RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a constitucionalidade da intervenção médica compulsória, positivada no artigo 3º, da lei 13.979/2020, os direitos fundamentais que adentram ao mérito da respectiva lei e a limitabilidade dos mesmos, tendo em vista o atual momento vivido. Diante do cenário caótico enfrentado pelo Brasil, em decorrência da COVID-19, tornou-se necessária a adoção de medidas de enfrentamento, visando o controle da doença, razão pela qual, foi promulgada a referida lei. Ocorre que houve o questionamento sobre a constitucionalidade de seu artigo 3º, em que se admite a determinação de realização compulsória de exames laboratoriais, vacinas e tratamentos específicos no controle da doença, considerado por muitos, uma afronta aos direitos protegidos constitucionalmente. Desta forma, de um lado encontra-se o direito à saúde e à vida, e de outro, o direito à liberdade, como forma de autodeterminação. Este artigo busca fazer um comparativo dos respectivos direitos e, diante dessa antinomia jurídica, a solução que entende-se viável no atual momento, tendo como base o bem comum.
Palavras-chave: isolamento; quarentena; COVID-19; direitos fundamentais; intervenção médica compulsória; constitucionalidade; Lei 13.979/20.
ABSTRACT: The present article goal is to analyze the constitutionality of the compulsory medical intervention, positivized on the 3rd article, of the 13.979/2020 law, the fundamental rights that adhered the merits of the respective law and their limitability, in view of the moment we´re living in. In the face of the chaotic scenario faced in Brazil, due to Covid-19, it has become necessary to adopt coping actions, with the aim of controlling the disease, reason why,this law was passed by. It happens that there was a questioning about the constitutionality of its third article, in which is admitted the determination of carrying compulsory lab exams,vaccines and specific treatments for disease control, considered by many, would constitute a direct violation of protected constitucional rights. This way, on one side we have the right to health and to life, and on the other, the freedom right, as a way of self-determination. This article seeks to make a comparative of the respective rights and, in the face of this legal antinomy, the viable solution at the actual moment, with its foundation resting on commom welfare.
Keywords: isolation; quarantine; COVID-19; fundamental rights; compulsory medical intervention;constitutionality; Law 13.979/20.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Lei 13.979/2020: A constitucionalidade da intervenção médica compulsória no contexto da pandemia – 2.1. Direitos fundamentais protegidos – 2.2. Razoabilidade na aplicação das medidas positivadas na lei 13.979/2020 - 3. Considerações finais – 4. Referências.
1.INTRODUÇÃO
A rápida propagação e os seus efeitos nefastos fez com que a COVID-19, que é uma doença respiratória causada pelo vírus SARS-COV-, fosse popularizada e temida. Os primeiros casos da doença surgiram na China, ainda no final de 2019, espalhando-se rapidamente para outros países, o que levou a Organização Mundial de Saúde a decretar, no dia 11 de março de 2020, estado de pandemia.
A disseminação veloz do vírus acarretou na superlotação nos hospitais em diversos países, fazendo com que os leitos de UTIs se tornassem insuficientes para atender a grande demanda de infectados em estado grave, causando assim, milhares de mortes em todo o mundo, de acordo com os dados da OMS.
Diante das informações mundiais e temendo um colapso na saúde brasileira, buscou-se realizar medidas de enfrentamento da pandemia, momento em que se tornou necessária e edição da Lei 13.979, em 6 de fevereiro de 2020, em processo de tramitação de urgência.
Ocorre que a referida lei conflita com alguns direitos protegidos constitucionalmente. Assim, o presente artigo ponderará essas questões, analisando a lei 13.979/2020, como garantia do acesso à saúde e direito à vida.
2.LEI 13.979/2020: A CONSTITUCIONALIDADE DA INTERVENÇÃO MÉDICA COMPULSÓRIA NO CONTEXTO DA PANDEMIA
No intuito de controlar a proliferação do vírus, em 6 de fevereiro de 2020 foi promulgada a lei 13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
A referida lei regulamenta questões diretamente relacionadas ao COVID-19, questões estas que adentram na esfera de direitos fundamentais, regulamentados constitucionalmente, tais como o direito à vida e à saúde.
