THABATA FLÁVIA SOUSA CRAVO: Graduando bacharel em Direito pelo Centro Universitário Una-aimorés
(coautora)
Para que possamos entender de que forma se deu a ascensão do Estado Democrático de Direito precisamos fazer uma breve retrospectiva histórica sobre a evolução do que chamamos de Estado Moderno.
O Estado Moderno, consolidado a partir do século XIV, foi um processo marcado pela separação de poderes, funções administrativas e políticas. A partir desta ideia tornou- se necessário o aprimoramento destes institutos, assim sendo admitiu-se que o estado moderno se ramificasse em duas espécies, sendo estas, o Estado Liberal e o Estado Social.
Neste contexto, importante tratarmos, daquele denominado Estado Social ou Estado De Direito, que ensejou na consolidação do Estado Democrático de Direito. O Estado Social, que nos referimos, surgiu logo após a Revolução Francesa, num período marcado pela transição do absolutismo para o parlamentarismo. O surgimento deste modelo passa a ter destinação o favorecimento do crescimento econômico e a proteção social dos indivíduos, tornando-se instrumento de transformação e regulação social.
Como podemos observar, em consequência destas transformações, progressivamente o Estado precisou intervir para regular questões sociais, que regem o cotidiano, como por exemplo o direito ao trabalho, seguridade social, questões de ordem econômica e etc. Sendo assim, no início do século XX, surge o chamado Estado de Bem Estar Social, que vem com uma proposta garantidora de direitos básicos, vinda da necessidade do fornecimento de materiais pelo Estado.
Assim sendo, seria este Estado o responsável pela regulação de aspectos da vida privada, como o direito político, de alimentação, saúde, habitação, educação, valor mínimo de renda, que não seguiriam a linha de caridade, mas sim de direitos fundamentais prestacionais, assegurados a todos os cidadãos.
Neste viés, trazemos a junção do Estado de Direito com o Estado Democrático de Direito, como uma tentativa de unir os seus respectivos conteúdos, contemplando sobretudo a preocupação social e as garantias jurídico-legais. Importante ressaltar, que o conceito de democrático, não surge como uma forma de democracia representativa, haja vista, que no Estado de Direito, esta já se fazia presente em alguns pontos, mas sim como uma intenção do Estado de melhorar a vida das pessoas.
Assim diz, Bolzan de Morais e Streck:
O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador na realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida humana digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação publica quando o democrático qualifica o estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E maus, a ideia de democracia contem e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência.
No Estado de Direito, apresentado após a Revolução Francesa, já se tinha uma democracia representativa, neste sentido, o Estado Democrático de Direito fruto de diversas situações históricas, amplia seu contexto para a promoção dos direitos fundamentais sociais, sendo alguns destes, saúde, trabalho, previdência social, enfatizando a questão social e a igualdade.
Novamente Bolzan e Steck:
É este o conceito que, vindo estampado no texto constitucional (art. 1º), define os contornos do Estado Brasileiro, a partir de 1988, tendo-se presente que o constituinte nacional foi busca-lo em Constituições produzidas em situações similares a nossa, como é o caso da Constituição Portuguesa pós revolução dos cravos e da Constituição espanhola seguinte a derrubada do regime franquista, ou seja, documentos legislativos produzidos no interior de processos de redemocratização(...)
O Estado Democrático de Direito, traz uma vertente conceitual baseada na ideia de aplicação, pelo Estado, de um direito que respeite e efetive as liberdades civis, ou seja, que se efetive o respeito aos direitos humanos e as garantias fundamentais. O fundamento que reveste este conceito, encontra embasamento na necessidade de se estabelecer uma proteção jurídica, como um todo, aos destinatários das respectivas normas legais.
Num Estado de direito, que empunha a bandeira democrática, as próprias autoridades políticas estão sujeitas ao respeito das regras de direito, ou seja, o Estado em sua mais ampla abrangência, quais sejam todas suas funções, estão submetidos a uma organização social que atenda o interesse comum.
De acordo com fatores observados a cima, a constituição nos trás princípios norteadores que regem o Estado de direito e o Estado Democrático de Direito. Tais princípios na constituição são normas a serem atendidas em sua primariedade.
Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I–a soberania; II–a cidadania;
III–a dignidade da pessoa humana;
IV–os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V–o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Dos mais diversos princípios, destacamos aqui o princípio da dignidade da pessoa humana, a soberania, divisão dos poderes, pluralismo político, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como entre outros.
A soberania da qual todo poder emana do povo, é uma forma de estado democrático de direito, onde há a participação direta e indireta do povo no poder. Sabemos que além de princípios, são valores democráticos que constituem instrumentos de realização prática para com o Estado.
No texto da Constituição Federal, percebe-se os mais diferentes princípios que o Estado deve seguir para atender a população como um todo, princípios estes que não só atendem as relações internas, mas determinam também suas relações externas.
Todos estes princípios expressos na constituição são de muita importância para configuração do Estado Democrático de Direito, sendo função a superação das desigualdades sociais, instaurando-se assim um regime que atenda a justiça social no referido estado.
Nesse sentido, no marco de conquista e efetivação de um Estado Democrático de Direito, sendo este, no Brasil a Constituição Federal promulgada em 1988, que vise a proteção jurídica daqueles que são regidos pelas normas nela contidas, é o Estado detentor da função de garantir as liberdades civis e os direitos humanos, condições mínimas para o desenvolvimento de uma vida justa.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Nesse viés, observamos que o Estado, como ente responsável pela organização da sociedade como um todo, detém o poder, através de leis por este estabelecidas de promover a proteção de direitos e garantias dos cidadãos, ou seja, o Estado deve prover os elementos mínimos para o acesso igualitário a serviços de segurança, saúde, trabalho, habitação, na forma de aplicação de direitos sociais, como exposto pela CF/88:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Importante destacarmos, que sequencialmente a Constituição Federal de 1988 nos traz em todo seu contexto normativo, uma diretriz que pactua e alinha o direito com a sociedade existente, ou seja, com o objetivo máximo de se efetivar o texto constitucional. Assim, a CF/88 apresenta todos aqueles direitos que são dispostos a todos os cidadãos, sendo estes políticos, sociais e que preceituam e efetivam a soberania da democracia, ou seja, que garantem a sobreposição da vida como bem maior, respeitando todos os direitos fundamentais para que esta se alcance.Assim bem diz, a Constituição Federal 1988:
