MARCELISE DE MIRANDA AZEVEDO[1]
(coautora)
Foi com preocupação que as trabalhadoras e os trabalhadores receberam a notícia de que algumas empresas estatais, como a Petrobrás e o Banco do Brasil, determinaram que seus empregados se demitam após o deferimento dos seus pedidos de aposentadoria concedidos pelo INSS. A nova ordem está fundamentada nas recentes regras da reforma da Previdência, que entraram em vigor em novembro de 2019.
Como exemplo citaremos o caso do Banco do Brasil, em que foi alterada a norma interna IN 380, que trata da aposentadoria de seus funcionários, passando a prever, em seus itens 1.1.5 e 1.1.6, que cabe ao funcionário que tiver a aposentadoria concedida solicitar o seu desligamento (com perda de importantes verbas rescisórias, como a multa sobre os depósitos do FGTS). A norma segue afirmando que o funcionário que deixar de pedir o seu desligamento poderá sofrer sanções disciplinares, ensejando até mesmo demissão por justa causa.
Inicialmente, chama a atenção a incoerência entre o instituto do pedido de desligamento, em realidade um pedido de demissão – que é, por excelência a livre manifestação de uma vontade – e a aplicação de pesada penalidade na eventualidade dessa manifestação não ocorrer quando o empregador a deseja. A coação é confessada e esvazia integralmente a voluntariedade que é pressuposto mínimo de qualquer pedido de desligamento válido.
Não é demais relembrar que o legislador constituinte, por meio dos artigos 7º, I, da Constituição e 10º do ADCT, deixou claro que a esperada continuidade é princípio indissociável da relação de emprego, rompendo-se apenas nos termos da legislação ou com a livre manifestação da vontade do empregado.
Assim, obrigar o empregado a pedir o seu desligamento, sendo seu silêncio considerado uma infração disciplinar, apenas pelo exercício do direito de se aposentar pelo Regime Geral da Previdência Social, é medida que colide tanto com o instituto do contrato de trabalho, como com a própria natureza livre e autônoma dos pedidos de demissão válidos.
Acrescente-se que esse não é o único aspecto das medidas adotadas pelas referidas empresas estatais que desrespeita o ordenamento jurídico. Apesar de os comunicados, veiculados até aqui pela mídia, fazerem menção a um suposto cumprimento do que está previsto no novo parágrafo 14º do artigo 37 da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 103 (a chamada Nova Previdência), a medida, na verdade, viola a Constituição.
Deve-se ter claro que o texto da reforma constitucional se limita a, de forma muito vaga, afirmar que haverá o rompimento do vínculo que gerou o tempo de contribuição, sem maiores detalhamentos. Assim, mesmo que a novidade venha a ser declarada constitucional – o que pode não se concretizar – sua implementação antes que diversos aspectos sejam resolvidos pela legislação infraconstitucional é, no mínimo, uma medida prematura.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal já apreciou norma legal com conteúdo semelhante e, no julgamento das ADIs 1721 e 1770, estabeleceu que a regra infraconstitucional que previa a utilização da concessão de aposentadoria como motivo para a ruptura, com justa causa, do vínculo laboral, fere diversos artigos constitucionais. A fundamentação adotada naquela oportunidade se enquadra perfeitamente para o questionamento do atual posicionamento das empresas estatais.
Não se deve perder de vista que o artigo 1º, IV, da Constituição afirma que nossa República tem como fundamento os valores sociais do trabalho. Em acréscimo, o artigo 170 expressamente afirma que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. A ordem social, um dos princípios norteadores de todo o texto constitucional, tem como base o primado do trabalho, com o objetivo de alcançar o bem-estar e a justiça social (artigo 193).
A aposentadoria, inclusive a voluntária, surge do texto constitucional como um benefício que integra a vida do trabalhador por meio do exercício regular de um direito, que se verifica pelo cumprimento dos requisitos necessários para sua concessão. É, em essência, o simples exercício de um direito regulamentado. É paradoxal, portanto, a situação que tais empresas estatais buscam criar, obrigando o trabalhador a manifestar uma vontade que não é a sua, sob pena de aplicação de penalidade pesada para o que, em verdade, não passa de cenário em que o trabalhador está fazendo valer um direito que lhe assiste.
Por outro lado, é de se considerar que na hipótese em discussão, o direito à aposentadoria é constituído e exercido dentro de uma relação estabelecida entre o trabalhador e o Regime Geral da Previdência Social, relação esta que não deveria impactar a relação que se estabelece entre o trabalhador e seu empregador. Não se encontram parâmetros constitucionais, legais ou mesmo contratuais capazes de autorizar que o direito estabelecido dentro do marco previdenciário cause tamanha consequência no vínculo estabelecido com a empresa pública empregadora.
Em suma, apesar de a inovação constitucional falar em rompimento do vínculo, a leitura da Constituição como todo revela que não é possível que se crie, por emenda, a obrigatoriedade de apresentação de pedido de desligamento ou que se crie uma nova modalidade infração disciplinar punível com a demissão por justa causa, tendo como marco inicial o simples exercício regular de um direito.
NOTA:
[1] é advogada, coordenadora da Unidade Brasília e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados
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