RESUMO: O presente trabalho busca fazer uma análise da polêmica existente nos casos de tipificação nos homicídios no trânsito, concluindo ora pelo dolo eventual, ora pela culpa consciente. Para esclarecer a questão, os conceitos de dolo e culpa serão expurgados, bem como suas espécies, as teorias de diferenciação e as consequências da aplicação de um ou outro instituto. No decorrer do estudo os delitos de trânsito com resultado morte, quais sejam, embriaguez ao volante e racha automobilístico, serão esmiuçados, estando sempre atinentes à legislação vigente. Decisões judiciais serão colacionadas, mostrando-se as contradições de ideias concernentes à dicotomia entre a aplicação do dolo eventual ou da culpa consciente para os respectivos crimes, além dos acertos e desacertos pertinentes à matéria feitos pelo Judiciário. Ao final, será demonstrada a grande influência que a sociedade exerce sobre as decisões judiciais relativas ao tema, concluindo pela ânsia daquela por maior repressão ao condutor infrator e, consequentemente, julgados que se distanciam da técnica jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: embriaguez; racha automobilístico; trânsito; homicídio; dolo eventual; culpa consciente.
ABSTRACT: The present study seeks to analyze the controversy that exists in cases of typification in homicides in traffic, concluding at times for eventual fraud, at times for conscious guilt. To clarify the issue, the concepts of intent and guilt will be explained, as well as their species, differentiation theories and the consequences of the application of one or another institute. In the course of the study, traffic crimes resulting in death, that is, drunk driving and car racing, will be scrutinized, always in line with current legislation. Judicial decisions will be collected, showing the contradictions of ideas concerning the dichotomy between the application of possible intent or conscious guilt for the respective crimes, in addition to the right and wrong answers pertinent to the matter made by the Judiciary. In the end, it will be demonstrated the big influence that the society has on the judicial decisions related to the theme, concluding by the desire of that one for greater repression to the offending driver and, consequently, judged to be distant from the legal technique.
KEYWORDS: drunkenness; car racing; traffic; murder; eventual deception; conscious guilt.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Teoria do delito – dolo e culpa: 2.1. Noção histórica da teoria do delito; 2.2. Dolo: 2.2.1. Conceito de dolo; 2.2.2. Teorias do dolo; 2.2.3. Espécies de dolo; 2.3. Culpa: 2.3.1. Conceito de culpa; 2.3.2. Modalidades de culpa; 2.3.3. Espécies de culpa. 3. Dolo eventual x Culpa consciente: 3.1. A diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente; 3.2. Teorias explicativas da diferenciação; 3.3. Consequências da aplicação do dolo eventual e da culpa consciente. 4. Homicídio no trânsito: 4.1. Segurança no trânsito à luz do Código de Trânsito Brasileiro; 4.2. Dos delitos em espécie: 4.2.1. Homicídio culposo no trânsito (artigo 302 do CTB); 4.2.2. Embriaguez ao volante (artigo 306 do CTB); 4.2.3. Racha e velocidade excessiva (artigo 308 do CTB); 5. Posições jurisprudenciais e a influência da ânsia social pela repressão nos homicídios de trânsito: 5.1. Exposição do problema: 5.1.1. A problemática jurisprudencial/doutrinária acerca da diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente nos homicídios de trânsito; 5.1.2. O elevado número de mortes em acidentes de trânsito; 5.2. Análise de jurisprudência: 5.2.1. A generalização usada para solucionar o problema, concluindo pela existência do dolo eventual; 5.2.2. Análise do caso concreto para definição do elemento subjetivo do tipo; 5.3. A força da comoção social exercida sobre os operadoress do Direito. 6. Conclusões. 7. Referências.
Infelizmente, o Brasil é um dos países com maiores índices de morte no trânsito no mundo. Ligado a essas perdas lastimáveis no trânsito estão condutas do tipo: dirigir embriagado e praticar corridas automobilísticas, conhecidas como “racha” ou “pega”.
Diante disso, a sociedade, alimentada por uma mídia sensacionalista, vem defendendo a ideia de que há certa impunidade aos agentes infratores e, por isso, exige maior repressão com a aplicação de sanções mais severas e mais rápidas.
Esse clamor social se baseia no elevado número de pessoas que estão passando dos limites e provocando acidentes, muitas vezes fatais. Isso gera um ideal repressivista que extravasa o plano social e já atinge o Judiciário. Isto é, alguns julgadores estão sendo influenciados pela ânsia social e com isso estão proferindo decisões distantes da técnica jurídica-penal, apenas para acalentar os clamores de uma população sedenta por repressão.
