INGO DIETER PIETZSCH[1]
(orientador)
Resumo: Os avanços contínuos da medicina vêm ampliando substancialmente a discussão sobre a transição entre a vida e a morte, especialmente, no que se refere à possibilidade de intervenção do sujeito, através de mecanismos artificiais no processo de morte, por meio da eutanásia, que pode ser traduzida em uma expressão de significado complexo e produz uma série de eventos que precisam ser explicados. A problemática revela a confluência de várias disciplinas, inclusive com repercussão na seara do direito, ocasionando situações até então infrequentes. O presente estudo objetiva, destarte, abordar o tema da eutanásia sob a ótica jurídico-penal, mediante a abordagem de questões fundamentais relativas à vida e morte e as alterações conceituais sofridas nas últimas décadas, passando, em seguida, à contextualização das diferentes formas de eutanásia utilizadas pelos doutrinadores e sua aplicação sob a ótica do direito comparado. Além disso, será sopesado, ainda, o equilíbrio entre os princípios da bioética e da dignidade humana (justiça, benevolência, não maldade e autonomia) e o direito digno à morte e o direito à vida, tendo por base os diferentes métodos de eutanásia por meio de pesquisa de sanções judiciais no âmbito da Constituição Federal e do Código Penal.
Palavras-chave: Eutanásia. Criminalização. Consentimento da Vítima. Dignidade Humana.
Abstract: The continuous advances in medicine have substantially broadened the discussion about the transition between life and death, especially with regard to the possibility of the subject's intervention, through artificial mechanisms in the death process, through euthanasia, which can be translated into an expression of complex meaning and produces a series of events that need to be explained. The problem reveals the confluence of several disciplines, including repercussions in the field of law, causing situations hitherto infrequent. The present study aims, therefore, to approach the subject of euthanasia from a juridical-penal perspective, by addressing fundamental questions related to life and death and the conceptual changes suffered in the last decades, going, then, to contextualize the different forms of euthanasia used by indoctrinators and its application from the perspective of comparative law. In addition, the balance between the principles of bioethics and human dignity (justice, benevolence, non-evil and autonomy) and the dignified right to death and the right to life will be weighed, based on the different methods of euthanasia by search for judicial sanctions under the Federal Constitution and the Penal Code.
Keywords: Euthanasia. Criminalization. Victim Consent. Human dignity.
Introdução
A eutanásia se tornou uma das questões mais complexas da atualidade, sendo cada vez mais discutida nas diversas sociedades, sobretudo diante dos avanços da tecnologia médica ocorridos no final do século XX. No entanto, no Brasil, até os dias hodiernos, a prática da eutanásia ainda se encontra tipificada em nenhum diploma legal do ordenamento jurídico pátrio, restando a alocação dessa conduta, restrita ao disposto no art. 121, §1º, do Código Penal, como homicídio privilegiado.
Mesmo com a notoriedade decorrente das inovações jurídicas alcançadas em outros países, no Brasil, a regulamentação legal da chamada “morte piedosa”, não encontrou o mesmo destino, tendo em vista o antagonismo produzido pela consagração do direito constitucional da dignidade da pessoa humana, de um lado, e de outro lado, a garantia fundamental da inviolabilidade do direito à vida.
Nesse sentido, verifica-se uma evidente colisão de princípios, entre a garantia da dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, e a proteção à vida, contida no caput do art. 5º, do mesmo dispositivo legal, resultando, na prática, no sofrimento de uma enorme variedade de pessoas, vítimas desse conflito que, fragilizadas como em consequência de uma doença terminal ou degenerativa, têm sua autonomia retirada no que concerne à capacidade de decisão sobre o fim condizente com sua história pregressa, sem que recebam a assistência adequada por parte do Estado, para dirimir seu sofrimento.
Visto que a legislação atualmente vigente pouco possibilita o respeito à autonomia da vontade, a eutanásia ainda é um tema bastante controverso no ordenamento jurídico brasileiro, suscitando o questionamento acerca dos limites da intervenção estatal na autonomia da vontade de uma pessoa, em sã consciência mental, portadora de grave e incurável doença, na escolha de morrer com dignidade, sem dor e sofrimento, para assegurar a garantia constitucional da vida humana.
Assim, diante do acima exposto, tendo-se por base o direito comparado e por plano de fundo o julgamento da ADI 3.510 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro e do Projeto de Lei Nº 236/12 - Novo Código Penal -, o qual tipifica a prática da eutanásia, o presente estudo tem por escopo analisar a possibilidade de não imputação de pena ao agente da eutanásia frente à interpretação constitucional.
Serão abordados, portanto, os conceitos e definições relacionados à eutanásia, estabelecendo-se sua relação com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e a demais direitos e garantias fundamentais, tais como a garantia constitucional da inviolabilidade do direito à vida, o direito à vida em si, o direito de morrer, o direito a ter uma morte digna e o direito ao livre arbítrio correlacionado com a autonomia da vontade de cada ser humano.
2 O início da vida e o processo de morrer
Os debates relacionados à eutanásia, normalmente, trazem como antecedente lógico o binômio vida e morte, tendo em vista sua conceituação, de forma geral, como um adiantamento voluntário da própria morte, tornando-se, pois, imprescindível o estudo das questões envolvidas nos conceitos de vida, morte e, na esteira da nova problemática surgida com o passamento, do processo de morrer, os quais passaram a exigir reflexões éticas e jurídicas diante da presença e intervenção da ciência e da tecnologia na existência humana.
A vida e a morte são fenômenos, conceitos, antagônicos e ao mesmo tempo intrinsicamente relacionados, de maneira que discorrer sobre a vida e sobre a morte demanda reflexões profundas acerca da própria existência, delimitada por padrões culturais tradicionais, sociais, legais, médicos e religiosos, geralmente definido primeiramente na história por argumentos filosóficos, ideológicos e religiosos, e posteriormente também com fundamentos científicos.
No tange à vida, sua importância é tal deve ser situada acima das contingências valorativas do legislador penal, como elemento básico, na órbita do direito constitucional, na configuração de toda sociedade civil, ou melhor, fundamento de sua própria existência. A vida é o bem mais precioso que uma pessoa pode ter, pois esta pressupõe a própria existência humana. Somente a partir da vida é que o ser humano passa a ser titular de direitos e deveres.
