RESUMO: O presente trabalho se propõe a analisar o constitucionalismo enquanto possível desenho institucional ideal para a defesa dos direitos fundamentais. Para tanto, são feitas considerações iniciais acerca da distinção entre os conceitos de Estado de Direito, Estado Democrático e Estado Constitucional, segundo Zagrebelsky. Em seguida, são apresentadas as críticas tecidas por Bayón à visão da constituição rígida e do controle jurisdicional de constitucionalidade como desenho institucional ideal e indispensável para a proteção dos direitos fundamentais. Assim, para o desenvolvimento deste estudo, o principal método utilizado foi o descritivo, sendo que a abordagem adotada foi a qualitativa. Nesse contexto, o presente estudo avalia a compatibilidade entre democracia e constitucionalismo, discutindo se o critério quantitativo garante, por si, o fundamento qualitativo a uma decisão.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Constitucional. Estado Democrático. Direitos fundamentais.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Estado de Direito, Estado Constitucional e direitos fundamentais; 2.Supremacia da constituição e defesa dos direitos fundamentais; 3. A conciliação entre democracia e supremacia da constituição; 4. A democracia; 5. Considerações finais; Referências
INTRODUÇÃO
O Estado Constitucional hoje nos é apresentado como o Estado de Direito em que o Estado Democrático é introduzido como garantia de legitimação e limitação do poder. Seria o Estado Democrático de Direito, caracterizador do Estado Constitucional, significando que o Estado se rege por normas democráticas, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais (MORAES, 2010, p. 6). A proteção desses direitos e garantias dá-se então por meio de uma constituição.
“El régimen constitucional y la democracia política parecen representar ingredientes irrenunciables de nuestra forma de concebir la organización política y, de hecho, históricamente parecen alimentarse de una misma filosofía, que es la filosofía liberal (...)” (SANCHÍS, 2003, p. 137).
A fórmula a princípio parece simples e livre de problemas. Os mais desavisados podem depreender dessas afirmações uma noção de Estado Democrático de Direito como a fusão de duas fórmulas complementares indissolúveis e plenamente compatíveis. Mas tal afirmação, se não é errada, é no mínimo questionável. Estado de Direito, Estado Democrático e Estado Constitucional podem (e veremos se devem) ser vistos como objetos diversos. Distintos a ponto de serem fórmulas ideais conflitantes, não obstante a história, o desenvolvimento real, encaminhe-se para uni-los.
Dentro dessa visão de incoerência, é possível enxergar, dentre outros, o conflito entre supremacia constitucional e democracia, foco principal do presente trabalho. Antes, porém, de ingressar no cerne da questão do caráter antidemocrático da supremacia constitucional é preciso fazer breve comentário sobre Estado de Direito, Estado Constitucional e defesa dos direitos fundamentais.
1.Estado de Direito, Estado Constitucional e direitos fundamentais
Para a compreensão do Estado de Direito e do Estado Constitucional, utilizaremos como base de nosso estudo o pensamento de Gustavo Zagrebelsky, em El derecho dúctil.
O Estado de Direito surge em meio ao liberalismo e é característico do século XIX. Indica a eliminação da arbitrariedade e a inversão da relação que marcou o absolutismo: não mais o rei faz a lei, mas a lei faz o rei.
Não há dúvidas de que interpretar Estado de Direito como qualquer Estado sob regime da lei, qualquer que seja esta, leva ao esvaziamento da expressão. Foi o que ocorreu quando os regimes totalitários do período entreguerras defenderam ser a restauração do Estado de Direito, como Estado segundo a exclusiva vontade da lei positiva.
Não se pode olvidar, entretanto, que o Estado liberal de Direito, diferentemente dos regimes totalitários, tinha conotação substantiva relativa às funções e fins da ação do Estado e à natureza da lei. Assim, o Estado liberal de Direito assumia um significado orientado à proteção dos cidadãos frente à arbitrariedade da Administração; um condicionamento da autoridade do Estado à liberdade da sociedade.
