RESUMO: Tendo em vista o aumento dos casos de registro cartorário de relacionamentos poliafetivos, esta pesquisa tem como foco investigar essas formas de convivência e a possibilidade do seu reconhecimento jurídico na busca pela equiparação dos direitos que possam lhe ser inerentes como, por exemplo, no caso da união entre pessoas do mesmo sexo quando comparadas às uniões estáveis, pela via interpretativa da Constituição e defendidas pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, busca-se aqui perscrutar, pelo viés jurídico, a possibilidade de se viabilizar a legitimidade e a tutela nas relações poliafetivas como relacionamento afetivo-familiar, contrário ao conhecido padrão monogâmico de família conjugal. Trata-se de uma revisão integrativa de literatura com abordagem teórica quantitativa para fundamentar a temática da poliafetividade e a possibilidade de instrumentalizar as manifestações de vontade para comprovar a sociedade de fato nesses relacionamentos. O estudo está fundamentado em teorias que versam sobre a quebra de paradigmas no ordenamento jurídico no que tange à omissão do Estado no reconhecimento dos direitos e posterior regulamentação das relações poliafetivas. Os resultados mostraram haver uma incompatibilidade jurídica no que tange a omissão estatal quanto à regulamentação das uniões poliafetivas e os direitos fundamentais da família, calcados nos conceitos da teoria liberal dos direitos fundamentais e as garantias constitucionais vigentes.
Palavras-chave: Relações Poliafetivas. Equiparação Jurídica. Direitos Fundamentais. Garantias Constitucionais. Legitimidade.
ABSTRACT: In view of the increase in cases of registration of poly-affective relationships, this research focuses on investigating these forms of coexistence and the possibility of their legal recognition in the search for equal rights that may be inherent to them, for example, in the case of union between people of the same sex when compared to stable unions, through the interpretative way of the Constitution and defended by the Supreme Federal Court. Thus, the aim here is to investigate, from a legal point of view, the possibility of making legitimacy and tutelage in poly-affective relationships viable as an affective-family relationship, contrary to the well-known monogamous pattern of conjugal family. It is an integrative literature review with a quantitative theoretical approach to support the theme of polyaffectivity and the possibility of instrumentalizing the manifestations of will to prove the actual society in these relationships. The study is based on theories that deal with the breaking of paradigms in the legal system with regard to the omission of the State in the recognition of rights and subsequent regulation of poly-affective relations. The results showed that there is a legal incompatibility regarding the state's omission regarding the regulation of poly-affective unions and the fundamental rights of the family, based on the concepts of the liberal theory of fundamental rights and the current constitutional guarantees.
Keywords: Multi-affective relations. Legal Equation. Fundamental rights. Constitutional guarantees. Legitimacy.
1. INTRODUÇÃO
A dinâmica de uma relação monogâmica, tradicionalmente baseada em ideais filosóficos, antropológicos e teológicos de exclusividade sexual, social e conjugal entre dois indivíduos, tem sido a norma histórica estabelecida na maioria dos relacionamentos conjugais. A sociedade sempre conceituou classicamente relacionamentos românticos pelo viés da heterossexualidade compulsória, uma pressão exercida sobre o indivíduo na sociedade para que assumisse uma identidade heterossexual, independente dos seus sentimentos, assim como a monogamia compulsória onde os indivíduos respondem à pressão social para viver um relacionamento monogâmico mesmo quando orientados para outros tipos de relacionamentos.
Conceitos clássicos de família e parentesco têm sido historicamente definidos dentro dos parâmetros de ligação monogâmica reprodutiva, traduzida pela cultura dominante através da ideia de que relações legítimas só existem dentro de uma estrutura binária em vez de uma estrutura de grupo e que a única ligação de par familiar válida existente é a de uma relação binária entre dois heterossexuais.
Dessa forma, a monogamia passou a ser considerada a norma romântica para se estabelecer uma família e o parentesco. Relacionamentos alternativos, como a poliafetividade, que denotam o envolvimento de três ou mais pessoas, ou seja, um relacionamento romântico grupal, muitas vezes enfrentam preconceitos e estigmas sociais.
As relações poliafetivas, ou poliafetividade, são essencialmente um relacionamento de grupo comprometido, de três ou mais adultos consensuais, que se diferencia do poliamor justamente pelo seu foco na família e não no indivíduo. Ao contrário de um conceito similar referido como poligamia, a poliafetividade denota um espírito igualitário e recíproco onde todos os membros se beneficiam da relação de uma maneira não exploradora. Segundo Dias (2016), situa-se no princípio da igualdade uma das maneiras de sustentação do Estado Democrático de Direito, fator essencial para que a lei considere todos, de maneira igualitária, ressalva as desigualdades que necessitam ser analisadas para que haja prevalecimento da igualdade material em detrimento da denominada obtusa igualdade forma, estando conectada, de forma íntima, a ideia de Justiça, até mesmo nas questões voltadas para relações poliafetivas.
Ao se observar as searas do direito de família, quando se toca nos conceitos e origens da poliafetividade, a extensa fundamentação teórica que existe a esse respeito torna possível se chegar ao cerne da constitucionalização do Direito Civil e a devida aplicação dos direitos fundamentais diante das mutações que família tradicional sofreu com a pluralidade de novos e complexos arranjos, dentre os quais se destacam as uniões livres, homoafetivas, monoparentais, famílias reconstituídas, simultâneas e reproduções assistidas.
Cabe ressaltar que na investigação dos efeitos jurídicos da multiparentalidade e da poliafetividade é preciso apresentar respostas às demandas desafiantes dos fatos marcados por formações e arranjos plurais, relações interprivadas e nas famílias, captando inclusive os desenvolvimentos tecnológicos nele situados como, por exemplo, as possibilidades e os paradoxos da inseminação artificial.
