RESUMO: O objetivo deste artigo é expor e avaliar se o rol existente na Lei 13.303/2016, denominada Lei das Estatais, para a não incidência, também chamada de inaplicabilidade, do regramento licitatório é exemplificativo ou taxativo, vale dizer, busca-se verificar se somente pode afastar o regramento licitatório nos casos expressos em lei ou se o caso concreto, ainda que não se enquadre ao comando legal, pode levar a inaplicabilidade das regras atinentes à licitação. É visto, valendo-se de doutrinas e jurisprudências sobre o tema, que as empresas estatais não mais estão submetidas à Lei 8.666/93 possuindo regramento de licitação próprio, qual seja, o artigo 28 e seguintes da Lei 13.303/2016. Com efeito, após a Emenda Constitucional nº 19/98, ocorreu uma salutar cisão entre a Administração Pública direta e as empresas estatais que exploram atividade econômica. Estas se submetem ao regramento privado e devem ser competitivas no mercado, apesar de, em regra, precisem licitar para contratar com terceiros. Bem por isso, previu-se na Lei das Estatais hipóteses de inaplicabilidade de licitação, quais sejam, venda de produtos ou prestação de serviços e parcerias empresarias. Contudo, observou-se que a complexidade empresarial nem sempre se adequa com perfeição a estas previsões legais, porém a licitação é um óbice para o atingimento empresarial. E assim sendo, concluiu-se que o rol deve ser entendido como exemplificativo, a despeito da leitura rasa da lei expressar o contrário, pois o contexto fático pode ser incompatível com a licitação.
Palavras-chave: Licitação. Lei das Estatais. Inaplicabilidade. Parceria. Atividade-fim. Exemplificativo.
ABSTRACT: The purpose of this article is to expose and evaluate if the existing list in Law 13.303 / 2016, called State Law, for the non-incidence, also called inapplicability, of the bidding rule is exemplary or exhaustive, that is, it seeks to verify if only It may rule out the bidding rules in the cases expressed by law or if the specific case, even if it does not fit the legal command, may lead to the inapplicability of the rules related to the bidding. It is seen, using doctrines and jurisprudence on the subject, that state-owned companies are no longer subject to Law 8.666 / 93 having their own bidding rules, namely Article 28 et seq. Of Law 13.303 / 2016. In fact, after Constitutional Amendment No. 19/98, there was a healthy split between direct public administration and state-owned enterprises that exploit economic activity. These are subject to private regulation and must be competitive in the market, although, as a rule, they must bid to contract with third parties. For this reason, it was foreseen in the State Law hypothesis of inapplicability of bidding, that is, sale of products or rendering of services and business partnerships. However, it has been observed that business complexity does not always perfectly match these legal provisions, but bidding is an obstacle to business achievement. Therefore, it was concluded that the role should be understood as exemplary, despite the shallow reading of the law expressing the opposite, because the factual context may be incompatible with the bidding.
Keywords: Bidding. State Law. Inapplicability. Partnership. End activity. Exemplary
Introdução
O propósito deste trabalho é expor e avaliar se o rol existente na Lei 13.303/2016 para a não incidência, também chamada de inaplicabilidade, do regramento licitatório é exemplificativo ou taxativo, vale dizer, busca-se verificar se somente pode afastar o regramento licitatório nos casos expressos em lei ou se o caso concreto, ainda que não se enquadre ao comando legal, pode levar a inaplicabilidade das regras atinentes à licitação.
Após a Emenda Constitucional nº 19/98 e a promulgação da Lei das Estatais, ocorrida somente em 2016, finalmente as empresas estais conseguiram regramento próprio, distinto da Administração Pública direta. Este regramento, que veio a disciplinar o art. 173, § 1º, da Constituição Federal, inovou ao prever hipóteses de inaplicabilidade de licitação.
Essa inovação foi importante, porquanto ao mesmo tempo que as empresas públicas e sociedades de economia mista precisam obedecer às regras sobre prévia licitação, elas precisam também atuar na atividade econômica em competição com empresas privadas, em mercado, por vezes, bastante acirrado.
A Lei 13.303/2016 apresentou duas possibilidades: a prestação de serviços e a venda de produtos e as parcerias empresariais. Contudo, o mercado empresarial é bastante dinâmico e complexo e nem sempre o caso concreto se enquadra nas hipóteses legais.