O Estado liberal de Direito apresentava regra básica segundo a qual as regulações referentes às relações entre Estado e sociedade eram objeto da “reserva de lei” que excluía a ação independente da Administração (Zagrebelsky, 2003, p. 28). De modo sucinto e bastante simplificado, pode-se dizer que os particulares eram dotados de autonomia até o limite da regulação e limitação dadas pela lei. A Administração, por outro lado, não possuía autonomia, mas tão somente o poder de executar o que a lei permitia.
Como características essenciais do Estado de direito advêm generalidade e abstração. A primeira indica que a lei opera frente a todos os sujeitos de direito, sem distinção, e está ligada aos postulados de igualdade ante a lei, moderação do poder e separação dos poderes. A abstração, por sua vez, é garantia da estabilidade da ordem jurídica e da previsibilidade do direito. Pode ser definida como a generalidade no tempo, ou seja, significa que a lei deve ser destinada a valer indefinidamente e é formulada sobre fatos abstratos (ZAGREBELSKY, 2003, p. 29).
Frise-se que acima das leis não havia nenhuma regra jurídica que lhe estabelecesse limites, nem mesmo os documentos constitucionais de então. E não havia necessidade disso. O princípio da legalidade era expressão da hegemonia da burguesia, de seus princípios políticos e jurídicos. A lei podia tudo porque estava vinculada a um contexto político-social e ideal definido e homogêneo (ZAGREBELSKY, 2003, p. 31).
Disso resulta uma das diferenças do Estado de Direito em relação ao Estado Constitucional de hoje. As constituições – não obstante fossem previstas como perpétuas e irrevogáveis e sem procedimento de revisão – eram flexíveis, suscetíveis de modificação pela lei. A aparente contradição pode ser explicada: o documento constitucional não podia ser reformado no sentido de retorno ao absolutismo. Mas à burguesia hegemônica era permitido modificar a constituição na defesa de seus princípios.
O leitor, ao observar que a função legislativa, no Estado Constitucional, é subordinada à Constituição, poderia depreender que se trata de um Estado de Direito que levou a sujeição ao direito até as últimas conseqüências. No entanto, o Estado Constitucional, para Zagrebelsky, não é mera continuação do Estado de Direito nem estágio evoluído de realização mais completa possível. Trata-se, na verdade, de profunda transformação. O Estado superou sua função garantidora e assumiu tarefas de gestão direta de grandes interesses públicos, cuja realização conta com regras próprias e segue regras empresariais de eficiência. O princípio da eficiência força a administração a tomar decisões que vão além do que lhe é expressamente permitido.
Em relação aos particulares, muitos setores já não se inspiram na premissa liberal de autonomia como regra e limite da lei como exceção. Não apenas porque a lei passou a intervir para orientar a liberdade individual para fins coletivos, mas também porque intervém para negar o princípio da liberdade geral em alguns setores relevantes. Em substituição à autonomia até o limite da regulação dada pela lei, nesses setores estabelecem-se proibições gerais e a autorização só surge quando compatível com o interesse público.
Outra transformação, a marcar a distinção entre Estado de Direito e Estado Constitucional, seria a diminuição do grau de generalidade e abstração da lei em virtude da ampla diversificação dos grupos e estratos sociais que participam e fazem pressão pela criação de leis adequadas às suas necessidades e, por isso, fadadas à substituição quando surgem novas necessidades. Assim, as leis especiais nascem com prazo de validade indeterminado, porém sabidamente curto. Ademais os ordenamentos atuais são resultado de uma multiplicidade de fontes, o que, por sua vez, é expressão de uma pluralidade de ordenamentos. Nesse cenário, bem diferente da hegemonia burguesa característica do Estado de Direito Liberal, a Constituição ganha função unificadora, além de buscar ser um remédio para o direito mecanizado e tecnificado de nosso tempo. A Constituição impõe limites não só à atividade do Executivo e do Judiciário, mas também do legislador.
Por todo o exposto, Zagrebelsky afirma que Estado de Direito e Estado Constitucional não podem ser confundidos. Mas cabe aqui a ressalva de que essa confusão de modelos conceitualmente distintos é aceitável se compreendemos que a construção história deles em muitos momentos se confunde. Assim como não é correto afirmar que Estado Constitucional é evolução do Estado de Direito, também não se pode imaginar uma ruptura histórica e uma linha divisória bem definida entre eles. E não há proibição para que coexistam num mesmo Estado.
