Resumo: O artigo parte de uma abordagem dos pressupostos da responsabilidade civil para em seguida apresentar a distinção entre responsabilidade objetiva e objetiva subjetiva e a possibilidade de coexistência das duas espécies de responsabilidade notadamente na atuação dos notários e registradores, delegatários do serviço público. A hipótese de pesquisa é que o particular não deve ter como única alternativa para postular indenização por dano sofrido o ajuizamento de ação contra o Estado que conquanto seja fundada na responsabilidade objetiva se submete a um processo, de ordinário, mais longo. A pesquisa é eminentemente bibliográfica. Concluímos que de lege ferenda deve ser facultado à vítima do dano o direito de optar por ajuizar diretamente ação contra o notário ou registrador, mormente quando houver uma robusta carga probatória e uma inequívoca capacidade de pagamento do responsável.
Palavras-chave: Responsabilidade, civil, notário, registrador, ação, judicial.
Sumário: Introdução. 1.Responsabilidade civil. 1.1. Conceito e funções. 1.2. Pressupostos da responsabilidade civil. 1.2.1. Previsão legal. 1.2.2. Ato ou conduta humana. 1.2.3. Dano. 1.2.4. Nexo de causalidade. 1.3. Tipos de responsabilidade. 1.3.1. Responsabilidade subjetiva. 1.3.2 Responsabilidade objetiva. 1.4. Excludentes ou atenuantes da responsabilidade. 2. Natureza jurídica das atividades notariais e de registro. 3. Reparação do dano decorrente das atividades notariais e de registro. Conclusão. Referências.
A vida em sociedade requer cada vez mais uma atuação do Direito como elemento de pacificação. Com esse propósito, a Constituição Federal disciplinou em seu art. 236 os serviços notarias e de registro asseverando o caráter público da atividade, porém exercido em caráter privado.
A Lei 8.935/94 em seu art.1º aponta como objetivos dos serviços notariais e de registro garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos negócios jurídicos. Desses objetivos destacamos o sobreprincípio da segurança jurídica sobre o qual Riccardo Guastini ao prefaciar o livro de Humberto Ávila assevera: “ o tema da certeza jurídica é uma espécie de Aleph (no sentido de Borges) , a partir do qual muitos problemas centrais da moderna teoria do direito mostram-se em toda sua evidência”[1].
Não obstante a crescente qualificação da prestação dos serviços notariais e de registro decorrente do recrutamento efetivado por concursos públicos - assim como acontece em toda atividade humana - tais serviços são suscetíveis de falhas que ocasionam danos aos tomadores dos serviços.
Constatado o dano, caberá ao tomador a iniciativa de postular judicialmente a reparação. Surgem algumas questões: a quem demandar? Ao Estado ou ao titular da Serventia? A situação é de responsabilidade civil objetiva ou subjetiva?
As indagações, aparentemente, restariam superadas pela recente tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 842846 julgado em 27/02/2019 que está assim vazada: "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”.
A presente monografia visa demonstrar que ainda remanescem controvérsias sobre o tema, mormente se aos notários e registradores aplica-se a Teoria da Dupla Garantia.
Para tanto, inicialmente, faremos um quadro geral da responsabilidade civil para enfatizarmos a distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva.
Num segundo momento, apresentaremos natureza jurídica das atividades notariais e de registro e a qualificação do notário/registrador..
O terceiro ponto que abordaremos será o enquadramento do dano decorrente dos serviços notariais e de registro nos tipos de responsabilidade, no caráter primário ou subsidiário, concorrente ou exclusivo.
Remataremos propondo uma interpretação do tema que não se cingirá à mera adoção simplista do entendimento do Supremo Pretório, para possibilitar uma forma mais ampla e célere de reparação do dano.