Nesse cenário, procura-se responder a seguinte indagação: afinal, o rol exposto na Lei das Estatais é taxativo ou exemplificativo?
1 Do contexto normativo vigente
De início, cabe lembrar que, para contratar com terceiros, empresas públicas e sociedades de economia mista, devem licitar para contratar com terceiros, conforme preconiza o art. 22, inciso XXVII, da Constituição Federal – CF, que com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 19/98, separou o regime jurídico atinente à licitação da administração direta, autárquica e fundacional, do regime das empresas estatais, sujeitando estas às regras próprias da iniciativa privada.
Bem por isso, as empresas estatais estão subordinadas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, por comando constitucional, conforme art. 173 da CF. E, por isto, apesar das estatais devam obediência aos princípios constitucionais aplicáveis à administração pública, nos termos do art. 37, caput, da CF, a hermenêutica deve ser guiada para a necessária divisão entre o regime público, próprio da Administração Pública direta, do regime privado, no qual está inserida as estatais.
Marçal Justen Filho (2016, p. 285), ao comentar a cisão constitucional promovida pela EC 19/98, pondera:
A disciplina do art. 173, § 1º, III, é claramente distinta daquela prevista no art. 37, XXI. As empresas públicas e sociedades de economia mista são sujeitas aos “princípios da Administração Pública”, tal como definidos numa lei específica. Já a Administração Pública direta, autárquica e fundacional se subordina a um regime muito mais severo. (...)
Mais importante do que o argumento relacionado com a alteração da redação é o reconhecimento da inviabilidade da incidência de um regime jurídico único e uniforme para licitações e contratações para a integralidade da Administração Pública.
Na mesma toada, a interpretação deve privilegiar a realidade do mercado em que a empresa estatal está inserida, a prática empresarial, para possibilitar a necessária igualdade de condições entre os competidores.
Em suma, as empresas estatais, ainda que integrantes da Administração Pública, não podem ser tratadas como autarquia ou fundação púbica, pois efetivamente não são. Deve-se ponderar que empresas estatais que atuam em regime de competição necessitam funcionar com agilidade e eficiência, visando, também, o lucro. Por conta disso, possuem lei própria que deve se adequar a sua realidade sendo interpretada de maneira mais flexível.
2 Distinção entre dispensa, inexigibilidade e inaplicabilidade
Com efeito, não se pode olvidar que as empresas estatais devem licitar para contratar terceiros, conforme dicção do art. 28, caput, da Lei das Estatais. Exceção a essa regra são os casos de dispensa, inexigibilidade ou inaplicabilidade da Lei.
Nunca é demais explicar, ante a confusão de conceitos, a diferença entre os institutos acima que guardam, indubitavelmente, semelhanças, mas possuem diferenças significativas.
As hipóteses de dispensa (art. 29) e de inexigibilidade de licitação (art. 30) da Lei das Estatais, praticamente, com alguns ajustes, repetem as da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), de modo que o que a doutrina e a jurisprudência manifestam sobre essas figuras no regime da Lei de Licitações tem aplicação, guardadas as devidas proporções, no âmbito da Lei das Estatais.
A dispensa de licitação possui rol taxativo, expresso em casos específicos, e que não cabe expansões interpretativas. Já a inexigibilidade possui rol exemplificativo, pois a inviabilidade de competição pode surgir na casuística.
A dispensa de licitação é cabível nas situações em que, embora viável a competição, o certame, em tese, afigura-se objetivamente incompatível com os valores norteadores da atividade administrativa (JUSTEN FILHO, 2014, p. 468). Ou seja, nos casos de dispensa, a licitação, em princípio, seria possível, todavia algumas razões justificam que se deixe de efetuá-la em nome de outros interesses públicos.