Acrescentamos que, não obstante a presença das várias diferenças decorrentes da transformação, Estado de Direito e Estado Constitucional têm um ponto essencial em comum: visam à proteção à liberdade e a outros direitos básicos. E as transformações citadas por Zagrebelsky, acreditamos que não por coincidência, acompanham as mudanças na percepção da própria liberdade[1].
No Estado Constitucional, os direitos fundamentais são, segundo Alexy[2], dotados de máxima classe, o que resulta do fato de serem regulados na Constituição (2003, p.33). Data venia, é possível acrescentar que, apesar de não haver hierarquia entre as normas constitucionais quando confrontadas entre si, os direitos fundamentais são dotados de máxima classe também pelo papel de destaque que ocupam dentro da própria Carta Constitucional na medida em que se nos apresentam como cláusulas pétreas. Entende-se que esses direitos são intangíveis e devem ser assegurados incondicionalmente a todos e cada um dos indivíduos. E que por isso são resguardados contra as políticas baseadas em cálculos de custo benefício e contra o procedimento de tomada de decisões pela maioria.
Posto isso, podemos adentrar a discussão que deve ser nosso foco principal.
2.Supremacia da constituição e defesa dos direitos fundamentais
É comum apresentar a constituição rígida e o controle jurisdicional de constitucionalidade como desenho institucional ideal e indispensável para a proteção dos direitos fundamentais.
Apresentaremos o conflito entre democracia e constitucionalismo, ao analisarmos a interessante crítica que Juan Carlos Bayón constrói sobre esse desenho institucional, além da solução por ele apresentada.
Bayón se questiona se para proteger os direitos fundamentais, a que ele chama “coto vedado”, é necessária uma constituição rígida e com controle jurisdicional de constitucionalidade. Propõe-se a descobrir se ao aceitarmos uma teoria da justiça que confere direitos fundamentais, estaremos comprometidos em aceitar como desenho institucional o constitucionalismo forte.
Normalmente se dá por consolidado que quem eleja a tese do “coto vedado” acabe comprometido com o constitucionalismo. Pensa-se que a tese do “coto vedado” requer um desenho institucional que resulta da combinação entre a primazia da Constituição – indisponibilidade dos direitos básicos para o legislador ordinário – e o mecanismo de controle jurisdicional de constitucionalidade da legislação ordinária – instrumento tido como necessário, sem o qual a supremacia constitucional careceria de garantias efetivas.
Mas, para Bayón, disso podem resultar desenhos institucionais diversos. O grau de rigidez das constituições é variável, podem conter ou não cláusulas de imodificabilidade. O procedimento de reforma pode ser mais ou menos gravoso. E em alguns casos é tão gravoso que se torna impossível.
Sendo assim, cabe perguntar qual desenho institucional o ideal do “coto vedado” requer. A princípio, se tomássemos o sentido estrito de “coto vedado” como esfera intangível de direitos básicos, concluiríamos que requer a pura e simples imodificabilidade; que requer a primazia de uma constituição rígida combinada com o controle jurisdicional de constitucionalidade. Rejeitar esse desenho seria rejeitar o ideal do “coto vedado”. Mas, para Bayón, tal afirmação não é verdadeira.
O Constitucionalismo tem uma conta pendente com a objeção contramajoritária. E é bom lembrar que a democracia também nos é apresentada como ideal moral, como bem esclarece Sanchís:
“Si la democracia constituye un modelo valioso de convivencia no es simplemente porque proporciona una regla para resolver las disputas políticas, sino porque propicia mejor que otros sistemas el desarrollo de la autonomía individual, del diálogo, de la igualdad de derechos e de la participación de todos en asuntos comunes; que es justamente lo que históricamente pretendieron impulsar las Constituciones” (2003, p.137).
A objeção contramajoritária adota duas formas fundamentais. Para a primeira, a primazia constitucional implica precisamente restrições ao que a maioria pode decidir. A segunda questiona qual legitimidade têm os juízes, que não são representativos nem politicamente responsáveis, para invalidar decisões de um legislador democrático.