A vida é a continuidade de todas as funções de um organismo vivo (vegetal, animal e humano) ou, no mínimo, o período compreendido entre a concepção (ou a fecundação) e o evento morte, de conformidade com o pensamento de respeitável corrente científica das áreas da Saúde. (MARCHESINI JUNIOR, 2017)
No estado atual da ciência médica, entende-se, de forma amplamente dominante, que a vida humana começa no momento da fecundação, quando o embrião deve ser considerado como um ser vivo, distinto de seus progenitores, com uma carga genética individual.
Sob a luz da atual Constituição da República Federativa do Brasil, a vida é considerada como pressuposto de todos os demais, diante da necessidade de preservação da sociedade em todos os seus aspectos. Referida ilação pode ser extraída da própria redação de seu artigo 5º, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (omissis).
(BRASIL, 1988)
Em suma, o constituinte brasileiro tutela o direito à vida, cuja garantia se inicia, do ponto de vista biológico, com a fecundação. A partir desse momento, ninguém pode ser privado arbitrariamente de sua vida, cabendo ao Estado garanti-la, tanto no que se refere ao direito de continuar vivo, como a um nível de vida adequado com a condição humana.
Dessa forma, destaca-se que a vida pode, em verdade, ser considerada como um valor, um princípio e, também, como um direito natural (inerente ao indivíduo e anterior a qualquer contrato social), humano (reconhecido internacionalmente como inerente ao ser humano na Declaração Universal dos Direitos do Homem) e, ainda, fundamental, pois incluído no ordenamento constitucional, sendo sustentáculo dos denominados direitos de primeira dimensão.
2.1 A morte e o processo de morrer
A morte, no entendimento de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2013, p. 366), é marcada pelo fim do ciclo vital da pessoa humana, consistindo no término da sua existência, podendo ser conceituada sob diversos aspectos, tais como a morte biológica (destruição celular), a morte clínica (paralisação da função cardíaca e respiratória), a morte jurídica, a morte psíquica. Nesta mesma senda, Nóbrega Filho estabelece as delimitações abaixo:
1. Morte clínica, caracterizada pela parada cardíaca (com ausência de pulso), respiratória e midríase paralítica, podendo ser reversível, desde que sejam implementadas adequadas medidas de reanimação; Morte biológica, derivada da morte clínica, mas possuindo caráter irreversível, caracterizando-se pela destruição celular em todo o organismo, fato que habitualmente se desenvolve no lapso de vinte e quatro horas; 3. Morte óbvia, cujo diagnóstico é inequívoco, a exemplo de evidente estado de decomposição corpórea, decapitação, dentre outros; 4. Morte encefálica, compreendida atualmente como sinônimo de morte biológica, nos termos da Resolução Nº 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina, sendo caracterizada por uma série de parâmetros que atestam a lesão encefálica irreversível, situação onde todos os comandos da vida são interrompidos. (NÓBREGA FILHO, 2010, p. 25)
O aludido autor menciona, ainda, a morte cerebral, que se distingue do óbito encefálico mediante análise da respiração, já que na hipótese perde-se a consciência da respiração, que permanece funcionando de maneira automática, enquanto que se há morte encefálica o centro respiratório se torna danificado de forma irreversível, com a vida apenas podendo ser mantida com o emprego de instrumentos técnico-científicos.
Em compensação, a morte jurídica pode ser encontrada na redação dada pelo artigo 10 do Código Civil, de 2002, ao prever que a morte termina a existência da pessoa natural, muito embora a própria norma legal não estabeleça os conceitos de vida e morte, muito embora a concepção da morte como fenômeno vinculado estritamente com a cessação dos batimentos cardíacos e da respiração tenha se mantido ativa até o final da década de sessenta, sendo substituído pela concepção atual de que o critério decisivo para reconhecer o momento da morte é a ausência de atividade encefálica, tornando obsoletos os anteriores métodos.
Assim, a referida normatização surgiu em decorrência do advento da Lei Nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, que disciplinou a matéria em seu artigo 3º, contendo o seguinte teor:
Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (BRASIL, 1997)
Sendo assim, em conformidade com os termos da referida lei, a morte real vai ser determinada a partir do diagnóstico que defina a cessação das atividades encefálicas, cujos critérios para a sua determinação encontram-se na Resolução Nº 1.480 de 8 de agosto de 1997, do Conselho Federal de Medicina, em complementação à Lei dos Transplantes de 1997, mediante a seguinte redação:
Art. 3º A morte encefálica deverá ser consequência de processo irreversível e de causa conhecida.
Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apneia.
(...)
Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sanguínea cerebral. (BRASIL, 1997)
É necessário que sejam feitas duas avaliações clínicas e exames complementares do paciente com suspeita de morte encefálica, sendo que a primeira poderá ser realizada por um médico intensivista e a segunda avaliação preferencialmente por um neurologista. Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no termo de declaração de morte encefálica.
Ainda de acordo com o CFM, os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária: de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 horas; de 2 meses a 1 ano incompleto - 24 horas; de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 horas e acima de 2 anos - 6 horas.
Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral ou, ausência de atividade metabólica cerebral ou, ausência de perfusão sanguínea cerebral.
A importância dessa classificação se justifica pela necessidade de se autorizar intervenções lícitas sobre um cadáver – autópsia, extirpação de órgãos ou tecidos, utilização em práticas de estudantes de medicina, entre outros –, ou mesmo para o cumprimento das práticas de piedade familiar e social com os cadáveres.
Mais adiante, o Conselho Federal de Medicina (CFM), em 28 de novembro de 2006, publicou a Resolução Nº 1.085/06, baseada no art. 1º, inciso II, da CF, tendo por base a dignidade da pessoa humana, a fim de permitir que, nos casos de enfermidades graves e incuráveis, poderá o médico limitar ou suspender o tratamento que prolongue a vida do enfermo, garantido todos os cuidados para aliviar os sintomas do seu sofrimento, respeitando a vontade do paciente ou de seu representante legal.
