JOÃO CHAVES BOAVENTURA
(orientador)
Resumo: O presente artigo tem por objetivo principal analisar a responsabilidade civil pela violência obstétrica cometida por médicos no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Para isso, traz de maneira geral o problema: de que forma responsabilizar os responsáveis por violência obstétrica em âmbito cível? O presente tema foi escolhido por conta da complexidade do problema apresentado, que pode gerar controvérsias a respeito de qual seria o tipo de responsabilidade imputada ao responsável por esses danos causados as gestantes. Percebe-se, portanto, a relevância social do tema escolhido. Para alcançar esse objetivo, pretende-se levantar dados bibliográficos sobre a responsabilidade civil, e descrever de que forma a jurisprudência resolve essas controvérsias, procurando entender os motivos que levaram o julgador a adotar aquela decisão. Sendo a violência obstétrica um ato de violência muito danoso à vítima, é especialmente necessário que todas as circunstâncias em que o fato ocorreu sejam levadas a conhecimento jurisdicional, preferencialmente com provas de todas essas circunstâncias. Assim, sendo o caso de indenizar, o juiz poderá melhor decidir a respeito da fixação de indenização e poderá verificar maneiras de reparar o dano causado pelos envolvidos para que atos de violência como esses nunca mais sejam repetidos. Não obstante, o presente artigo também pretende investigar as consequências da violência obstétrica para o Estado, vez que o sujeito passivo da ação de responsabilização civil seria o médico ou equipe médico-hospitalar investidos do papel final do Estado em fornecer a saúde aos administrados e que, logo, poderão gerar litisconsórcio contra o Estado em eventual ação.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Estado; SUS; Saúde; Violência obstétrica
Abstract: The main objective of this article is to analyze civil liability for obstetric violence committed by doctors within the scope of the Unified Health System - SUS. For this, it poses the problem in general: how to hold responsible those responsible for obstetric violence in a civil context? The present theme was chosen because of the complexity of the problem presented, which can generate controversies as to what type of responsibility would be attributed to the person responsible for these damages caused to pregnant women. Therefore, the social relevance of the chosen theme is perceived. To achieve this objective, it is intended to collect bibliographic data on civil liability, and to describe how the jurisprudence resolves these controversies, seeking to understand the reasons that led the judge to adopt that decision. As obstetric violence is an act of violence that is very harmful to the victim, it is especially necessary that all the circumstances in which the event occurred are brought to the attention of the courts, preferably with evidence of all these circumstances. Thus, in case of indemnity, the judge will be able to better decide on the indemnity setting and will be able to find ways to repair the damage caused by those involved so that acts of violence like these are never repeated. Notwithstanding, this article also intends to investigate the consequences of obstetric violence for the State, since the passive subject of the civil liability action would be the doctor or medical-hospital team invested with the final role of the State in providing health to the administered and that therefore, they will be able to generate a consortium against the State in an eventual action.
Keywords: Civil responsability; State; SUS; Cheers; Obstetric violence
INTRODUÇÃO
O direito a saúde é um direito assegurado constitucionalmente, junto ao direito à assistência social e previdência, dentro do espectro da Seguridade Social.
Em se tratando do direito à saúde pública, prestado por meio do Sistema Único de Saúde, entendemos que esse serviço está sujeito aos princípios ais conhecidos do direito administrativo: a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Nesse sentido, é importante garantir o acesso à saúde com todos com moralidade por parte dos atendentes da equipe da saúde, qualquer que sejam eles – médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, entre outros – e, além disso, garantir um atendimento eficiente aos que necessitam da saúde, de maneira em que ocorram o mínimo possível de efeitos adversos por parte dos pacientes.
No caso do direito ao acesso à saúde direcionado às gestantes, verifica-se ainda mais a necessidade da prestação de serviços com a qualidade que decorre do princípio da eficiência do serviço público.