As duas réplicas usuais e, de acordo com Bayón, pouco convincentes tentam provar que a tensão entre democracia e constitucionalismo é só aparente. Para a primeira delas tudo depende do que entendamos por democracia. Se for simples regra da maioria há, de fato, conflito com o constitucionalismo. Se for o que decide a maioria desde que não vulnere direitos básicos ou o que decida uma maioria qualificada (que seria o “conceito rico de democracia”), não há conflito. Na segunda alega-se que quando os juízes constitucionais invalidam decisões do legislador democrático não põem seu próprio critério, mas tão somente se limitam a fazer a vontade democrática do constituinte.
Este último argumento é, segundo Bayón, pouco convincente porque ignora a brecha interpretativa. Muitos dos direitos básicos estão formulados em termos vagos e abstratos; é inevitável uma leitura moral deles. O juiz inevitavelmente terá de colocar seu próprio critério.
Bayón rebate a primeira réplica ressaltando que há procedimentos de reforma tão exigentes que a tornam inviável. Nesses casos, os juízes constitucionais têm a última palavra sobre o conteúdo e alcance dos direitos básicos. A regra é, na verdade, “o que decida a maioria desde que não vulnere o que os juízes constitucionais entendem que é o conteúdo dos direitos básicos”.
O professor da Universidade de Barcelona entende que não é evidente que quem adote o “coto vedado” deva considerar uma má regra de decisão coletiva o puro e simples critério da maioria. E nos lembra que em torno dessa idéia tem-se formulado as recentes críticas ao constitucionalismo. Elege a de Waldron como a mais lúcida delas, por mostrar as debilidades da justificação do constitucionalismo e dar argumentos sólidos para criticar o constitucionalismo forte. No entanto, não nega que ela tenha fissuras, na medida em que leva à rejeição total de qualquer forma de constitucionalismo. Tentando corrigir essas fissuras, Bayón constrói sua idéia de constitucionalismo fraco (ou débil) como modelo adequado para quem adote como seu o ideal do “coto vedado”. E, de modo peculiar, a solução por ele apresentada é retirada do mundo prático. É solução que já existe no mundo real e que, segundo o autor, funciona muito bem.
O constitucionalismo defende que se não há restrições substantivas à regra da maioria, através dela será possível adotar qualquer decisão, independente de seu conteúdo, e inclusive, oprimir a minoria. Por isso ela seria perigosa. O constitucionalismo seria, por isso, concebido como remédio necessário. Consistiria na imposição de limites substantivos últimos (direitos básicos) a um procedimento (a regra da maioria).
Waldron, porém, defende que essa é uma idéia enganosa. Na organização da vida política há desacordos acerca do que é justo. Antes da substância e depois dela são iniludíveis os procedimentos. Na previsível ausência de unanimidade, teve-se que tomar uma decisão sobre o que as maiorias não poderão decidir. Depois, seguirão tomando a decisão sobre a delimitação exata estabelecida àquilo que poderão decidir.
O constitucionalismo seria não um procedimento de decisão com restrições substantivas, mas uma combinação de procedimentos para tomar decisões acerca de outros procedimentos.
Nos momentos de política constituinte (originária ou de reforma) não se estabelece como limitar a decisão da maioria com uma lista de critérios substantivos, mas com resultados que lançam procedimentos. Assim, para Waldron, os direitos não seriam concebidos como limites substantivos prévios ao procedimento majoritário, mas como produto daquele procedimento.
Nos momentos de política constituída, o limite ao poder de decisão da maioria vem dado não por critérios substantivos, mas por resultados que lançam outro procedimento: o do controle jurisdicional de constitucionalidade. E o limite ao poder de decisão da maioria não são os direitos constitucionalizados, mas o que órgão que exerce o controle jurisdicional de constitucionalidade (ou a maioria de seus membros) estabeleça que é o conteúdo dos direitos.