Assim, não há que se falar em eutanásia quanto ao desligamento de aparelhos em pacientes em situações de morte encefálica, por um lado e, por outro, resulta ilegítimo estender o mencionado conceito a enfermos em coma profundo, em estado vegetativo persistente e a outros pacientes cujo corpo, ainda que enfermo, conserve seu funcionamento integrado.
3 Eutanásia: considerações inicias
No decorrer da história, a relação do homem com a morte sofreu várias mutações, mas sempre se constituiu na única e grande certeza humana, a finitude da vida. No entanto, discutir a morte e seus elementos ainda é um grande desafio; porquanto se trata de um assunto revestido de fortes emoções, marcado por traumas e experiências pessoais, que provoca desconforto e gera toda sorte de incertezas.
Contudo, nos tempos hodiernos, a morte passou a ser vista muito mais como um procedimento, um fenômeno progressivo, do que um momento único, razão pela qual se utiliza a expressão processo de morrer. Isso também se deve, como ressaltado acima, aos avanços no campo da medicina, que permitiram o prolongamento de uma vida por bastante tempo, mediante manutenção artificial das funções vitais, sobretudo a partir da administração integrada de fármacos e meios tecnológicos, permitindo preservar, sustentar e prolongar a vida até limiares verdadeiramente inconcebíveis, impedindo que o paciente chegue a óbito mesmo quanto inexiste possibilidade de reversão do quadro.
E é, justamente, nesse aspecto ganha importância a diferenciação entre a cura da doença e o alívio do sofrimento, já que enquanto a medicina se encontra, até certo ponto, bem aparelhada para combater a dor, não se pode dizer o mesmo em relação ao sofrimento, que, a seu turno, possui um sentido mais global que aquela, pois se refere à diminuição da qualidade de vida. (NÓBREGA FILHO, 2010, p. 32)
Um dos principais perigos em negligenciar essa distinção no contexto clínico é a tendência dos tratamentos se concentrarem somente nos sintomas físicos, como se apenas eles fosse fonte de angústia para o paciente, permitindo a imposição agressiva de tratamentos fúteis, desconsiderando-se que a continuação de tais cuidados pode simplesmente impor mais sofrimentos para o paciente terminal.
Surge, nesse contexto, a eutanásia, como uma alternativa para a morte de alguém que está suportando um grave sofrimento, sem nenhuma perspectiva de melhora. Esta morte é ocasionada por um médico, desde que haja consentimento expresso do sujeito, por meio de uma ação ou omissão do profissional, que emprega, ou omite, meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de irreparável sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida.
3.1 A eutanásia no mundo: evolução e contextualização histórica
A eutanásia é uma prática que existe desde os primórdios da existência do homem, fazendo parte, inclusive, de diversas tradições culturais, sob a alcunha de eutanásia social ou mistanásia, também chamada de eugenia, técnica de “higienização” ou profilaxia social, que consiste na eliminação de pessoas portadoras de deficiências, doenças graves ou idosos em fase terminal, prática hoje condenada pela maioria dos países ocidentais.
A eutanásia e a eugenia foram práticas recorrentes entre diversos povos primitivos, dentre os quais os Celtas, Fueguinos (indígenas sul-americanos), além das civilizações gregas e romanas, que, deliberadamente, a eutanásia e o suicídio assistido. Na ilha grega de Cós, por exemplo, os idosos eram conduzidos a uma festa, onde lhes era oferecido veneno. Em Atenas, igualmente, o Senado tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação de velhos e incuráveis, dando o conium maculatum – bebida venenosa, em cerimônias especiais. Em Esparta, os recém-nascidos mal formados eram lançados do Monte Taijetom conforme as palavras de Maria Helena Diniz:
Entre os povos primitivos era admitido o direito de matar doentes e velhos, mediante rituais desumanos. O povo espartano, por exemplo, arremessava idosos e recém-nascidos deformados do alto do Monte Taijeto. (...) os guardas judeus tinham o hábito de oferecer aos crucificados o vinho da morte ou vinho Moriam (...) Os brânames eliminavam recém-nascidos defeituosos, por considerá-los imprestáveis aos interesses comunitários. Na Índia, lançavam no Ganges os incuráveis (...) Os celtas matavam crianças disformes, velhos inválidos e doentes incuráveis”. (DINIZ: 2009, p. 386)
Assim, durante parte do período helenístico, os antigos gregos deixavam os velhos e bebês nascidos com deformidades morrer ao relento, com propósitos eugênicos, ou seja, com o intuito de purificar a raça, ao passo que os espartanos, os celtas e os brâmanes se utilizavam se requintes de crueldade para se desfazer de crianças e idosos defeituoso, através de rituais desumanos, por razões puramente estéticas.
