RESUMO: A Constituição Federal de 1998, no artigo 114, inciso II, define como sendo da Justiça do Trabalho a competência para apreciar os casos que envolvam o exercício do direito de greve. É sabido que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionalidade da norma estampada no art. 114, I, da CF/88, no julgamento da ADI nº 3.395, afastou a competência da Justiça Laboral para apreciar as ações propostas entre servidores públicos estatutários e o Poder Público, mas manteve a competência da Justiça trabalhista para os casos que envolvam empregados públicos celetistas. Em se tratando da greve, entretanto, o STF, no julgamento do RE 846854, definiu tese de repercussão geral no sentido de que a competência é da Justiça comum, mesmo nos casos dos empregados públicos celetistas. A referida tese é contrária àquela fixada quando da interpretação do inciso I do art. 114 da CF/88. Ao que parece, deu-se ao julgamento tese mais ampla do que se deveria, de forma que caso a interpretação não seja feita de forma restrita haverá afronta à norma do art. 114, II, da CF/88 e à própria jurisprudência do STF, de acordo com a qual as causas instauradas entre os empregados públicos e a Administração devem ser julgadas pela Justiça do Trabalho. É esse, portanto, o objeto do presente trabalho: um estudo acerca da interpretação que deve ser dada à tese fixada no julgamento do RE 846854.
Palavras-chave: Empregado publico celetista; Greve; Competência; Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: The Federal Constitution of 1998, in article 114, item II, defines as being of the Labor Justice the competence to assess the cases that involve the exercise of the right to strike. It is well known that the Federal Supreme Court, when assessing the constitutionality of the rule stamped in art. 114, I of the CF / 88, in the ADI judgment No. 3,395, dismissed the competence of the Labor Court to assess the actions proposed between statutory public servants and the Public Power, but maintained the competence of Labor Justice for cases that involve public employees. Regarding the strike, however, the Federal Supreme Court, in the judgment of RE 846854, defined a thesis of general repercussion in the sense that competence is common justice, even in the cases of civil servants. This thesis is contrary to that established when the interpretation of item I of article 114 of the Federal Constitution. It seems that the thesis was given more broadly than it should, so that if the interpretation is not done in a restricted way there will be an affront to the norm of article 114, II of the Federal Constitution and to the Supreme Court case law itself, according to which the cases filed between public employees and the Administration must be judged by the Labor Court. This is, therefore, the object of the present work: a study about the interpretation that must be given to the thesis established in the judgment of RE 846854.
Keywords: Public employee; Strike; Competence; Federal Supreme Court.
Sumário: 1. Introdução. 2. Regime Jurídico dos Servidores Públicos. 3. Competência judiciária no âmbito do regime estatutário e do regime celetista. 4. Competência judiciária nos casos de greve dos servidores públicos. 5. Conclusão. 6. Referências
1.INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, no artigo 114, estabelece como sendo de competência da Justiça do Trabalho o processamento e o julgamento das ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como das ações que envolvam exercício do direito de greve, dentre outras matérias disciplinadas ao longo dos incisos do referido dispositivo constitucional.
Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.395, o Supremo Tribunal Federal definiu que a Justiça do Trabalho é incompetente para julgar as ações envolvendo servidores públicos estatutários, de forma que a competência prevista no artigo 114 da CF/88 só incide sobre as relações trabalhistas existentes no âmbito da Administração Pública, as quais devem ser regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.
De acordo com o referido entendimento, portanto, a competência da Justiça do Trabalho, no âmbito da Administração Pública, deve ser compreendida como aquela que abarca as relações regidas pela CLT, de forma que, com relação aos servidores estatutários, a competência pertence à Justiça Comum (Federal ou Estadual, a depender do ente público). Ressalta-se, inclusive, o entendimento jurisprudencial no sentido de que as causas relacionadas aos servidores públicos temporários também devem ser submetidas à Justiça Comum, uma vez que o referido vínculo é disciplinado por legislação especial, e não pela Consolidação das Leis do Trabalho.