Outro ponto interessante se dá pelo fato de que o Direito das Famílias sempre foi visto sob o prisma constitucional como base dos princípios e valores do seu próprio ordenamento, uma vez que a afetividade, ainda que implícita, encontra fundamento na Carta Magna por embasar-se na dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e igualdade.
Logo, a ausência da previsão constitucional expressa acerca das uniões poliafetivas - traduzida como um silêncio eloquente da Constituição frente aos direitos e reconhecimento do amparo jurídico às relações poliafetivas - traduz o limite que as relações monogâmicas impõem à atuação do legislador na ampliação do direito fundamental a este indivíduos, contrapondo-se de forma direta ao novo direito de família, notoriamente pautado no vínculo afetivo e não mais em dogmas sacramentais do matrimônio clássico.
Sendo assim, faz-se necessária uma análise acerca das consequências jurídicas das relações poliafetivas, calcada sobre a jurisprudência farta que fortalece toda e qualquer discussão no universo jurídico numa união esclarecedora entre a teoria com os casos práticos da vida cotidiana fortalecendo os posicionamentos adotados pelos tribunais nas suas vicissitudes. Momento em que este estudo vem buscar compreender melhor a dinâmica desse relacionamento e as múltiplas implicações para a mudança social, entendimento das famílias alternativas e vantagens e desvantagens de se engajar nessa relação.
2. METODOLOGIA
A metodologia direcionou a proposta de pesquisa, bem como os procedimentos metodológicos, de forma a possibilitar a compreensão e explicação deste estudo, contudo sem ser um pesquisador à parte, atuando como mero observador/expectador, mas estabelecendo contato com o objeto a partir de questões conceituais, referenciais teóricos e apreendendo-o de forma crítica, histórica e socialmente (DEMO, 2000).
Este estudo foi embasado sobre uma pesquisa exploratória com o intuito de, segundo Gil (2008) poder proporcionar maior familiaridade com o problema, explicitando-o, podendo envolver levantamento bibliográfico e entrevistas com pessoas experientes no problema pesquisado e muitas vezes assumindo a forma de pesquisa bibliográfica e estudo de caso.
Procurou-se aqui explorar a temática da possibilidade de instrumentalização das manifestações de vontade para comprovar a sociedade de fato nas relações poliafetivas e fornecer informações para investigar de forma mais precisa através de pesquisas bibliográficas, por visar uma maior aproximação com o tema que pode ser construído baseado em hipóteses ou intuições.
Köche (2007) destaca que o principal objetivo da pesquisa exploratória é proporcionar maior familiaridade com o objeto de estudo, pois muitas vezes o pesquisador não dispõe de conhecimento suficiente para formular adequadamente um problema ou elaborar de forma mais precisa uma hipótese. Nesse caso, defende o autor, é preciso que se desencadeie um processo de investigação para identificar a natureza do fenômeno e apontar as características essenciais das variáveis que se quer estudar.
Evidentemente que a produção de dados aqui buscados como um dos objetivos dessa pesquisa possui relação direta com a discussão sobre a os desafios que envolvem a instrumentalização das manifestações de vontade para comprovação da sociedade de fato nas relações poliafetivas, tema maior deste estudo.
3. REFERENCIAL TEÓRICO
3.1 BREVE HISTÓRICO DO DIREITO DE FAMÍLIA
A consolidação e o crescimento do cristianismo, com seu poder de caráter moralizador, socializador e temporal sobre os povos foi um dos pilares que motivou a origem e evolução de uma legislação própria chamada de Direito Canônico. Segundo Venosa (2010, p. 78):
O direito canônico [...] era constituído por normas imperativas, inspiradas na vontade de Deus ou na vontade do monarca. Era constituído por cânones, regras de convivência impostas aos membros da família e sancionadas com penalidades rigorosas. O casamento, segundo os cânones, era a pedra fundamental, ordenado e comandado pelo marido [...].
Mesmo que o Código Civil de 1916 não tenha determinado o instituto da família, tornou dependente a sua condição e legitimação ao casamento civil, sem fazer menção ao casamento religioso, como se pode observar no artigo 229: “Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos” (GOMES, 2012, p. 5). Desta forma, o primeiro efeito jurídico do matrimônio, diante do Código Civil de 1916, era dar legitimação ao núcleo familiar.
O Código Civil anterior, datado de 1916, mostrava o modelo de família que se apresentava no início do século passado, o qual era constituído somente por meio de casamento, única maneira de se constituir uma entidade familiar de maneira aceitável, naquela época. Como havia um caráter patrimonial. Não era aceita a dissolução do matrimônio, devido ao risco de que o patrimônio constituído e adquirido na instância do casamento pudesse ir para terceiros. Desta forma, as famílias que se constituíam sem que houvesse os sagrados laços matrimoniais em sua construção, que, na contemporaneidade, são conhecidas como união estável, não eram regulamentadas pela lei, que expunha a expressão concubinato para conceituar esses vínculos relacionais. Os filhos advindos de tais relações eram tidos como ilegítimos, como forma de punição e exclusão de possibilidades de direitos filiais (GOMES, 2012).
O desenvolvimento gradual pelo qual passou a sociedade e a família acarretou diversas e sucessivas transformações na legislação com o intuito de adequar as leis a cada momento histórico em vigor. Teve origem, então, de maneira bem expressiva, o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62), que foi um movimento de pessoas do sexo feminino, as quais ficaram reduzidas ao estado relativo de incapazes e submetidas, desta maneira, a uma curatela do marido, contra o Código Civil promulgado em 1916, em que a mulher que contraia matrimônio era tida como incapaz do ângulo civil, fato que somente sofreu alteração no ano de 1962, devido a aprovação do Estatuto que igualou os direitos dos cônjuges e deu novamente à mulher casada a plena capacidade, fato que defendeu os bens obtidos com o fruto de sua lide e, também, assegurava a ela o direito à propriedade de maneira exclusiva (GOMES, 2012).