Em Esparta, que era uma sociedade guerreira por excelência, era prática comum lançar-se do monte Taígeto os nascituros que apresentassem defeitos físicos. Evidenciando, também, que na Índia antiga, os doentes incuráveis, assim compreendidos aqueles considerados inúteis em geral, eram atirados publicamente no Rio Ganges, depois de obstruídas a boca e obstruídas a boca e as narinas com um pouco de barro. (BANDEIRA, 2012, p.11)
Na índia, por sua vez, os doentes sem perspectiva de cura eram lançados no rio Ganges. Diversos povos, como os celtas, por exemplo, tinham por hábito que os filhos matassem os seus pais quando estes estivessem velhos e doentes. Na Roma antiga, Cícero afirmava que o pai tinha o dever de matar o filho disforme. Na América do Sul, alguns povos eliminavam os anciões para que não fossem mortos por animais selvagens. E, no Japão, os pais idosos e doentes eram abandonados pelo primogênito na Colina da Morte. (MACHADO, 2011)
Deste modo, a eutanásia era utilizada com diversos fins. Entre eles o controle populacional, pois dando fim aos fracos e doentes poder-se-ia dar prosseguimento a vida sem ter o fardo de cuidar destas pessoas. Um outro modo seria para controle de enfermidades, eliminando-se os doentes em estágio terminal, ter-se-ia um controle sobre a epidemia. Um terceiro exemplo seria na tentativa de controle político. No entanto, embora largamente utilizada por diversas civilizações ao longo da história, a expressão eutanásia foi empregada pela primeira vez, com o viés piedoso da “boa-morte”, pelo historiador latino Suetônio, no século II d.C., ao descrever a morte do imperador Augusto:
A morte que o destino lhe concedeu foi suave, tal qual sempre desejara: pois todas as vezes que ouvia dizer que alguém morrera rápido e sem dor, desejava para si e para os seus igual eutanásia (conforme a palavra que costumava empregar). (SIQUEIRA BATISTA & SCHRAMM, 2004, p. 34)
Anos mais tarde, em 1623, época do Renascimento, Francis Bacon, em sua obra Historia vitae et mortis, emprega pela primeira vez, o conceito de boa morte, segundo nos leciona Élcio Luiz Bonamigo:
O contexto em que o termo surgiu estava mais voltado à compaixão humana do que ao reconhecimento da autonomia ou aos direitos do paciente. Ao mencionar a palavra eutanásia, em sua obra Proficience and Advancemente of Learning, Divine and Human (1605), Bacon, de um lado, destaca a importância da função do médico para o alívio da dor e do sofrimento que castiga os enfermos em fim de vida. De outro lado, critica os médicos que abandonam seus pacientes em situação terminal (BONAMIGO, 2012, p.135)
Nesse contexto, Francis Bacon, emprega o termo eutanásia em seu significado mais próximo do atual, não se relacionando apenas ao sentido etimológico grego, mas à concepção de uma morte mais tranquila e silenciosa, designada ao tratamento adequado de doenças incuráveis. No entanto, com a expansão do catolicismo e do cristianismo e a noção da vida sagrada sendo um dom de Deus que deve ser preservado e cultivado, o direito à morte deixou de ser reconhecido, quando, no ano de 1980, no dia cinco de maio, a igreja católica emitiu a Declaração sobre a Eutanásia, trazendo o seguinte conceito: “Ação ou omissão que, por sua natureza ou nas intenções, provoca a morte a fim de eliminar toda a dor. A eutanásia, situa-se, portanto, no nível das intenções e dos métodos”. (MACHADO, 2011, p. 2)
A igreja católica, portanto, aderiu à posição contrária à eutanásia, pois entende que a antecipação da morte está em desacordo com as leis de Deus, a lei natural. A partir do cristianismo e do judaísmo – que celebram a vida como de natureza sagrada – é que a eutanásia passou a ser condenada, posto que era muito admitida na antiguidade. Entretanto, a contar do sentimento que envolve o direito moderno é que a eutanásia passou a ser mais criminalizada.
Contudo, a tradição hebraica ensina que o médico não detém o poder de decisão entre a vida e a morte do paciente, pois, aquela, é um dom divino. Entretanto, a tradição legal hebraica (halakhah) diferencia o prolongamento da vida do prolongamento da agonia, sendo apenas o primeiro, obrigatório. Dessa maneira, percebe-se o repúdio à eutanásia ativa, mas certa tolerância à passiva.
Em que pese o entendimento religioso, a eutanásia vem conseguindo um espaço jurídico em alguns países, de acordo com Maria Helena Diniz:
A eutanásia é tratada como um homicídio privilegiado pelos Códigos penais da Alemanha (art. 216, da Suíça (art. 114), e da Itália (art. 579), sendo inadmissíveis a absolvição e o perdão judicial. (DINIZ, 2009, p. 380)
A Holanda foi o primeiro país europeu a legalizar e regulamentar a prática da eutanásia, em abril de 2002, através da alteração do artigo 293 do Código Penal holandês. A legislação holandesa permite, ainda, a prática da eutanásia em menores, entendidos como aqueles com idade entre 16 e 18 anos, cujos quais poderão requerê-la desde que a decisão tenha sido tomada em comum acordo com os pais ou tutor. Além disso, os indivíduos com idade entre 12 e 16 anos poderão ter seu pedido deferido, judicialmente, desde que conte com a anuência de seus pais ou tutores.
A Bélgica descriminalizou, legalmente, a eutanásia, também no ano de 2002, em todas as suas modalidades, não se fazendo distinção entre abreviar a vida por uma terceira pessoa, suicídio assistido ou deixar morrer, tendo como critério indispensável a condição médica irreversível e o sofrimento físico e/ou psíquico constante e insuportável e sofrer de uma doença incurável, devendo o ser maior ou pelo menos emancipado, estar consciente no momento do pedido, que tem que ser voluntário, sem qualquer pressão externa.
Em Portugal, onde o debate chega pela segunda vez ao parlamento desde 2018, a morte assistida não está tipificada como crime com esse nome, mas a sua prática pode ser punida por três artigos do Código Penal: homicídio privilegiado (artigo 133.º), homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º) e crime de incitamento ou auxílio ao suicídio (artigo 135.º).
Atualmente, vários Estados dos EUA incorporam a eutanásia em seus Códigos, aceitando-a. Como exemplo, há o Estado de Oregon, que aprovou, em 1994, a Lei sobre Morte Digna, que permite a prática da ortotanásia. Além deste, há também os Estados de Washington, Vermont, Montana e Texas, dentre outros.
No ordenamento jurídico brasileiro, contudo, em decorrência da ausência de norma regulamentadora específica, é indispensável sua apreciação sob o prisma dos direitos fundamentais e, principalmente, do direito à dignidade humana, levando-se em conta que, do ponto de vista dos direitos humanos, manter um paciente terminal, em estado vegetativo irreversível, numa UTI, vai de encontro à existência solidária e digna preconizada pela carta Magna de 1988, já que, uma vez que um Estado Democrático de Direito preza pelo direito à vida e à existência digna, esse mesmo Estado deve primar pelo direito a uma morte digna.
3.2 Eutanásia: Conceitos e definições
Etimologicamente, o termo eutanásia se origina do grego, onde o prefixo “eu” significa boa e “thanatos”, morte, sendo, portanto, descrita nos principais dicionários como a “morte sem sofrimento – conjunto de métodos que buscam uma morte sem sofrimento, a fim de abreviar os tormentos de um paciente portador de uma doença muito dolorosa e incurável".