Nessa esteira, a partir de uma interpretação sistemática do art. 114 da Constituição Federal, poder-se-ia concluir que, com relação às ações que envolvam o direito de greve, o critério para definição de competência entre a Justiça Trabalhista e a Justiça Comum seria o mesmo: a norma que rege a relação entre o trabalhador e a Administração Pública. Isto é, em se tratando de vínculo regido pela CLT, a competência seria da Justiça Laboral, por outro lado, nos casos de relação regida por lei especial (servidores estatutários e/ou temporários), a competência seria da Justiça Comum.
Ocorre, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, em 25 de maio de 2017, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 846854, fincou tese de repercussão geral no sentido de que a matéria atinente à abusividade de greve de servidor público celetista compete à Justiça comum, e não à Justiça do Trabalho. No caso paradigma, analisou-se a abusividade da greve decretada por guardas municipais cujo vínculo com a Administração era regido pela CLT.
É sobre a referida decisão que recai a análise do presente estudo. A partir de uma análise da natureza jurídica da relação existente entre os agentes públicos e a administração (estatutário x celetista), busca-se definir a competência para a apreciação das causas judiciais, à luz do artigo 114 da Constituição Federal e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Conforme se busca demonstrar, o entendimento exposto no RE nº 846854, Tema de Repercussão Geral nº 544, deve ser interpretado com cautela, a fim de que seja restrito para relações celetistas específicas, como é o caso dos guardas municipais, e não tenha aplicação ampla ao ponto de submeter à Justiça Comum todas as causas decorrentes do exercício do direito de greve por parte dos empregados públicos celetistas.
O fundamento para tanto, conforme restará exposto, está na norma do art. 114 da Constituição Federal e na jurisprudência da própria Corte Suprema, que dita ser da Justiça Laboral a competência para tratar das causas relacionadas aos servidores públicos celetistas.
Busca-se demonstrar, assim, que a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, no RE nº 846854, se não interpretada com ressalvas, esbarra na Constituição e na jurisprudência do próprio tribunal.
2. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS
De acordo com a redação vigente do caput do art. 39 da Constituição Federal de 1988, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. É necessário esclarecer, entretanto, que a referida regra foi objeto da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que buscou extinguir o regime único, possibilitando aos entes federativos manter regime jurídico misto nas relações com os servidores, sendo possível a adoção do regime estatutário e celetista. Por meio da ADI nº 2.135/DF, contudo, o STF suspendeu a vigência da redação dada pela EC nº 19/98, e restaurou a obrigatoriedade do regime único.
Sobre o tema, esclarece Maria Sylvia[1]:
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADIn 2.135/CF, decidiu, em sessão plenária do dia 2-8-07, suspender a vigência do art. 39, caput, da Constituição Federal, em sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98. Em decorrência dessa decisão, volta a aplicar-se a redação original do artigo 39, que exige regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da Administração Pública Direta, autarquias e fundações públicas.
(...) A Ministra Ellen Grace, ao proclamar o resultado do julgamento, esclareceu que a decisão tem efeito ex nunc, vigorando a partir da data da decisão (2-8-07). Voltam, portanto, a ter aplicação as normas legais que dispunham sobre regime jurídico único, editadas na vigência da redação original do artigo 39, sendo respeitadas as situações consolidadas na vigência da redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98, até o julgamento do mérito.
Assim, tem-se, atualmente, a obrigatoriedade da adoção do regime jurídico único, havendo, entretanto, a consolidação dos casos de regime misto que ocorreram na vigência da redação dada ao art. 39 da CF/88 pela Emenda Constitucional nº 19/98.
Na União, atualmente, a Lei 8.112, de 1990, estabelece o regime estatutário como regime jurídico único para os servidores da administração direta, autarquias e fundações públicas.