Mesmo assim, não são raras as vezes em que denúncias chegam à mídia e aos órgãos administrativos competentes a respeito de casos em que a gestante é tratada com total descaso nas Unidades Básicas de Saúde ou em hospitais de referência.
Hoje, a violência obstétrica é um problema ainda enfrentado com frequência pelas gestantes. Seja por meio da violência psicológica ou da violência física propriamente dita na hora de realizar o parto, é necessário dar um basta nessas práticas e verificar de que maneira ela pode punir os agentes envolvidos nesses casos.
Por esse motivo, o presente trabalho vem com o objetivo de estudar a respeito da violência obstétrica e sugerir a maneira que os agentes públicos envolvidos devem ser responsabilizados no âmbito cível.
Para além disso, o presente trabalho visa discutir a respeito das consequências negativas da violência obstétrica para o Estado, vez que este é responsável pelos atos que seus agentes, no exercício de suas funções, cometem contra os seus administrados visando, assim, demonstrar o porquê de o Estado ser o maior interessado pela diminuição dos casos de violência obstétrica principalmente nos casos em que ocorre em unidades de saúde pública.
1. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA – QUAIS SÃO SEUS IMPACTOS NO BRASIL?
A preparação para o nascimento de uma criança é um divisor de águas na vida da mulher: sua vida anterior muda totalmente. Rotina e planos para futuro, por exemplo, devem ser adaptados a essa nova realidade.
Infelizmente, a violência obstétrica ainda é uma triste realidade que algumas gestantes passam quando estão próximas ao parto ou em seções anteriores a ele, como no acompanhamento pré-natal por exemplo. A violência obstétrica pode ser definida como os maus tratos, desrespeito e abusos sofridos por essas mulheres, como veremos mais bem definido por alguns autores a seguir. Logo, percebemos não se trata unicamente de violência física, mas inclui-se também formas de violência psicológica para com as gestantes.
Para Carvalho e Brito (2017), a violência obstétrica é um problema que atinge não tão somente o Brasil, como ocorre em diversos países do mundo. As autoras, inclusive, reconhecem que a violência obstétrica, além de problema de saúde pública, também pode ser compreendida como uma questão de direitos humanos:
Durante o processo parturitivo inúmeras mulheres são vítimas de abusos e tratamento desrespeitoso no âmbito das instituições de saúde. Essa realidade, que atinge diversos países do mundo, além de violar os direitos dessas mulheres a um atendimento de qualidade, coloca em risco a sua integridade física e mental em um momento de extrema singularidade. Sendo assim, além de um problema de saúde pública, tem-se uma questão de direitos humanos
Como vimos, a violência obstétrica pode ser definida de muitas maneiras. Entre elas, há situações de omissão, como recusa de serviços necessários a saúde da gestante e a recusa de administração de analgésicos, por exemplo, além de violência física propriamente dita, conforme nos esclarecem Lansky et al. (2019):
Considera-se como violência obstétrica desde demoras na assistência, recusa de internações nos serviços de saúde, cuidado negligente, recusa na administração de analgésicos, maus tratos físicos, verbais e ou psicológicos, desrespeito à privacidade e à liberdade de escolhas, realização de procedimentos coercivos ou não consentidos, detenção de mulheres e seus bebês nas instituições de saúde, entre outros. Abrange a não utilização de procedimentos recomendados, assim como a utilização de procedimentos desnecessários, não recomendados e/ou obsoletos e que podem causar dano. Procedimentos não justificados podem gerar consequências e iatrogenias, com efeitos evitáveis sobre a saúde da mulher e a do bebê, como a distócia no parto, hemorragias e hipóxia neonatal, além da insatisfação da mulher e a depressão pós-parto.
No caso de pacientes atendidas pelo Sistema Único de Saúde, esse problema consegue ser ainda mais dramático, uma vez que para além dos problemas enfrentados em decorrência das situações de violência obstétrica, há ainda as problemáticas do próprio sistema público.