De outra banda, Marçal Justen Filho (2014, p. 575), em comentários ao art. 25 da Lei 8.666/93 — que permanecem válidos para as contratações diretas no regime da Lei das Estatais — ensina:
A inviabilidade de competição também se verificará nos casos em que houver impossibilidade de seleção entre as diversas alternativas segundo um critério objetivo ou quando o critério da vantajosidade for incompatível com a natureza da necessidade a ser atendida. (...) Mas todas essas abordagens são meramente exemplificativas, eis que extraídas do exame das diversas hipóteses contidas nos incisos do art. 25, sendo imperioso reconhecer que nelas não se esgotam as possibilidades de configuração dos pressupostos de contratação direta por inexigibilidade de licitação. (...) Seguindo essa orientação, existem diversas decisões do TCU reconhecendo a inviabilidade de competição mesmo em hipóteses que não se enquadram precisamente nos incisos do art. 25. Reconhece-se a existência de circunstâncias que tornam incompatível a seleção de uma proposta de contratação mediante um procedimento licitatório padrão.
A inaplicabilidade da lei, por sua vez, tem origem em entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado ainda quando as Empresas Estatais se subordinavam à Lei 8.666/93, segundo o qual admite-se o afastamento ou a não incidência das normas licitatórias em situações que, em resumo, a aplicação da lei constituí óbice intransponível à satisfação da necessidade do contratante, especialmente quando a contratação visa o cumprimento eficiente da atividade finalística da empresa.
Desse modo, a inaplicabilidade de licitação possui fundamento, em princípio, no binômio: atividade finalística e óbice instransponível para o atingimento da satisfação da necessidade almejada. Se a licitação for óbice ao atingimento do objeto desejado e este estiver atrelado ao negócio da estatal, é possível juridicamente sustentar o afastamento das regras atinentes à licitação. É a prevalência do direito privado sobre o público, com a observância da prática empresarial.
No âmbito da doutrina, Marçal Justen Filho (2014, p. 38), um dos mais respeitados doutrinadores sobre licitações e contratos, assim se manifesta sobre a figura da inaplicabilidade da lei:
(...) A questão não se relaciona propriamente à configuração de algo como atividade-fim ou atividade-meio, mas com a submissão da atividade desempenhada pela entidade integrante da Administração indireta à lógica do mercado e a certos princípios da competição econômica.
O desenvolvimento de atividades econômicas impõe adoção de práticas uniformes e padronizadas, desenvolvidas segundo os usos da atividade empresarial. (...)
Em suma, quando o Estado se dispuser a atuar no mercado, deverá submeter-se a exigências próprias e características do setor. Um dos pontos fundamentais da organização empresarial, indispensável à obtenção do sucesso econômico, reside na autonomia para organização dos fatores da produção. Essa autonomia pode exigir, em alguns casos, a adoção de práticas informações para seleção da melhor alternativa. Na maior parte dos casos, isso ocorre com as atividades-fim, mas isso não pode ser estabelecido como regra absoluta. Pode haver atividades-fim que comportam contratação mediante prévia licitação, tanto como pode existir atividade-meio que exija solução imediata e destituída de formalidade.
A ausência de licitação derivará, então, da impossibilidade de obter sucesso na atividade empresarial se for aplicada a licitação, eis que isso eliminará margens de autonomia indispensáveis e inerentes à atuação no mercado. (...)
E da jurisprudência sobre o afastamento da licitação, reproduzem-se os seguintes julgados paradigmáticos do Tribunal de Contas da União (TCU, Acórdão nº 2571/2010, Plenário):
9.1. conhecer da presente Consulta, formulada pelo Exmo. Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, Sr. Eduardo Campos, por atender aos requisitos de admissibilidade de que tratam os arts. 1o, XVII, da Lei n. 8.443/92 e 264 do Regimento Interno/TCU, para responder ao consulente que, enquanto não for editado o estatuto a que se refere o art. 173, § 1°, da Constituição Federal, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços devem observar os ditames da Lei n° 8.666/1993 e de seus regulamentos próprios, podendo prescindir da licitação para a contratação de bens e serviços que constituam sua atividade-fim, nas hipóteses em que o referido Diploma Legal constitua óbice intransponível à sua atividade negocial, sem olvidarem, contudo, da observância dos princípios aplicáveis à Administração Pública, bem como daqueles insertos no referido Estatuto Licitatório;
(...) julgo que (...) não afasta, de pronto, a obrigatoriedade da realização de procedimento licitatório. Isso só ocorre quando se verificar, no caso concreto, que os trâmites inerentes a esse procedimento constituem óbice intransponível à atividade negocial da empresa, que atua em mercado onde exista concorrência. (...).