Por outro lado, no ano de 2000, ainda sob a vigência da redação dada ao art. 39 da CF pela EC 19/98, foi aprovada a Lei nº 9.962, de 22 de fevereiro de 2000, que disciplinou o regime de emprego público do pessoal da Administração federal direta, autárquica e fundacional. Nos termos do art. 1º da predita Lei, a relação dos empregados públicos federais será regida pela Consolidação das Leis do Trabalho e legislação trabalhista correlata, naquilo em que não for contrário ao estabelecido na referida Lei.
Cumpre ressaltar que a Lei nº 9.962/00 tem aplicação restrita no âmbito federal, de forma que os estados e municípios se encontram vinculados unicamente à CLT, haja vista a competência para legislar sobre direito do trabalho ser exclusiva da União.
Ante o exposto, verifica-se que podemos encontrar dois regimes jurídicos regendo as relações de pessoal da administração pública: o celetista e o estatutário. As peculiaridades desses regimes jurídicos não são exclusivas quanto às regras de direito material, havendo clara distinção na competência para dirimir os conflitos judiciais decorrentes do vínculo existente entre o servidor/empregado público e o Poder Público.
3. COMPETÊNCIA JUDICIÁRIO NO ÂMBITO DO REGIME ESTATUÁRIO E DO REGIME CELETISTA
Nos termos do artigo 114, inciso I, da CF/88, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Conforme destacado no início do presente estudo, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.395, o Plenário de Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionalidade da norma do dispositivo acima citado, pacificou o entendimento de que a competência para apreciar as causas judiciais que tenham por objeto direitos inerentes à relação existente entre o Poder Público e os seus servidores estatutários é da Justiça comum, e não da Justiça do Trabalho.
Com efeito, conforme o voto do Ministro Relator, entendeu-se que o vínculo jurídico de natureza estatutária é distinto do conceito de relação de trabalho, pelas seguintes razões:
A decisão foi que a Constituição da República não autoriza conferir à expressão relação de trabalho alcance capaz de abranger o liame de natureza estatutária que vincula o Poder Público e seus servidores. Daí, ter-se afirmado a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar litígio entre ambos.
Ora, ao atribuir à Justiça do Trabalho competência para apreciar “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, o art. 114, inc. I, da Constituição, não incluiu, em seu âmbito material de validade, as relações de natureza jurídico-administrativa dos servidores públicos.
Logo, é pertinente a interpretação conforme à Constituição, emprestada pela decisão liminar, diante do caráter polissêmico da norma.[2]
O julgamento da mencionada ADI contou com o a seguinte ementa, bastante elucidativa:
EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária.
(ADI 3395 MC, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 05/04/2006, DJ 10-11-2006 PP-00049 EMENT VOL-02255-02 PP-00274 RDECTRAB v. 14, n. 150, 2007, p. 114-134 RDECTRAB v. 14, n. 152, 2007, p. 226-245)
Verifica-se, assim, que o fundamento utilizado para definir a incompetência da Justiça do Trabalho para apreciar as causas instauradas entre os servidores públicos estatutários e a Administração foi a compreensão de que esta não se caracteriza como uma relação de emprego, uma vez que a própria Constituição, em diversas normas, distingue os direitos e obrigações dos servidores públicos (art. 37) daqueles inerentes aos trabalhadores celetistas (art. 7º).