1. Do direito a segurança pública:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos.
2. Do direito a seguridade social:
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
3. Do direito à saúde:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
4.Do direito a assistência social:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
5. Do direito a educação:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
6. Do direito a cultura:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Por fim, precisamos entender que o mínimo de dignidade, a que tanto se busca com o Estado Democrático de Direito, posto em prática pela CF/1988, somente se alcança quando de fato, medidas sócio-políticas não são mitigadas e fornecidas a uma minoria. É notório o descaso e a precariedade daqueles que reiteramos ser direitos fundamentais. Se o intuito é proteger o cidadão, em sua maior extensão, se torna incompatível abrandar seu acesso a educação, saúde, trabalho, moradia, visto que a afirmação trazida pela CF é: Dever do estado, direito do cidadão.”
Por todos os aspectos analisados, menciono a frase primorosa de Ferdinand Lassale, em “A essência da Constituição”, obra de 1863: “ A constituição sem inserção social é uma folha de papel”. Posto isso, o reflexo de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, é aquele que une Estado e população, garantindo a esta todos seus direitos fundamentais.
“Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira. O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos. Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos.” (Martin Luther King).
Muito se diz, sobre o surgimento do termo Estado Paralelo, como forma de associação ao crescimento da violência com a ação de criminosos ligados ao tráfico de drogas ou as milícias que atuam desenfreadamente no estado do Rio de Janeiro, conceito este que ganhou ênfase com a morte do jornalista Tim Lopes, em 2002.
O que devemos observar é o processo e o contexto de formação destas milícias e sua relação com o Estado, que por corrupção, impunidade ou omissão propiciaram o seu desenvolvimento e estabelecimento dentro das comunidades cariocas.
Neste sentido, Rogério Grego (Procurador de Justiça), Eduardo Maia Betini (Agente da Polícia Federal) e André Monteiro (Policial do BOPE), pontuaram em relação ao crescimento da violência, dentro de um contexto fático ao qual presenciaram:
“Nas últimas décadas, a cidade do Rio de Janeiro tem sentido o aumento da violência urbana, principalmente por conta do tráfico de drogas e seus efeitos nefastos.
As comunidades carentes, que povoam a cidade, foram tomadas por grupos criminosos, que impuseram seu regime de terror. Criaram um estado paralelo, com suas próprias regras. Eram territórios dominados que faziam de refém a população que neles vivia.”[1]
O Estado, enquanto guardião da constituição federal, deve prover o respeito aos direitos humanos e as garantias fundamentais, que consistem em permitir o acesso a população as condições básicas de sobrevivência, sendo tais, moradia, habitação, saúde, educação e saneamento básico. O que de fato se presencia dentro das inúmeras comunidades espalhadas pelo Brasil, mas principalmente no estado do Rio de janeiro, é a ausência completa destas garantias estatais.
Todo este desamparo sócio econômico demonstrado pelo estado, enseja no surgimento de diversos problemas que abraçam por completo as comunidades carentes. Quando o Estado deixa de arcar com o que de fato é sua obrigação, cria-se um ciclo repressivo, no sentido de que a instabilidade social faz com que cresça continuamente a busca subsidiária ou alternativa, para suprimento das necessidades que o povo tem.
É dentro deste cenário de completo desamparo que as comunidades vivem, que se consolidou o que denominamos de Estado paralelo, como forma de resposta a população, por outros agentes, que não estatais, de provisão para tudo aquilo que não foi fornecido e garantido pelo estado.
Quando se diz num crescimento representativo de violência, devemos observar, que este se encontra mais evidente dentro das periferias, porque é nelas que o estado deixa de agir efetivamente. A falta de acesso á educação, a saúde e demais garantias, comprimem a população numa situação de insegurança social, que se torna o ambiente mais favorável para que determinados grupos atuem como agentes controladores que fazem o papel de Estado.
Relacionado com que foi o dito, devemos mencionar sobre a Teoria Funcionalista da Anomia[2], apresentada por Robert Merton, em 1938, que segundo o criminólogo Alessandro Barata relaciona os contextos culturais expressos numa sociedade com os valores que os guiam dentro desta, ou seja, a realidade a qual se submerge um indivíduo, influencia diretamente em sua conduta social e as possibilidades de ação deste.
A cultura, ou "estrutura cultural" é para Merton 7, "o conjunto de representações axiológicas comuns: que regulam o comportamento dos membros de uma sociedade ou de um grupo". A estrutura social é, ao contrário, "o conjunto das relações sociais, nas quais os membros de uma sociedade ou de um grupo estão diferentemente inseridos". Anomia é, enfim, "aquela crise da estrutura cultural, que se verifica especialmente quando ocorre uma forte discrepância entre normas e fins culturais, por um lado e as possibilidades socialmente estruturadas de agir em conformidade com aquelas, por outro lado.[3]
Observamos então que o conceito de criminalidade para Robert Merton, perpassa entre os objetivos sociais almejados e os meios dispostos a população para que se alcance tais objetivos. Assim sendo, quando os meios lícitos para se alcançar tais objetivos não são satisfatórios, busca-se meios alternativos para consegui-los, sendo que, os quais são na maioria das vezes atos ilícitos.
A estrutura social não permite, pois, na mesma medida, a todos os membros da sociedade, um comportamento ao mesmo tempo conforme aos valores e às normas. Esta possibilidade varia, de fato, de um mínimo a um máximo, segundo - tem-se dito a posição que os indivíduos ocupam na sociedade. Isto cria uma tensão entre a estrutura social e os valores culturais e, conseqüentemente, díversos tipos fundamentais de respostas individuais(...)[4]
Dentro de viés, apontamos uma importante relação entre o meio social que determinados indivíduos vivem e os direitos e garantias fundamentais que deveriam ser dispostos a eles, sem prejuízo de desigualdades, haja vista, que estes direitos além de soberanos asseguram a efetividade do texto constitucional, jamais deixando serem reduzidos ou afetados.