Dessa forma, a jurisprudência deste Tribunal sobre a não incidência das normas de licitação (...) deve ser aplicada de forma cautelosa, porque constitui premissa lógica dessas decisões, ainda que não mencionadas expressamente, a existência de óbices intransponíveis para a realização das atividades negociais, em função do procedimento licitatório.
Assim sendo, sempre que a realização da licitação não trouxer prejuízos à consecução dos objetivos da entidade, por não afetar a agilidade requerida para sua atuação eficiente no mercado concorrencial, remanesce a obrigatoriedade da licitação.
Exceção a essa regra dar-se-á apenas nos casos em que a observância à legislação mencionada acarrete óbice intransponível à atividade-fim da empresa, hipótese em que poderá ser afastado o seu cumprimento, conforme entendimentos firmados por esta Corte em julgados anteriores, a exemplo da Decisão 663/2002 e dos Acórdãos 1268/2003, 1581/2003 e 403/2004, proferidos pelo Plenário.
É dentro desse cenário que a Lei 13.303/2016 veio, finalmente, a inovar no ordenamento jurídico ao prever situações que o regramento licitatório deve ser afastado:
Art. 28. Os contratos com terceiros destinados à prestação de serviços às empresas públicas e às sociedades de economia mista, inclusive de engenharia e de publicidade, à aquisição e à locação de bens, à alienação de bens e ativos integrantes do respectivo patrimônio ou à execução de obras a serem integradas a esse patrimônio, bem como à implementação de ônus real sobre tais bens, serão precedidos de licitação nos termos desta Lei, ressalvadas as hipóteses previstas nos arts. 29 e 30.
§ 3º São as empresas públicas e as sociedades de economia mista dispensadas da observância dos dispositivos deste Capítulo nas seguintes situações:
I - comercialização, prestação ou execução, de forma direta, pelas empresas mencionadas no caput, de produtos, serviços ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetos sociais;
II - nos casos em que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo.
§ 4º Consideram-se oportunidades de negócio a que se refere o inciso II do § 3º a formação e a extinção de parcerias e outras formas associativas, societárias ou contratuais, a aquisição e a alienação de participação em sociedades e outras formas associativas, societárias ou contratuais e as operações realizadas no âmbito do mercado de capitais, respeitada a regulação pelo respectivo órgão competente.
Apesar de o § 3º do art. 28 aludir a “dispensadas da observância”, anote-se que o dispositivo não cuida, em verdade, de hipótese de dispensa de licitação, tratada no art. 29 da Lei 13.303/2016. Esse § 3º trata de situações que a lei afasta a sua incidência, ou seja, são situações de inaplicabilidade da lei das estatais.
Como acima se vê, o § 3º do art. 28 positivou apenas, de maneira comedida, duas hipóteses de inaplicabilidade da lei.
A primeira hipótese legal é relativa a comercialização de produtos, a obras ou a prestação de serviços pelas empresas estatais relacionadas ao objeto societário. Neste caso, se a empresa estatal estiver atuando diretamente na atividade econômica, de acordo com o seu objeto social, não há que se falar em licitação para prestar serviços ou vender produtos. Neste caso, a lei das estatais autoriza a desnecessidade de licitação.
A outra situação que a Lei das Estatais autoriza também a inaplicabilidade da licitação é quando ocorrer parcerias empresariais, em especial quando a escolha do parceiro estiver associada a uma oportunidade de negócios.
Vê-se que a última hipótese, parcerias, é bem ampla, abarcando uma ampla gama de possibilidades para afastamento do regramento licitatório, contando que o negócio esteja atrelado a oportunidades de negócio e haja justificativa para a inviabilidade de procedimento competitivo.
Porém, e se o caso concreto não se enquadrar no comando legal do art. 28, § 3º? Estaria a Empresa Estatal obrigada a observar a integralidade do regramento licitatório?
3 O rol exemplificativo da Lei das Estatais
De fato, uma leitura rasa do art. 28, § 3º, levaria o interprete a entender que somente existem duas situações para o afastamento do regramento licitatório: no exercício de atividades finalísticas e nas parcerias.
Isso se deve, pois, a literalidade do comando legal traz a expressão “nas seguintes situações”. Não há margem no texto, como faz a hipótese de inexigibilidade de licitação ao mencionar “em especial na hipótese de”, para outras situações de inaplicabilidade.
