de gravação nas dependências de um imóvel para captar imagens íntimas sem o consentimento dos ocupantes não se subsumia a nenhum tipo penal. A partir de agora, é classificado como crime contra a dignidade sexual” (CUNHA, 2019, p. 519-520)
A inovação legislativa aponta criminalização também do registro doloso, como afirmado acima, essa era uma lacuna deixada na lei 13.718. Visando proteger o maior número de pessoas, aqui não se tem a exigência de nenhum tipo de relação entre a vítima e o autor, podendo se enquadrar nesse tipo àqueles casos de registros não autorizados de imagens ou vídeos de pessoas ou casais em vestiários, banheiros públicos ou privados por exemplo.
O parágrafo único criminaliza a montagem, a inserção de modo artificial de imagem de pessoa em situação de nudez ou ato sexual libidinoso de caráter íntimo, a exemplo do que aconteceu com um candidato ao governo de São Paulo, que teve sua imagem incluída em um vídeo com cena de ato sexual circulando nas redes sociais, depois se descobriu que se tratava de uma montagem, este foi um dos motivos para a inclusão na novel legislação do parágrafo único. Fatos como esses têm acontecido corriqueiramente e são penalizados da mesma forma que as condutas previstas no caput do artigo.
A pena prevista é de detenção de 6 meses a 1 ano, diante do bem jurídico que se propõe a proteger e da gravidade da conduta, a pena se mostra inadequada, posto que, se não se enquadrar no contexto de violência doméstica e familiar permite que o autor possa cumprir a pena em regime aberto, admitindo os benefícios da lei nº 9.099/95, quais sejam transação penal e suspensão condicional do processo.
Esta pena pode ser aumentada pela incidência dos incisos I e II do artigo 226 do Código Penal, que leciona que se o crime for cometido em concurso de duas ou mais pessoas será aumentada de quarta parte, e se o agente for ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou tiver por qualquer outro título autoridade sobre ela a pena será aumentada da metade. Da mesma forma que o artigo 218-C, os crimes previstos pelo artigo 216-B são de ação pública incondicionada obedecendo ao mandamento do artigo 225 do Código Penal.
Caso o autor pratique a conduta no âmbito da lei Maria da Penha, já que a violação da intimidade passa a ser considerada como violência psicológica, como afirmado acima, este terá o rigor que esta lei traz consigo já explanados anteriormente.
O legislador na tentativa de acompanhar e dar respostas à sociedade tipificou através das leis, que discorremos acima, acerca da divulgação, do registro, trazendo hipótese de excludente de ilicitude, mas, no entanto, não tipificou de forma específica a conduta de usar os registros obtidos com ou sem consentimento para ameaçar as vítimas. Acreditamos que essa lacuna ainda existe, apesar de essa conduta se subsumir ao tipo penal de ameaça, e muitas vezes ser enquadrada em ameaça no âmbito da Lei Maria da Penha, mas na imensa maioria das vezes acontece que o autor do crime de pornografia de vingança, principalmente, antes de divulgar ou distribuir as imagens da vítima, a conduta que seria tipificada no artigo 218-C §1º, antes obtém o registro das imagens, que numa relação íntima de afeto pode ser com o consentimento ou com o intuito de se vingar, ele pode fazer montagem, caso não tenha obtido, logo, se enquadraria no artigo 216-B, parágrafo único. Dessa forma, a vítima começa a ser ameaçada para que reate o relacionamento e antes de serem divulgadas as imagens o autor é descoberto, a pergunta é: e a ameaça? Será que os danos psicológicos causados à vítima que sofrera com elas não são tão graves quanto o ato de ter o conteúdo registrado e divulgado? Será que não deveria ter tido uma tipificação específica para isso?
A nosso ver, o legislador na lei 13.718 ao acrescer o artigo 218-C poderia ter acrescentado mais um parágrafo tipificando especificamente a conduta de Ameaça de divulgação de cena de sexo, nudez ou pornografia, trazendo uma pena condizente com os danos causados às vítimas, pena de 01 a 03 anos por exemplo.
As inovações legislativas ainda são recentes, logo se faz necessário estudar como estas estão sendo aplicadas pela Polícia Judiciária Alagoana, de que forma essas leis vem refletindo na persecução penal e se vem crescendo o número de casos notificados.