Mais recentemente, no ano de 2013, a referida jurisprudência foi reafirmada pela Corte Suprema, no julgamento do Conflito Negativo de Competência nº 7231, quando restou definida a competência da Justiça Comum estadual do Amazonas para julgar demanda instaurada entre o Estado do Amazonas e servidor público estadual regido por regime especial administrativo. Nesse sentido:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL E TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. SERVIDOR PÚBLICO. REGIME ESPECIAL ADMINISTRATIVO INSTITUÍDO PELA LEI Nº 1.674/84, DO ESTADO DO AMAZONAS, COM FUNDAMENTO NO ART. 106 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 01/69. AÇÕES QUE NÃO SE REPUTAM ORIUNDAS DE RELAÇÃO DE TRABALHO. REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO. NATUREZA JURÍDICA IMUTÁVEL. AFRONTA AO QUE DECIDIDO NA ADI 3.395/MC. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 114, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, INTRODUZIDO PELA EC Nº 45/2004. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA DIRIMIR CONFLITOS ENTRE SERVIDORES PÚBLICOS E ENTES DA ADMINISTRAÇÃO AOS QUAIS ESTÃO VINCULADOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. Esta Corte, ao julgar hipóteses análogas à presente em que se tratava de servidor público estadual regido por regime especial administrativo disciplinado por lei local editada com fundamento no artigo 106 da Emenda Constitucional nº 1/69, firmou o entendimento de que a competência para julgar as questões relativas a essa relação jurídica é da Justiça Comum Estadual e não da Justiça especializada. Precedentes do Plenário: CC 7.201, Relator Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Min. Ricardo Lewandowski, DJe 12.12.2008; RE 573.202, Relator Min. Ricardo Lewandowski, Dje 05.12.2008; RE 367.638/AM, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 28.03.2003. 2. No julgamento da ADI nº 3.395, o Supremo Tribunal Federal, em sede cautelar, determinou a suspensão de toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do artigo 114 da Constituição Federal que inclua na competência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores, sejam eles de natureza estatutária ou contrato administrativo. Precedentes do Plenário: Rcl 7.157 Agr/MG, Relator Min. Dias Toffoli, DJe 19.03.2012; Rcl 6.568, Relator Min. Eros Grau, Dje 25.09.2009; Rcl 4.872, Relator Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Min. Menezes Direito, DJe 06.11.2008. 3. In casu, a reclamação trabalhista tem como base a Lei Estadual nº 1.674/84, que disciplinou o regime jurídico administrativo especial dos servidores admitidos em caráter temporário, de sorte que resta inequívoca, com base na ampla e pacífica jurisprudência desta Corte, a competência da Justiça Comum Estadual para o julgamento do caso sub examine. 4. Agravo regimental a que se dá provimento para declarar a Justiça Estadual Comum – no caso, o Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública do Estado do Amazonas - competente para processar e julgar o feito.
(CC 7231 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24/04/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 27-03-2014 PUBLIC 28-03-2014)[3]
Por outro lado, também foi reafirmada a competência da Justiça do Trabalho para apreciar os conflitos existente entre o Poder Público e os empregados públicos cujo vínculo se caracteriza como uma relação de emprego, e cujos contratos de trabalho são regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, conforme se verifica da emenda do julgamento do ARE 911957/DF[4]:
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO DO TRABALHO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. EMPREGADO PÚBLICO. CONTRATO DE TRABALHO ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO FEDERAL/1988. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. TEMA 853. DEPÓSITOS DO FGTS. SÚMULA 279/STF. 1. O Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o ARE 906.491-RG, sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional em análise e reafirmou a jurisprudência da Corte sobre a questão, a fim de reconhecer a “Competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar reclamação trabalhista, fundada em contrato de trabalho regido pela CLT, na qual figura o Poder Público no polo passivo”. 2. Quanto à controvérsia relativa aos depósitos do FGTS, incide a Súmula 279/STF. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(ARE 911957 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 24/11/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 14-12-2015 PUBLIC 15-12-2015)
Tem-se, então, o seguinte parâmetro para a definição da Justiça competente para apreciar as causas instauradas entre a Administração e os seus agentes: se o vínculo se caracterizar como uma relação de emprego, sendo regido pela CLT, a competência será da Justiça Trabalhista, por outro lado, caso o vínculo seja regido por norma estatutária, que afasta a incidência das normas da CLT, caracterizando-se como um regime jurídico-administrativo, a competência será da Justiça Comum. Esse é o entendimento que consta do julgamento do Agravo Regimental na Reclamação nº 24844/ES[5]:
GRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. VÍNCULO DE NATUREZA JURÍDICO-ADMINISTRATIVA. OFENSA À ADI 3.395-MC. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A fixação da competência da Justiça Comum ou da Justiça do Trabalho, em casos envolvendo o Poder Público, demanda a análise da natureza do vínculo jurídico existente entre o trabalhador - termo aqui tomado em sua acepção ampla - e o órgão patronal. 2. In casu, trata-se de demanda entre o poder público e servidores temporários submetidos a regime jurídico administrativo, adequando-se, portanto, à hipótese tratada nos autos da ADI 3.395. 3. Agravo regimental desprovido.