Os direitos fundamentais nasceram como sendo aqueles considerados indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual, aí o porquê da denominação de fundamentais a tais direitos. Se o próprio direito surgiu da necessidade de regular as relações entre os indivíduos em sociedade, era necessário estabelecer, ipso facto, uma esfera de proteção do indivíduo em face de seus pares e em face do próprio Estado. Assim, as primeiras declarações de direitos foram marcadas por este caráter individualista, por meio do qual o soberano deveria se abster de violar um mínimo garantido aos cidadãos.[5]
Atribuição fundamental do Estado, emerge no sentido de que este é quem formula as garantias fundamentais que serão efetivadas por instrumentos legais, ou seja, a função do estado é criar uma ordem civilizatória. O que se observa, num sentido prático, é que o Estado, se absteve de efetivar suas políticas públicas dentro de comunidades carentes, o cenário que estas enfrentam, a anos, consiste num crescimento desenfreado de seus moradores, e consequentemente da violência, da miséria, e ainda da falta de inclusão social. O que observamos, é quem além da lacuna econômica existentes nestas comunidades, existe também uma lacuna social, que aguça ainda mais o conflito social.
Conforme a agência nacional do IBGE, pelo Censo 2010, o Brasil tinha cerca de 11,4 milhões de pessoas morando em favelas e cerca de 12,2% delas (ou 1,4 milhão) estavam no Rio de Janeiro. Considerando-se apenas a população desta cidade, cerca de 22,2% dos cariocas, ou praticamente um em cada cinco, eram moradores de favelas. O censo do IBGE tem informações detalhadas sobre favelas - que recebem o nome de aglomerados subnormais.
Neste sentido, aponta o IBGE, conforme censo demografico 2010:
"os aglomerados subnormais [6] podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias: invasão, loteamento irregular ou clandestino, e áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período recente”.[7]
Apresentando ainda dados estatisticos, temos pelo PNAD
– Pesquisa Nacional por Amostra de domicilios, que a distribuição regional de serviços de saneamento básico é bastante desigual: Segundo a PNAD 2015, cerca de 72,5% dos domicílios urbanos do país contavam com os três serviços básicos de saneamento: conexão à rede de esgoto, coleta de lixo e água encanada. Isso significa que aproximadamente 18,7 milhões de domicílios urbanos não contavam com pelos menos um dos três serviços.[8]
Notoriamente o que se percebe, é que desde o surgimento de grandes centros urbanos e metrópoles, com a extrema demanda por mão de obra acarretada pelo crescimento econômico e territorial destes, se instaurou fator definitivo para o surgimento de comunidades que serviriam como local de moradia da massa trabalhadora. Os números expressivos de comunidades existentes e da população nela habitante, são resultados de uma ocupação desenfreada, também decorrente da falta de políticas públicas efetivas pelo Estado.
Pelo cenário de extrema diferença social e econômica, já consolidados, abre-se brecha para o surgimento de Estados Paralelos, que atuarão não somente no suprimento das necessidades básicas daquela população. Cria-se em contrapartida a falta de segurança pública, um Estado, que institui suas próprias regras e condutas, assumindo assim todas as funções inerentes a este em todos os ramos organizacionais.
Os agentes do poder paralelo, atuam diretamente dentro destas comunidades, em seu contexto, delimitam aos cidadãos o direito de ir e vir, demarcam territórios, disputam a posse de pontos de venda de drogas, que é pratica reiterada e dominante dentro das favelas, convocam seguidores e a estes atribuem funções, de forma hieraquica, ou seja, promovem dentro de suas organizações, suas próprias regras de conduta, incluindo um sistema punitivo para aqueles que as descumprirem. Neste sentido, pontou Percival de Souza:
"O Estado, inteiramente dominado pelo crime organizado, vive sob o signo da insegurança e da incerteza e, nesse palco, a ordem jurídica é reconhecidamente precária”.[9]
O sistema abarcado e instituído pelo Estado paralelo, ultrapassa totalmente o domínio do Estado, as diversas práticas que estes aderiram, envolvem inúmeros rompimentos do poder legal. O crescimento e fortalecimento destes institutos decorrem do imenso poderio econômico que conquistaram pela prática de atividades ilícitas e da ausência total do Estado, que se abstém de garantir a segurança pública e condições sociais mínimas de sobrevivência aos moradores.
O crime organizado, surge como forma de suprimento de tudo aquilo que era função do Estado, mas atua em constante antítese aos direitos e garantias fundamentais, base de todo o coletivo.
Importante destacarmos, que a realidade existente dentro destas comunidades reflete o espectro de completa exclusão social em seus múltiplos ângulos. Seus moradores, de forma geral, estão inseridos numa estrutura de vulnerabilidade e insuficiência de medidas publicas pelo Estado. Desta forma, o impacto que esta falta de inserção gera, claramente se observa na estrutura destes complexos e nas relações sociais fixadas.
Nota-se que o vínculo criado entre população e estado paralelo, consiste em além de uma reação de poderio extremo por parte daqueles dominadores do território, mas também numa relação de crédito e confiança. O estado paralelo, por vivenciar a realidade prática da grande maioria dos moradores e prover assistência direta em suas mais amplas dimensões, conquista a confiança destes, criando-se assim um ciclo de adesão, que sustenta ainda mais a estrutura destas organizações, como no caso, da ausência de segurança pública dentro das comunidades.
Desta forma, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Promundo, intitulada “Pesquisa Internacional sobre Homens e Equidade de Gênero”, que abordou as relações existentes entre as comunidades e a presença da polícia e o medo que esta gera, haja vista que ação proposta por estes, na maioria dos casos é de forma repressiva, concluiu-se, que o medo é consistente pela presença violenta da polícia nas comunidades. Nesse sentido pontuou, Tatiana Moura, diretora executiva do Instituto Promundo:
“A verdade é que o tráfico está no dia a dia, e a polícia é esporádica. A presença do Estado ao longo da história tem sido mais violenta que pacífica. É uma força da autoridade, que entra muitas vezes para lançar medo, e é responsável por grande parte do homicídios.”[10]
Destarte, o que podemos perceber é que o surgimento e estruturação do estado paralelo, nada mais é que o reflexo da inaplicabilidade das políticas públicas e sociais dentro das grandes comunidades. O Estado, omisso em suas práticas abriu brechas para que tais territórios fossem dominados e controlados de forma abusiva e particular.