2.1 Direitos fundamentais protegidos
Primeiramente, é importante destacar que os direitos fundamentais, nele incluído o direito à vida, advém de um processo histórico, possuindo grande importância nos dias atuais. Em decorrência do sofrimento e dizimação de vidas ocorridas nas duas guerras mundiais, a sociedade como um todo passou por um processo de reconstrução e transformação, buscando o respeito aos direitos fundamentais, ocasião em que, após a segunda guerra mundial, criou-se a Organização das Nações Unidas (ONU), tendo o Brasil como membro integrante desde a sua fundação, em 1945.
A proteção à vida reforça-se com a assinatura de diversos documentos internacionais, destacando-se:
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”;
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966): “o direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”;
Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos com vistas à abolição da Pena de Morte (1989): “nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado-Parte no presente Protocolo será executado. Os Estados-Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte no âmbito da sua jurisdição”.
No Brasil, o direito à vida é tido como fundamental, vindo positivado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”. (BRASIL, 1988)
Para Alexandre de Moraes, “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”. (MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 2003, p.63)
Nas palavras de Paulo Gustavo Gonet Branco:
[...] a existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades disposto na Constituição e que esses direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse. (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2010, p.441).
Portanto, percebe-se que o direito à vida é inato; quem nasce com vida, tem direito a ela. Em relação às leis e outros atos normativos dos poderes públicos, a incolumidade da vida é assegurada pelas regras jurídicas constitucionais.
Já a saúde, trata-se de um direito social, positivado no artigo 6º, bem como nos artigos 196 a 200 da CF/88. Os direitos sociais, também chamados de direitos de segunda dimensão ou geração, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado.
Pedro Lenza, em sua obra discorre sobre o assunto:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (2017, pág. 1251).
Na doutrina há dupla vertente em relação aos direitos sociais, principalmente em relação à saúde, sendo divididas em natureza negativa e positiva. Em relação à natureza negativa, o Estado ou o particular devem abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros. De maneira diversa, na natureza positiva, fomenta-se um Estado prestacionista buscando implementar o direito social.
2.2 Razoabilidade na aplicação das medidas positivadas na lei 13.979/2020
Em razão da facilidade de propagação do vírus, vêm ocorrendo o aumento diário de infectados, mortos e superlotação de hospitais, razão pela qual tornou-se necessária a edição da Lei 13.979/2020, como forma de enfrentamento da pandemia e assim, de preservação do direito à vida.
Aqui se pretende ponderar, frente às questões constitucionais, as medidas que poderão ser adotadas em situações emergenciais da saúde pública. Vejamos, in verbis:
“Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
III - determinação de realização compulsória de:
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;(...)”
Questão que vem sendo bastante debatida com posicionamentos controvertidos é a determinação compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, bem como a coleta de amostras clínicas, sendo por muitos considerado uma violação do direito de autodeterminação.
Tendo em vista os dados apresentados pela OMS em relação ao grande número de mortos, infectados e à facilidade de propagação da doença, não entendo tratar-se de uma violação ao sobredito direito. O que é visto por muitos como uma medida extrema, vejo como uma medida necessária de controle da doença.
O princípio da razoabilidade deve ser a base da aplicação dessas medidas, utilizando-o para resolver colisão de princípios jurídicos. Em relação à restrição ao direito à liberdade, em virtude da determinação compulsória de exames médicos, o referido princípio pondera a relevância da “supressão” de um princípio em detrimento de outro. Razoável, traduz um julgamento pautado na justiça e equilíbrio.
Ocorre que estamos diante de um cenário caótico, em que de um lado encontra-se a lesão ao direito à vida e à saúde, em razão da insuficiência de assistência médica e hospitalar, justamente pela alta demanda de casos, e de outro lado está a restrição da liberdade, privando o direito de autodeterminação, porém, como forma preventiva de controle à proliferação da doença.
Em razão disso, a defesa aqui apresentada pauta-se pela constitucionalidade de tais medidas e se sustenta basicamente no direito à vida, razão pela qual, em conformidade com o artigo 1º, §1º, da referida lei, a proteção à coletividade deve sobressair, como forma de prevenção à vida em larga escala.