Assim, para Waldron toda regra de decisão coletiva última tem que ser procedimental. E se é procedimental, através dela é possível tomar validamente decisões com qualquer conteúdo. O que equivale a dizer que toda regra de decisão coletiva é falível; nenhuma exclui a possibilidade de opressão, seja da minoria ou da maioria. Assim, não se trata de escolher entre um procedimento com e um sem restrições substantivas, mas entre duas regras de decisão coletiva estritamente procedimentais e, como tais, falíveis.
Nesse caso, quem aceita o ideal do “coto vedado” deveria preferir a regra da maioria simples. O ideal profundo dos direitos é uma comunidade de indivíduos que se reconhecem como agentes de igual dignidade. E a regra da maioria, segundo Waldron reconhece a igual capacidade de autogoverno das pessoas, o que lhe confere um valor intrínseco, uma qualidade moral, que nenhum outro procedimento de tomada de decisão coletiva possui, pelo menos não no mesmo grau.
A rigidez, própria da primazia constitucional, exige maiorias reforçadas para a reforma da Constituição. E a princípio nos parece justo que a decisão de questões fundamentais só se dê de acordo com a maioria quando ela for muito superior, quando for reforçada. Mas se vemos a questão por outro lado, isso entrega um poder muito grande nas mãos da minoria. A exigência de maioria reforçada equivale, assim, a poder de veto da minoria. Atribui desigual valor de voto a partidários e oponentes da proposta votada. Desta forma, algumas questões fundamentais só podem resolver-se de acordo com a minoria.
Nem sequer é correto que, como se costuma pensar, a exigência de maioria reforçada seja meio eficaz de proteger a minoria contra abusos da maioria. O poder de veto de que goza a minoria pode ser ampliado não só para bloquear os abusos da maioria contra a minoria, mas também para oprimir outras minorias ou mesmo a maioria. E mais difícil do que justificar porque a minoria tem que se submeter à maioria é justificar porque a maioria tem que estar sujeita a limites só modificáveis pela minoria.
Assim, também é possível refutar, pelas mesmas razões, o controle jurisdicional de constitucionalidade, que, da mesma forma, se separa do ideal de igual participação das decisões. Separa-se mesmo que o procedimento de reforma da constituição não seja tão exigente a ponto de ser inviável. Isso porque sempre que se exige maioria reforçada, a desigualdade, que já lhe é inerente, é na realidade decisão dos juízes constitucionais. Em outras palavras, ao determinar o que é inconstitucional, são eles que decidem sobre quais cidadãos recai o peso de ter que reunir a maioria qualificada. A separação em relação ao ideal de igual participação é ainda maior se os juízes, de fato, têm a última palavra sobre o conteúdo dos limites a regra da maioria.
O constitucionalismo, para justificar isso, normalmente defende que por tratar-se de limites impostos à maioria (para que não oprima a minoria) não se pode permitir que ela mesma os trace.
Aduz Bayón que a argumentação de Waldron conduz a um desenho institucional em que o nível de respeito do qual gozam os direitos fundamentais depende mais de sua cultura política do que de seu sistema institucional. De forma que o constitucionalismo em algumas sociedades seria desnecessário ou insuficiente.
Mas o que dizer então daquelas sociedades cuja cultura política não é tendente à defesa dos direitos fundamentais? Estariam seus membros privados da proteção a esses direitos. Daí emerge a importância e um dos prováveis motivos da grande expansão do constitucionalismo no mundo: ele se ocupa da proteção dos direitos fundamentais mesmo em sociedades de cultura política dita mais “pobre”. Nesse ponto se encontra uma das falhas da argumentação de Waldron. O fato de algumas sociedades políticas serem capazes de defender os direitos fundamentais utilizando a regra da maioria simples não retira a importância do constitucionalismo na missão a que se propõe. Não estamos afirmando, de modo algum, que o constitucionalismo não seja antidemocrático. Apenas que ele nos tem servido, apesar de apresentar características negativas.
As críticas de Waldron ao constitucionalismo são muito pertinentes e levam à necessária reflexão sobre o próprio regime. Mas cabe acrescentar que, na reflexão de Waldron, nos remetemos, indiretamente, ao dilema de liberdade positiva versus liberdade negativa[3]. Waldron parte da premissa de que o ideal da comunidade é a liberdade positiva, enquanto autogoverno, e que conduz à igual participação das decisões.