O que se espera é que de alguma forma, o Estado possa intervir para desproblematizar a estrutura já existente e consolidada, desvinculando a atuação do estado paralelo. É sua atribuição constitucional atuar nas ações do direito público. Por fim, o que de fato se deve observar é o resultado impactante do desmazelo do estado em relação a população, afinal de contas, é esta que sofre inteiramente com a falta de inserção social.
Realidade bastante evidente nas últimas décadas, é o constante processo de crescimento do crime organizado no Estado do Rio de Janeiro, fato este que vem perdurando por cerca de 30 anos. O surgimento do crime organizado tem seu marco inicial no fim dos anos 1970, dentro do presídio de Ilha Grande, em Angra dos Reis, estado do Rio de Janeiro, derivado da junção de presos comuns e presos políticos. Esta aproximação audaz, ocasionou no surgimento da organização criminosa Falange Vermelha, popularmente conhecida como Comando Vermelho, que se tornou desde então umas maiores facções criminosas do Brasil, atuando enfaticamente nas comunidades cariocas.
“Nesta década, um grupo de criminosos assaltantes de banco, presos no presídio de segurança máxima de Ilha Grande, durante os anos de ditadura, onde os guerrilheiros eram misturados aos presos comuns, dos quais estavam Wiliam da Silva Lima, mais conhecido como ‘professor’, Francisco Viriato, conhecido como ‘japonês’ e Rogério Lengruber também conhecido ‘bagulhão’, instaurou-se a organização Falange Vermelha”[10]
O crime organizado se materializa dentro das favelas, por meio de facções criminosas dotadas de seu próprio sistema coercitivo e de controle social. A busca constante pelo poder se tornou uma forma bastante lucrativa, para aqueles que mantem o monopólio de determinada região, geralmente áreas densamente populosas e de baixa renda. Os negócios alternativos que estes grupos lideram, entre tais o tráfico de drogas e armas, se tornaram diretamente o maior embate entre Estado e a eficácia das políticas de segurança pública dentro e fora destas comunidades.
Ao longo dos anos, o Estado, vem apresentando medidas de controle e prevenção do crime organizado, mas a realidade do estado do Rio de janeiro, especificadamente, consiste numa crise organizacional histórica, que envolve toda sua estruturação e enfraquece o sistema que deveria operar efetivamente no enfretamento do crime organizado. Ao dizer que determinada política de segurança pública não funciona, devemos observar que os demais ramos de atuação do Estado, como por exemplo, acesso à educação, saneamento básico, saúde e etc, foram também, de certa forma, deixados de lado, no que se refere a eficácia e funções do Estado de Direito.
A desatenção do Estado frente aos problemas sociais existentes dentro das inúmeras comunidades do Rio de Janeiro, acarretou não somente na expansão territorial e de poder do crime organizado, como também, propiciou o desenvolvimento de um outro “câncer” da segurança pública, tal qual denominado de milícia, frente ao cenário de descontrole político e econômico que se mostra evidente na realidade destas áreas.
O campo nascedouro das milícias, está sob a aba dos grupos de extermínios por volta da década de 1960, quando policiais da ativa, ex-policiais, policiais expulsos da corporação, carcereiros e policiais reformados (aposentados), passaram a oferecer serviços de proteção a comerciantes e vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes, que distribuíam suas ações criminosas no dia a dia, bem como assassinatos entre facções criminosas e policiais.
“Misse (2011) ressalta que “a década de 1970, formam- se grupos de extermínio na periferia do Rio de Janeiro, que eram pequenos grupos de policiais, agentes penitenciários e guardas que recebiam dinheiro de comerciantes e empresários para evitar a ocorrência de crimes em determinada área”. (Ignacio cano e Thais, 2008/20011 Pág. 12)
Os grupos de milicianos, se desencadearam cada vez mais com propósitos de oferecimento de segurança para as comunidades, tomando espaços nas ruas com uso de força arbitrária. No século XXI, os grupos de extermínios abrangeram ainda mais seu o rol de operações, no que antes se referia a proteção dos comércios, passou também a tomar o controle de parte da cidade do Rio de Janeiro. Em troca da segurança, passaram a cobrar taxas de vários setores da economia, como o fornecimento de gás, energia, transporte, moradia, TV a cabo, entre outros que eram fornecidos pelo Estado, objetivando o grande lucro perante as comunidades, tornando-se assim um poder paralelo frente ao Estado.
Tais operações que sempre foram autônomas e arbitrárias, agiam com intuito de tomada de poder e de controle social, além, claro, do lucro sobre o preço inflacionado do fornecimento dos serviços. Com estas ações tais grupos, consolidaram-se e desde então vem disputando espaço e poder com a atuação do crime organizado.
Estudos, acompanhamentos e debates, sobre a temática das milícias foram realizados pela fundação Heinrich Boll (2008-2011), juntamente com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com intuito de se avaliar a atuação destes grupos, neste sentido, temos:
“Diversos atores participantes do debate público mostraram tolerância e, inclusive, apoio a estes grupos, considerando-os como uma reação dos moradores destas regiões contra a criminalidade ou, quando menos, como um “mal menor” em comparação com o narcotráfico”. [10]
O avanço das práticas milicianas, nos últimos anos, foram tantos que parte dos membros integrantes de tais grupos, compõem entes federativos como forma de concentrar mais poderes em suas práticas diárias e monopolizar o controle das ações oriundas do Estado, ao que se refere a medidas de enfrentamento destas práticas criminosas.