Até no ano de 1977, o divórcio era uma prática inexistente. O instituto comparável a ele era o chamado desquite, que não desfazia a sociedade matrimonial e tornava o novo casamento impossível mediante a justiça. Contudo, mesmo com empecilhos, não houve impedimento para que relações extramatrimoniais se consolidassem, porém, sem o devido amparo legal.
Mesmo havendo a instituição da Lei do Divórcio, no ano de 1977 (Lei 6.515/77 e EC 9/77), como o modelo familiar ainda advinha de uma visão matrimonial, o desquite mudou para separação, passando a vigorar duas maneiras de rompimento de vínculos matrimoniais sagrados: o divórcio e a separação. Como forma de manter a família intacta e unida, eram reclamados prazos extensos ou, até mesmo, o apontamento de um culpado para a realização do processo de separação, pois, assim, a “vítima” teria a oportunidade de intentar uma ação dentro do processo de separação. O cônjuge apontado como culpado pela dissolução matrimonial, não possuía mais direito a alimentos e tinha o sobrenome do cônjuge retirado. Havia também possibilidade de penalidades o cônjuge que queria o rompimento do casamento sem atribuição de responsabilidades (GOMES, 2012).
Segundo Dias (2020), a infidelidade era um dos fundamentos usados para iniciar a ação de separação, pois apontava para uma grave violação dos deveres para cônjuge, dentro do matrimônio, fazendo com que a vida entre o casal não foi suportável mais.
O aparecimento de novos modelos, a modificação da realidade dentro do Brasil, a evolução dos costumes gerou mudanças dentro da estrutura social. Tais mudanças aconteceram devido à promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma renovação acerca do significado de família, segundo observação de sua organização, passando a disciplinar da mesma forma todos os membros, bem como as funções que cada um destes membros exercida. A isonomia familiar, portanto, é um elemento que foi preconizado pela Carta Magna promulgada em 1988, sendo uma das maiores conquistas sociais ocorridas dentro do Direito no território brasileiro.
Como descrevem Farias e Rosenvald (2016), não há qualquer dúvida sobre o fato de que a família, no contexto da história dos argumentos humanos, é o que precede a todos os outros, sendo visto e entendido como fenômeno biológico e também como fenômeno social, fato porque é essencial entendê-lo através de variados ângulos (perspectivas científicas), como se houvesse uma espécie de “paleontologia social”.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu mudanças significativas no conceito de família e no tratamento dado a essa instituição, tida como a base da estrutura social. É possível apontar quatro vertentes principais ditadas pelos artigos 226 e posteriores da Carta Constitucional:
a) ampliação das formas de constituição da família, que antes se circunscrevia ao casamento, acrescendo-se como entidades familiares a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes; b) facilitação da dissolução do casamento pelo divórcio direto após dois anos de separação de fato, e pela conversão da separação judicial em divórcio após um ano; c) igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal, e d) igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-se a todos os mesmos direitos e deveres e sendo vedada qualquer discriminação decorrente de sua origem (COMEL, 2003, p. 90).
A Constituição Federal de 1988 deu proteção igualitária à família que teve sua origem fora do casamento e também àquelas constituídas dentro do regime do matrimônio. A lei consagrou igualdade aos filhos concebidos dentro e fora do casamento, excluindo na totalidade a expressão “filhos ilegítimos”, e firmou a adoção como forma legítima de filiação, dando direitos e qualificações análogas àqueles filhos tidos na concepção biológica.
Os rumos recentes assumidos dentro da área de Direito de família deparavam-se com desafios diferentes e era preciso superar o sistema jurídico clássico e moldar o novo modelo exposto pela Constituição Federal de 1988, na qual a estrutura fundamenta-se no princípio da dignidade humana, da solidariedade. Nessa nova concepção, a família é vista como lócus de igualdade e liberdade, que visa a felicidade dos seus participantes.
Dessa forma, nota-se que a Lei Maior, analisando a vida cotidiana das pessoas e sua vivência, observou a necessidade de um reconhecimento da existência de entidades familiares constituídas fora do casamento. Por isso, a preocupação em alargar o conceito de família que, antes disso, mantinha um distanciamento da realidade social, ligando família somente ao casamento.
A Constituição Federativa do Brasil de 1988 começa a reconhecer tipos de famílias que estão situadas fora do regime do casamento, ou seja, a família passou a ser concebida do ponto de vista social, em que não é possível um conceito único, demonstrando, então, que família e casamento são conceitos e realidades diferentes em cada situação.
Depois da Carta Magna, o Código Civil do ano de 1916 perde a função de estabelecer os fundamentos da família. Entra em cena o Código Civil atual, que entrou em vigor no ano de 2003. Segundo Dias (2016), a família é uma construção de cunho cultural e revela disposição de estruturação psíquica, em que cada membro ocupa um lugar, tendo uma função (função de mãe, filho, pai) sem que, todavia, haja necessidade de ligação biológica. É diante de tal estrutura de família que havia interesse na investigação e preservação do aspecto mais significativo ligado ao termo: O LAR (Lugar de Afeto e Respeito).
O projeto original do Código era de 1975, sendo anterior à lei do divórcio e da própria Constituição. Mesmo assim, o Código de 2002 foi adequado e está sempre em atualização, principalmente, no que se refere aos aspectos familiares e as mudanças acontecidas no século XX. Na visão de Dias (2016), o quadro descrito não manteve firme mediante a revolução industrial, que aumentou a necessidade de contratação de pessoas para trabalhar nas indústrias, em atividades terciárias. Com isto, a mulher ingressou no mercado de trabalho, passando então a ajudar na subsistência familiar.