5. OS REFLEXOS DAS INOVAÇÕES LEGISLATIVAS NA PERSECUÇÃO PENAL: PERSPECTIVA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA ALAGOANA
Ao realizarmos uma pesquisa de dados em fontes abertas e fechadas acerca da apuração pela Polícia Judiciária Alagoana dos novos tipos penais inseridos no Código Penal Pátrio através das novas legislações, constatamos que estas são realizadas tanto pelas Delegacias Distritais, Delegacias Especiais de Defesa dos Direitos da Mulher, mas principalmente pela Seção de Crimes Cibernéticos.
Com a finalidade de apreender diretamente aspectos da realidade investigada, bem como visando conferir maior profundidade ao nosso trabalho, decidimos realizar uma entrevista com os delegados responsáveis pelas Delegacias Especiais de Defesa dos Direitos da Mulher de Maceió (DDM’s) e Seção de Crimes Cibernéticos, apreendendo aspectos objetivos, estatísticos, afetos à ocorrência no âmbito desses locais e associando aos elementos subjetivos efetivamente visualizados na atuação desses, já que os mesmos lidam diariamente com o enfrentamento institucional da nossa problemática.
Segundo a base de dados da Polícia Civil de Alagoas, desde 2018 foram registrados 18 Boletins de Ocorrências com a natureza do fato sendo o artigo 218 – C caput, 12 baseados no artigo 218-C §1º, 04 no 216-B caput e 05 na conduta do 216-B parágrafo único. Em sua maioria, esses crimes foram denunciados e apurados pelas DDM’s ou Seção de Crimes Cibernéticos, o que nos levou a querer saber como é realizada a primeira fase da persecução penal nesses casos desde a chegada da vítima até o indiciamento do autor, além dos reflexos das novas legislações na primeira fase da persecução penal.
5.1 Seção de Crimes Cibernéticos
Segundo o delegado responsável pela Seção em Alagoas, já contamos com mais de 800 crimes cibernéticos registrados no ano de 2019, 1/3 deles a gente identifica como sendo crimes de fraude, estelionato, furto mediante fraude, ou seja, aqueles crimes que traz algum prejuízo financeiro as vítimas, outro terço são crimes contra a honra e esse 1/3 final que tem variadas infrações é onde entra o crime de vingança pornográfica e registro de nudez, ato sexual.[2]
O crime de vingança pornográfica é um crime cibernético impróprio, uma vez que a própria lei 13.718 no artigo 218-C prevê outras formas de exposição da imagem íntima de uma mulher e enfatiza que será crime, inclusive quando este for praticado pelo ambiente virtual. “Hoje é muito mais fácil você pegar as imagens íntimas de uma pessoa com o intuito de ofender a dignidade sexual e distribuir essas imagens via aplicativos de mensageria como WhatsApp, via e-mail ou até mesmo nas redes sociais”.
O crime cibernético impróprio é aquele que já existia com previsão no Código Penal, só que agora ele passou a ser cometido pelo ambiente virtual, a exemplo do crime contra a honra, estelionato, crime de furto mediante fraude, mas que agora o modus operandi passa pelo ambiente virtual.
Mesmo antes da inauguração desse tipo penal já havia registros desse tipo de conduta criminosa na Seção de Crimes Cibernéticos, antes esse tipo de conduta era tratado, por ausência de tipificação, como crime de difamação, pois ofendia a honra objetiva da mulher. A partir de 2018, com a implementação do artigo 218-C no Código Penal passaram a atribuir esse tipo de conduta a esse crime, que tem uma pena bem superior prevista de 01 a 05 anos de reclusão, além de ser majorada quando tem o intuito do autor de humilhar ou promover vingança em relação à vítima.
Afirma ainda que no último ano houve um aumento substancial nesses tipos de crimes, sobretudo pelo aspecto de que as pessoas têm a falsa percepção de que essas condutas não se amoldam a crimes, pensam tratar-se apenas de um fato que vai causar uma desonra aquele ex-namorado ou ex-namorada etc, e que por sua vez não seriam responsabilizados penalmente. Através da atuação da equipe que compõe a seção tem-se provado a estas pessoas que esse tipo de prática é crime e que é possível sim ser investigado e elucidado, mesmo quando praticado por perfis falsos da rede mundial de computadores. Essa seção tem conseguido identificar esses autores.