Segundo Plácido de Silva (SILVA, 2014, p. 877), a eutanásia pode ser entendida como “o direito de matar ou o direito de morrer, em virtude de razão que possa justificar semelhante morte, em regra provocada para término de sofrimentos”.
O conceito utilizado por José Roberto Goldim é um pouco mais abrangente, defendendo a eutanásia como “a antecipação voluntária da morte de um paciente, promovida por um terceiro, habitualmente, mas não obrigatoriamente, um médico”. (GOLDIM, 2010, p. 30)
Na mesma linha de raciocínio segue Martini (2010, p. 33) eutanásia “consiste no ato de facultar a morte a um indivíduo cujo estado de doença é crônico e, portanto, incurável, normalmente associado a sofrimento físico e psíquico”.
É uma conduta onde uma pessoa, por espontânea vontade e ocasionada por intensas razões de cunho moral, gera a morte de alguém acometido de doença incurável em avançado estado de dor e sofrimento. A eutanásia se justificaria como um modo de alívio do sofrimento trazido por anos de doença. (FRANÇA, 2014)
Para Oliveira Júnior (2010, p. 36) a eutanásia é a “antecipação da morte do doente terminal, atenuando-lhe o sofrimento e dores intoleráveis, com a contribuição efetiva de alguém, ministrando-lhe, por exemplo, uma droga”.
Carvalho (2011, p. 642) equipara a eutanásia ao homicídio piedoso, e que consiste na “morte provocada para evitar o sofrimento de uma doença havida incurável”.
Por seu turno, ao se consultar a obra de Márcio Sampaio Mesquita Martins, extrai-se a seguinte definição acerca do assunto abordado:
Entende-se como eutanásia a conduta em que alguém, deliberadamente e movido por fortes razões de ordem moral, causa a morte de outrem, vítima de uma doença incurável em avançado estado e que está parecendo de grande sofrimento e dores. A eutanásia seria justificada como uma forma de libertação do sofrimento acarretado por um longo período de doença
Nas palavras do ilustre doutrinador José Afonso da Silva:
De eutanásia se fala quando se quer referir à morte que alguém provoca em outra pessoa em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento, em consequência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa. Chama-se, por esse motivo, homicídio piedoso. É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que implicitamente está vedada pelo direito à vida consagrado na Constituição, que não significa que o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito. (SILVA, 2014, p. 204)
Sendo assim, conforme o exposto acima, o intuito da eutanásia é provocar uma morte menos dolorosa para aquele que se encontra em estado de profundo sofrimento. É um encurtamento necessário de uma vida que não possui a dignidade necessária para o indivíduo.
3.3 Tipos de eutanásia
Segundo o professor Goldim, a eutanásia, dependendo do critério considerado, pode ser classificada em várias formas, no que se refere ao tipo de ação e ao cometimento do paciente. Quanto ao tipo de ação, a eutanásia pode ser classificada em ativa, passiva ou de duplo efeito. (GOLDIM, 2004)
A eutanásia ativa consiste no ato provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins misericordiosos. É o sentido mais comumente conhecido e difundido da eutanásia, qual seja a cena do médico que desliga o aparelho (respirador ou outro de mesma valia), frente a um paciente considerado incurável, de maneira científica (ou por vezes arbitrária), ou de morte certa. Conforme as palavras de Maria Helena Diniz:
(...) a eutanásia ativa, também designada benemortásia ou sanicídio, que, no nosso entender, não passa de um homicídio, em que, por piedade, há a deliberação de antecipar a morte de doente irreversível ou terminal a pedido seu ou de seus familiares, ante o fato da incurabilidade de sua moléstia (...). (DINIZ, 2006, p. 323)
Assim, a eutanásia ativa diz respeito à prática de atos que objetivam encerrar a vida, sendo esses planejados tanto por parte do indivíduo enfermo, como pelo profissional que efetivará o ato. Nessa hipótese, recorre-se a meios que possam pôr termo à vida de maneira mais rápida e eficaz, a exemplo de medicamentos ou injeções que conduzem o paciente à morte.
A eutanásia passiva, também chamada de indireta, ou ortotanásia, é a morte do paciente terminal, ou porque não se inicia uma ação médica ou porque há interrupção de medida extraordinária, a fim de minorar o sofrimento; eutanásia de duplo efeito: a morte é acelerada como uma consequência indireta das ações médicas que são executadas visando ao alívio do sofrimento de um paciente terminal. Nas letras de André de Carvalho Ramos:
A ortotanásia consiste, com anuência do paciente terminal, na ausência de prolongamento artificial da vida pela desistência médica do uso de aparelhos ou outras terapias, evitando sofrimento desnecessário. Há aqueles que denominam a ortotanásia de eutanásia passiva ou indireta, mas não há proximidade com a eutanásia. A ortotanásia consiste na desistência, pelo médico, do uso de medicamentos e terapias, pois não há esperança de reversão do quadro clínico nos pacientes terminais. Ocorre a suspensão de aplicação de processos artificiais médicos, que resultariam apenas em uma morte mais lenta e mais sofrida, mas o que mata o paciente é a doença e não o médico. Diferentemente da eutanásia, a ortotanásia deixa de manter a vida por modo artificial, para evitar prolongar a dor em um quadro clínico irreversível. (RAMOS, 2020, p. 638-639)
A eutanásia passiva vem adquirindo vários defensores (o desligamento de aparelhos que apenas prolongam a vida de doentes em estágio terminal, sem diagnóstico de recuperação), assim como o suicídio assistido. Alguns falam que a eutanásia ativa (o Estado - médico - provocando a morte) seria homicídio. (LENZA, 2014, p. 1071).
Destarte, a eutanásia passiva não é capaz de provocar imediatamente a morte, pois ela consiste na interrupção de cuidados necessários que impossibilitem o progresso da enfermidade. Assim, com o decorrer do tempo, a falta de medicação e de cuidados devidos acarreta a morte do indivíduo. Ou seja, não há ato direto que implique o fim da vida, mas também não há medidas necessárias para redução do risco de morte, já que se efetiva a omissão de tratamento.