Deve-se, no entanto, considerar a possibilidade de que tal premissa seja falsa. E se o ideal profundo dos direitos não for o autogoverno (liberdade positiva) ou a igualdade de participação, mas sim a não interferência do estado em determinada esfera da vida do indivíduo (liberdade negativa)? E se os direitos básicos realmente funcionam como limites substantivos e não meramente procedimentais? Bayón nos lembra que, ao afirmar que antes da substância seja inevitável e indispensável o procedimento, Waldron incorre em erro: o regresso ao infinito.
Sendo falsas as premissas, cai por terra toda a argumentação de Waldron e a completa negação ao constitucionalismo que sugere.
Ademais, Waldron afirma que, no constitucionalismo, a última palavra sobre o que é ou não constitucional é sempre dos juízes. Tal alegação é, no entanto, inaceitável. Nem sempre os direitos fundamentais vêm definidos sob a forma de princípios ou cláusulas abertas, como ele propõe, mas também sob a forma de regras, suficientemente precisas. Portanto, nem sempre os juízes têm que completar a norma e determinar seu alcance.
Feitas estas considerações, passemos agora às réplicas, que Bayón nos apresenta, do constitucionalismo.
Para a primeira delas, aceitar a regra da maioria é aceitar que a maioria pode tomar qualquer decisão, inclusive a de deixar de decidir por maioria simples. Bayón refuta essa réplica lembrando que, numa decisão como essa, a maioria se auto-anularia, de nada valendo o valor moral intrínseco que conduz à regra da maioria, o de igual participação.
O constitucionalismo também se defende aduzindo que, em circunstâncias de qualidade superior, como o momento constituinte, é possível traçar limites não removíveis por decisões posteriores, que seriam tomadas em momentos de qualidade inferior, como os de política constituída. Bayón também refuta esta réplica, alegando que a composição do conjunto de indivíduos que formam a sociedade está sujeita a contínua variação; o grupo se renova a cada momento. Assim, não faz sentido que os indivíduos de hoje sejam limitados por uma decisão dita mais lúcida tomada por um grupo que não mais existe. Além do mais, a réplica pressupõe arbitrariamente e sem fundamento que o momento da constituinte tem sempre maior qualidade que os de política constituída. Aduz, ainda, que esse argumento não justifica o controle jurisdicional de constitucionalidade. A existência deste é responsável pela constatação de que não se trata de auto-limitação da maioria, mas de limitação externa feita pelo Judiciário.
3. A conciliação entre democracia e supremacia da constituição
Juan Carlos Bayón busca no constitucionalismo fraco da Suécia e do Canadá a solução para o conflito entre democracia e supremacia da constituição. Segundo ele, trata-se de desenho institucional que, ao passo que respeita o maior valor moral intrínseco do procedimento democrático, aproveita as possíveis vantagens instrumentais do constitucionalismo.
Segundo ele, quem adote como seu o ideal do “coto vedado” deve preferir o constitucionalismo fraco “porque quien entienda que ciertas decisiones no deben ser tomadas debe preferir un procedimiento que las excluya (…)” (p. 230).
Nos dois países citados, a maioria requerida para alterar a constituição é a mesma requerida para o procedimento legislativo ordinário. No Canadá, uma lei considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal continua em vigor pelo prazo de cinco anos, suscetível de renovações. Na Suécia a proposta de emenda é votada duas vezes. Entre as duas votações distintas deve haver eleições gerais e um intervalo mínimo de nove meses.
Nesse modelo, sempre que a questão pareça duvidosa, acrescenta Bayón, os juízes tendem a adotar uma atitude de deferência frente ao Legislativo. E quando entendem que os argumentos contra a constitucionalidade da lei são dificilmente contestáveis, seu pronunciamento altera significativamente o debate político. Assim o legislador que queira discordar, sabe que passará por eleições, nas quais a questão será debatida. O legislador precisará então de uma argumentação alternativa capaz de obter respaldo, e “como enseña la práctica constitucional de aquellos dos Estados, se traduce habitualmente en la simple aceptación por parte del legislador de la declaración de inconstitucionalidad”.