No que se refere a competência para a apuração desses casos, o delegado afirma que o ideal seria que todas as delegacias passassem a ter habilidade de trabalhar com crimes no ambiente cibernético, pois trata-se de uma realidade. A rigor, as competências para investigar essas infrações penais são dos próprios Distritos Policiais ou de especializadas, nesse caso assume destaque as Delegacias das Mulheres, pois muitas mulheres é que vem sendo vítimas dessa modalidade criminosa no ambiente virtual, caso o crime seja praticado no contexto de violência doméstica e familiar, numa relação íntima de afeto.
Ressalta ainda que nem todos os agentes têm habilidade para investigar esse tipo de infração penal, dessa forma muitos e muitos casos estão sendo direcionados para seção de crimes cibernéticos e por sua vez fazendo a investigação. A seção de crimes cibernéticos além de trabalhar diretamente nesses crimes também vem prestando apoio técnico a todas as delegacias que aqui solicitam apoio.
O primeiro passo de uma investigação é justamente identificar qual é esse usuário da rede social, por isso deve-se preservar a rede social com print de tela, o número do telefone, em seguida vir a delegacia de polícia registrar o Boletim de Ocorrência e fornecer todo esse conteúdo para que se possa inaugurar o procedimento investigatório.
A partir da chegada da vítima a seção, é registrado o Boletim de Ocorrência, para que seja instaurado o Inquérito Policial, trabalhando de forma técnica para identificar qual foi o autor daquela rede social, daquele aplicativo de mensageria, como por exemplo, WhatsApp, para então chegar à autoria delitiva. Esse trabalho é feito basicamente com o intuito de identificar o I.P que o usuário utilizou para difundir essas imagens. “O I.P (INTERNET PROTOCOL) é uma espécie de crachá que todos nós recebemos quando acessamos o ambiente virtual, nós vamos em busca da pessoa que estava com aquele crachá no momento exato da prática do crime, é isso que nos permite identificar de forma robusta a autoria delitiva desses casos”.
O perfil das vítimas do delito de pornografia de vingança é, em sua maioria, do sexo feminino e em idade jovem entre 18 e 25 anos, o perfil dos autores é equivalente ao das vítimas, entretanto não é uma regra absoluta.
“É válido ressaltar que tem aparecido muitos casos em que muitos homens já foram vítimas desse crime, como também temos casos em que mulheres são vítimas de outras mulheres. Como por exemplo: A atual namorada de um homem que tenha acesso a imagem íntima da ex-namorada dele e aí com o intuito de ofender a dignidade sexual dessa pessoa passa a difundir essas imagens. Já tivemos mais de um caso, ou seja, é algo corriqueiro, não é algo raro de vingança pornográfica praticada por mulher contra mulher!”
O delegado afirma que o advento das leis 13.718 e 13.772 foi um avanço em nossa legislação, pois a existência desses novos tipos penais que vem criminalizar de forma específica os delitos praticados no ambiente virtual, majorando a pena e criando tipos penais antes inexistentes como o caso do artigo 216-B no Código Penal, dá uma resposta a sociedade, pois o efeito lesivo contra a honra e dignidade da pessoa é muito maior.
O crime do artigo 218-C, por exemplo, tem pena de 1 a 5 anos,o que pode ainda ser aumentada quando houver o intuito de vingança face à vítima, é o caso da vingança pornográfica. Agora pode ser instaurado o inquérito policial, algo de extrema importância para uma investigação. Que além de vedar a aplicação dos benefícios do juizado especial criminal que prevê que em crimes com penas de até dois anos seria lavrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência, o que ocorria antes da promulgação da lei 13.718.
“A Instauração do Inquérito e uma possível ação penal, pode implicar no autor uma sentença penal condenatória que prejudicará sem sombra de dúvida os seus antecedentes criminais, por exemplo, o indivíduo que comete uma infração penal dessa aos 18 anos está fadado a não ingressar no serviço público tendo em vista que vai possuir uma anotação criminal, inclusive podendo vir a ser condenado, então sem sombras de dúvidas foi um avanço positivo em termos de legislação”.
Para dar uma resposta mais efetiva à população, a Seção de Crimes Cibernéticos tem buscado sempre que solicitada atuar conjuntamente com outras delegacias. A autoridade Policial afirma que em alguns casos a DDM-1 observa que o caso é mais complexo e remete para Seção de Crimes Cibernéticos, que acolhe o caso e passa a investigar; em outros a DDM - 1 instaura o inquérito policial e pede apenas o apoio técnico investigativo para atuar, assim como tem acontecido com outras delegacias do interior do Estado. O intuito da secção de crimes cibernéticos é prestar todo auxílio técnico às delegacias distritais, às delegacias especializadas para que juntos consigam obter um resultado rápido e efetivo da repressão qualificada a esses tipos de crimes, que é o papel da Polícia Civil.