Tais problemas já são conhecidos pela população de renda mais baixa, que depende unicamente desse modelo de prestação de serviço de saúde: a falta de médicos, enfermeiros e demais auxiliares da equipe médica, a falta de medicamentos importantes ao processo de cicatrização e cura das doenças as quais o paciente enfrenta e a demora na marcação de exames importantes são os problemas mais comumente enfrentados.
Dessa forma, podemos traçar um paralelo entre os piores casos de atendimento médico e posterior violência obstétrica em decorrência de atendimento inadequado por parte da equipe médica, as deficiências do Sistema Único de Saúde e a maior impacto desses casos de violência obstétrica em mulheres que fazem parte da população de baixa renda per capita.
Segundo Andrade e Aggio (2014), existem certas dificuldades para o reconhecimento da violência obstétrica como ato violento e que, portanto, é passível de punição dos responsáveis. Uma dessas dificuldades é que o momento da gestação, de maneira geral, é muito particular a cada gestante, de maneira em que a mulher vivencia emoções fortes e por esse motivo acabam se calando diante destes atos abusivos ocorridos contra elas:
Ressalta-se que a violência obstétrica é ainda pouco reconhecida enquanto um ato violento, pois no mesmo momento que ela ocorre, as mulheres estão vivenciando marcantes emoções, que as fazem se calar, sendo necessário abordar os direitos da mulher durante a gestação, parto e pós-parto, especialmente nas consultas de pré-natais, onde tem-se a oportunidade de abordar os variados assuntos e, instrumentaliza-la para à tomada de decisões no que se refere ao seu corpo e a sua parturição , e que ela possa argumentar e denunciar situações de desrespeito.
Carvalho e Brito (2017) abordam a importância da vítima reconhecer o abuso ocorrido, uma vez que a partir disso o Estado e os envolvidos no âmbito da saúde pública reconheceriam o problema, a sua manifestação e maneiras eficientes de conseguir enfrenta-lo adequadamente: “entende-se que a identificação das formas de violência é uma maneira de reconhecer a existência do problema e como se dá a sua manifestação.”
Zanardo et al. (2017) trazem alguns dados interessantes para compreendermos a dimensão do problema no Brasil. Segundo os autores, a maior parte dos partos realizados no país – representando 98,08% do total – é realizado por meio de partos hospitalares.
A princípio, esse dado pode não parecer alarmante, tampouco anormal; no entanto, quando levamos em consideração da Organização Mundial da Saúde em manter os partos hospitalares no índice de 10 a 15%, Zanardo et al. (2017) demonstram o quão preocupante pode ser esse cenário, vez que, como verificamos anteriormente, a violência obstétrica também pode ser verificada pela utilização de procedimentos desnecessários a gestante ou não recomendados, como demonstra-se pelo não seguimento de orientações da OMS:
No Brasil, segundo informações do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde – DATASUS, de 2015, os partos hospitalares representam 98,08% dos partos realizados na rede de saúde e, entre os anos de 2007 e 2011, houve um aumento de 46,56% para 53,88% de partos cesáreas. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde (2015) mostram que a taxa de operação cesariana chega a 56% na população geral, sendo que esses números variam entre o atendimento nos sistemas público e privado de saúde, que apresentam uma ocorrência de aproximadamente 40% e 85%, respectivamente. Esse cenário é considerado alarmante quando se leva em conta que a recomendação da Organização Mundial da Saúde – OMS (World Health Organization, 1996a) é de uma taxa de cesáreas que varie entre 10 a 15%. Essa recomendação está baseada em estudos que apontam que uma taxa maior que 15% não representa redução na mortalidade materna e tampouco melhores desfechos de saúde para a dupla mãe-bebê (Ministério da Saúde, 2001, 2014, 2015)
Dessa maneira, é importante que o Estado tenha estratégias que mitiguem e diminuam cada vez mais as ocorrências de violência obstétrica no Brasil.