Sobre a interpretação literal, é necessário expor as lições de Carlos Maximiliano (1993, p. 112-166) acerca da hermenêutica jurídica:
A exegese filológica atinge, apenas, o caso típico, principal; o núcleo, explícito, lúcido, é cercado por uma zona de transição; cabe ao intérprete ultrapassar esse limite para chegar ao campo circunvizinho, mais vasto, e rico de aplicações práticas. (...) porque a linguagem, embora perfeita na aparência, pode ser inexata; não raro, aplicados a um texto, lúcido à primeira vista, outros elementos de interpretação, conduzem a resultado diverso do obtido com o só emprego filológico. (...) Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo.
Dentro dessa visão interpretativa, se o caso concreto não for compatível com a licitação, parece possível sustentar o afastamento do regramento licitatório, pois cabe ao interprete ir além do comando legal quando estiver numa zona cinzenta, tal como é os casos que tratam sobre inaplicabilidade de licitação.
Dessarte, será que os exemplos, inovadores na legislação pátria para a atividade empresarial, ao conferir maior segurança jurídica nas relações empresariais, são suficientes para abarcar todas as situações em que a licitação não se traduz no melhor caminho para a satisfação de uma necessidade da estatal? Em outros, termos será o rol taxativo ou meramente exemplificativo?
Endente-se que a lei ao não abarcar todas as situações que levem ao afastamento do regramento licitatório deve ser entendida como meramente exemplificativa. Isso porque a dinâmica de mercado ou outras peculiaridades do trato a ser firmado, com nítida característica privada, por exemplo, pode dar azo ao afastamento dos ditames licitatórios da contratação.
Um dos exemplos é o comodato, disciplinado pelo art. 579 e seguintes do Código Civil, outra hipótese, além das postas na Lei das Estatais, que pode viabilizar o afastamento licitatório. Se uma empresa estatal realiza um empréstimo gratuito não fungível de um bem para terceiro, não há que se falar em licitação.
A não incidência licitatória se dá, pois, neste tipo de empréstimo gratuito não é, a rigor, tratado no regramento licitatório, pois não se está diante de uma locação nem alienação, tampouco a implementação de um ônus real, tal qual tratado na Lei das Estatais. Não há previsão no Estatuto Jurídico acerca do comodato. E como não há, não se aplica a legislação em comento (SAMPAIO, 2018, p. 86).
Ventila-se, por oportuno, também a hipótese de contratações realizadas no exterior que devem observar a lei estrangeira, diante do disposto no art. 9.º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) que determina que “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do pais em que se constituírem”.
Ora, se a empresa estatal irá contratar no estrangeiro, sem bens ou serviços prestados no Brasil, dentro de normas alienígenas que regem obrigações naquele outro país, resta evidenciada a inviabilidade fática e jurídica em se aplicar a legislação brasileira à contratação no exterior, revelando-se, desse modo, outra situação que dá azo à inaplicabilidade das normas da lei 13.303/2016.
Na lei 8.666/93 existe o art. 123 que preceitua que “em suas licitações e contratações administrativas, as repartições sediadas no exterior observarão as peculiaridades locais e os princípios básicos desta Lei”, o que denota o afastamento do regramento licitatório se as regras da licitação forem incompatíveis com as peculiaridades locais. Cabe anotar que a Lei 13.303/2016 não reproduziu este comando em seu texto, mas isto não afasta o fato de que no estrangeiro, muitas vezes, não há como impor a outra parte observar as regras sobre licitação.
Nessa linha, o TCU (Acórdão nº 2177/2011, Plenário) já emitiu decisão:
Ademais, cumpre frisar que, com relação à aquisição de bens e a contratação de serviços efetuados no exterior, segundo as regras de Direito Internacional, e, ante o que dispõe os arts. 8º e 9º da Lei de Introdução ao Código Civil, aplicam-se as leis do país em que foram constituídas essas relações obrigacionais, o que, por óbvio, pode não corresponder aos ditames previstos no estatuto pátrio.
De igual modo, as práticas de mercado podem impor, com vistas a observar a economicidade e melhores técnicas do mercado, o afastamento completo das normas atinentes à licitação.