Logo, a estrutura familiar mudou, tornando-se nuclear, restrita somente ao casal e seus filhos. Findou a supremacia do seu caráter de reprodução. A família começou a deixar o campo e se deslocarem para as cidades, passando a viver em espaços menores. Tal fato aproximou os membros, sendo mais focalizado o vínculo de afeto que envolve os membros da família. Aparece, neste sentido, o conceito de família formada por ligações de afeto, de carinho e amor. A valorização da afetividade deixou de se restringir somente ao momento de celebração matrimonial, podendo perdurar por todo o relacionamento. A resultante disto é que, havendo acabado a afetividade, a base de sustentação familiar está dilacerada e, então, o término e dissolução do vínculo matrimonial é a única maneira de que haja garantia da dignidade da pessoa (DIAS, 2016).
Todo o Direito Civil está embasado na Constituição, fator que entrelaçou as temáticas sociais de forma jurídica de forma relevante e garantindo a todos uma efetividade de grande proporção. Dessa forma, o legislador ampliou o conceito sobre família tendo base na realidade social nova dando juridicidade às relações acontecendo fora do matrimônio. Com isso, o legislador desviou a ideia de família somente através da junção por meio do casamento, apontando o conceito também para o caso de união estável entre pares masculino e feminino. Neste sentido, cabe fazer aqui a distinção entre âmbito normativo e programa normativo. Para Müller (2000, p. 61):
Normas jurídicas não são dependentes do caso, mas referidas a ele, sendo que não constitui problema prioritário se se trata de um caso efetivamente pendente ou de um caso fictício. Uma norma não é carente de interpretação porque e à medida em que ela não “unívoca”, “evidente”, porque e à medida que ela é “destituída de clareza” – mas sobretudo porque ela deve ser aplicada a um caso (real ou fictício). Uma norma no sentido da metódica tradicional (isto é: o teor literal de uma norma) pode parecer “clara” ou mesmo “unívoca” no papel, já o próximo caso prático ao qual ela deve ser aplicada pode fazer que ela se afigure extremamente “destituída de clareza”. Isto se evidencia sempre somente na tentativa efetiva da concretização. Nela não se “aplica” algo pronto e acabado a um conjunto de fatos igualmente compreensível como concluído. O positivismo legalista alegou e continua alegando isso. Mas “a” norma jurídica não está pronta nem “substancialmente” concluída.
Neste sentido, existe todo um processo estrutural a ser seguido até que seja possível chegar ao objetivo central do intérprete, como descreve Müller (2000, p. 61):
Inicialmente caminhamos do texto da norma até a norma jurídica. Em seguida caminhamos da norma jurídica até a norma de decisão, aquela que determina a solução do caso. Apenas então se dá a concretização da norma, ou seja, mediante a produção de uma norma jurídica geral, no quadro da solução de um caso determinado.
Para o supracitado autor, o processo descrito deve ter início a partir do texto da norma, que é o formado por meio da aplicação de todos os recursos inseridos na Hermenêutica e disponíveis. A resultante de interpretação é designada de programa da norma. O segundo estágio provém da consideração de dados reais que são coletados no caso concreto. No momento em que os fatos são tidos como importantes e relevantes para a questão do Direito e há compatibilidade com o programa da norma, tem-se, então, a segunda parte, denominada de âmbito da norma. Quando existe a junção de ambos os estágios é que se obtém o último ponto do processo de interpretação descrito por Muller (2000): a chamada norma de decisão, que efetive a linha de conclusão do raciocínio, fazendo o distanciamento do texto da norma propriamente dita (VICTORINO, 2014).
3.2 CONCEITO DE UNIÃO POLIAFETIVA
Uma união considerada poliafetiva tem ligação com a probabilidade de se reconhecer que um indivíduo tenha condições de amar e de ter relacionamento com mais de uma pessoa, de forma simultânea. Este sujeito não teria vínculo, então, a somente uma pessoa, amando mais de uma, ao mesmo tempo. Na visão do sociólogo finlandês Jin Haritaworn, existe somente uma possibilidade de se amar uma única pessoa ao mesmo tempo. Este mesmo sociólogo finlandês faz uma definição de Poliamor como sendo“[...]a suposição de que é possível, válido e valioso manter relações intimas, sexuais e/ou amorosas com mais do que uma pessoa”. (HARITAWORN apud CARDOSO 2010, p. 10).
Farias e Rosenvald (2016) descrevem poliamor como “muitos amores” e diz respeito a mais de um amor. A palavra tem origem grega e, segundo os autores, seu sentido mais expansivo remete a um modo de vida em que se reconhece a possibilidade de envolvimento, em relações íntimas, com diversas pessoas ao mesmo tempo, tendo todas o mesmo nível de importância.
Cardoso (2010), que atua como professor e também como pesquisador na Universidade Lusófona, situada em Lisboa, Portugal, traz e sua experiência uma relação poliamorosa de longa data, e, com base no que vivenciou e vivencia, escreveu a tese de mestrado “Amando Vári@s: Individualização, Redes, Ética e Poliamor”, que foi terminada no ano de 2010. Quando foi indagado e entrevistado, Cardoso (2010) descreveu que as pessoas enfrentam constrangimentos da contemporaneidade por causa de uma sociedade que se mostra individualizada de maneira que criam sujeitos poliamorosos. O fator do preconceito e discriminação é existente de várias maneiras, pois, uma quantidade considerável de pessoas, segundo o autor, tenta, de alguma maneira, interferir nas relações no momento em que tentam impor um perfil que não é condizente com a realidade.
Segundo Cardoso (2010), um fato ensinado por meio do feminismo é que a questão pessoal é algo político. A luta que se organiza em torno de uma temática de cunho pessoal, ganha também conotação de luta política, como forma de combater a discriminação e que revela a opinião favorável da possibilidade de multiplicidade, para que todos consigam viver, de maneira ética, sem que a pessoa seja alvo de preconceito ou discriminações ocorridas de maneira arbitrária, provenientes de um funcionamento estrutural sexista, hétero, monogâmica e compulsória.