Desta forma, o debate passa necessariamente pelo Judiciário e pelo Legislativo. Mas há que se frisar que a última palavra é sempre do Legislativo. E isto põe em dúvida a capacidade de conciliação que Bayón diz ter esse modelo, uma vez que o que ocorre, de fato, é a prevalência do legislador sobre os juízes. Mesmo no caso de haver uma questão em que os argumentos contra a constitucionalidade são dificilmente contestáveis, conforme exposto anteriormente, não há qualquer garantia de que a prática constitucional daqueles dois países se repita do mesmo modo nos demais.
4.A democracia
Muito se discute o caráter antidemocrático da supremacia constitucional. Atribui-se esse caráter à limitação que a constituição representa à regra da maioria simples. Mas é preciso que fique claro que o princípio da maioria não é necessariamente democrático. Nas lições do professor Nelson Matos:
“O senado romano, por exemplo, era um órgão aristocrático e deliberava pelo princípio da maioria. A circunstância de que na democracia se decida coletivamente, e que o princípio da maioria é uma das técnicas de decisão coletiva, não leva a concluir que o princípio da maioria seja necessariamente democrático. (...) a democracia não adota necessariamente o princípio da maioria” (2002, pp. 64 e 65).
Assim, nada impede que a democracia adote como regra de decisão a unanimidade, a negociação, o consenso. Além disso, nada prova que o critério quantitativo garanta fundamento qualitativo a uma decisão. Não se pode afirmar que determinada decisão é mais sábia porque a maioria com ela concorda.
Nem tampouco há o alegado valor intrínseco – a igual participação nas decisões – no critério da maioria simples, uma vez que prevalece a democracia indireta, ou seja, sua forma representativa. É impossível que o representante eleito seja fiel à opinião de cada um de seus eleitores. E mesmo que se alegue, como o faz Bayón, que o valor moral do governo representativo não deriva de que na tomada de decisões a opinião de cada cidadão tenha exatamente o mesmo peso que a de qualquer outro. E que o representante ocupa essa posição não por sua qualidade moral, mas pela quantidade de cidadãos que o escolheram. Ainda assim é possível duvidar da qualidade moral que se lhe atribui: a igualdade. É questionável concluir que um indivíduo, exatamente por ser igual aos demais – aos que compõem a maioria – deve a eles se submeter quando com eles não concordar. E foi dessa maneira que Kelsen concluiu que não é a igualdade, mas a liberdade (positiva) que fundamenta a regra da maioria (MATOS, 2002, p.71). E liberdade o constitucionalismo também garante em alto grau.
Ademais, a tomada de decisão coletiva hoje envolve mais que argumentos que fundamentem as opções em xeque. Envolve campanhas publicitárias milionárias, negociações políticas entre os partidos e entre estes e os diretamente interessados nas questões. Tudo isso coloca em dúvida a eficácia da regra da maioria simples na defesa dos direitos básicos. Nem é preciso falar da falta de confiança depositada no Legislativo hodiernamente.
Assim, só nos resta como defesa do critério da maioria o fundamento utilitarista, segundo o qual a regra majoritária serve para evitar impasses. Já que não é possível – em comunidades com população extensa ou com grande número de representantes – alcançar a unanimidade nas decisões a serem tomadas – tarefa difícil mesmo em grupos muito pequenos – é preciso estabelecer um critério que viabilize a tomada de decisão. O princípio da maioria ganha ainda mais importância quando as questões votadas não são tão simples e envolvem mais de três opções a serem votadas.
5. Considerações finais
É difícil negar o caráter antidemocrático que o constitucionalismo apresenta. E não há por que fazê-lo. Aqui é preciso questionar-se o porquê de ver o regime democrático como necessariamente superior.
O fato ora exposto não constitui motivo para se refutar o constitucionalismo. A democracia não é dotada de valor superior ao constitucionalismo, nem tampouco é garantidamente mais eficiente na proteção aos direitos fundamentais.
E não se pode negar que o que a história do século XIX em diante é marcada especialmente pela luta por esses direitos. Mesmo que se alegue que os direitos ditos fundamentais não são naturais, não são superiores e que não passam de construção humana. Ainda assim sua defesa é importante.