Lansky et al. (2019) sugerem que a violência obstétrica ocorre de maneira muito recorrente em nosso país: “no Brasil, a pesquisa (...) verificou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto, desde gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.”
Segundo Sena e Tesser (2017), a sociedade civil já vem se organizando contra esta prática. Aos poucos, grupos tem se organizado para influenciar que o Estado tome medidas para promover o parto humanizado, que poderia ser mais bem realizado desde que o Estado, juntamente com profissionais e instancias da saúde se engajassem nessa causa:
O movimento contra a violência obstétrica no Brasil é derivado das críticas crescentes que os diferentes grupos vêm fazendo a respeito da assistência ao parto no país, sendo considerado como um “movimento em prol da humanização do parto e nascimento”, que envolve diversos profissionais e instâncias da sociedade. Tal movimento se baseia no reconhecimento da participação ativa da mulher e de seu protagonismo no processo de parto, com ênfase nos aspectos emocionais e no reconhecimento dos direitos reprodutivos femininos
Esses grupos têm como um dos objetivos principais o empoderamento das mulheres, de maneira em que as colocavam como donas de si e, consequentemente, de escolher as suas condições reprodutivas e a maneira que gostaria de dar à luz, desde que essa decisão não fira a sua integridade física.
Além disso, Zanardo et. al (2017) destacam a importância da mediação feminina no momento em que essa gestante dará à luz, com a priorização para as enfermeiras dentro desse contexto:
Além de resgatar o parto e o nascimento como eventos fisiológicos e naturais, o movimento de humanização também busca empoderar as mulheres, retomando os poderes e saberes femininos que teriam sido eliminados. Esses poderes estariam baseados na condição biológica da mulher, na sua capacidade reprodutiva e em seu instinto materno (Tornquist, 2002). Reposiciona-se a mulher enquanto dona do seu corpo e de sua sexualidade, que possui um corpo capaz de gestar e de parir, capaz de ter seus filhos com o apoio e mediação de outras mulheres (enfermeiras, obstetrizes, doulas)
2 RESPONSABILIDADE CIVIL: O QUE É E O QUE TEM A VER COM A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
2.1 Conceito
A responsabilidade civil é Para Gonçalves, Carlos Roberto, Direito Civil brasileiro, Ed. Saraiva, 2007, p.13,14).
Fato jurídico é todo acontecimento da vida que o Direito considera relevante, são os fatos que o Direito pode ou deve interferir. Podem ser naturais, acontecidos pela força da natureza, como entre outros, o nascimento, morte, tempestade, ou voluntários quando são causados por condutas humanas que podem ser atos lícitos ou ilícitos. Os lícitos são os que estão de acordo com a lei produzindo efeitos em conformidade com o ordenamento jurídico. Os ilícitos são os que estão em desacordo com o ordenamento jurídico logo produzem efeitos, que de acordo com as normas legais causam um dano ou um prejuízo a alguém, com isso criam uma obrigação de reparar o dano que foi causado, conforme visto no art. 186 e art. 927 do Código Civil onde estão as seguintes previsões "Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral comete ato ilícito" e "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".
2.2 Pressupostos
A existência da responsabilidade civil parte da ideia de que existe o dever de não causar dano a outra pessoa. Para RAMOS (2014) “ao violar este dever jurídico originário, passamos a ter um dever jurídico sucessivo, o de reparar o dano que foi causado”.
O dever jurídico originário ao qual o autor refere-se é justamente o de não causar dano a ninguém. Logo, se o fizermos, é necessário que haja uma compensação, de forma que o dano que foi por causado possa ser efetivamente reparado.
Para que se configure o ato da responsabilização civil do agente, é necessário que alguns requisitos sejam cumpridos. Tais requisitos são: conduta; existência de danos materiais ou imateriais; nexo causal e culpa.