Há diferentes tipologias de relacionamentos poliamorosos, como destaca Oliveira (2003 apud MARQUES, 2015), dentro do polifidelidade, existe o envolve de diversas relações românticas que mantêm contato sexual restrito a pessoas específicas do grupo. Existem os sub-relacionamentos, em que as relações são distinguidas entre “primárias e as “secundárias”, como na maior parte dos matrimônios abertos. Configura-se a poligamia no momento em que um indivíduo se casa com pessoas diversas, as quais podem ou não serem casadas ou manterem relações de vás naturezas com pessoas diversas. Existem as relações mono/poli, que possui a característica de o parceiro ou parceira permitir que o outro mantenha outros relacionamentos. Encontra-se também os chamados acordos geométricos, em que acontece a descrição com a quantidade de pessoas envolvidas e pelas suas conexões. Alguns exemplos são os chamados “trios” ou “quadras”, estruturados de acordo com as geometrias das letras “V” e “N” (MARQUES, 2015).
O conceito do termo poligamia, normalmente, é interligado ao casamento de uma pessoa do sexo masculino com mulheres diversas (poliginia), em contrapartida ao conceito de poliandria (mulher que contrai matrimonio com diversos homens. Por isso, o termo poligamania incita reações contra a subjugação de um sexo por outro. Neste sentido, o Poliamor incita e pressupõe uma igualdade de direitos, não somente no que tange ao sexo, mas entre os sujeitos que fazem parte de tal relacionamento. Um homem pode ter relações com diversas mulheres, mas cada uma delas, também, tem o direito de manter relações com outras pessoas, que, por conseguinte, também usufruem desta mesma liberdade. Desta maneira, cabe a cada um, de forma particular, definir o tipo de relacionamento que pretende vivenciar e não se limitar a modelos tradicionais e enrijecidos, impostos pela sociedade (OLIVEIRA, 2003 apud MARQUES, 2015).
Lins (2013), psicanalista que escreveu O Livro do Amor, menciona um panorama histórico relacionado aos sentimentos desde o período da Pré-História até os dias contemporâneos. A maneira como as pessoas mantinham relacionamentos modificou-se, ao longo do tempo e, segundo a autora, ainda continua se transformando.
A busca pela particularização e individualidade é uma das características da época atual, pois, não se tem evidências de um tempo, como a da atualidade, em que homens e mulheres buscaram aventurar-se para dentro de si, pois cada ser pretende saber quais são as possibilidades que possuem para o desenvolvimento de seu potencial. É um tipo de amor no qual a proposta é a fusão de duas pessoas, algo que não é muito atrativo e sedutor. O amor romantizado começa a perder o enfoque, levando consigo a sua característica essencial: o fato da exclusividade como premissa para que o relacionamento seja validado. Sem o ideal de que é imprescindível encontrar uma pessoa que consiga lhe completar, é aberto um espaço para formas inovadoras de relacionamento amoroso, com a chance de que se possa amar e manter relacionamento sexual com mais de uma pessoa, ao mesmo tempo (LINS, 2013).
Um dos pressupostos que mais são aceitos de maneira universal pela sociedade é de que o casal que tem um relacionamento monogâmico representa a estrutura que é mais aceitável em se tratando de relacionamento sexual humano. As sociedades, as quais concordam e adotam ao relacionamento monogâmico apresentam dificuldades para provar que esta estrutura funciona perfeitamente (LINS, 2013). Em muitos casos, nota-se evidências, segundo Lins (2013), de relações extraconjugais por casais, fato que mostra a imperfeição do modelo monogâmico.
Inclusive, como destaca Dias (2020), o Estado tem como crime a bigamia e a lei prescreve que o segundo casamento é nulo, caso aconteça e também é possível anular a doação feita pelo adúltero a seu cumplice, como descreve o Código Civil, no art. 550.
Os relacionamentos apontados como poliamor, onde se denota relações entre mais de dois sujeitos, têm requerido, dentro da lei, serem reconhecidos, pois, mesmo que haja impedimento legal para contrair matrimônio, elas vêm se formalizado, a cada dia mais (DIAS, 2020).
3.3 A RELAÇÃO DE POLIAFETIVIDADE ENTENDIDA COMO FAMÍLIA ENSEJANDO A POSSIBILIDADE DO SEU RECONHECIMENTO JURÍDICO
Nenhuma família se inicia, ou deveria iniciar-se, com o pensamento voltado aos seus efeitos patrimoniais, uma vez tratar-se de uma realidade inconteste. Cedo ou tarde ela se esbarra em direitos imobiliários, previdenciários, planos de saúde e Receita Federal, dentre outros. Na visão de Madaleno (2015) a sociedade conjugal não tem personalidade própria frente aos cônjuges nem frente a terceiros e todos os conflitos se resolvem reconhecendo direitos e atribuindo obrigações a cada um dos cônjuges ou conviventes.
Para Cardoso (2011) a sociedade conjugal pode ser compreendida como uma espécie de sociedade civil, desprovida de personalidade jurídica, cuja natureza jurídica se reveste de preceitos contratuais que se misturam com regras institucionais e outras características existentes apenas na família, devendo ser identificada como um negócio jurídico familiar. Dessa forma, destaca a autora, os membros de toda entidade familiar arcam com responsabilidades próprias de uma sociedade e assumem obrigações com credores, enfrentando as mais diversas despesas na manutenção do imóvel aonde convivem, com eventual prole e na aquisição dos mais diversos bens.
No geral, entende Pereira (2012), a informalidade das uniões livres leva as partes a não procederem aos registros formais daquilo que tacitamente fazem: comunhão de vida e de interesses. A vida e o esforço comum acarretam propósitos de cooperação. Estabelece-se então uma sociedade conjugal de fato, que vai se constituindo pouco a pouco, nascido do fato, ou por ele criado, ao contrário do casamento civil, cujas regras e consequências são predeterminadas.