O princípio neminem laedere é o cerne da responsabilidade civil, agir de forma a não lesar, não prejudicar o outro. De Plácido e Silva assim resume:
A ninguém ofender é o que se traduz da locução latina neminem laedere, um dos três juris praecepta, insertos nas Institutas de Justiniano, na expressão alterum non laedere (a outrem não ofender) (…) fundando um dever social, elementar à própria ordem jurídica, impõe, em princípio, que não se deve lesar a ninguém, respeitando os direitos alheios, como os outros devem respeitar os direitos de todos[2]
Na hipótese de ocorrência de dano, surge a responsabilidade civil para desfazê-lo ou indenizá-lo. O fim almejado é a restauração do status quo ante ou uma indenização compensatória. Sinteticamente, responsabilidade civil é a obrigação de indenizar um dano injustamente causado quando impossível a reversão ou desfazimento.
A responsabilidade civil tem três funções: reparatória, punitiva e profilática.
A reparatória é a função preponderante da responsabilidade civil e está positivada no art. 927 do Código Civil, assim vazado: “ Aquele que, por ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” A reparação tem como objetivo propiciar uma compensação para a vítima do dano, é, na dicção de José Aguiar Dias: “ O mecanismo da responsabilidade civil visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano”[3].
A função reparatória é aplicável ao dano patrimonial que é, por natureza, quantificável, mensurável. Na seara do dano moral, de caráter extrapatrimonial, não se pode prescindir de outras funções para a responsabilidade civil. A função punitiva, como leciona Judith Martins-Costa, encontra guarida no princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil consoante o inciso III do art. 1º da Constituição Federal. Assevera que a simetria entre o dano e a indenização prevista no art. 944 do Código Civil aplica-se apenas ao dano patrimonial, “pois não há como mensurar monetariamente a extensão do dano extrapatrimonial: nesse caso, o que cabe é uma ponderação axiológica, traduzida em valores monetários”[4].
No contexto atual em que danos podem ocorrer em grande escala, a reparação e a punição podem não ter força para dissuadir o ofensor de efetivar certas práticas como ocorre nos danos ambientais e nos danos ao consumidor. Assim, a função profilática ou precaucional é indispensável e de tão relevante já logrou a positivação no Código de Defesa do Consumidor. Aurisvaldo Mello Sampaio aduz:
Melhor dizendo, prevê, a Lei Protetiva, instrumento para salvaguardar a saúde e a segurança do consumidor [...]? A resposta certamente será afirmativa. A ferramenta a ser utilizada é o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor, ou, se preferir, aferrando-se à letra da lei, ‘direito básico à efetiva prevenção de danos’, previsto em norma de ordem pública e interesse social, o art. 6º, VI, do CDC, in expressis: ‘Art. 6.º São direitos básicos do consumidor: (omissis) VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.[5]
Sem olvidar da existência das funções punitiva e profilática, o nosso estudo concentrar-se-á na reparação do dano, mormente o decorrente das atividades notariais e de registro.
Outro aspecto há se destacar é que trataremos da responsabilidade extracontratual ou aquiliana, cientes que também existe a responsabilidade contratual.
1.2. Pressupostos da responsabilidade civil
O escrutínio do art. 927 do Código Civil nos fará extrair os pressupostos da responsabilidade civil, vejamos o dispositivo:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
O primeiro pressuposto encontradiço no caput do art. 927 é o Ato ou conduta humana que para Maria Helena Diniz: “vem a ser o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado”[6].
Mister se ressaltar que o ato tem que ser voluntário , ou seja, o agente tem que estar ciente do que está fazendo, não precisa ter a intenção de acarretar dano que demandaria a análise da culpa que é específica da responsabilidade subjetiva. O parágrafo único do art. 927 esclarece que haverá, em algumas situações, responsabilidade civil independente de culpa, responsabilidade objetiva. Em todas as situações, indispensável a voluntariedade que é, na expressão de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: “ agir de acordo com sua livre capacidade de autodeterminação com consciência subjetiva da ilicitude do ato”[7].
O ato ensejador de responsabilidade civil pode ser lícito ou ilícito e embora normalmente seja próprio, pode ser por ato de terceiro ou por fato de animal e da coisa.