O TCU já enfrentou o tema em um caso da Petrobras que as práticas do mercado em âmbito internacional, em um setor com alto grau de complexidade e vultosos valores envolvidos, impuseram um caminho próprio para contratação, consagrado internacionalmente, diferente de uma típica licitação.
Em razão disso, o Ministro Relator Benjamin Zymler consignou que a prática de mercado “parece encontrar amparo no inciso II do art. 173 da Constituição Federal, o qual estabelece que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica estão sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas”.
Nessa toada, a não incidência de licitação pode ocorrer, outrossim, em contratações realizadas no exterior por entes integrantes do conglomerado empresarial estatal com sede em outro país. É necessário, neste tipo de caso, observar as peculiaridades e ritos do local da contratação, sob pena de frustrar o objetivo pretendido. A antiga legislação, como dito, trazia uma previsão que trazia uma flexibilidade maior nas contratações, mas a Lei das Estatais foi omissa sobre tais tipos de contratações. Apesar desse lapso legislativo, nada obsta que o caso concreto, com suas especificidades, leve a uma situação que seja incompatível a observância do regramento da licitação.
Ensina o doutrinador Marçal Justen Filho (2014, p. 34-35) sobre a necessidade de afastar a licitação para aplicação dos procedimentos próprios do mercado:
Reputa-se que as empresas estatais que atuem em condições competitivas com o setor privado – seja no desempenho de serviços públicos, seja na exploração de atividade econômica – não se sujeitam ao regime licitatório de direito público. Devem adotar procedimentos específicos e diferenciados, como decorrência da sua atuação em condições de competição.
Assim sendo, em caso de união de esforços em prol da eficiência do setor bancário, situação que, a rigor, não se enquadra no comando literal da Lei das Estatais, o TCU (Acórdão nº 544/2010, Plenário), em contratação, à época sujeita à lei 8.666/93, entendeu que a hipótese analisada era de inaplicabilidade de licitação:
a) não haveria necessidade de deflagração de certame licitatório nos termos da Lei nº 8.666/93 para a escolha da FEBRABAN como representante para contratar empresas para efetuarem o serviço de TCM, isso porque se trataria de mero procedimento de adesão das instituições bancárias ao sistema de Transporte Compartilhado de Malotes, gerenciado por aquela entidade; b) não seria exigível o atendimento à Lei nº 8.666/93 para contratação de empresa de transporte pela FEBRABAN, na medida em que se trata de entidade privada; c) não há necessidade de procedimento licitatório para o caso, na medida em que não há comercialização de serviços de transporte de malotes, isso porque o papel da FEBRABAN se restringe à administração do serviço em nome das instituições filiadas.
Desse modo, é observável que, ainda que uma hipótese não esteja explicitamente disciplinada pela Lei das Estatais, como é o caso do comodato e das práticas do mercado, nacionais e internacionais, dentre outras situações que possam surgir dentro da complexidade empresarial diária, atendidos certos requisitos, a não incidência de licitação pode e deve ocorrer em prol da liberdade empresarial.
Com efeito, na esteira da jurisprudência do TCU e da doutrina, quando a atividade finalística estiver em mira e existir óbice ao atingimento dos objetivos esperados, por conta da licitação, esta deve ser afastada em prol da atuação empresarial da estatal em igualdade de condições com os demais concorrentes do mercado.
A despeito de leitura apressada dos dispositivos legais em análise, com uma interpretação literal, levar a crer que as hipóteses de afastamento da lei 13.303/2016 serem taxativas, principalmente pelo texto legal conter a expressão “nas seguintes hipóteses”, nem sempre o legislador pode prever todas as situações que a observância do regramento licitatório seja inconveniente e inoportuna.
Nessa linha, embora sob a égide da Lei 8.666/93 e, por consequência, fora das hipóteses legais da Lei das Estatais, o TCU (Acórdão n. 1390/2004, Plenário) já decidiu:
(...) julgo que só o fato de tratar-se de atividade-fim não afasta, de pronto, a obrigatoriedade da realização de procedimento licitatório. Isso só ocorre quando se verificar, no caso concreto, que os trâmites inerentes a esse procedimento constituem óbice intransponível à atividade negocial da empresa, que atua em mercado onde exista concorrência. (...).