Em notícia mais recente, publicada pelo G1 em 2020, mostra-se relatório inédito da polícia civil, onde foram levantados dados, dos quais aponta-se que os crimes organizados atuam em 1.413 comunidades no Rio de Janeiro, o tráfico domina 81% desses territórios e a milícia está em 19% dos aglomerados. A milícia administra 278 favelas, mais do que duas quadrilhas que administra 238 favelas e outra 69, respectivamente. (LEITÃO, Leslie e Carlos de Lannoy, RJ tem 1,4 mil favelas dominadas por criminosos, aponta relatório) [10]
Ao pensarmos nas funções que um Estado desempenha, devemos relacionar também a atuação deste com a realidade de uma sociedade, ou seja, na evolução de normas e preceitos com a vivência prática, onde temos de um lado o Estado organizado e de outro a sociedade civil. A questão que envolve o desenvolvimento e atuação do crime organizado, das milícias e demais organizações criminosas repercutem diretamente na autoridade política que o Estado adota.
É notório que o crime organizado, ameaça valores constitucionais já estabelecidos, instituições e a própria segurança pública como um todo, e é através de força extrema e estranha a sociedade que este se espalha de forma descontrolada. O Estado, possui legalidade e legitimidade, para que, por meio de medidas eficazes, mantenha sua soberania e ordem pública.
O grande embate que padece sobre a ineficiência das políticas públicas, quando adotadas e implantadas pelo Estado, consiste na interpretação e nos resultados que tais medidas acarretariam. O Estado, enquanto guardião da sociedade civil, deve reconhecer a violência característica do crime organizado e através desta, desenvolver diretrizes que erradiquem tal. As organizações criminosas, a todo instante, procuram expandir sua atuação, criando dentro de suas estruturas formas cada vez mais imponentes de controle.
“As organizações criminosas buscam o aperfeiçoamento do seu modus operandi, treinam seus integrantes, realizam a captação de pessoal competente para suas operações, além de se infiltrarem na esfera dos três poderes, possibilitando assim, uma certa protetividade nas suas atuações, através do pagamento de propinas a policiais.”[10]
Neste viés, o que se tem como realidade prática, é que o Estado, não consegue acompanhar o desenvolvimento e expansão do crime organizado. As políticas de enfrentamento destas ações, sempre encontram falhas, desde o momento de primeiro contato, frente as atividades da polícia, como também em relação ao desdobramento das investigações decorrentes das diversas operações propostas pelo Estado.
Talvez a crise de legitimidade que o Estado encontra, se baseia, justamente, no desfoque entre os Poderes, ou seja, existem ações de enfretamento ocorridas dentro de comunidades, por meio de força policial, mas não há políticas públicas que vigorem, legitimem e garantam a eficácia de tais ações. O que se diz aqui, é que deve haver o enfrentamento da crise estatal de forma conjunta. O Estado precisa apensar suas funções e por meio de seus vetores, criar ações conjuntas, que trarão de fato, resultados eficientes.
“Para Mingardi (1998), o problema de combate ao crime organizado está no uso exclusivo da força, não adianta, considerando que para um efetivo combate, necessariamente deve haver uma ação especializada para que o promotor possa acusar, o juiz sentenciar e o sistema penitenciário punir, se não houver prova do crime, provas estas, que são colhidas através da investigação, não há um efetivo combate às organizações criminosas.”[10]
O Brasil, como dito anteriormente, vem sofrendo ao longo dos anos com os crescentes números da criminalidade no país, principalmente frente as ações voltadas ao crime organizado. O que devemos pontuar, é que a atuação destas facções criminosas, não se contentam em utilizar apenas o tráfico de drogas como modalidade lucrativa e de controle social. A realidade dentro destas comunidades, perpassa pelo uso de várias condutas típicas, ou seja, o crime organizado se diversifica, e implementa em suas atividades diárias, o uso de várias armas de fogo, por exemplo, que dão consistência ao poder que explanam.
Através desta problemática aflingente, muito se discutiu com relação ao uso constante e ilegal de tais armas e neste sentido, propôs o Estado a política pública do desarmamento, no ano de 2003, como forma de frear as ações destas facções, e de se controlar o acesso a tais, que se mostrou cada vez mais reiterado, gerando impactos perigosos em toda a ordem social.
“Quando a campanha do desarmamento começou naquele ano as autoridades constituídas apresentaram que o Brasil era detentor de 17 milhões de armas de fogo e que por tal fato gerava-se o alto índice de criminalidade, em especial o número de homicídios, vez que o cidadão em posse de tal arma por qualquer desavença eliminava o seu opositor, ou seja, associaram de maneira simplista a relação entre a criminalidade e posse de arma de fogo, quando na verdade a problemática é muito mais complexa.”[10]
O Estado, procura de certo modo, desenvolver uma moldura frente a segurança pública, abraçando políticas que são coniventes com teorias, mas que na verdade, não geram resultados na prática. No caso do desarmamento, por exemplo, de fato trouxe redução dos índices de homicídio, mas apenas, ornou a prática do crime por arma de fogo, ou seja, em contrapartida, as mortes provenientes por outros meios, como por exemplo arma branca, se mantiveram estáveis e até com crescimento.
Devemos então destacar por fim, que a criminalidade não se combate com teorias e aplicações isoladas, a ineficiência destas politicas publicas somente deixará de existir, quando, o Estado, agir de forma atuante aplicando ações em conjunto com os demais órgãos ligados a sua estrutura, mas também, quando se mostrar eficaz ao permitir condições mínimas, principalmente em comunidades carentes, no que tange ao fornecimento de condições básicas de subsistência.
O crime organizado perderá forca, quando o Estado deixar de agir a longo prazo e assumir frente a segurança pública e demais secretarias, seu papel de provedor do desenvolvimento social.
Sempre muito se discutiu sobre a problemática e dinâmica do crime organizado dentro das favelas cariocas, mas principalmente ao que se refere aos trabalhos e ações que visam combater a disseminação deste. Como já sabemos, a história de consolidação destes grupos perpassa por anos e anos de atuação, sob a ótica de ineficiência do Estado em relação a todas as garantias previstas na Constituição.
Ao longo dos anos, inúmeros governos, atuantes no estado e na cidade do Rio de Janeiro, sofrem com os crescentes números da violência decorrente do crime organizado, que como sabemos, ultrapassou os limites das comunidades, e hoje atua enfaticamente em toda a cidade e áreas da própria estrutura governamental. Literalmente, o crime organizado tornou-se um ciclo vicioso, que ganha cada vez mais espaço.