O tema é polêmico e dividido na doutrina. Rosalino (2012), por exemplo, entende eventual (e remota) possibilidade de subsistência da declaração de vontade manifestada pelas partes nas já lavradas escrituras públicas de união poliafetiva, teremos, no máximo, o reconhecimento de uma sociedade de fato (ou sociedade em comum), cujos efeitos restringem-se aos aspectos patrimoniais, sem quaisquer reflexos no âmbito sucessório, previdenciário, alimentar, ou familiar, sendo eventuais conflitos dirimidos pelo juízo cível, em conformidade com o direito obrigacional.
Mas, outrossim, não existe unanimidade no tange à discussão jurídica e existe o entendimento de que as uniões de caráter poliafetivo, em que relacionamentos ocorrem de forma simultânea tem sido frequentes no cenário fático do Direito de Família, com arranjos diversos e inusitados, entre eles o que uma pessoa canaliza seu afeto para dois ou mais outros indivíduos, originando, assim, núcleos diferenciados e concomitantes, que, por muitas vezes, colidem no que se refere aos interesses em que todos são merecedores de proteção do Estado (BRASIL, 2010).
Tepedino (2017) destaca que é urgente a conclamação e aclamação, dentro das leis, sobre a igualdade acerca do tratamento dos modelos familiares diversos não se efetive como desconhecimento das individualidades e particularidades de cada caso e arranjo afetivo, em que a autonomia da existência precisa ser feita para que a solidariedade nas famílias, que se revela nos deveres leais, respeito e assistência mútua e recíproca, não ocorra de maneira deturpada, entendida de maneira não devida como sucessão obrigatória nos bens dos conviventes, mesmo que seja contra o seu desejo.
Nessa mesma linha de discussão estão os casais poliafetivos ainda sem ter reconhecido o direito ao matrimônio institucionalizado, mas que efetivamente participam de verdadeira comunhão de direitos e obrigações.
3.4 REGIME DE BENS
Sob essa ótica Tartuce (2016) ensina que o regime matrimonial de bens pode ser conceituado como o conjunto de regras relacionadas aos interesses patrimoniais ou econômicos resultantes da entidade familiar, sendo suas normas, em regra, de ordem privada.
Mesmo não havendo matrimônio poliafetivo aplica-se o conceito às uniões estáveis e, consequentemente, às uniões poliafetivas. São regras dispostas no Código Civil de 2002 a partir do art. 1.639 e que servirão de subsídio ao julgador quando enfrentar casos práticos envolvendo casais em poliamor. Além disso, também deverão ser levadas em consideração as disposições patrimoniais expressas em eventuais escrituras públicas declaratórias firmadas entre as partes no exercício de sua autonomia privada (TARTUCE, 2016; p.129).
Há que se ressaltar que todas as regras a respeito desse tratamento patrimonial, preceitos relacionados com o pacto antenupcial, bem como regras especiais quanto aos quatro regimes previstos: comunhão parcial (arts. 1.658 a 1.666), comunhão universal (arts. 1.667 a 1.671), participação final nos aquestos (arts. 1.672 a 1.686) e separação de bens (arts. 1.687 e 1.688) incidem nas uniões poliafetivas, sem qualquer distinção, apenas adaptando a interpretação quanto ao número de pessoas participantes desta sociedade conjugal.
Nesse sentido já decidiram os tribunais pátrios em relação a famílias paralelas, devendo-se agora estender a interpretação às famílias poliafetivas, através de diversas decisões analisadas que observam o fato do reconhecimento da união estável exigir demonstração de convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família, bem como que inexistam impedimentos à constituição dessa relação (PEREIRA, 2004).
No entanto, em um dos casos analisados, o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a apelante por mais de 15 (quinze) anos, o que caracteriza a família paralela, fenômeno de frequência significativa na realidade brasileira. O não reconhecimento de seus efeitos jurídicos traz como consequências severas injustiças, pois, nas palavras do Desembargador Marcelo Carvalho Silva, se o nosso Código Civil optou por desconhecer uma realidade que se apresenta reiteradamente, a justiça precisa ter sensibilidade suficiente para encontrar uma resposta satisfatória a quem clama por sua intervenção (BRASIL, 2015).
As famílias paralelas estão presentes em todas as regiões do país, mas em alguns Tribunais não se encontrou nenhuma decisão favorável à formação das famílias paralelas ou simultâneas. Reconhece-se a sua existência, mas nega-se efeitos às mesmas, com fulcro em um alegado princípio da monogamia, uma segunda corrente que defende não poder ser reconhecida a união estável paralela a um casamento, uma vez que o direito matrimonial estaria regido pelo princípio da monogamia, segundo voto da Des. Liselena Schifino Robles Ribeiro Relatora da Apelação Cível nº 70070532478 da Sétima Câmara Cível do Rio Grande do Sul (BRASIL, 2016).
Nesta ótica, o direito de família não albergaria nenhuma relação paralela e eventuais reclamações judiciais devem ser exclusivamente tratadas nas varas cíveis, regidas pelas normas do direito obrigacional.
No entanto, alguns desembargadores apresentam-se mais sensíveis à realidade dos fatos apresentados do que propriamente a um não escrito princípio da monogamia, como, por exemplo, a Desembargadora Ivanise Maria Tratz Martins do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que reconheceu a existência de duas relações estáveis concomitantes e paralelas. Situação que era de ciência de todas as partes e era aceita por todos, inclusive por ambas as mulheres. No caso apresentado, uma das companheiras chegou a reconhecer, na certidão de óbito, que o de cujus convivia maritalmente com ela (declarante) e com a ora embargada nos autos (BRASIL, 2016).