(Rcl 24844 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 25/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 12-05-2017 PUBLIC 15-05-2017)
Pois bem. Uma vez esclarecido o referido parâmetro como fator decisivo para a definição da competência da Justiça do Trabalho e/ou da Justiça comum, cumpre adentrar na análise da jurisprudência do STF no que tange ao exercício do direito de greve.
4. COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA NOS CASOS DE GREVE DOS EMPREGADOS PÚBLICOS CELETISTAS
Embora a possibilidade de greve dos servidores estatutários tenha sido controversa por um tempo, atualmente o tema é pacífico, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Injunção nº 708, definiu que a Lei de Greve do setor privado (Lei nº 7.783/1989) deve ser aplicável aos servidores públicos, até que o Poder Legislativo regulamente o exercício do direito de greve no âmbito da Administração Pública. Assim, tanto os servidores públicos estatutários quanto os celetistas podem, nos limites da lei, exercer o direito de greve.
Nos termos do inciso II do já mencionado artigo 114 da CF/88, é da Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar as ações que envolvam exercício do direito de greve. O mencionado dispositivo tem redação mais genérica do que aquela do inciso I, anteriormente transcrito, uma vez que não restringe a competência da Justiça Laboral para as greves promovidas por trabalhadores celetistas.
Assim, é necessário investigar a existência de distinção entre a competência da Justiça do Trabalho e a da Justiça comum para o julgamento da ação que envolva o exercício do direito de greve, quando essas forem promovidas por empregados públicos (vínculo celetista) ou por servidores públicos (vínculo estatutário).
A princípio, não parece haver distinção entre a competência para apreciar a ação proposta pelo agente público em face da Administração Pública daquela que discute o exercício do direito de greve. Isso porque, a partir de uma interpretação lógica e sistêmica da Constituição, poder-se-ia afirmar que a interpretação dada à norma estampada no inciso II do art. 114 deve ser consentânea com aquela do inciso I.
Se o elemento definidor da competência da Justiça do Trabalho para apreciar as causas entre servidores e empregados públicos é a natureza do vínculo, o mesmo raciocínio deve ser empregado para as causas que envolvem o exercício do direito de greve, uma vez que a greve é um direito intrinsicamente relacionado ao vínculo existente entre o “trabalhador” e o “empregador”.
Ocorre, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 846854, fixou tese de repercussão geral no sentido de que “A Justiça comum, Federal e estadual, é competente para julgar a abusividade de greve de servidores públicos celetistas da administração direta, autarquias e fundações públicas”. O referido entendimento é claramente diverso daquele consolidado no âmbito das causas que envolvem os direitos inerentes à relação trabalhista e/ou estatutária, conforme já analisado.
Examinado o caso em que o precedente foi proferido, constata-se se tratar de demanda em que foi debatida a abusividade de greve de guardas municipais que trabalhavam em regime celetista, o que configura um caso bastante especifico, haja vista o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 654432, ter declarado a impossibilidade de greve dos policiais civis e de todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública[6].
Tal fato parecer ter sido de fundamental importância para o julgamento do RE 846854, em que discutida a abusividade da greve dos guardas municipais de São Bernardo do Campo-SP.