Se o homem vê tais direitos como inerentes à sua natureza, não os adotou, inicialmente, por vontade da maioria. Mas porque em algum momento se acreditou – não importa quantos acreditaram, mas em que – que eram divinos e superiores e que deviam ser aceitos por fazerem parte da essência humana.
Nesse contexto, o constitucionalismo ganha maior relevância, não porque o momento constituinte seja mais sábio, ou que a constituição seja fruto de um direito superior, mas porque a ordem constitucional ajuda a garantir a liberdade (negativa), permitindo que os cidadãos sigam com suas vidas particulares. A constituição garante o sentimento de segurança e se apresenta como “resposta” para as questões do cotidiano, além de apresentar função unificadora do ordenamento.
Não se pode exigir dos cidadãos, a todo o momento, – nem boa parte deles tem apresentado – extremo interesse por todas as questões políticas. E não é difícil imaginar que essa boa parte desinteressada deseje ver seus direitos garantidos, inclusive aquele de se manifestar diante do desrespeito aos demais direitos. É questionável a premissa de que o que as pessoas realmente desejam como ideal profundo seja participar das decisões políticas (liberdade na acepção de autonomia).
A opressão da minoria à maioria também ganha contornos mais complexos quando percebemos que os indivíduos não pertencem a um só grupo. No cenário de pluralismos em que vivemos, um mesmo indivíduo ora se inclui na maioria, ora na minoria, a depender da questão debatida. Assim como também as minorias podem se unir e formar nova maioria. Os grupos sociais não são homogêneos.
Estado de Direito, Estado Democrático e Estado Constitucional devem ser vistos como objetos diversos que são. Tratá-los como sinônimos ou indissociáveis é erro que, apesar de comum, esvazia os conceitos envolvidos. Considerá-los como objetos necessariamente imiscíveis, por sua vez, é ignorar os caminhos percorridos pela história humana que os uniu, mesmo que isso signifique coexistência por vezes conflituosa, solucionada pela prevalência ora de um, ora de outro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales en el Estado Constitucional Democrático. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003.
BAYÓN, Juan Carlos. Derechos, democracia y constitución. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12925071916700495109213/discusiones1/Vol1_05.pdf>. Acesso em: 16 novembro 2010.
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: Estudos sobre a humanidade. Trad. R. Eichemberg. São Paulo: Companhia de Letras, 2002.
KELSEN apud MATOS, Nelson Juliano Cardoso. Teoria do Estado: uma introdução crítica ao Estado democrático liberal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
MATOS, Nelson Juliano Cardoso. Teoria do Estado: uma introdução crítica ao Estado democrático liberal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2010.
SANCHÍS, Luis Pietro. Justicia Constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2003.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Madri: Trotta, 2003.
[1] Para alguns, a liberdade, que antes era não interferência do Estado em dada esfera da vida do particular, passa a exigir também prestação do Estado de modo a garantir vida digna ao indivíduo. Não se pode ser livre sem condições mínimas de sobrevivência.
[2] É preciso lembrar que Alexy teve como objeto de suas reflexões os direitos fundamentais no sistema jurídico alemão.
[3] Isaiah Berlin, em Dois conceitos de liberdade traz esclarecimentos sobre o tema. Nos séculos XVII e XVIII, período de formação das bases do pensamento liberal, a liberdade é vista como ausência de interferência do Estado e demais indivíduos em determinada esfera da vida do particular. Com o racionalismo, é desenvolvida a teria da liberdade positiva. Para os racionalistas, a liberdade não é um vácuo ou ausência de interferência, mas autodeterminação. O indivíduo se considera livre porque consentiu com sua limitação, assim como todos do grupo. E, fazendo uso da razão, percebe que não deve querer aquilo que não tem certeza que pode conseguir. Desta forma, as paixões são controladas. Nesse sentido a liberdade é autogoverno, é participação (2002, pp. 229-240).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí; pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes; Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Clarissa de Cerqueira. Supremacia da Constituição e democracia: desenho institucional para defesa dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2020, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54631/supremacia-da-constituio-e-democracia-desenho-institucional-para-defesa-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov 2024.
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