A responsabilidade civil é, ainda, dividida em dois grupos: responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva. O presente projeto visa explicar tais conceitos e os relacionar ao tema em questão, para que se possa compreender a relevância e a necessidade da responsabilização civil por danos causados por conta da violência obstétrica.
Nesse sentido, SANTOS (2012) entende que o primeiro elemento que se deve observar em âmbito da responsabilização civil é a conduta. Isso porque, segundo o autor,
o elemento primário de todo ato ilícito, e por consequência da responsabilidade civil é uma conduta humana. Entende-se por conduta o comportamento humano voluntário, que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas (grifo nosso)
Via de regra, é necessário que haja um ato de vontade por parte do agente. Sem esse requisito, não há que se falar em responsabilidade civil (SANTOS, 2012). Isso porque esse ato de vontade seria contrário ao ordenamento jurídico, configurando assim ato ilícito por parte do autor do dano.
Nesse sentido, nos leciona DINIZ (2005, p. 43 APUD SANTOS, 2012):
A ação, elemento constitutivo da responsabilidade, vem a ser o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntario e objetivamente imputável do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado
Sobre a existência de danos materiais ou imateriais (morais), primeiro deve-se recorrer à noção do conceito de dano para a responsabilidade civil. O dano pode ser definido como “o dano pode ser definido como a lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra a sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral” (DINIZ, 2006, APUD SANTOS,2012)
O dano material é aquele em que há prejuízo econômico para a vítima. O prejuízo econômico pode vir com o que a vítima perdeu e com o que ela deixou de ganhar por conta daquele dano a ela causado. Nesse sentido, a lição de SOARES NETO (2017) é elucidativa:
Os danos materiais caracterizam-se por causar dano a determinado bem jurídico dotado de valor econômico. São divididos em dois subgrupos: danos emergentes (danos positivos); e os lucros cessantes (danos negativos).
Danos emergentes são constituídos pelo prejuízo sofrido diretamente de maneira imediata, redução do patrimônio, ou de maneira mediata, está caracterizada por despesas indevidas. A fim de ilustração dos danos emergente usaremos, como exemplo, um acidente de trânsito onde ocorra o dano no automóvel. O dano causado ao veículo é um dano material emergente, visto que, imediatamente houve redução no patrimônio da vítima. Por seu turno, o custo de guincho para retirada do veículo, caracteriza uma despesa indevida, mediata, pois a vítima não terá de imediato seu patrimônio afetado.
Lucros cessantes se dá pela perda da possibilidade de aumento patrimonial, ou seja, valores que a vítima deixa de auferir em decorrência de determinada conduta ilícita
Já o dano moral é algo que causa profundo dano psíquico na vítima, podendo causar-lhe profundo pesar, por exemplo. Desta forma, o dano moral não é qualquer dano, qualquer irritação causada a vítima. Conforme o ensinamento de SÁ () sobre o dano moral, ele seria a violação de direitos da personalidade, como o direito a honra por exemplo:
Há consenso na doutrina e na jurisprudência que o dano moral seria a violação a um dos direitos da personalidade previstos no artigo 11 do Código Civil, como por exemplo, a violação do direito ao nome, à imagem, a privacidade, à honra, à boa fama, à dignidade etc., sendo dever do juiz que aprecia o caso concreto verificar cuidadosamente se determinada conduta ilícita, dolosa ou culposa, causou prejuízo moral a alguém, provocando sofrimento psicológico que supere meros aborrecimentos da vida cotidiana a que todos nós estamos sujeitos
Há diversas discussões a respeito da caracterização do dano moral. A doutrina diverge quando faz as suas análises, umas são mais bem detalhadas e outras mais superficiais. De qualquer forma, a análise é feita tomando por consideração o homem médio – aquele entre os opostos: alguém muito sensível ou outro alguém que não se abala por nada.