Verifica-se da leitura da notícia veiculada no site do STF, que o Ministro Alexandre de Moraes, que instaurou a divergência do relator e encampou a tese vencedora, destacou a peculiaridade do caso para definir a competência da Justiça Comum, fazendo clara ressalva quanto aos demais empregados públicos celetistas, em que a competência para julgamento do dissídio de greve seria da Justiça do Trabalho. Nesse sentido, cumpre fazer a seguinte transcrição:
Segundo o voto do ministro Alexandre de Moraes, acompanhado por maioria, não há que se falar de competência da Justiça trabalhista para se analisar a abusividade ou não da greve neste caso, dado tratar-se de área na qual o próprio STF reconheceu que não há direito à paralisação dos serviços, por ser essencial à segurança pública. “Não parece ser possível dar provimento ao recurso”, afirmou.
Ele observou que para outros casos de servidores públicos com contrato celetista com a administração pública seria possível admitir a competência da Justiça trabalhista para apreciar o direito de greve. Contudo, tratando-se de guardas municipais, configura-se exceção à regra.[7]
Conclui-se, portanto, que o julgamento do recurso paradigma teve como fator decisivo a condição peculiar dos empregados grevistas, que ocupavam a posição de guardas municipais, e não apenas o fato de o vínculo com a Administração ser regido pela Consolidação das Leis do Trabalho.
No caso, para que a competência da Justiça do Trabalho, estampada no art. 114, inciso II, da CF/88, fosse afastada, seria necessário que o Supremo Tribunal Federal procedesse com a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo, ou definisse de forma expressa a interpretação que deve ser dada ao dispositivo, afastando da norma a possível interpretação de que é da Justiça do Trabalho a competência para o julgamento das ações que envolvam o exercício do direito de greve dos empregados públicos celetistas.
Com efeito, conforme visto, pela letra fria da Constituição, a Justiça do Trabalho é competente para julgar as ações que envolvam o exercício do direito de greve de forma ampla. A norma não faz restrições quanto à natureza da relação na qual a greve esteja ocorrendo.
Considerando a jurisprudência sedimentada no STF com relação ao inciso I do mencionado art. 114 da CF/88, seria cabível excluir da competência da Justiça do Trabalho os casos de greve que envolvessem servidores públicos estatutário. Não há razão, entretanto, para excluir os empregados públicos celetistas, já que esses mantêm relação de emprego com o Poder Público e têm os dissídios dirimidos perante a Justiça Laboral.
Tendo em vista a ressalva feita pelo Ministro Alexandre de Moraes, conforme noticiado no site do STF, é possível que a tese de repercussão geral que definiu a competência genérica da justiça comum para julgar a abusividade da greve dos empregados públicos celetistas, sem qualquer ressalva, seja fruto do fenômeno conhecido como “ementismo”, de acordo com o qual as ementas não traduzem a realidade dos julgamentos, muitas vezes generalizando o quanto decidido nos tribunais.
Sobre o tema, é esclarecedor o seguinte excerto do artigo “O ementismo e a tentativa de usurpação da função dos precedentes”, de autoria do Procurador do Trabalho Sandoval Aves da Silva[8]:
Por outras palavras, as ementas passam de instrumento de indexação das decisões dos tribunais com vistas a registro e pesquisa para substituir a necessidade do recurso às fundamentações dos votos dos julgadores, uma vez que são redigidas com expressões de elevado grau de abstração e generalização, no claro intuito de se prestar como precedente para casos futuros e exercer função análoga à lei. Edilson Nobre Junior (2008, p. 55) não hesita em afirmar que a pressa e a desatenção têm sido a tônica na aplicação dos precedentes em nosso país. Com base nessas fortes denúncias, o autor frisa que a coleta descontextualizada de ementas, fruto da pressa e do descaso, contribui para distorções na compreensão dos precedentes e no julgamento dos casos concretos – prática que denominou ementismo, termo que tem sido utilizado em outros textos acadêmicos (SILVA; MAGALHÃES, 2014, p. 212-213).
A aplicação e a interpretação da ementa como se representasse o precedente em sua inteireza trazem sérios problemas de interpretação e de aplicação equivocada do direito. Por outras palavras, usualmente a ementa substitui a leitura atenta dos votos, bem como é aplicada fora de seu contexto de criação interpretativa, tal como a criação de uma prescrição canônica das normas.