Clóvis Couto e Silva assim define dano: “lesão a um interesse concretamente merecedor de tutela, seja ele patrimonial, extrapatrimonial, individual ou metaindividual”[8]. Antonio Jeová dos Santos afirma que o dano deve ser certo e deve existir no momento da propositura da ação[9].
O nosso ordenamento jurídico contempla a reparação para três espécies de dano, conforme se infere do que preceitua o inciso V do art. 5º da Carta Magna: “ V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem “(grifos nossos).
Dano material ou patrimonial é ,segundo Anderson Schriber, a lesão a um interesse jurídico suscetível de mensuração econômica[10]. Existem duas espécies de dano material: a) os danos emergentes que são os prejuízos econômicos que importaram numa diminuição do patrimônio da vítima e ; b) os lucros cessantes que se referem aos lucros que a vítima , razoavelmente deixou de ter, como estatui o art. 402 do Código Civil.
Dano moral é a lesão a direito da personalidade. Adriano de Cupis assevera que todos os direitos se destinam a dar conteúdo à personalidade e, por isso, poderiam ser denominados “direitos da personalidade”. Todavia, a designação deve se limitar aos direitos subjetivos que constituem o minimum necessário e imprescindível ao seu conteúdo. Privada desses direitos, a personalidade transformar-se-ia numa susceptibilidade completamente irrealizada e sem valor concreto[11]. O dano moral também será objeto de indenização que deve ser prudentemente arbitrada pelo julgador.
Sebastião Geraldo de Oliveira acrescenta:
Além das indenizações por dano material e moral, pode ser cabível a indenização por dano estético, quando a lesão decorrente do acidente do trabalho compromete ou pelo menos altera a harmonia física da vítima. Enquadra-se no conceito de dano estético qualquer alteração morfológica do acidentado, como, por exemplo, a perda de algum membro ou mesmo de um dedo, uma cicatriz ou qualquer mudança corporal que cause repulsa, afeamento ou apenas desperte a atenção por ser diferente.[12]
O dano também pode decorrer da perda de uma chance que ocorre quando a vítima, em decorrência da conduta sofrida, perde a oportunidade de obter uma vantagem ou evitar um prejuízo. Pode se referir tanto ao campo econômico quanto ao campo moral. Como exemplo de perda de uma chance no campo econômico, a conduta que impede um candidato de comprovar a escolaridade necessária para a admissão num determinado emprego. Perda de uma chance no campo moral, verbi gratia, se configura quando uma criança por falha médica não consegue armazenar células embrionárias que poderiam ser utilizadas em tratamento de doença já constatada em ultrassonografia pré-natal[13].
O terceiro pressuposto da responsabilidade interliga os dois anteriores. Sérgio Cavalieri Filho aduz: “O conceito de nexo causal, não é jurídico; decorre das leis naturais. É o vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado”[14].
Malgrado existam diversas teorias com o fito de delimitar as hipóteses nas quais se configurará o nexo de causalidade, a questão termina sendo definida no exame do caso concreto pelo julgador, ainda que o julgamento seja efetivado na instância administrativa.
A determinação do nexo de causalidade não envereda no exame da culpa que tem índole subjetiva, o estudo dessa matéria se dará nos tipos de responsabilidade.
1.3. Tipos de responsabilidade
1.3.1. Responsabilidade subjetiva
A responsabilidade será subjetiva quando decorrer da vontade do agente consubstanciada na expressão culpa em sentido amplo. A culpa lato sensu abrange o dolo e a culpa strictu sensu. Essas figuras foram previstas pelo Código Civil que em seu art. 186, assim preceitua: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
A partir da norma civil podemos inferir que haverá ato ilícito quando houver culpa em sentido lato. Existirá dolo quando houver uma ação intencional com o propósito de prejudicar alguém. A culpa em sentido estrito, na dicção de Chironi é um desrespeito a um dever preexistente, sem o objetivo de violar o dever jurídico[15]. O art 18 do Código Penal é mais abrangente que o supracitado dispositivo do Código Civil vez que apresenta as três figuras da culpa strictu sensu, quais sejam: a) imprudência – falta de cuidado + ação. Exemplo: dirigir em alta velocidade; b) negligência – falta de cuidado + omissão Verbi gratia: empresa que funciona sem conferir o prazo de validade dos extintores de incêndio; c) imperícia – falta de qualificação ou treinamento para desempenhar uma determinada função. Não consta no art. 186, mas está no art. 951 do Código Civil para os profissionais da área de saúde. Exemplo: Médico que realiza cirurgia sem ter se habilitado para tal atividade[16].