Percebe-se nessas situações de reconhecimento de uniões paralelas, que o ordenamento jurídico tem se posto a favor da aplicação do regime da comunhão parcial de bens e a divisão proporcional ao número de integrantes da relação afetiva, ensejando ser essa a solução mais justa e aplicável em relação ao patrimônio advindo de uma família poliafetiva.
3.5 O AMPARO SOCIAL E PREVIDENCIÁRIO
No campo dos benefícios sociais e direitos previdenciários Coelho (2012) destaca que nos dias de hoje os tribunais, ao concederem o rateio da pensão por morte entre a viúva e a concubina, na maioria das vezes, optam pelas concubinas ditas de boa-fé, aquelas que desconhecem a outra relação de seu companheiro.
Em alguns casos mostra-se evidente que o homem enganou as duas mulheres, mantendo uma vida dupla por um longo período. Também há casos em que o homem, por muitos anos, mantém duas mulheres, em cidades distintas ou não, com o conhecimento e aceitação delas, sem que exista em ambas o sentimento de infidelidade. Nesse caso, seria injusto que favorecesse uma relação em detrimento de outra, por esse motivo, concede-se o rateio da pensão entre as duas mulheres (COELHO, 2012; p.11).
Nessa linha de raciocínio, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, num pedido de apelação, através do Desembargador João Batista Pinto Silveira, declarou que o reconhecimento de direitos previdenciários decorrentes de concubinato impuro depende de uma série de requisitos que demonstrem cabalmente a existência de dois relacionamentos (casamento e concubinato) que em praticamente tudo se assemelhem, faltando ao segundo tão somente o reconhecimento formal (BRASIL, 2010).
Deve ser levado o efetivo "ânimo" de constituição de uma unidade familiar para fins de proteção mútua e estatal, com suas respectivas variáveis, tais como eventual dependência econômica, tempo de duração da união, existência de filhos, etc. Do contrário, entendem os Tribunais que deve prevalecer o interesse da família legalmente constituída (BRASIL, 2010).
Várias decisões foram encontradas nessa linha no Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. PENSÃO MILITAR. COMPANHEIRA. DUAS UNIÕES ESTÁVEIS. COMPROVAÇÃO. Tenho que deve ser afastada a alegada impossibilidade de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes, quando gritantes os fatos em contrário, como no caso concreto. Não creio que a quebra do dever de lealdade ou o primado do princípio monogâmico sejam obstáculo a que se faça justiça, em nome de uma eticidade que se mostra cambiante dia a dia. Destarte, tanto Maria Luiza como Zaira devem dividir a quota disponível da pensão deixada por José, em partes iguais. Havendo dependente legal do militar, cabe determinar que a pensão para as conviventes seja estabelecida, no momento, no percentual de 50% do valor da pensão instituída pelo ex-militar, permanecendo a outra cota de 50% do valor da pensão reservada até o trâmite do procedimento administrativo, sob pena de configurar enriquecimento sem causa e o pagamento em duplicidade do amparo (BRASIL, 2016).
Percebe-se que a hermenêutica jurídica tem se inclinado a uma interpretação menos fixada na literalidade da lei, não sendo correto compreender as leis referentes às pensões militares de forma desarmônica aos princípios regidos pela Constituição Federal. Óbvio que a esse respeito, nem todos os julgadores comungam da mesma linha de pensamento, momento em que vemos os que preferem proteger a esposa traída, mesmo que com seu consentimento, durante longos anos, beneficiando-a em detrimento da concubina.
Sobre essa vereda está pautada a atual jurisprudência do STJ por entender que as relações de concomitância, isto é, onde há simultânea relação matrimonial e de concubinato, por não se amoldarem ao modelo estabelecido pela legislação previdenciária, nem pela Constituição Federal, não são capazes de ensejar união estável. Essa corrente de pensamento defende que a coexistência do casamento constitui elemento que impossibilita o reconhecimento da relação mantida entre um homem e sua companheira, uma vez que não há demonstração do rompimento do vínculo matrimonial com a esposa (BRASIL, 2011).
Em outro caso analisado, seguindo precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o Relator Celso Kipper afirma que se reconhece a companheira de homem (a) casado, separado de fato ou de direito, (b) divorciado ou (c) viúvo, o direito à percepção de benefícios previdenciários decorrentes de seu falecimento, concorrendo com a esposa, ou até mesmo a excluindo da participação. Mas que a autora, tendo convivido com homem casado, sem que este estivesse separado de direito ou de fato da esposa, não pode ser considerada companheira, mas simples concubina, não possuindo, portanto, a condição de dependente previdenciária a ensejar a concessão do benefício previdenciário de pensão por morte do segurado (BRASIL, 2011).
Os julgados apresentados tratam especificamente das famílias paralelas. Nas pesquisas realizadas não se encontrou nenhum julgado específico envolvendo famílias poliafetivas, razão pela qual não foram abordadas decisões neste sentido. Mas, por inferência, entende-se que deverá prevalecer a afetividade e a situação fática apresentada aos juízes pátrios, no caso concreto. Restando demonstrado relacionamento duradouro, estável e contínuo entre mais de duas pessoas, revestido de todos os requisitos que caracterizam uma união estável constitucionalmente protegida, impõe-se, por questão de justiça, na concessão do rateio do benefício previdenciário eventualmente pleiteado.
3.6 DA RUPTURA
Sendo verdade que a jurisprudência já negou efeito jurídico às uniões livres, é certo que, em reparação dessa injustiça, afiguram-se duas soluções, em seu benefício: atribuir à companheira, que prestou, por muito tempo, serviços domésticos ao concubino, direito a salários; e conferir participação no patrimônio adquirido pelo esforço comum, pela sociedade de fato entre eles, que redundou na Súmula 380 do STF, baseada em vários julgados, de 1946 a 1963, que comprovam a existência de sociedade de fato entre os concubinos, sendo cabível sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum (AZEVEDO, 2011).