Destarte, delitos eminentemente culposos estão sendo enquadrados como dolosos, na modalidade dolo eventual. Essa “errônea” tipificação, que passa a ilusão de ser a solução mais eficaz para a moralização no trânsito, gera graves consequências para o réu, além de causar insegurança jurídica e ferir princípios basilares do Direito Penal. A possibilidade de prisão provisória é uma das consequências de se imputar o dolo à conduta do agente nos homicídios de trânsito. Contudo, a disparidade quantitativa da punição do dolo em detrimento a culpa aliado à mudança da competência e do rito ordinário para o tribunal do júri são consequências mais drásticas que o réu pode sofrer com uma decisão que não se pauta no âmago do agente, e sim no emocional advindo da sociedade.
A pena do homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal) é muito maior que a do homicídio culposo no trânsito (artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro). Consequentemente, alguns institutos que beneficiariam o réu mostrar-se-ão inteiramente prejudicados.
Já no que concerne ao rito e à competência, o Tribunal do Júri é que promoverá o julgamento do sujeito caso sua conduta tenha sido enquadrada como dolosa contra a vida (artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d” da Constituição Federal). Dessa forma, o julgamento pelos seus pares, desprovidos da técnica jurídica, será sustentado por ideais repressivistas, alimentados por uma mídia que influi cada vez mais na sociedade de modo a gerar uma ideia de impunidade aos agentes causadores de acidentes de trânsito. O desfecho desse julgamento é sabido por todos: condenação.
Em razão dessa polêmica doutrinária e jurisprudencial a respeito de qual instituto aplicar nos homicídios de trânsito, o presente trabalho buscará analisar os crimes de embriaguez ao volante e velocidade excessiva, que tenham como resultado a morte da vítima. Além disso, discorrerá exaustivamente sobre a diferenciação entre as figuras do dolo eventual e da culpa consciente, possibilitando, ao final, aferir qual será a responsabilização mais adequada para com o fato praticado pelo agente.
Será demonstrado que não se pode aplicar uma fórmula predeterminada de forma indistinta. Ou seja, a embriaguez ao volante e o excesso de velocidade não são fatores determinantes para a configuração do dolo eventual. A análise das circunstâncias de cada caso é que possibilitará aferir se o agente tinha a previsão do resultado antijurídico somado à anuência de sua ocorrência, concluindo pela não existência da culpa.
Portanto, é nesse interim que se insere o presente estudo, no qual o objetivo geral será compreender, a partir da Teoria Finalista da Ação e da reflexão social, o poder de influência que o clamor social exerce sobre as decisões judiciais acerca da dúvida entre dolo ou culpa do motorista nos homicídios de trânsito. A despeito da despretensão de impor um posicionamento encerrando a discussão, buscar-se-á uma solução coerente para a respectiva celeuma.
2. TEORIA DO DELITO – DOLO E CULPA
2.1. NOÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA DO DELITO
A definição atual de delito provém de uma elaboração inicial da doutrina alemã, regida por influência do método analítico. Construída recentemente, mais precisamente no final do século XIX, é uma concepção tripartida, tendo em vista os predicados da ação, tais como tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
Três fases foram marcantes na evolução da teoria do delito: o conceito clássico de delito; o conceito neoclássico de delito e o conceito finalista de delito, este último usado atualmente.
Pelo conceito clássico, elaborado por Von Liszt e Beling, pode-se inferir uma visão eminentemente naturalista, marcada pelo positivismo científico, em que se afastava completamente qualquer valoração filosófica, psicológica e sociológica. O aspecto objetivo, representado pela tipicidade e antijuridicidade era totalmente dissociado do aspecto subjetivo, representado pela culpabilidade. Assim, a culpabilidade limitava-se a comprovar a ligação psíquica entre a mente do agente e o resultado, fazendo surgir, através da diversidade de intensidade desse nexo psicológico, o dolo e a culpa.
Após profunda transformação, embora sem estabelecer um marco de interrupção completo, criou-se o conceito neoclássico de delito. Influenciado pela filosofia neokantiana, o normativo e axiológico receberam especial atenção, reformulando o velho conceito de ação e atribuindo nova função ao tipo. A ilicitude deixou de ser um conceito apenas formal, implicando em uma danosidade social. Já a culpabilidade começou a ser entendida como juízo de censura, de reprovabilidade, apresentando aspectos psicológicos (dolo e culpa) e normativos (imputabilidade e exigibilidade de conduta diversa).