Há ainda a espécie eutanásia de duplo-efeito, onde esta é caracterizada pela ação médica ao ministrar determinados tratamentos, que por possuírem efeitos tóxicos ou agressivos, embora transmitam um estado confortável ao paciente, acabam por apressar a sua morte. Como exemplo desta prática, podemos citar a ocorrência de um estado avançado de câncer, onde o paciente tende a sofrer muitas dores e o médico pretendendo aliviar as dores utiliza-se da aplicação de derivados da morfina, mas, é provável que tal medicação também, produza, concomitantemente, um encurtamento de sua vida.
No que concerne ao consentimento do paciente, a eutanásia pode ser voluntária, não-voluntária ou involuntária. Entende-se por eutanásia voluntária quando a morte é provocada atendendo a uma vontade do paciente e por eutanásia involuntária quando a morte é provocada contra a vontade do paciente. Já a eutanásia não-voluntária se dá quando a morte é provocada sem que o paciente tivesse manifestado sua posição em relação a ela, sendo realizada a pedido dos familiares ou em não havendo parente, o próprio médico autorizando. (GOLDIM, 2004)
O suicídio assistido seria outro termo que se refere ao assunto, caracterizado quando alguém municia ou possibilita a outrem desejoso de eliminar sua própria vida, tanto meios, bem como informações para tanto. Encontramos esta figura no tipo penal de “auxílio ao suicídio”, no artigo 122 do Código Penal Brasileiro in verbis: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça.” (BRASIL, 1940)
4 A eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, três fatos são importantes para assegurar a autodeterminação do paciente: o primeiro, em 1996, foi a promulgação da Resolução Nº 196/96 que “reconheceu a importância da materialização do consentimento livre e esclarecido de qualquer sujeito exposto a procedimento médico, ou à pesquisa”. O segundo momento foi a edição da Portaria nº 1.820/2009 do Ministério da Saúde. Esta Portaria assegurou o direito do paciente ser informado e de decidir sobre o tratamento a ser seguido. O terceiro, trata da Resolução Nº 1.9 31/2009 do Conselho Federal de Medicina. De acordo com a Resolução, proibiu-se a “prorrogação do sofrimento do paciente terminal (distanásia), sem permitir a antecipação da morte (eutanásia)”, de modo que a ortotanásia somente pode ser praticada apenas por meio de processos paliativos.
Os avanços tecnológicos quando aplicados na medicina, proporcionaram a cura de muitas doenças, além de trazer a pacientes enfermos condições mais dignas de vida. No entanto, trouxeram também algumas consequências, como o fato de muitas pessoas morrerem sozinhas e solitárias em leitos de hospitais e de certa forma uma “escravização”, muitas vezes não sendo permitido a algumas pessoas o direito ao fim do sofrimento através da morte. Conforme descreve Möller:
Hoje assistimos à morte tecnificada: morre -se em hospitais, em meio a máquinas e especialistas, e não mais no ambiente familiar, em companhia das pessoas próximas. Os próprios parentes muitas vezes desejam esquivar-se de um envolvimento com o moribundo “protegendo-se” de presenciar a morte. Reduzem-se os ritos familiares quando da proximidade da morte. Entregamos 12 nosso direito de presidir nossa vida e nossa morte aos técnicos, à medicina, renunciando à reflexão e à tomada de decisão. Até mesmo o luto medicalizar-se: quem perde um ente querido deve sedar-se, alienar-se através de ansiolíticos. (MÖLLER, 2012, p. 32).
Estamos na era dos direitos humanos e descobrimos que entre eles está o direito a decidir – dentro de certos limites, é claro – a respeito das intervenções que se realizam no próprio corpo, isto é, a respeito da saúde e da enfermidade, o da clássica relação médico-doente, hoje se chama de “direito ao consentimento informado”; e no âmbito da vida e da morte chama-se “direito à própria morte”.
4.1 A eutanásia e o Código Penal brasileiro
No Brasil, a eutanásia, tanto na forma ativa quanto na forma passiva, não é prevista no ordenamento jurídico brasileiro de forma explícita, porém, está sujeita à tipificação prevista no artigo 121 do Código Penal, homicídio simples ou qualificado, podendo incidir a atenuante do homicídio privilegiado, considerando-se a hipótese de a pessoa agir impelida por relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, conforme transcrito abaixo:
Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Caso de diminuição de pena
§1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social, ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (BRASIL, 1940)
Sendo assim, se a doença ou mal que acomete o paciente for curável, o ato de abreviar sua vida não será considerado como eutanásia, mas como homicídio, conforme descrito no artigo 121 do supracitado diploma legal, sendo a pena atenuada, na hipótese crime ter sido cometido impelido por motivo de relevante valor social, ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.
No que se refere à caracterização do relevante valor moral ou social, Bitencourt (2011, p.71) dispõe que:
Será motivo de relevante valor moral aquele que, em si mesmo, é aprovado pela ordem moral, pela moral prática, como por exemplo, a compaixão ou piedade ante o irremediável sofrimento da vítima. Admite-se, por exemplo, como por motivo de relevante valor moral o denominado homicídio piedoso, ou, tecnicamente falando, a eutanásia. Aliás, por ora, é dessa forma que nosso Código Penal disciplina a famigerada eutanásia, embora sem utilizar essa terminologia.
Ademais, dependendo da conduta que o indivíduo possa vir a praticar, pode-se tipificá-la como crime de participação em suicídio, previsto no artigo 122, conforme disposição a seguir:
Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
(BRASIL, 1940)
Isso significa que eutanásia, no Brasil, além de ser considerada homicídio, também pode ser classificada como morte assistida, que é considerada crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, como é tipificado no artigo 122 no Código Penal.
Ademais, dependendo do caso concreto a eutanásia no Brasil pode até mesmo configurar homicídio qualificado (art. 121, §§ 2.º, I a IV), crime hediondo (art. 1.º, I da Lei 8.072/1990), com pena de reclusão de doze a trinta anos, quando se der, por exemplo, por motivo torpe (como na retirada de órgãos para o comércio clandestino, ou como forma de antecipar a herança, ou ainda, para o recebimento do prêmio de seguro de vida deixado) ou por impossibilitar a defesa do ofendido (desligar aparelhos de uma vítima inconsciente); ou homicídio qualificado-privilegiado, quando as qualificadoras forem de natureza objetivas, para não haver incompatibilidade com a privilegiadora subjetiva.