Dessa forma, a jurisprudência deste Tribunal sobre a não incidência das normas de licitação à atividade-fim das empresas estatais (...) deve ser aplicada de forma cautelosa, porque constitui premissa lógica dessas decisões, ainda que não mencionadas expressamente, a existência de óbices intransponíveis para a realização das atividades negociais, em função do procedimento licitatório.
Assim sendo, sempre que a realização da licitação não trouxer prejuízos à consecução dos objetivos da entidade, por não afetar a agilidade requerida para sua atuação eficiente no mercado concorrencial, remanesce a obrigatoriedade da licitação.
Exceção a essa regra dar-se-á apenas nos casos em que a observância à legislação mencionada acarrete óbice intransponível à atividade-fim da empresa, hipótese em que poderá ser afastado o seu cumprimento, conforme entendimentos firmados por esta Corte em julgados anteriores, a exemplo da Decisão 663/2002 e dos Acórdãos 1268/2003, 1581/2003 e 403/2004, proferidos pelo Plenário.
A conclusão, portanto, no tocante à aplicação da Lei n° 8.666/93 na celebração dos contratos de comissão mercantil para contratação de operadores para postos próprios da BR Distribuidora, é no sentido de que não há óbices intransponíveis à atividade negociai da empresa, devendo ser observados os princípios constitucionais que regem a atividade administrativa, conforme caput do art. 37 da Constituição Federal.
Como acima se vê, além do entendimento jurisprudencial e doutrinário que autorizam a inaplicabilidade de licitação, o § 3º do art. 28 positivou duas hipóteses de inaplicabilidade da lei que viabilizam, em determinados casos, o afastamento das regras da lei das estatais atinentes à licitação.
Dessarte, entende-se que as hipóteses legalmente explícitas não podem e não devem ser interpretadas como taxativas, mas meramente exemplificativas.
Tomando de empréstimo os ensinamentos do jurista Marçal Justen Filho (2016, p. 305), ao tratar sobre parcerias empresariais, o óbice da licitação reside na busca por solução satisfatória, aquela que satisfaz plenamente às necessidades da Empresa Estatal, o que leva a escolha através de critérios variáveis e, não raro, a imposições unilaterais, à vista das circunstâncias da contratação almejada.
Se a solução almejada não se enquadra, necessariamente, no art. 28, § 3º, mas com a licitação é incompatível, é razoável defender o afastamento das normas atinentes à licitação em prol da atividade empresarial.
Em outros termos, deve-se ter em mira assegurar o funcionamento e a competitividade das empresas estatais, afastando a licitação para garantir o pleno exercício das atividades econômicas (GUIMARÃES; SANTOS, 2017, p. 43).
Portanto, é possível também que determinado caso concreto, diante de suas características e peculiaridades, ainda que não se subsuma ao comando da lei das estatais, em seus estritos termos, seja enquadrado como hipótese de não incidência da licitação.
Dito de outro modo, a situação concreta e a natural complexidade do mundo empresarial podem levar a outros casos que exijam como solução jurídica o afastamento da órbita gravitacional da lei das estatais.
Não se pode esquecer que a licitação, e todo o seu emaranhado, por vezes burocrático, de procedimentos, é um meio para o atingimento de uma finalidade, e não um fim em si mesmo. Se a licitação com o objetivo pretendido é incompatível, cabe afastar este meio para que a finalidade seja alcançada.
Discorda-se em parte, neste ponto, de Dawison Barcelos e Ronny Charles Lopes de Torres (2018, p. 94) quando dizem:
Pode-se identificar, no art. 28 da Lei 13.303, diversas hipóteses de não observância das regras licitatórias. Obviamente, elas não permitem o afastamento integral de preceitos de direito público.
A estatal, certamente, mesmo quando afaste a incidência das regras licitatórias relacionadas à fase interna ou externa, estará impelida a estabelecer procedimentos de controle, mesmo que a posteriori, com vistas a resguardar o erário e demonstrar o respeito a princípios como a moralidade, a isonomia e a economicidade.
Primeiro, porque, como visto, as empresas estatais não se sujeitam ao regime de direito público, mas sim de direito privado. Segundo, convênios, patrocínios e termos de cooperação, por exemplo, não são hipóteses de inaplicabilidade de licitação, mas de incidência das regras de licitação limitada, visto que observam, no que couber, as normas de licitação e contratos da Lei das Estatais. São, pois, institutos jurídicos distintos de uma parceira ou da venda direta pela estatal de produtos ou serviços.