O crime do artigo 218-C tem pena de 1 a 5 anos, podendo ainda ser aumentada quando houver o intuito de vingança face à vítima, é o caso da vingança pornográfica.
5.2 Delegacia Especial de Defesa dos Direitos da Mulher – DDM 2
A delegada afirma que a referida delegacia não tem recebido casos relativos ao crime de divulgação de cena de sexo ou pornografia sem autorização da vítima (artigo 218-C do CP), e raramente chegam casos de Registro não autorizado da intimidade sexual (artigo 216-B do CP), talvez por serem crimes novos e a população ainda não estar ciente de que tais condutas sejam passíveis de responsabilização penal.
A DDM2 lida com casos específicos que se enquadram na Lei Maria da Penha, como também com qualquer outro que tenha a mulher como vítima. Logo, a exemplo da conduta trazida pela lei 13.772/18, que modificou o Código Penal criminalizando o Registro não autorizado da intimidade sexual, aplicando para este uma pena de 6 meses a 1 ano tem-se que: se não for um caso em que se possa se subsumir ao contexto de violência doméstica e familiar será apenas lavrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência -TCO; se for no âmbito de relação íntima de afeto e fique assim caracterizado incidirá portanto, de acordo com essa mesma lei, a Lei Maria da Penha e suas proibições, portanto, será instaurado inquérito policial.
O único caso recebido, segundo a autoridade policial, foi de uma tentativa de registro não autorizado da intimidade sexual em que um ex-namorado tentou filmar a ex-namorada com outra pessoa em um motel. A delegada afirma que esses tipos de crimes são apurados nos distritos e que a Seção de Crimes Cibernéticos não apura esses tipos de crimes, pois àquela seção só apura os crimes cibernéticos próprios.
De acordo com o crime específico da pornografia de vingança, se a vítima for mulher é investigado pela Delegacia da Mulher, se for homem é do Distrito Policial, se for adolescente é da Delegacia de Crimes Contra a Criança e o Adolescente, reforça a delegada.
“É interessante até entrevistar eles lá (Seção de Crimes Cibernéticos) porque eles falarão da parte da perícia e tal, de como a pessoa pode identificar que realmente daquele celular que foi feita aquela filmagem esse tipo de coisa, Né? Mas o crime em si eles não apuram não.”
Quando a vítima chega à delegacia é feito o B.O, depois é agendado um dia para as partes e as testemunhas serem ouvidas. Se o caso demandar mais urgência poderão ser solicitadas medidas protetivas de urgência ao juiz, se for o caso enquadrado na lei Maria da Penha.
Apesar de não ter recebido nenhum caso de divulgação de conteúdo íntimo, a delegada afirma que recebeu muitos casos em que os ex-companheiros chegaram a chantagear as vítimas e as ameaçar de que divulgariam as imagens, mas não chegaram a divulgar, por isso na delegacia tipificam essa conduta como Ameaça com as implicações da Lei Maria da Penha (art. 147 do CP).
A promulgação das novas leis fez com que a ação penal para esses crimes se tornasse pública incondicionada. A pena para o crime de Pornografia de vingança e demais condutas tipificadas pelo artigo 218-C caberão flagrante e será instaurado o inquérito policial. A conduta do artigo 216-B, apesar da pena não está adequada para a lesividade que provoca à vítima, se for um caso que se amolde à Lei Maria da Penha não serão permitidos os benefícios do juizado especial criminal, nem a lavratura de TCO.
5.3 Delegacia Especial de Defesa dos Direitos da Mulher – DMM1
Em entrevista com Autoridade Policial da DDM-1, foi nos falado da importância de trabalhos como este para a divulgação da informação à população em geral acerca dessas novas leis e da tipificação penal das condutas que estas trazem.
Desde que as leis 13.718 e 13.772 entraram em vigor, a referida delegacia recebeu apenas 2 registros de boletim de ocorrência, dos quais um já foi instaurado inquérito e outro ocorreu na data de final do mês de setembro do corrente ano, o qual estão dando o devido prosseguimento investigativo. Acredita-se que haja muito mais casos, mas devido as subnotificações as vítimas não chegam a registrar as ocorrências, isso se dá por diversos motivos, sejam eles medo do julgamento da sociedade, vergonha, medo das ameaças, enfim.