Fato é, que quando o poder público se ausenta, o paralelo governa e assume suas funções. A grande problemática do crime organizado, é sem dúvida, decorrente da desatenção e negligência do estado, frente as ações disseminadas. É sabido que desarticular todos estres grupos, não se conseguirá em tempo recorde, ora sabemos, que seu processo de construção foi a longo prazo, de forma desenfreada, mas acima de tudo, usando de violência extrema, que hoje é a maior munição usada por tais grupos para permanência no poder e controle.
Frente a todas estas ações que o crime organizado se propôs a embarcar, atuando diversificadamente nas atividades criminosas, mas principalmente perpetuando entre o tráfico de drogas e de armas, o Estado, se viu pressionado a direcionar medidas e ações reais de combate ao crime organizado. Devemos pontuar que, de fato, o estado ao longo dos anos, colecionou algumas ações em resposta a atuação destes grupos, mas todas a curto prazo, e que consequentemente se tornaram fracassos, fortalecendo ainda mais a estrutura destes.
Ações de efetivo combate, dentro das comunidades, de fato se fazem necessárias como forma de validação da função do estado de garantidor da ordem e segurança pública. Porém para que estas ações surtam realmente o efeito esperado, ambos os poderes devem atuar em conjunto, aquelas garantias fundamentais previstas na Constituição Federal devem ser verdadeiramente postas em prática, ou seja, o Estado precisa fornecer saúde, saneamento básico, educação, mas acima de tudo, o Estado precisa intervir de forma preventiva nestas comunidades. O sujeito, o contexto em geral, na maioria das vezes é somente produto do meio.
“Cumprindo a vontade e os anseios da população brasileira, há poucos anos atrás, mais de perto, nos anos 1994/95, o Governo Federal auxiliou ao Governo do Rio de Janeiro enviando as tropas das Forças Armadas do Exército Brasileiro para tentar resolver a problemática do tráfico de drogas nos morros e favelas daquela cidade, usando somente da força, usando da violência legítima do Estado contra os recalcitrantes, contudo, muitas e muitas injustiças foram praticadas contra pessoas inocentes. As faltas do tato Policial, da experiência Policial, do manejo Policial aliados às ausências de boas informações fizeram com que os bem intencionados soldados do Exército brasileiro não cumprissem as suas missões a contento. A inteligência Policial estava ausente ou pouco presente naquelas ações, por isso os projetos restaram inócuos e ineficientes.[11]
O Estado, ainda como ente soberano, precisa garantir a manutenção da ordem e funcionamento da sociedade. É neste sentido, que ao longo dos anos, muito se buscou e se modificou nos dispositivos legais, como forma de retomada do controle social. Houveram mudanças legislativas que visavam se adequar aos novos tipos penais, enfaticamente em relação ao crime organizado, que ainda é o maior problema da segurança pública.
Neste sentido, com o intuito de tipificar e caracterizar as ações das organizações criminosas, o legislador brasileiro passou a prever o crime de bando ou quadrilha, especificadamente no artigo 288 do Código de Penal, trazendo então uma restrição de abrangência, de modo a possibilitar melhor enquadramento dos praticantes destes grupos criminosos.
Fato é, que assim como a sociedade está em constante evolução, o mesmo acontece com as organizações criminosas, que na maioria das vezes, promove um desenvolvimento até mais rápido que o adotado pelo próprio estado. E é neste viés que, promoveu o Estado, uma alteração na legislação penal vigente agravando o tipo penal, anteriormente denominado de quadrilha ou bando, passando este a ser enquadrado como associação criminosa.
A Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013, introduzida no Código Penal brasileiro trouxe a alteração do artigo 288, e institui a figura da organização criminosa, que previa anteriormente a presença de 4 indivíduos para configuração do ato, e hoje constitui-se por 3 ou mais indivíduos com a finalidade da prática de crimes.
Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Notamos aqui, a intenção do legislador em agravar a pratica delituosa e garantir enquadramento daquele indivíduo. Com o advento da referida lei, definiu-se organização criminosa e dispôs sobre a investigação criminal quando da prática deste delito. É notório aqui, a intenção do legislador em combater a atuação dessas milícias, ou seja, o Estado maximiza ferramentas punitivas, para fazer valer sua soberania e de certa forma, apresentar respostas frente ao crime organizado.
Válido mencionar que medidas extremas propostas pelos agentes do Estado, não se tornam suficientes e muito menos eficazes, quando há flexibilização de outras. O combate ao crime organizado é resultante de um conjunto de ações, que contenham sim, a criação de legislações punitivas, mas que não corrompam direitos e garantias fundamentais já existentes, com ações de efetivo combate, realizadas pelas polícias dentro das comunidades.
Ao longo dos anos é perceptível que o Estado vem tentando neutralizar a atuação das milícias nas comunidades cariocas, seja por meio de ações das forças de segurança pública ou por meio da criação de leis. A grande verdade é que, pela estrutura completamente escassa de condições favoráveis ao combate, os resultados nem sempre são alcançados pelas ações do Estado. As comunidades cariocas, possuem em seu desfavor, a tipografia do terreno, áreas densamente ocupadas, a inexistência de condições mínimas de saneamento básico, além claro, do medo em relação a atuação dos grupos dominantes. Tudo isso dificulta bastante o trabalho e presença do Estado, em especial das policias.
Recentemente, dentre as inúmeras ações policiais nas comunidades cariocas, uma delas em especifico, se tornou marco frente ao combate ao crime organizado. Em 2010, numa operação conjunta das forças de segurança pública, sendo estas, a Polícia Federal - PF, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMRJ e o BOPE - Batalhão de Operações Especiais, o Complexo do Alemão, intitulado como umas das maiores favelas da América Latina, pelo seu demasiado espaço territorial e populacional, foi retomado, num conglomerado de ações, durante quase uma semana.