A eutanásia passiva, ainda, poderia ser encarada como um crime de omissão de socorro (Art. 135 do Código Penal: “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.”) ou de abandono de incapaz (Art. 133 do Código Penal: “Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: (…) § 2º Se resulta a morte:”) que possuem penas menores para o autor do delito, encontra apoio doutrinário no direito brasileiro, até por caracterizar-se, a eutanásia, na maior parte das vezes como um crime comissivo por omissão ou, também chamado, omissivo impróprio.
Vale destacar que, por vezes, a eutanásia foi qualificada e punida como um tipo de homicídio simples, variando a pena de 6 a 20 anos de reclusão, ou como auxílio a suicídio, com reclusão de 2 a 6 anos, se o homicídio se consuma; ou reclusão de 1 a 3 anos, se resultasse em lesão corporal de natureza grave (CÓDIGO PENAL, 1940). Critica-se a adaptação desse tipo penal, já que praticar homicídio de modo intencional é bem mais lesivo que atender à súplica de alguém que unicamente almeja a morte para seja cessada a sua dor.
4.2 A criminalização da eutanásia no Brasil
Legalmente falando, o consentimento de pacientes em estado terminal é irrelevante e é muito importante que crimes não sejam descartados. Em outras palavras, a eutanásia com o consentimento do paciente só pode desqualificar o chamado suicídio assistido, portanto, os tipos de crimes listados no artigo 122 - induzir, incitar ou suicídio assistido.
Apesar da existência de consentimento, liberdade e consciência, a lei criminal continua a condenar as ações do reclamante e nunca exclui as ações ilegais Lembre-se de que, em termos jurídicos, o consentimento de pacientes em estado terminal é irrelevante e é muito importante que crimes não sejam descartados.
A dignidade da pessoa humana não só é um dos princípios trazidos pela Constituição, como também está elencada no art. 1º, inciso III, da CF/88 como um dos fundamentos em que a Carta Magna é baseada. Considerada o princípio-matriz de todos os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana deve ser entendida, como um princípio relacionado com o respeito a direitos fundamentais inerentes à própria pessoa, tais como a vida, a intimidade, a liberdade, a honra e a autodeterminação da própria vida, exigindo respeito das demais pessoas e do Estado. (GONÇALVES, 2012)
Qualquer pessoa pode ser vítima de homicídio, conforme acima mencionado, inclusive não importando o grau de vitalidade. Tanto o ser humano saudável como o moribundo podem ser vítimas de homicídio. No atual estágio do ordenamento jurídico brasileiro a chamada “eutanásia” configura crime de homicídio. O máximo que pode ocorrer em casos que tais é o reconhecimento de uma redução de pena devido à configuração do chamado “homicídio privilegiado” (art. 121, §1º, CP). (CABETTE, 2012, p. 10)
O Novo Código Penal (PLS 236/2012), que ainda está sendo discutido, prevê no capítulo “Dos Crimes contra a vida” a forma da eutanásia, como crime comissivo, porém com uma pena mais branda do que a do homicídio simples e com a possibilidade de perdão judicial.
Mas, para isso é necessário que estejam preenchidos determinados requisitos, quais sejam: eutanásia praticada por cônjuge, companheiro, ascendente, descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima; agir por compaixão; o pedido da pessoa enferma (imputável e maior de 18 anos de idade) para reduzir o seu sofrimento; e a comprovação de que se trata de uma doença em estado terminal ou em estado grave.
Assim, o Novo Código Penal estipula sanção para a eutanásia com pena de reclusão de 2 a 5 anos. Entretanto, enfatiza-se que o artigo 121, § 4°, do projeto do Novo Código Penal estabelece que não constitui crime deixar de manter alguém por meio artificial, desde que atestada a morte inevitável e iminente por dois médicos e o consentimento do paciente ou pelo cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão, quando dada a impossibilidade do indivíduo em questão.
Ampliando o olhar para futuros comportamentos sociais, jurídicos e legislativos, Barbosa (2019) se utiliza dos argumentos jurisprudenciais do caso referente ao aborto de anencéfalos analisado pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510, uma vez que, de acordo com a referida autora, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao direito fundamental passou a compreender a mesma, não apenas enquanto um direito a permanecer vivo, como também, baseado pela fraternidade, um direito a viver de modo adequado, sendo o mesmo equiparado a todos os demais direitos fundamentais positivados na CF-88 e, portanto, passível de renunciabilidade diante do caráter de controle de constitucionalidade presente no princípio da interpretação conforme, se vê a inconstitucionalidade em tratar de modo igualitário o homicídio privilegiado, como vem acontecendo na prática judiciária brasileira, e a conduta eutanásica. (BARBOSA, 2019)
Ou seja, de acordo o acima exposto, os fundamentos utilizados no julgamento da ADI 3510, podem viabilizar futuros projetos que permitirão no ordenamento brasileiro, quiçá, não mais tratar a eutanásia e o suicídio assistido como homicídio ou instigação ao suicídio.
Neste sentido, o posicionamento adotado pela Corte Constitucional na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, sem dúvida, é um fator preponderante que poderá ser um facilitador das discussões sobre o reconhecimento da eutanásia e do suicídio assistido no Brasil, considerando que, diferentemente do feto, o doente que ainda possui capacidade de manifestação de vontade, deve ser ouvido e atendido em observância aos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade
4.3 O princípio da dignidade humana
A dignidade da pessoa humana é declarada e reconhecida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 1969. O artigo 11, §1º da Comissão estabelece que “toda pessoa tem direito ao respeito e ao reconhecimento de sua dignidade”. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969)
A dignidade da pessoa humana não só é um dos princípios trazidos pela Constituição, como também está elencada no artigo 1º, inciso III, da CF/88 como um dos fundamentos em que a Carta Magna é baseada. Considerada o princípio-matriz de todos os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana deve ser entendida como um princípio que mantém relação com direitos fundamentais intrínsecos à pessoa, assim como a vida, a intimidade, a liberdade, a honra, e que, por esse motivo, exige respeito dos demais indivíduos e do Estado.