Foi nos afirmado que não tinha conhecimento dos casos que já tinham sido notificados à Seção de Crimes Cibernéticos, mas que costumam pedir apoio em casos mais complexos e sempre são atendidos, inclusive policiais desta seção já foram à delegacia capacitar alguns policiais para lhe dar com algumas questões, com isso já conseguem seguir com investigações desses tipos de crimes sem dificuldades.
A delegada afirma que recebem muitos casos de ameaça de divulgação do conteúdo íntimo, mas não tem como precisar o quantitativo, tendo em vista que este tipo de conduta vem a ser tipificado como ameaça com as implicações da Lei Maria da Penha se for praticada por companheiro ou ex-companheiro. Ressalta ainda que a lei 13.718 também tipificou o crime de Importunação sexual, quanto a este crime, percebe-se um aumento considerável no número de registros.
Caso uma mulher seja vítima do Crime de Divulgação de cena de sexo ou pornografia ou Registro não autorizado da intimidade sexual, quando esta procura a DDM-1, é feito o registro do Boletim de Ocorrência, logo após o Inquérito Policial é instaurado, em seguida se identifica qual o meio utilizado para divulgação, se foi WhatsApp, FaceBook ou outros. Vale notar que as vítimas são mulheres jovens, geralmente na faixa etária entre 20 a 30 anos.
“Em um dos casos aqui, por exemplo, foi através de WhatsApp, aí a gente faz ou encaminha a vítima para que seja feita a certidão em cartório, para que seja comprovada que a divulgação partiu daquele número, anotamos o número da linha telefônica e oficia a operadora para confirmar que aquele número é pertence ao acusado a qual a vítima está imputando a autoria, e isso tudo a gente faz durante o inquérito para realmente comprovar... Porque na maioria das vezes, a mulher tem certeza, sabe que tirou a foto com aquela pessoa, ele que tirou, ela estava com ele, no momento permitiu, mas aí ela sabe que foi com ele, mas a gente, de qualquer forma, o nosso trabalho é o de comprovar a autoria, comprovar que foi ele, a gente procura se cercar de provas e também ouvir as testemunhas de pessoas que tenham recebido ou tenham visto a divulgação ou registro se for o caso.”.
Segundo a Autoridade Policial, a promulgação da lei 13.718/18 trouxe bastantes reflexos na persecução penal, a começar pela pena do crime tratado no artigo 218-C, §1º, que é tratado neste trabalho, que veio tipificar a conduta da Pornografia de Vingança a qual antes era tratada como um dos crimes contra a honra, trazendo também uma pena muito superior, de 01 a 05 anos.
Outro reflexo é que quando esta conduta era tipificada como crime contra a honra a ação penal era privada e muitas das vezes a mulher vinha à delegacia, realizava o Boletim de Ocorrência e não aprecia mais, assim perdendo o prazo para entrar com a queixa-crime em juízo; hoje isso não ocorre mais, com a novel legislação a ação penal se tornou pública incondicionada, então mesmo que ela faça o Boletim de Ocorrência e depois se ausente, a qualquer momento o autor poderá ser punido. “A pena é bem maior e o procedimento na justiça vai mudar completamente!”
Em relação à Lei 13.772/18, a importância de sua publicação dá-se pelo fato desta ter enquadramento a violação da intimidade da mulher enquanto violência doméstica e familiar e à alteração feita no artigo 7º da Lei Maria da Penha. Esse reconhecimento faz com que haja a mudança do procedimento, tornando possível a solicitação de medida protetiva e todas as outras medidas que são previstas na supracitada lei. Foi uma importante medida, mas a pena imputada ao crime de Registro foi muito pequena, afirma a delegada.
A delegada concorda que a pena imposta ao crime tipificado pelo artigo 218-C, bem como a majoração constante em seu parágrafo primeiro, está condizente com os danos que a conduta traz às vítimas, no entanto discorda da pena que o legislador imputou ao crime de Registro não autorizado da intimidade sexual, pois esta poderia ter sido um pouco maior, afirma a autoridade policial, destacando que fora importante a tipificação.
Apesar de não serem feitos trabalhos de prevenção de forma direta para combater esses tipos de crimes, a DDM-1 encaminha as vítimas para os Centros de Atendimento à Mulher para que estas recebam atendimento Psicológico e Assistencial.
6. CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como perspectiva compreender o fenômeno da Pornografia de Vingança, trazendo-o à discussão dada a importância do tema diante do aumento de casos na sociedade cibernética que vivemos hoje. Os danos causados por essa prática às vítimas foram demonstrados nesse trabalho através da explanação de casos reais.
Para combater essa conduta em 2018, foram publicadas no Brasil as leis 13.718 e 13.772. Com a finalidade de analisar os reflexos trazidos por estas inovações legislativas na persecução penal no âmbito da Lei Maria da Penha e de verificar como esses tipos de crimes são tratados pela Polícia Judiciária Alagoana. Diante disso, foram analisadas ambas as leis, respectivamente, as alterações que fizeram no Código Penal, a primeira introduzindo o artigo 218-C, aprofundando nossos estudos na majorante trazida em seu parágrafo 1º, que trata, mais especificamente da tipificação da Pornografia de vingança; a segunda com o artigo 216-B, que tipifica o crime de Registro não autorizado da Intimidade sexual, além de alterar o artigo 7º da Lei Maria da Penha.
Dessa forma, em nossas reflexões, tratamos de pormenorizar as alterações trazidas por estas leis, analisando as mudanças e comparando com a forma que era tratada anteriormente.
Entendemos que a tipificação específica da conduta da Pornografia de Vingança é um avanço e a pena cominada é eficiente, pois pode ser usada efetivamente tanto para punir aquele que apenas compartilha quanto traz uma penalidade mais condizente com a conduta daquele que divulga com o intuito de vingança ou humilhação. Já no caso do crime de Registro não autorizado da intimidade sexual, apesar da Lei 13.772 ter avançado quanto a inclusão da violação da intimidade à Lei Maria da Penha, a pena cominada continuou ínfima para os casos que não se amoldem a violência doméstica, o que ainda traz a sensação de impunidade, por tratar-se de crimes que são considerados crimes cibernéticos impróprios e, por conta do seu alcance, os danos provocados à vítima serem incomensuráveis devem ter penas mais rigorosas.
Dessa forma, o legislador poderia ter outros patamares de pena caso as vítimas, em virtude da divulgação de suas imagens, cometessem o suicídio, bem como uma pena mais gravosa para os casos de ameaça de divulgação das imagens registradas.
Por fim, compreendemos que a importância do presente estudo está na divulgação dessas leis para a comunidade acadêmica e a sociedade em geral, pois, muitas das vezes pela falta de conhecimento não sabemos como orientar ou até mesmo como ou onde denunciar esse tipo de crime e o que deve ser feito antes mesmo de ir à delegacia.
Com isso, é necessária a continuação de estudos sobre o tema, pois essas leis, principalmente, a lei 13.718, alterou outros dispositivos do Código Penal, a exemplo do artigo 215-A, que tipificou o crime de Importunação Sexual, teve o grande aumento no número de ocorrências nas Delegacias de Alagoas.
REFERÊNCIAS
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[1] As Filipinas foram o primeiro país a criminalizar a conduta de forma autônoma, em 2009, sendo vedada a publicação e divulgação de imagens e/ou vídeos com conteúdo sexual ou íntimo, ainda que tal captura tenha sido feita com o consentimento, com pena de 3 a 7 anos e multa.
[2] Conforme informações do Delegado até o momento da entrevista, dia 10 de setembro de 2019, somente neste ano, já haviam sido registrados de 50 a 100 casos de Divulgação e registros de cenas de sexo ou nudez não autorizado pelas vítimas.
Graduanda em Direito pela Faculdade da Cidade de Maceió - FACIMA (2019).10º Período. Graduada em Educação Física pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL (2006), Pós-graduação em Metodologia do Ensino e da Pesquisa em Educação Física e Esporte & Lazer pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (2006). Atualmente é a Agente da Polícia Judiciária - Delegacia Geral da Polícia Civil do Estado de Alagoas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, CAMILLA PRICILLIANY SOARES ALVES DE. Pornografia de vingança: as inovações trazidas pelas leis 13.718 e 13.772/2018 à Lei Maria da Penha e os seus reflexos na persecução penal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2020, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54134/pornografia-de-vingana-as-inovaes-trazidas-pelas-leis-13-718-e-13-772-2018-lei-maria-da-penha-e-os-seus-reflexos-na-persecuo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
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