Assim, considerando a firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que é da Justiça do Trabalho a competência para julgar as causas entre os empregados públicos celetistas e a Administração, bem como a ressalva do Ministro Alexandre de Moraes, autor do voto vencedor no julgamento do RE 846854, de acordo com a qual as greves dos demais empregados públicos celetistas poderiam ser apreciadas pela Justiça do Trabalho, sendo os guardas municipais uma exceção, parece que a Tese de Repercussão Geral fixada pela Supremo Tribunal Federal deve ser interpretada com ressalvas.
Sustenta-se, assim, a competência da Justiça do Trabalho para apreciar as causas decorrentes do exercício do direito de greve por parte dos empregados públicos celetistas, com exceção das carreiras de segurança pública, sob pena de afronta à norma do artigo 114, inciso II, da CF/88, bem como à jurisprudência sedimentada no âmbito do STF.
5. CONCLUSÃO
A norma do artigo 144, II, da Constituição Federal de 1988 é clara ao definir como sendo da Justiça do Trabalho a competência para apreciar as causas decorrentes do exercício do direito de greve. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por outro lado, é firme no sentido de que a Justiça do Trabalho é competente para julgar as causas instauradas entre os empregados públicos celetistas e o Poder Público.
Conforme decidido no julgamento da ADI 3.395, o STF entendeu que apenas os casos entre a Administração Pública e os servidores públicos estatutários são de competência da Justiça comum, haja vista a não caracterização de uma relação de emprego, já que a relação de trabalho é regida por norma especial, que afasta a incidência da Consolidação das Leis do Trabalho.
Não há razão, assim, para, no tocante à greve, atribuir interpretação ampla à decisão proferida no âmbito do RE 846854, ao ponto de se sustentar que é da Justiça comum a competência para julgar todas as causas que envolvem o exercício do direito de greve dos empregados públicos celetistas. Nos termos do quanto exposto no presente estudo, a tese deve ser interpretada com ressalvas, restringindo-se o entendimento para o caso específico, em que debatida a abusividade de greve de guardas municipais.
A interpretação ampla do precedente parece ser fruto do “ementismo”, de forma que a extensão da competência da Justiça comum para a apreciação e julgamento de todas as causas decorrentes de greve de empregados públicos celetistas, sem considerar o caso específico em que a decisão foi proferida, configura afronta à norma do inciso II, do artigo 114, da CF/88, e à jurisprudência consolidada no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal.
6. REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 26/06/2017.
BRASIL. Lei nº 9.962, de 22 de fevereiro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9962.htm>. Acesso em 01/12/2017.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo, Atlas, 2014.
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NOTAS:
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo, Atlas, 2014. p. 608
[2] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=390700
[3] Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28CC%24%2ESCLA%2E+E+7231%2ENUME%2E%29+OU+%28CC%2EACMS%2E+ADJ2+7231%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/d3vgbef
[4] Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ARE%24%2ESCLA%2E+E+911957%2ENUME%2E%29+OU+%28ARE%2EACMS%2E+ADJ2+911957%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/z7he8qj
[5] Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28COMPET%CANCIA+TRABALHO+SERVIDOR+TEMPOR%C1RIO%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/yca6zqvw
[6] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=340096
[7] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=344553
[8] SILVA, Sandoval Alves. O ementismo e a tentativa de usurpação da função dos precedentes. Disponível em: http://www.cajur.com.br/index.php/cajur/article/view/101.
Pós-graduada em direito público, Procuradora da Fazenda Nacional.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINS, Mariana Sá Leitão de Meira. A competência judicial para apreciar os casos de greve promovida por empregados públicos celetistas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55242/a-competncia-judicial-para-apreciar-os-casos-de-greve-promovida-por-empregados-pblicos-celetistas. Acesso em: 25 nov 2024.
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