O argumento moral para a legislação sobre a eutanásia voluntária parece basear-se principalmente no apelo ao princípio de autonomia, ou seja, visto que as pessoas têm direito moral de tomar decisões a respeito de sua vida, a lei deve respeitar esse direito e não colocar obstáculos às formas de suas decisões de pôr fim à vida com auxílio de outrem.
A Constituição, a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado, motivo pelo qual se chegou a afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana atua como o “alfa e ômega” do sistema das liberdades constitucionais e, portanto, dos direitos fundamentais. (SARLET, 2010, p. 87).
O princípio da dignidade da pessoa impõe limites à atuação estatal, objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade pessoal, mas também implica (numa perspectiva que se poderia designar de programática ou impositiva, mas nem por isso destituída de plena eficácia) que o Estado deverá ter como meta permanente, proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos, podendo-se sustentar, a necessidade de uma política da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.
Assegurar a vida a qualquer custo, sem o devido respeito ao que é considerado “digno” é desrespeitar e sentenciar o ser humano. Prolongar a vida em casos especialíssimo como em doentes terminais pode até ser considerado tortura, pois através do flagrante desrespeito à autonomia da vontade e à liberdade, permite-se a manutenção do sofrimento frente a uma situação irreversível. A lei que trata a vida como bem indisponível é a mesma que tem como princípio o direito à liberdade. Ser livre é ter autonomia para decidir o seu destino.
De acordo com Sidney Guerra, a dignidade da pessoa humana encontra alicerces no pensamento cristão, segundo o qual, criada à imagem e semelhança de Deus, “a pessoa é dotada de atributos próprios e intrínsecos, que a tornam especial e detentora de dignidade”. (GUERRA, 2013, p.53)
Indubitavelmente a Dignidade tem como marco conceitual de nosso tempo, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 ao estabelecer em seu preâmbulo que
(...) o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. (...) Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla. (ONU, 2009, p. 1)
Encontra-se neste documento os fundamentos dos direitos de todos os seres humanos, inclusive a dignidade à vida, liberdade, igualdade e tantas outras condições indispensáveis e necessárias para uma vida plena. Entretanto, há também em seu artigo que “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.” (ONU, 2009, p. 4). Posição reafirmada pela Constituição Federal de 1988.
O direito de morrer, portanto, estaria assentado justamente nesta linha de pensamento que concebe a vida a partir do princípio da dignidade e que valoriza a autodeterminação do sujeito na escolha pelo processo natural de sua morte, abdicando assim, de meios extraordinários que acarretem o seu prolongamento meramente orgânico-biológico. Segundo a teoria que concebe um direito geral de personalidade – o qual funcionaria como cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana – o direito de morrer poderia enquadrar-se como um dos direitos que envolveriam a pessoa humana tendo em vista a proteção de sua personalidade, com fundamento na dignidade, até mesmo acima do bem vida.
O princípio da dignidade humana, pois, busca atribuir direitos e garantias fundamentais ao indivíduo, para que possa decidir os rumos do seu próprio destino e tenha condições mínimas indispensáveis a uma vida pautada no bem-estar com respeito por parte do poder público e de terceiros.
Considerações finais
O medo de morrer é universal e atinge todos os seres humanos, independente de idade, do sexo, do nível socioeconômico e do credo religioso, sendo um processo básico e intransponível, provocando o temor pelos rompimentos de laços afetivos, a sensação de fracasso e finitude, a perspectiva de julgamento final pelas boas e más ações terrenas, o receio de sofrimento demasiado/agonizante, a fragmentação da personalidade.
A preparação à morte, especialmente a que leve a um fim digno, exige um processo de transformação, com vistas à humanização do processo de morte, levando-se em consideração a importância da autonomia do paciente terminal como valor que o dignifica, embora a liberdade de escolha não seja absoluta, uma vez que se deve observar os preceitos médicos, casuisticamente.
O direito de morrer dignamente é a reivindicação por vários direitos e situações jurídicas, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, os direitos de personalidade. Refere-se ao desejo de se ter uma morte natural, humanizada, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil. (BORGES, 2012, p. 02)
Uma vez que morrer é uma consequência natural da vida sendo necessária uma educação para que este convívio social com o tema se torne algo aprazível e confortável, visando garantir que a morte ocorra de uma forma digna, o menos dolorosa possível.
Mesmo com os avanços tecnológicos e mudanças culturais, deveria se manter a preocupação em relação ao enfermo no sentido de devolvê-lo ao carinho da família, ressignificando a morte em contexto sociocultural, sem entretanto perder a imprescindível atribuição de bem cuidar. Propõe uma nova ética, não a da supressão da vida em função de sofrimento injustificado, mas a de confrontar, aliviar, cuidar do ser humano biopsicossocial e espiritual no momento de despedida da vida, respeitando, até os últimos instantes, o que tipifica como verdadeira razão dos vocacionados para cuidar.
Por essa razão, é necessário ter claro o que podem ser considerados estados clínicos terminativos, para esta pesquisa: doença terminal, o estado vegetativo persistente e doenças crônicas, especialmente a demência avançada. É importante, nessas situações, reconhecer a autonomia do paciente, e ser preservada a condição sine quan mon, garantindo, assim, a autonomia a este, pois apenas, dessa forma, seria possível garantir ao indivíduo que ainda consiga ser protagonista da sua vida, para que não seja um mero coadjuvante.
Por fim, entende-se que num Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade não pode ser analisado de forma isolada, mas sim em consonância com os princípios da justiça, da moral e do bem-estar, seja pelo enfoque filosófico ou positivista.
[1]Dr. Em Direito Jurídico Educacional pela Universidad Nacional Expermental De Los Lianos Occedentales Ezequiel Zamora – UNILLEZ.
Graduando do Curso Superior de Direito pelo Centro Universiário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Jordan Albuquerque Simonetti de. O consentimento da vítima na criminalização da eutanásia e o princípio da dignidade humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2020, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55395/o-consentimento-da-vtima-na-criminalizao-da-eutansia-e-o-princpio-da-dignidade-humana. Acesso em: 22 nov 2024.
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