No Direito Civil a diferença entre dolo e culpa em sentido estrito não tem a relevância atribuída na esfera penal vez que haverá a mesma consequência que é dever de indenizar. O fundamental é que só haverá responsabilidade subjetiva se ocorrer dolo ou culpa em sentido estrito.
1.3.2 Responsabilidade objetiva
No exame da responsabilidade subjetiva precisam estar presentes os três pressupostos da responsabilidade civil: conduta; dano e; nexo de causalidade e também a culpa em sentido amplo. A prova da culpa num processo em que se busca a reparação de um dano é, muitas vezes, tão difícil que se chega a utilizar a expressão prova diabólica.
A tormentosa prova da culpa e até a impossibilidade dessa prova, mormente em situações de massificação do consumo com a ocorrência de acidentes passaram a exigir do Judiciário uma atuação que superasse os lindes da responsabilidade subjetiva com a comprovação da culpa. Josserand assevera:
Como o viajante que, no curso de um trajeto efetuado em estrada de ferro, cais sobre a via, pode provar que os empregados tinham negligenciado o fechamento da porta, logo depois da última estação? [17].
Nesse contexto surge a responsabilidade objetiva que não é responsabilidade sem culpa, é responsabilidade em que o dever de reparar prescinde da perquirição sobre a existência de culpa, presente em grande medida, mas irrelevante. Privilegia-se a busca de reparação da vítima corolário da dignidade da pessoa humana.
A responsabilidade objetiva que aparece no nosso ordenamento em diplomas especiais, como a Lei de Estradas de Ferro (Decreto n. 2.681/12) e a Lei n. 6.453/77 relativa às atividades nucleares. A Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 trazem inúmeras hipóteses de responsabilidade objetiva.
O Código Civil estipulou situações de responsabilidade por fato de terceiro e por fato de animais e no parágrafo único do art. 927 estipulou o que se denominou cláusula geral de responsabilidade objetiva por atividades de risco[18]cujo dispositivo está assim vazado:
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Merece destaque pela importância para o presente opúsculo a responsabilidade objetiva do Estado consagrada no §6º do art. 37 da Carta Magna que diz:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Na responsabilidade civil do Estado nós temos a responsabilidade objetiva do Ente público ou do privado prestador de serviço público e a responsabilidade subjetiva do agente. Caberá ao Poder Público se responsabilizado com culpa do seu agente ingressar com ação regressiva para reaver o valor despendido com a indenização da vítima sem prejuízo de eventuais sanções administrativas.
1.4. Excludentes ou atenuantes da responsabilidade
Em três situações a responsabilidade civil será afastada, senão vejamos: força maior; culpa de terceiro e culpa exclusiva da vítima. Uma vez provada a ocorrência dessas hipóteses, excluída estará a responsabilidade.
No que concerne à culpa da vítima e se provada que há culpa concorrente a responsabilidade será atenuada e fixada num montante a ser arbitrado que será menor que o estipulado se a vítima não tivesse culpa.
Mister esclarecer que em sede de responsabilidade civil do Estado há casos em que se adotou a Teoria do Risco Integral em que a responsabilização acontece sem a admissão de excludente ou atenuante como no dano nuclear e no dano ambiental.
2.Natureza jurídica das atividades notariais e de registro
O escrutínio dos preceitos constitucionais e legais nos permitirá vislumbrar a complexa natureza jurídica das atividades em epígrafe. A Constituição Federal prescreve:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º – Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º – Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º – O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.