Sobre a indenização, SÁ (2017) entende que não há critérios matemáticos, por isso a fixação de indenização pode não ser tarefa fácil para o juiz: “não há critérios objetivos nem mesmo fórmula matemática para a fixação de indenização por dano moral, sendo que nem mesmo a própria vítima possui condições de avaliar monetariamente o dano moral sofrido”.
Nesse sentido, é necessário que todas as circunstâncias em que o fato ocorreu sejam levadas a conhecimento jurisdicional, preferencialmente com provas de todas essas circunstâncias. Assim, o juiz poderá melhor decidir a respeito da fixação de indenização.
Sobre o nexo causal, é interessante ressaltar que ele é uma das mais importantes figuras da responsabilização civil. Isso porque é necessário ligar e provar que a conduta do agente teve o referido impacto sobre a da vítima, causando-lhe danos morais ou materiais.
KRETZMANN (2018) explica que existem as mais variadas teorias a respeito do nexo causal. Para a autora, o nexo causal deve ser visualizado conforme a produção de provas e caso a caso.
Além disso, KRETZMANN (2018) explica que existem 5 teorias as quais sujeitam-se a explicar o nexo causal. O código civil não adotou necessariamente nenhuma dessas teorias, diferente do que ocorreu com o código penal. A autora trabalha bastante a teoria da causalidade adequada:
A teoria da causalidade adequada igualmente não adota a premissa de que todas as causas são iguais. Surgiu para atenuar a amplitude da teoria da equivalência das condições, pois restringe o conceito de causa, baseando-se em um juízo de probabilidade e partindo da observação daquilo que comumente acontece na vida.
Foi elaborada por Von Kries e estabelece que há várias condições e cada uma delas contribui para a realização do evento danoso, mas somente uma delas vai ser elevada ao conceito de causa por ser considerada adequada. A causalidade adequada, assim, é aquela sem a qual o evento não teria acontecido, é a que se apresenta como consequência normal. A identificação da causa adequada é feita, portanto, levando-se em consideração o próprio dano. Busca-se reconhecer o que pode vir a ocorrer a partir de determinado fato em um fenômeno de prognose. O intérprete sabe da ocorrência do dano, volta ao passado e considera os efeitos abstratos. Examina-os e conclui quais se identificam com os efeitos concretos. Quando houver essa coincidência dos efeitos concretos com os abstratos haverá a identificação da causa adequada e surgirá o dever de indenizar
Sobre o conceito de culpa do agente, é tarefa muito difícil de a definir. Isso porque há complexidade e complicações a respeito da sua ação. Nos ensina PONTES (2018): “a culpa está intimamente vinculada ao comportamento do lesante, considerado como um valor social qualificado pela censurabilidade ou reprovabilidade”. Para GONÇALVES (APUD PONTES 2018):
Agir com culpa significa atuar o agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito. E o agente só pode ser pessoalmente censurado ou reprovado na sua conduta, quando, em face das circunstâncias concretas da situação, caiba afirmar que ele podia e devia ter agido de outro modo
Nesse sentido, é importante destacarmos que a culpa se desdobra dentro de dois aspectos: responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva. Quando falamos de responsabilidade civil subjetiva, falamos da necessária comprovação de dolo ou culpa no resultado; já na objetiva, o indivíduo responde pelo dano independente de culpa.
Em se tratando da responsabilidade civil subjetiva, há expressa referência ao conceito de PONTES (2018):
Na responsabilidade civil subjetiva é justamente essa censurabilidade/reprovabilidade comentada na conceituação da “culpa” que justifica a responsabilidade do lesante pelo dano provocado, a ele impondo o dever de indenizar a vítima, reparando o dano sofrido ou, ao menos, compensando-o, nas hipóteses de dano moral
Nesse sentido, deve-se lembrar da regra disposta no artigo 927, Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Na responsabilidade civil objetiva, é necessária apenas a configuração do nexo causal, independendo da análise de dolo ou culpa. Para CARDOSO (2017), a responsabilidade civil em sua forma objetiva pode ser visualizada, por exemplo, em relações de consumo. Outra característica importante é que não se pode presumir a responsabilidade objetiva – ela precisa de previsão legal para que se concretize:
A responsabilidade objetiva é presente na maioria das relações previstas no código de defesa do consumidor, e, novamente utilizando o universo do exemplo anterior, podemos definir que, no mesmo acidente de ônibus, a empresa responsável pelo transporte responderá de forma objetiva pelos transtornos causados, justamente pela relação empresa-cliente ser prevista no código consumerista.”