Hans Welzel, abandonando o pensamento abstrato e logicista das teorias anteriores, fundou a Teoria Finalista da Ação. Esta não se preocupava com a relação de causalidade (imputação objetiva) e sim com a imputação subjetiva do resultado à conduta do agente. O dolo e a culpa, elementos manifestadores da vontade, foram transportados da culpabilidade para a tipicidade, tendo em vista que integram a conduta do agente e esta está descrita no tipo penal. Com a culpabilidade esvaziada, passou-se a entendê-la como um juízo de censura ou reprovação sobre a conduta típica e ilícita do agente. Destarte, o juiz seria o responsável por fazer esse juízo de censura, se pautando em três aspectos: imputabilidade; potencial consciência da ilicitude e; exigibilidade de conduta diversa.
Segundo Cezar Roberto Bitencourt, a teoria do delito encontrou um dos mais importantes marcos de sua evolução com o finalismo. Vejamos na lição do renomado autor:
A contribuição mais marcante do finalismo, aliás, que já havia sido iniciada pelo neokantismo, foi a retirada de todos os elementos subjetivos que integravam a culpabilidade, nascendo, assim, uma concepção puramente normativa. O finalismo deslocou o dolo e a culpa para o injusto, retirando-os de sua tradicional localização – a culpabilidade -, levando, dessa forma, a finalidade para o centro do injusto. Concentrou na culpabilidade somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito, e o objeto da reprovação (conduta humana) situa-se no injusto (BITENCOURT, 2011, p. 250).
Portanto, o finalismo trouxe para o direito penal a existência de duas tipicidades: a objetiva e a subjetiva. A primeira se apresenta como os elementos fáticos da conduta, ao passo que a subjetiva seria uma fase interna do agente, estruturada no âmbito da motivação contida na mente do sujeito.
2.2.1. CONCEITO DE DOLO
O conceito de dolo pode ser extraído do artigo 18, inciso I do Código Penal, que diz que o crime doloso é aquele praticado quando o agente quer ou assume o risco de produzi-lo. Pode-se aferir que o dolo está relacionado a dois elementos (vontade e consciência) dirigidos a realizar a conduta expressa no tipo penal incriminador. Dessa forma, implica dizer que o dolo é formado por um elemento volitivo e outro intelectual.
O agente deve agir com vontade para a realização do crime, isto é, para que se configure o ilícito penal é preciso que a vontade, produzida na mente do autor, alcance o resultado. Aquele que é coagido fisicamente a praticar o delito não atua com vontade de praticá-lo. Há ainda que se fazer uma ressalva quanto à diferença entre desejo e vontade. O desejo não passa de uma atitude emotiva que se opera no pensamento do autor e não produz efeitos no mundo exterior (não merecendo, portanto, relevância penal). Já a segunda seria o motor de uma atividade capaz de gerar um resultado delitivo.
No que concerne ao elemento intelectual, marcado pela consciência do agente, o sujeito, para que possa ter sua conduta enquadrada como dolosa, deve saber o que faz e conhecer os elementos que caracterizam sua ação como ação típica. O conhecer refere-se somente aos elementos objetivos do tipo, ficando a ciência da antijuridicidade a ser analisada em sede de culpabilidade.
Em brilhante lição, Mirabete e Renato N. Fabbrini conceituam o dolo e mostram os elementos que o compõem:
Ao se examinar a conduta, verifica-se que segundo a teoria finalista, é ela um comportamento voluntário (não reflexo) e que o conteúdo da vontade é o seu fim. Nessa concepção, a vontade é o componente subjetivo da conduta, faz parte dela e dela é inseparável. Se A mata B, não se pode dizer de imediato que praticou um fato típico (homicídio), embora essa descrição esteja no art. 121, CP (“matar alguém”). Isto porque o simples fato de causar o resultado (morte) não basta para preencher o tipo penal objetivo. É indispensável que se indague do conteúdo da vontade do autor do fato, ou seja, o fim que estava contido na ação, já que a ação não pode ser compreendida sem que se considere a vontade do agente. Toda ação consciente é dirigida pela consciência do que se quer e pela decisão de querer realiza-la, ou seja, pela vontade. A vontade é querer alguma coisa e o dolo é a vontade dirigida à realização do tipo penal. Assim, pode-se definir o dolo como a consciência e a vontade na realização da conduta típica, ou a vontade da ação orientada para a realização do tipo (MIRABETE e FABBRINI, 2007, p. 129).