O caput do artigo 236 qualifica os serviços notariais e de registro como serviços públicos que serão exercidos em caráter privado, cuja prestação será deferida aos particulares por meio de delegação. Mantém o Poder Público a titularidade do serviço razão pela qual ele poderá retomá-lo desde que respeito o devido processo legal.
O §1º transfere para a lei, ou seja, para norma infraconstitucional, a disciplina das responsabilidades civil e criminal dos notários e oficiais de registro e seus prepostos. Acrescenta ainda que os atos serão fiscalizados pelo Poder Judiciário. O dispositivo deixa claro que a definição da responsabilidade civil é a determinada na norma subconstitucional, qual seja a erigida pela Lei n. 8.935/94. A fiscalização pelo Poder Judiciário em função administrativa mostra o caráter hibrido das atividades.
O §2º do indigitado artigo ao mencionar o regramento legal dos emolumentos, remuneração percebida pelos notários e oficiais de registro, aponta para o caráter tributário do pagamento, remunerado por meio de taxa.
O §3º aduz que o provimento se dará por meio de concurso público de provas e títulos. Não obstante seja exercida em caráter privado, por sua conta, a seleção por certame público é uma forma de recrutar os delegatários do serviço público igual a que é utilizada para o ingresso dos servidores públicos. Por essa razão a perda da delegação prevista na Lei 8.935/94 não é ato discricionário, depende de um regular procedimento administrativo ou judicial.
A conclusão inarredável é que ex vi do caput do art. 236 da Constituição Federal as atividades notariais e de registro são serviços públicos exercidos em caráter privado por pessoas físicas.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello os notários e oficiais de registro são agentes públicos qualificados como particulares em colaboração com a Administração, sem vínculo de subordinação que é próprio dos servidores públicos[19].
3.Reparação do dano decorrente das atividades notariais e de registro
Havendo a Constituição Federal deferido à norma infraconstitucional o regramento das atividades notariais e de registro, foi editada a Lei n.8935/94 da qual pinçamos alguns dispositivos para um exame mais acurado, senão vejamos:
Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.
Art. 3º Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro.
Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. (Redação dada pela Lei nº 13.286, de 2016).
Podemos inferir dos dispositivos legais que os notários e registradores são profissionais do direito com fé pública que exercem atividade que confere publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos.
O art.22 ao disciplinar a responsabilidade civil menciona os casos de culpa e dolo, assim de acordo com a Lei n. 8935/94 com a redação conferida pela Lei n.13.286/2016, a responsabilidade dos notários e registradores é subjetiva.
A matéria não está totalmente resolvida porque não podemos olvidar que o §6º do art. 37 da Constituição Federal traz o seguinte texto:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A norma supracitada estabelece a responsabilidade objetiva do Estado gerando dúvidas sobre a aplicação aos notários e registradores e ainda se a responsabilidade do Estado para reparar dano decorrente das atividades notariais e de registro seria primária ou subsidiária e se haveria solidariedade entre o Estado e o delegatário.
O Supremo Tribunal Federal em julgamento sob o rito da repercussão geral apreciou o Recurso Extraordinário nº 842.846 entendeu que o Estado tem responsabilidade objetiva e ação reparatória deve ser intentada contra ele ao qual caberá ingressar com ação de regresso contra o delegatário em caso de culpa e dolo do notário ou do oficial de registro.
O Excelso Pretório aplica aos notários e oficiais de registro a teoria da dupla garantia que é adotada para os servidores públicos, não devendo o particular prejudicado acionar diretamente o servidor ou o delegatário.
Leonardo Brandelli antes desse pronunciamento do STF defendia a responsabilidade primária e direta do delegatário que se comprovada a culpa em sentido lato deveria indenizar o particular, pois exercia a atividade por sua conta e risco. Asseverava também que o registrador e o notário não se enquadrariam no regramento do §6º do art. 37 da Constituição porque são pessoas físicas e não pessoas jurídicas [20].