“No dia 25 de novembro de 2010, numa ação ousada, que envolveu cerca de 600 homens e logística da Marinha do Brasil, a polícia do Rio deu uma resposta ao tráfico que entrou para a história do Rio como uma das mais contundentes dos últimos anos.”[12]
“(...)A fortaleza do narcotráfico no Complexo do Alemão revelou-se de papel, suscetível a uma operação que combinasse tropa treinada e surpresa tática. Na época, de símbolo do poder paralelo, que dela se apoderou por anos, a Vila Cruzeiro passou a troféu do Estado, que retomou uma área de mais 200 mil metros quadrados, que estava alijada da cidade formal.” [13]
A retomada pelo Estado deste território, surte com efeito de retaliação e disseminação do crime organizado. Marcada pelo uso da força e poderio bélico, esta que foi considerada uma das maiores, se não a maior ação policial de enfrentamento a ação dominante de traficantes da história do país, foi determinante para que o Estado, pós primeiro contato com a população, pudesse de fato, se fazer presente e atuante, seja com a garantia da segurança pública, via UPP – Unidade de Polícia Pacificadora, que se instalou nas comunidades, como também pelo fornecimento de estrutura econômico- social que se fazia necessária.
“Recentemente, a luta foi retomada na tentativa de gerar uma renovação urbana e devolver ao carioca a sensação de paz e organização que havia sido perdida com o passar dos anos. Por meio de uma política de segurança calcada na implantação de UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, o Estado conseguiu reverter, em parte, a realidade desses territórios.”[14]
Em resposta mais recente do Estado, só que dessa vez, nos moldes de legislação normativa, foi sancionada Lei perante o Congresso Nacional, denominada de Pacote AntiCrime, com o intuito de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal. A proposta trazida pela Lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019, é justamente distender as omissões das leis vigentes ao que tange a pratica delitiva de corrupção e crime organizado, que são desde longa data o câncer da segurança pública.
O chamado “Pacote Anticrime” do Governo Federal se refere a um conjunto de alterações na legislação brasileira que visa a aumentar a eficácia no combate ao crime organizado, ao crime violento e à corrupção, além de reduzir pontos de estrangulamento do sistema de justiça criminal. Constituída por dois projetos de lei ordinárias e um projeto de lei complementar, a proposta do Ministério pretende alterar o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei de Crimes Hediondos, o Código Eleitoral, dentre outras normas.[15]
Notório é, que o Estado brasileiro, enquanto Estado Democrático de Direito, vem ao longo dos anos tentando coibir as ações oriundas do crime organizado, justamente, porque estas abarcam todos os tipos penais possíveis e desencadeiam num processo de crescimento da criminalidade quase que imparável. Mas o que devemos ter em mente, é que um inflacionamento legislativo nunca será suficiente para combate das ações destes grupos, a norma precisa existir, mas medidas de efetivo combate também.
A anomia social, é um fenômeno que o Estado precisa abolir. O crime organizado criou suas próprias regras e fez desde então, dentro das comunidades, seu Estado Paralelo. É visível a grave crise do sistema nos últimos anos, mas a erradicação deste problema social, somente se concretizará de fato, quando o Estado deflagrar medidas pontuais, em conjunto com todos os âmbitos governamentais e de forma prioritária. Diminuir o crescimento exponencial do crime organizado se faz na prática, com eficácia e fortalecimento das garantias do Estado Social.
Ao longo deste trabalho buscamos demonstrar o extenso e contínuo processo de desenvolvimento e ascensão das milícias cariocas, ou seja, do maior câncer da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. O processo evolutivo destes grupos perpassou por anos, resultante de ações cada vez mais fortes e em evidência, tornando-os uma das maiores demonstrações de violência e de criação daquilo que denominamos Estado Paralelo.
Como já sabemos o surgimento do crime organizado se deu em decorrência da junção de presos políticos com presos comuns, no presídio de Ilha Grande, no interior do estado do Rio de janeiro. A partir deste evento histórico, grande parte do território carioca tornou-se palco de disputa por espaço entre os inúmeros grupos organizados que com uso extremo de violência, buscava não somente mão de obra para dissipar sua atividade ilegal, como também a maior abrangência e controle de áreas carentes, geralmente densamente povoadas, mas que propiciariam maior poderio entre as demais facções que surgiram ao longo dos anos.
O grande óbice que aflingiria a enorme população habitante das favelas, não percorre somente na atuação do crime organizado ou de facções que dominam através da prática do tráfico de drogas e armas. Em decorrência da completa ineficácia do Estado e da desatenção deste frente as políticas públicas essenciais ao desenvolvimento de qualquer cidade, outro grande problema surgiu dentro destas comunidades, atuando enfaticamente em quase todos os seus territórios. Além do Estado paralelo criado pelos grupos criminosas, surgiram também as milícias, compostas por ex- autoridades, ex- policiais e pessoas de vários outros ramos, que através da lacuna social existente nestes territórios, criaram sua área de atuação, com um expansionismo gradual, impondo as populações residentes seu poderio e exploração econômica, tornando-se assim mais uma espécie ramificada do então Estado Paralelo.
É certo que as ações destes grupos, em síntese, funcionam como uma máquina extraoficial que supre à população tudo aquilo que seria, e é, função do estado. Obviamente, a forma atuante destes grupos se faz totalmente ilegal, visto que tais, atuam com extremo uso de violência, obtendo vantagem ilícita das comunidades em troca de serviços básicos. O déficit do Estado frente a estas comunidades é tão grande, que reiteradamente estes grupos conquistam mais espaço e se solidificam nos enormes territórios. Em pesquisa recente, apontou-se o quanto das áreas do Rio de janeiro são dominadas pelo crime organizado.
Mapa dos Grupos Armados do Rio, lançado nesta segunda (19), aponta que três facções do tráfico juntas dominam 15,4% do território da capital; milícia controla 57% da área da cidade, diz estudo.
Uma pesquisa inédita sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade. Nessas áreas subjugadas vivem cerca de 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes — segundo estima o IBGE.