Uma das características dos direitos fundamentais é justamente a limitabilidade, entendendo-se que os mesmos não são absolutos, podendo ser relativizados, caso haja no caso concreto, conflito de interesses. Dessa forma, a solução é feita analisando os direitos fundamentais envolvidos no caso concreto, conjugando-os com sua mínima restrição.
Konrad Hesse defende esse posicionamento ao afirmar que:
“[...] a limitação de direitos fundamentais deve, por conseguinte, ser adequada para produzir a proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. [...] Ela deve, finalmente, ser proporcional em sentido estrito, isto é, guardar relação adequada com o peso e o significado do direito fundamental.” (HESSE, Konrad. p. 256. 1998.)
André Ramos Tavares discorre brilhantemente sobre o assunto:
“Não existe nenhum direito humano consagrado pelas Constituições que possa considerar absoluto, no sentido de sempre valer como máxima a ser aplicada nos casos concretos, independentemente da consideração de outras circunstâncias ou valores constitucionais. Nesse sentido, é correto afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos.” (TAVARES, André Ramos, p. 528, 2010).
No mesmo sentido entendeu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RMS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.2000, p.20, in verbis:
“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO.
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos e garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por partes dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”
No próprio ordenamento jurídico há casos de relativização dos direitos fundamentais, demonstrado claramente no artigo 14, §1º da lei 8069/1990, em situação análoga à qual se demonstra o presente artigo. O Estatuto da Criança e do Adolescente reúne normas com o objetivo de proteger o direito à vida e à saúde de crianças e adolescentes e, em seu artigo 14, §1º estabelece que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
Há situações que torna-se plenamente possível e necessário adentrar à esfera individual, como forma de proteção da coletividade e, tendo em vista o atual cenário brasileiro, em que os casos de COVID-19 aumentam diariamente e os hospitais atingem sua capacidade máxima, a lei 13.979/2020 mostra-se necessária, vigorando enquanto perdurar o estado de emergência relacionado à saúde.
3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como bem afirma Pedro Lenza, “a análise do direito à vida e seus desdobramentos enaltece o que é denominado pela doutrina como desacordo moral razoável”. Desde que se fundem em uma conclusão racional, não há regra, tampouco consenso em relação a temas polêmicos, pautados em entendimentos divergentes.
Entendo que, em um contexto isolado e de normalidade social, a realização compulsória de exames pode ferir o direito à autodeterminação, porém, em um cenário extremo como estamos vivendo, vejo como possível e necessário adentrar à esfera individual, como forma de proteção à vida da coletividade. Sabendo que uma norma é a junção de texto e contexto, o artigo 3º da lei 13.979/2020 deve ser visto como uma forma de prevenção e proteção social.
Portanto, desde que sejam realizados de maneira razoável, proporcional e no contexto epidemiológico, não há inconstitucionalidade na determinação compulsória dos exames mencionados na lei, pois a realização dos mesmos, visa justamente a proteção à vida da coletividade. Coletividade esta a que o cidadão compulsoriamente levado à realização dos exames também se insere e, evidentemente, se vê contemplado com a instituição de medidas de prevenção e manutenção de sua própria saúde. E claro, caso tais medidas sejam extrapoladas, aplicadas em excesso, sem fundamentação e fora do contexto proposto pela lei, gerando dessa forma lesão ao direito, é cabível e necessário o controle judicial posterior.
4.REFERÊNCIAS
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 21ª Ed. São Paulo: Saraiva jur, 2017.
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO: 2012.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p.441
MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 13ª Ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2003, p.63.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, p. 256. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 528. São Paulo: Saraiva, 2010.
https://exame.com/brasil/em-abril-o-sistema-de-saude-entrara-em-colapso-diz-mandetta/
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
https://www.conjur.com.br/2020-mar-11/lei-nacional-preve-adocao-isolamento-quarentena
Advogada. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, ERICA COSTA. Lei 13.979/2020: A constitucionalidade da intervenção médica compulsória no contexto da pandemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2020, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55076/lei-13-979-2020-a-constitucionalidade-da-interveno-mdica-compulsria-no-contexto-da-pandemia. Acesso em: 22 nov 2024.
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