A partir dos estudos de Hans Welzel (1956), adotados como marco teórico do presente trabalho, a análise a ser desenvolvida abarcará as importantes inovações trazidas pela Teoria Finalista da Ação, dentre elas, em especial, o deslocamento do dolo da culpabilidade para a tipicidade e a qualificação da vontade como uma vontade finalisticamente dirigida.
2.2.2. TEORIAS DO DOLO
Existem três teorias que tentam explicar o dolo: Teoria da vontade; Teoria da representação e; Teoria do assentimento (ou consentimento).
a) Teoria da vontade
Segundo a teoria da vontade, adotada pelos defensores da Teoria Finalista da Ação, o dolo é a vontade livre e consciente de realizar a conduta e produzir o resultado, ou seja, praticar o fato criminoso. Portanto, para que haja a configuração do dolo é necessária a presença de dois requisitos: a) quem realiza o ato deve conhecer os atos e sua significação; b) o autor deve estar disposto a produzir o resultado.
b) Teoria da representação
Na teoria da representação, a essência do dolo está, sobretudo, na simples previsão do resultado pelo agente e, ainda assim, este decide pela continuidade de sua conduta. Destarte, ainda que não ocorra a vontade do agente em querer ou assumir o risco de produzir o resultado, o dolo restará configurado. A dura crítica feita a essa teoria recai sobre o fato de não haver distinção entre dolo eventual e culpa consciente, já que a antevisão do resultado leva à responsabilização do agente a título de dolo.
c) Teoria do assentimento
Essa terceira teoria remete a ideia de que atua com dolo aquele que, mesmo sem ter a finalidade de produzir o resultado, o prevê como possível advindo da prática de sua conduta e, mesmo assim, assume o risco de praticá-la. Em outras palavras, o sujeito, mesmo não querendo cometer o delito de forma direta, o entende como possível e não se importa com a sua ocorrência.
Relacionando o exposto acima com o Código Penal, mais precisamente com o artigo 18, inciso I, tem-se clara visão de que, na primeira parte do dispositivo, o código adotou a teoria da vontade, já que se refere ao querer, à finalidade específica. Em contrapartida, na segunda parte, adotou a teoria do assentimento, dizendo que o agente assume o risco de produzir o resultado, utilizando, portanto, o dolo eventual. Diante disso, como já explicitado anteriormente, para a conduta ser considerada dolosa deverá conter tanto elementos volitivo quanto intelectivo.
2.2.3. ESPÉCIES DE DOLO
a) Dolo direto
O dolo direito ou determinado é aquele em que o sujeito tem como finalidade de sua ação realizar o resultado livre e conscientemente representado em sua mente, ou seja, ele age deliberadamente a esse fim. Assim, o agente, ao praticar a conduta, busca finalisticamente a produção do resultado pretendido. Para exemplificar essa situação, pense em um sujeito X que pretende causar a morte do sujeito Y, seu desafeto. Aquele saca seu revólver e o dispara contra esse último, vindo a matá-lo. A conduta de X, como se percebe, foi direta e finalisticamente dirigida a causar a morte de Y.
A ação criminosa se divide em três fases: a) a primeira é a fase interna, em que o agente mentaliza o que quer, qual resultado pretende; b) a segunda é a que o agente escolhe os meios a serem utilizados para a prática da ação e consequente produção do resultado e; c) a terceira é aquela em que o sujeito reflete acerca dos efeitos não desejados diretamente, mas que podem ocorrer como efeitos colaterais de sua conduta. Essa classificação é importante no que diz respeito a distinção entre dolo direto de primeiro grau e de segundo grau. O primeiro abrange as duas primeiras fases da ação criminosa (mentalização e escolha dos meios); já o dolo de segundo grau seria aquele advindo dos efeitos colaterais da conduta, isto é, o agente quer diretamente um resultado específico, e ocorre, entretanto, que para a realização desse resultado ele necessariamente tem que querer outros resultados.
b) Dolo eventual
O dolo eventual encontra-se na segunda parte do artigo 18, inciso I do Código Penal. Nele, o agente não faz questão do resultado, mas assume o risco de produzi-lo. Assim, o sujeito é indiferente à ocorrência do resultado, mesmo prevendo-o como provável e possível, não se abstém de agir, assumindo o risco de produzir o resultado.