Desde o século passado muito se avançou em direito de família e atualmente não se sustenta mais a necessidade de a companheira comprovar sua efetiva contribuição para a formação do patrimônio comum – e ainda não há de sustentar-se esta teoria em famílias poliafetivas.
Soam absurdas as palavras de Wald (2000) quando analisadas à luz da jurisprudência sobre a concubina ao afirmar que o Min. Orosimbo Nonato, em seu voto teria esclarecido que “[...] é evidente que a qualidade só de amásia, a convivência more uxório, não basta a atribuir à mulher qualidade de sócia ou meeira. Ela pode ser apenas amásia, como pode ser, ainda, serviçal ou sócia (RF CIX/415)”.
Partindo-se do pressuposto de que não há registros de casamentos poliafetivos no Brasil, e considerando a existência já documentada de pelo menos 10 escrituras públicas declaratórias de união poliafetiva, o assunto é abordado tendo como foco a ruptura da união estável poliafetiva.
Para Pereira (2012) a solução juridicamente mais adequada para as questões pessoais e patrimoniais decorrentes do fim de uma entidade familiar poliafetiva é o enquadramento deste tipo de relação como espécie do gênero união estável. A dissolução pode ser amigável ou litigiosa.
Madaleno (2015) entende que a dissolução amigável pode ser exteriorizada em instrumento público ou particular, no qual os companheiros, para prevenir o litígio, definam o que consentiram acerca do eventual pagamento de alimentos, da guarda dos filhos e respectivo direito de convivência, da partilha dos bens comuns.
Para Azevedo (2011) havendo filhos menores ou incapazes esta dissolução, mesmo que amigável deverá necessariamente, ser processada perante uma das Varas de Família, com a presença obrigatória do Ministério Público. Neste caso, além do pedido de dissolução deverá haver pedido de declaração incidental da existência da relação jurídica de união estável poliafetiva.
Enfim, registra Cardoso (2011), as escrituras públicas declaratórias de poliafetividade, apesar de não constituírem nenhum matrimônio, possuem eficácia de manifestação livre de vontade entre as partes e poderão ser utilizadas em eventual processo judicial litigioso.
4. CONCLUSÃO
O conceito, noção e padrões sobre a instituição familiar, dentro do cenário brasileiro e mundial, tem sofrido alterações onde a família no modelo tradicional (pai, mãe, filhos), convive com outros núcleos familiares diferenciados.
Um dos núcleos familiares é formado por meio do chamado poliamor, no qual existe um relacionamento entre três ou mais pessoas que, de forma voluntária, sabem da existência um do outro, consentem e querem constituir uma família mesmo assim, pautando-se em regras de convivência de forma duradoura que são acordadas entre os sujeitos envolvidos, com diversidade consentida de relações e vínculos afetivos (havendo ou não relações sexuais), relações estas que são ancoradas no respeito, diálogo e amparo mútuo.
O grupo familiar que se instaura dentro do modelo do poliamor tem seus alicerces na igualdade, autonomia de vontade e na liberdade. As relações poliafetivas, como visto no artigo, podem acontecer de forma aberta (quando existe possibilidade de concretização de relacionamento com pessoas que não façam parte do grupo de relações), fechado (quando o relacionamento é restrito a um grupo, tomando como base a polifidelidade) ou mono/poli (quando somente um dos cônjuges é aberto ao poliamor, mas pode aderir ao modelo com o consentimento do outro cônjuge).
As relações fundamentadas no modelo do poliamor tem suas bases no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da Carta Magna de 1988), direito da inviolabilidade quanto à intimidade, a vida privada, honra e imagem das pessoas envolvidas, fato presente no art. 5º, X, da Carta Magna de 1988, da família como a base da sociedade e instituição tutelada pelo Estado, elemento presente no art. 226 da Carta Magna de 1988, que revela um rol explicativo do papel da família dentro do desenvolvimento do direito da personalidade.
A evolução da sociedade e da humanidade mostra e ainda revelará muitas e diversificadas maneiras de as pessoas expressarem seus sentimentos e de se relacionarem, na busca pela felicidade. Logo, não cabe à justiça e, nem mesmo, ao Estado Democrático de Direito, que luta pela dignidade humana, pela igualdade material e liberdade, negar os efeitos jurídicos aos relacionamentos que se constituem para formação de uma entidade familiar que seja permanente, pública e duradoura, revelando respeito entre seus membros e que tenha como centralidade a afetividade.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 184.
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 914559-5/02, Rel. Desembargadora Ivanise Maria Tratz Martins, 12ª Câmara Cível em Composição Integral, julgado em 05/08/2016, DJe 18/08/2016.
________. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 1157273/RN, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, publ. 7- 6-2010.
________. Tribunal de Justiça do Maranhão. Ap 0000632015, Rel. Desembargador(a) MARCELO CARVALHO SILVA, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, julgado em 02/06/2015, D.E. 12/06/2015.
________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70070532478, Sétima Câmara Cível, Relator: Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 31/08/2016.
________. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AC 0000777-12.2006.404.7118, SEXTA TURMA, Relator Luís Alberto D'azevedo Aurvalle, D.E. 05/05/2011.
________. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. APELREEX 0039568-41.2005.404.7100, SEXTA TURMA, Relator para Acórdão João Batista Pinto Silveira, D.E. 17/09/2010.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EVA JUDITH COUTINHO DOS SANTOS PACíFICO, . A possibilidade de instrumentalizar as manifestações de vontade para comprovar a sociedade de fato nas relações poliafetivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 set 2020, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55212/a-possibilidade-de-instrumentalizar-as-manifestaes-de-vontade-para-comprovar-a-sociedade-de-fato-nas-relaes-poliafetivas. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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