2.3 Responsabilidade civil para casos de violência obstétrica
A violência obstétrica, como vimos, é triste realidade ocorrida com as gestantes. Em sendo este fato um grave dano a gestante, é importante trabalharmos o assunto propriamente dito deste artigo: de que maneira responsabilizar os envolvidos neste dano?
A responsabilidade civil no caso em que ocorre nas unidades públicas de saúde, deve ser dividida entre a responsabilidade da equipe médica e a responsabilidade civil do Estado, uma vez que o Sistema Único de Saúde é responsabilidade estatal.
Cordini (2018) ressalta a possibilidade de a vítima de violência doméstica demandar a responsabilização direta do agente que lhe provocou o dano. Sua tese é corroborada por jurisprudências pátrias:
Em se tratando especificamente de profissional de obstetrícia atuante na rede pública de saúde ou atuantes em hospitais privados conveniados ao Sistema Público de Saúde, importante destacar que a regra prevista no § 6º, do artigo 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), não constitui óbice à vítima de violência obstétrica propor a demanda diretamente contra o profissional causador do dano, conforme tem entendido a jurisprudência pátria, desde que demonstrada a conduta culposa do agente no exercício da sua atividade, considerando a responsabilização subjetiva sabidamente aplicada aos profissionais liberais, facultando-lhe, assim, ajuizar a ação contra o profissional, contra o ente público ou contra ambos.
A respeito dos profissionais médicos especializados em obstetrícia, Cordini (2018) salienta que existe um tratamento jurídico especial dado a estes profissionais, uma vez que a sua responsabilização é derivada da demonstração de culpa do agente causador do dano:
Este tratamento jurídico diferenciado, baseado na necessidade de demonstração de culpa do profissional de saúde para sua consequente responsabilização, apresenta-se absolutamente razoável, considerando que a adoção da responsabilidade objetiva nas relações médico-paciente, tornaria inviável o exercício da obstetrícia, primeiro, por se tratar de obrigação de meio, na qual o êxito do nascimento depende não apenas do profissional, mas também de fatores alheios à sua vontade e, segundo, ante a insensata possibilidade de ser o médico responsabilizado pela adoção de condutas emergenciais, que objetivam salvar a mãe e/ou o nascituro.
Dessa maneira, Cordoni (2018) demonstra a importância de se distinguir o que é violência obstétrica – aqui entendidas pela autora como procedimentos que visam exclusivamente a celeridade do procedimento - e o que não é – ou seja, aqueles procedimentos que são padronizados no meio médico, embasados de evidências científicas:
Por estas razões, para melhor elucidação da responsabilidade civil dos profissionais de saúde, importa distinguir as recomendações médicas baseadas em evidências científicas e de caráter emergencial, e as condutas caracterizadoras de violência obstétrica, empregadas visando precipuamente, à celeridade do procedimento e à comodidade do profissional, ou, ainda, interesses econômicos, bem como as decorrentes de técnicas e procedimentos inadequados.
Quanto a responsabilidade civil do Estado no caso de violência obstétrica, Cordoni (2018) observa que a Administração Pública deveria servir de exemplo a iniciativa privada, vez que o Estado tem o dever de oferecer proteção a maternidade.