O estudo, batizado de Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, identificou que milicianos controlam área maior do que traficantes de drogas na capital fluminense.[16]
O notório ganho territorial destes grupos, se fez tão evidente que o Estado sentiu a necessidade de promover ações que visassem coibir suas atividades. É neste sentido que como forma de impor sua legitimidade e devolver a população garantias e liberdades fundamentais, mas principalmente o direito a segurança pública, que o Estado iniciou um longo processo de retomada das áreas ocupadas pelo tráfico e pelo crime organizado. Inúmeras foram as ações realizadas, a maioria delas, com êxito momentâneo, ou seja, o Estado introduzia força policial em ações específicas, mas não mantinha medidas de controle a longo prazo, fazendo com que grande parte do território acabasse voltando ao domínio do crime, da antiga facção dominante, de novos grupos rivais e até mesmo milícias.
“As pacificações começaram a acontecer e o BOPE teve sua participação fundamental nesse processo. Pode ser considerado uma peça chave, indispensável para a implementação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), permitindo que o Estado voltasse a ocupar o lugar que sempre lhe pertenceu, trazendo, novamente, a paz social.”[17]
Considerada uma das maiores ações policiais frente ao crime organizado, foi a retomada do Complexo do Alemão em 2010, marcada por grande uso de força policial, esta, reuniu em único propósito a junção dos vários comandos policiais, sendo a Policia Federal - PF, a Marinha do Brasil, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ e o BOPE – Batalhão de Operações Especiais.
“Entre as pacificações já ocorridas, uma delas chamou a atenção pela grandiosidade com que foi levada a efeito. Trata-se da comunidade conhecida como Complexo do Alemão, que despertou o interesse, inclusive, da imprensa internacional. Foram dias inesquecíveis, em que, basicamente, todas as forças policiais se uniram em busca de um objetivo comum: retomar aquele território, antes dominado por centenas de traficantes.”[18]
Posto tudo isso, é nítido o quanto o estado do Rio de Janeiro, especificadamente as comunidades densamente povoadas sofrem com o crime organizado. A tragédia social que vive a cidade do Rio hoje, não é surpresa ou muito menos momentânea, esta vem caminhando historicamente a passos largos, e muito ao contrário do que se pensa está longe de acabar. A forma governamental adotada até hoje por seus membros é decadente e ineficaz. O histórico de corrupção que contamina a anos a estrutura organizacional do Estado interpõe consequências a quem mais precisa de uma atuação eficiente.
As populações carentes que sempre habitaram estas comunidades, estão a mercê de propostas e atuações completamente ineficazes por parte dos agentes do Estado. Não adianta somente intervir a curto prazo, deve sim haver presença policial, ações policias, mas juntamente a estas, e de forma imediatamente subsidiária, o Estado deve aplicar políticas públicas de inclusão, de desenvolvimento social, que abarquem garantias mínimas, como educação, saúde e saneamento básico.
resgate por completo destas áreas dominadas pelo crime organizado, somente se farão possíveis, quando o Estado adotar medidas em conjunto com todos os seus agentes e dispositivos. A lei deve existir, assim como a sanção para quem não cumpri-la, mas em subsídio destas, a aplicação de medidas que visem promover a diminuição da criminalidade, ou seja, o Estado deve se manter legítimo e presente dentro das comunidades, oferecendo aquilo que é de direito de toda população.
Mediante o atual cenário, obviamente se conseguir o total recontrole destas áreas não se farão imediatamente ou ainda, ocasionalmente, mas sim a longo prazo. O que devemos entender é que para que ocorra a melhoria da sociedade como um todo, primeiramente deve-se exterminar o caos estrutural dentro do próprio estado. Medidas externas, somente devem ser aplicadas quando o Estado estiverem em ordem com sua estrutura organizacional interna. A atuação das policias é necessária, porque é através dela que se garante efetivamente a segurança pública, justamente por ser esta a possuidora de legitimidade para tal. Mas em consonância a atuação dos agentes púbicas da segurança, deve-se buscar que as demais secretarias trabalhem harmonicamente entre em si, ou seja, que atuem em conjunto.
Por fim, devemos registrar que o crime organizado está inserido nas entranhas do surgimento do Estado Democrático de Direito, e vem ao longo dos anos se elevando, tornando-se diariamente mais forte, sendo assim, caberá ao Estado tentar recuperar seu domínio e sua retidão. Desmistificar a presença marcante destes grupos, será um longo processo, onde o Estado terá não somente que usar de força, mas também da necessidade de revalidação jurídica em todos os ramos que lhe são pertencentes.
[1] GREGO, Rogério; BETINI, Eduardo; Monteiro, André; Livro: A Retomada do complexo do Alemão.
[2] Anomia: derivado do grego, significa ausência de regras, sem lei;
[3] BARATA, Alessandro; Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal; p.63.BARATA, Alessandro; Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal; p.64
[4] PRADO, João Carlos Navarro de Almeida; Direitos Fundamentais: Direito de todos? p.36
[5] Conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais, dispostos em geral, de forma desordenada e densa; carentes em sua maioria de serviços públicos e essenciais;
[6] http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/92/cd_2010_aglomerados_subnorm ais.pdf.
[7] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de- noticias/noticias/15700-dados-do-censo-2010-mostram-11-4-milhoes-de-pessoas- vivendo-em-favelas
[8] SOUZA, Percival de; Livro Narco Ditadura; p.136.
[11] https://www.infoescola.com/sociedade/a-policia-a-legislacao-e-o-poder-paralelo/
[12] https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/ocupacao-do-alemao-em-2010- contou-com-600-homens-blindados-da-marinha-9001633
[13] https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/ocupacao-do-alemao-em-2010- contou-com-600-homens-blindados-da-marinha-9001633
[14] https://www.rogeriogreco.com.br/product-page/a-retomada-do-complexo-do- alem%C3%A3o
[15] https://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/projetos/anticrime-1
[16] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/10/19/rio-tem-37-milhoes-de- habitantes-em-areas-dominadas-pelo-crime-organizado-milicia-controla-57percent-da- area-da-cidade-diz-estudo.ghtml
Graduando bacharel em Direito pelo Centro Universitário Una-aimorés.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, wellington alves de. A organização das milícias no Estado do Rio de Janeiro: O Governo paralelo como resposta a ineficiência das politicas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2021, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56013/a-organizao-das-milcias-no-estado-do-rio-de-janeiro-o-governo-paralelo-como-resposta-a-ineficincia-das-politicas-pblicas. Acesso em: 22 nov 2024.
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