Quando se vem a falar em inaplicabilidade, repise-se, estar-se-á falando em liberdade empresarial, própria das empresas privadas, em prol da sobrevivência da estatal em um mercado, não raro, extremamente competitivo.
Não obstante a isso, cabe aqui um alerta: quando se fala, e defende, afastar normas licitatórias para conferir liberdade ao gestor de escolher a melhor solução empresarial para atender à empresa estatal, em situações complexas e de difícil amoldamento à uma licitação convencional, isso não significa arbitrariedade, mas paridade de armas frente aos demais concorrentes do mercado. Ademais, de qualquer modo, lembra-se que a empresa estatal continua obrigada a observar os princípios que regem a Administração Pública (art. 37, caput, da Constituição Federal), tais como moralidade, impessoalidade, vantajosidade e eficiência.
Em suma, ainda que a situação leve à inaplicabilidade de licitação, não é dado ao gestor realizar escolhas arbitrárias, despidas de fundamentos e justificativas que demonstrem que a contratação, ou qualquer que seja o negócio, foi o melhor, em termos técnicos ou econômicos, para o sucesso empresarial da empresa pública ou sociedade de economia mista.
Conclusão
Diante do exposto, observou-se que a Lei das Estatais possui como regra a necessidade de licitação, em regra, se a empresa estatal pretender contratar com terceiros. Exceção a esta regra são as hipóteses de dispensa, inexigibilidade ou inaplicabilidade de licitação.
Ademais, verificou-se que a lei das estatais inovou no ordenamento legal ao prever explicitamente duas hipóteses de inaplicabilidade de licitação, a despeito da jurisprudência do TCU e a doutrina já terem admitido afastar a licitação em diversas situações, mesmo sem previsão legal, com fundamento no óbice instransponível gerado pela licitação para a atividade finalística da empresa estatal.
Uma das hipóteses de não incidência da licitação é a prestação de serviços e venda de produtos diretamente pela estatal, com fulcro no art. 28, § 3º, inciso I, da Lei 13.303/2016. Nesta senda, se a empresa estatal está atuando diretamente na atividade econômica, produzindo produtos e serviços para o mercado, dentro do seu objeto social, a lei das estatais autoriza que ela não observe as regras atinentes à licitação.
A outra é a formação de parcerias empresariais, com fundamento no art. 28, § 3º, inciso II, da Lei 13.303/2016. Para tanto, atualmente, de acordo com a Lei 13.303/2016, é necessário que estejam presentes alguns requisitos na parceria empresarial para a não incidência do regramento licitatório da Lei das estatais, quais sejam: i) a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, ii) vinculada a oportunidades de negócio, iii) justificada a inviabilidade de procedimento competitivo.
Analisou-se que as hipóteses legais são relevantes para a atividade empresarial da estatal, mas, a rigor, é possível que não abarque todas as situações em que a licitação deve ser afastada. A realidade de mercado, naturalmente complexa por sua própria natureza, e as peculiaridades do negócio pretendido, podem levar ao afastamento da licitação, mesmo quando não há comando legal autorizativo para tanto, principalmente quando a licitação se tornar um obstáculo, acima da natural dificuldade de uma licitação, para a plena atividade econômica da estatal, sua lucratividade e eficiência no mercado competitivo em que atua.
Em resumo, conclui-se que as hipóteses legais de inaplicabilidade de licitação devem ser entendidas como exemplificativas e não taxativas, podendo as práticas de mercado e o caso concreto estabelecerem outras situações de afastamento das regras acerca de licitação da Lei 13.303/2016.
Frise-se: inaplicabilidade de licitação não se confunde com arbitrariedade, mas sim liberdade para que o gestor possa escolher a melhor solução para o sucesso empresarial da empresa estatal.
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Advogado. Mestre em Direito pelo UniCEUB - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Alexandre Santos. Inaplicabilidade de licitação à luz da Lei das Estatais: Rol exemplificativo ou taxativo? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2020, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54200/inaplicabilidade-de-licitao-luz-da-lei-das-estatais-rol-exemplificativo-ou-taxativo. Acesso em: 22 nov 2024.
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