Apesar de a violência obstétrica não ser privativa da rede pública de saúde, essa deveria servir de paradigma ao sistema privado, eis que se encontra regida sob a égide da Administração Pública, cujo compromisso principal é oferecer proteção efetiva à maternidade, nos termos do artigo 6º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), mediante a adoção de políticas públicas que propiciem um parto humanizado às mulheres.
Infelizmente, isso não ocorre e muitas vezes o Estado é omisso ao não fornecer a possibilidade do parto e da assistência ao parto humanizados, de maneira que a vítima da violência obstétrica acaba sofrendo inúmeros procedimentos invasivos muitas vezes desnecessários:
Todavia, na maioria das vezes, o que se percebe é que o Estado, em flagrante ofensa aos princípios constitucionais já elencados, revela-se omisso no que tange à humanização da assistência ao parto. Ele permite, ainda que de forma indireta, por intermédio de seus agentes, que o direito de escolha da mulher durante o processo gestacional seja cerceado, além de se manter inerte diante dos procedimentos invasivos realizados à revelia da gestante/parturiente. Deste modo, evidencia-se, a sua responsabilidade pelos atos e, por via de consequência, pelas faltas cometidas pelos profissionais atuantes no sistema público de saúde. (CORDONI, 2018)
Ressalta-se ainda que a responsabilidade civil do Estado poderá ocorrer quando o problema da violência obstétrica ocorre, por exemplo, nas Unidades de pronto atendimento ou nos postos de saúde, uma vez que estas unidades são administradas pelo Poder Público:
Na mesma esteira da responsabilidade civil dos hospitais públicos, tem-se os postos de saúde e Unidades de Pronto Atendimento (UPA), cujos estabelecimentos, de igual modo, são geridos pela Administração Pública. Nesse sentido, mister a aplicação do artigo 37, § 6º da Constituição Federal e a consequente responsabilização do ente público, independentemente da demonstração de culpa, pelos danos causados por seus agentes às vítimas de violência obstétrica, ressalvados os casos excludentes de nexo causal, que, aqui, torna-se a aplicar. (CORDONI, 2018)
Também será possível a responsabilização do Estado em serviços ofertados pelo SUS em parceria com unidades de saúde da iniciativa privada, desde que haja um convênio entre estas empresas privadas e a Administração Pública:
No tocante ao Sistema Único de Saúde (SUS), introduzido pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seus artigos 197 e seguintes, esse sistema permite ao Estado valer-se dos serviços ofertados pela iniciativa privada para execução dos serviços de saúde, mediante celebração de convênio entre instituições particulares e a Administração Pública. (CORDONI, 2018)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência obstétrica é um problema enfrentado com frequência pelas gestantes, realizado com a violência psicológica ou da violência física no momento de realizar o parto.
Como vimos, é dever do Estado fornecer o direito à saúde a todos, de maneira que respeite todos os princípios da Administração Pública, como o princípio da moralidade, por exemplo.
Dessa maneira, é necessário que o Estado coíba os casos de violência obstétrica cometidos em todo o país, mas principalmente em postos de saúde, UPAs e em hospitais conveniados com o SUS, uma vez que o Estado é o maior interessado pela manutenção dos direitos individuais dos administrados, tais como a dignidade da pessoa humana, e esses direitos devem ser garantidos também no acesso a saúde.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CORDONI, S M. A responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica praticada na rede pública de saúde. Disponível em: https://smcordini.jusbrasil.com.br/artigos/687322866/a-responsabilidade-civil-nos-casos-de-violencia-obstetrica-praticada-na-rede-publica-de-saude
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Graduanda do curso de Direito da ULBRA-Manaus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FROTA, Andreia de Souza. Responsabilidade civil por violência obstétrica cometida por médicos do SUS: de que maneira efetivamente responsabilizar os responsáveis? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2020, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55905/responsabilidade-civil-por-violncia-obsttrica-cometida-por-mdicos-do-sus-de-que-maneira-efetivamente-responsabilizar-os-responsveis. Acesso em: 22 nov 2024.
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