A atividade notarial e a de registro como toda a atividade pode gerar danos. Presentes os três pressupostos para a responsabilidade, qual seja, a conduta, o dano e o nexo de causalidade haverá a responsabilidade civil. O particular prejudicado poderá ingressar com ação reparatória para ser indenizado pelo dano sofrido, ainda que exclusivamente moral.
Adotando o entendimento do STF esposado no indigitado recurso extraordinário temos a responsabilidade primária objetiva do Estado com direito de regresso contra o delegatário. Destarte, a vítima só teria a alternativa de ingressar contra o Estado que, malgrado se prescindir da análise de culpa e prazo prescricional de 5 anos, tem prerrogativas processuais como prazos maiores e pagamento por precatório.
Não afastamos a responsabilidade objetiva do Estado, mas entendemos que o particular poderia, validamente, no prazo prescricional de 3 anos , ingressar diretamente contra o notário ou registrador, que se provada a culpa, responderia pessoalmente pela indenização, sendo que o cumprimento da sentença(execução) seguiria o rito comum, normalmente mais célere.
Imaginemos um caso de um portentoso Cartório de Notas em que o tabelião dolosamente prejudica um particular na elaboração de uma escritura gerando provas robustas da ação culposa do delegatário. Impor à vítima o ingresso contra o Estado pode atentar de uma só vez contra o interesse do particular e contra o interesse público, vez que o Estado arcará com um encargo que não deveria suportar.
A responsabilidade objetiva do Estado é um meio que, por prescindir da análise da culpa, almeja tornar menos tormentosa a reparação do dano sofrido, não pode ser transformada em óbice ao livre exercício do direito da vítima contra um particular que, conquanto preste um serviço público delegado, deve responder por seus atos culposos.
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[1] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p.26.
[2] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico v. III. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p 240.
[3] AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. Tomo II. Rio de Janeiro. Forense, 1956, p.357.
[4] MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva: punitive damages e o Direito brasileiro. Revista CEJ Justiça e Educação, Brasília. n. 28, p. 22, jan/mar. 2005.
[5] SAMPAIO, Aurisvaldo Melo. As novas tecnologias e o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 49, p.130-163, jan. 2004.
[6] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.56.
[7] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. 3. vol. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.74
[8] COUTO E SILVA, Clóvis. O conceito de dano no direito brasileiro e comparado. In: O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.218-219.
[9] SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral Indenizável. 6ªed. Salvador: Ed Juspodivm, 2016, p. 43.
[10] SCHREIBER, Anderson . Manual de Direito Civil Contemporâneo. 2ª ed, São Paulo, Saraiva, p 648.
[11]CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004, p.23-24.
[12] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de, Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional, 6ª ed., 2011, São Paulo, LTR p. 243 e 244.
[13] SCHREIBER, Anderson . Manual de Direito Civil Contemporâneo. 2ª ed, São Paulo, Saraiva, p 650-652.
[14] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil, 6ed. São Paulo: Malheiros, p.70.
[15] CHIRONI, G.P. La colpa nel diritto civile odierna. Colpa contratualle. 2.ed. Torino: Fatelli Bocca, 1925, p.5.
[16] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 9.ed. São Paulo: Editora Método, 2019, p. 439.
[17] JOSSERAND, Louis, Evolução da responsabilidade civil, in Revista Forense, Rio de Janeiro, 1941, v LXXXVI, p.551.
[18] SCHREIBER, Anderson . Manual de Direito Civil Contemporâneo. 2ª ed, São Paulo, Saraiva, p 645.
[19] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 232/233.
[20] BRANDELLI, Leonardo. USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. São Paulo. Saraiva. 2016, p.126-133.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã. Procurador da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco e advogado. Residente em Recife.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Hélio Lúcio Dantas da. A reparação do dano decorrente das atividades notariais e de registro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2020, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54580/a-reparao-do-dano-decorrente-das-atividades-notariais-e-de-registro. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Heitor José Fidelis Almeida de Souza
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Por: Conteúdo Jurídico
Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
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