Uma situação capaz de exemplificar o dolo eventual é aquela em que o sujeito pretende atirar na vítima que está conversando com outra pessoa. Ele percebe que atirando na vítima poderá atingir o outro. Não obstante essa possibilidade, prevendo que pode matar o terceiro, é-lhe indiferente que este resultado se produza, tolerando sua morte, mesmo não a querendo. Assim, caso isso venha a acontecer, o agente responderá tanto por dolo direto (por atirar na vítima) quanto por dolo eventual.
Além do dolo eventual, outra espécie pode se enquadrar no chamado dolo indireto, qual seja, o dolo alternativo. Esse pode ocorrer tanto em relação ao resultado (age a fim de produzir um ou outro resultado) quanto em relação à pessoa a ser atingida (age a fim de atingir uma ou outra pessoa).
c) Dolo de dano e dolo de perigo
No dolo de dano, o agente quer o dano, ou assume o risco de produzi-lo. Portanto, ele estará presente todas as vezes que o tipo penal representar a incriminação de uma conduta que pode gerar dano ao bem jurídico tutelado. Quando o perigo constituir a figura típica e o agente desejar ou assumir o risco de alcançar o resultado de perigo, estar-se-á diante do dolo de perigo.
d) Dolo genérico e dolo específico
Distinção que vigorava na época da teoria natural da ação e que hoje perde relevância em detrimento da adoção da teoria finalista, já que toda conduta dolosa é finalisticamente dirigida à produção de um resultado. O dolo genérico era aquele em que o agente era punido simplesmente por praticar voluntariamente e com consciência o fato descrito na lei, não havendo qualquer indicação do elemento subjetivo, da finalidade do agente. Em contrapartida, o dolo específico vinha descrito no tipo penal, indicando o especial fim de agir.
e) Dolo geral
Ocorre o dolo geral, segundo Welzel (1956), “quando o autor acredita haver consumado o delito quando na realidade o resultado somente se produz por uma ação posterior, com a qual buscava encobrir o fato”. O agente, julgando ter obtido o resultado esperado, pratica outra ação com diverso propósito e, só então, é que a pretensão inicial se consuma. Para exemplificar a situação, tem-se o caso em que o sujeito, após desferir facadas na vítima, acreditando que ela estava morta a joga em um rio. Ocorre que na verdade a vítima morreu de afogamento, portanto, o resultado incialmente pretendido veio a ocorrer em decorrência do afogamento, não das facadas.
Nesses casos não seria razoável imputar duas infrações penais distintas para duas ações também distintas (tentativa de homicídio ao desferir as facadas e homicídio culposo ao jogar a vítima no rio). O mais correto será imputar o dolo geral ao agente, que acompanha sua ação desde o início até o efetivo resultado ab initio.
Finalizando a análise do dolo, resta claro demonstrar que o dolo no Código Penal é tido como regra e a culpa como exceção. Isso está presente no artigo 18, parágrafo único do referido código, que diz: “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Assim, não havendo qualquer ressalva expressa no texto da lei, a modalidade culposa não será admitida naquela infração penal.
2.3.1. CONCEITO DE CULPA
De antemão, é importante mostrar a clareza e objetividade de Bitencourt (2011, p. 239) ao conceituar culpa como “a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, mas objetivamente previsível”.
Não obstante a conduta culposa ser um ilícito penal, ela se diferencia da conduta dolosa no que tange a estrutura, ou seja, ao passo que no dolo a punição recai sobre uma conduta dirigida a um fim ilícito, na culpa se pune a conduta mal dirigida, na qual se tem como finalidade, normalmente, um resultado penalmente irrelevante.
No Código Penal a conduta culposa está reverenciada no artigo 18, inciso II. Por esse dispositivo tem-se que ela corre quando o agente dá causa a um resultado por ter agido com imprudência, negligência ou imperícia. Entretanto, tal definição não é suficiente para aferir com precisão se determinada conduta praticada pelo agente pode ou não ser considerada culposa. Para a caracterização da conduta culposa, necessária se faz a junção de alguns elementos, como: a) conduta humana voluntária, omissiva ou comissiva; b) inobservância de um dever de cuidado (imprudência, negligência ou imperícia); c) resultado lesivo não querido pelo agente; d) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; e) previsibilidade e; f) tipicidade.
Diante do exposto é possível reconhecer que, tanto a finalidade do autor quanto os meios empregados por ele para se alcançar determinado resultado, não são objetos jurídicos penalmente relevantes, e sim a forma de utilização do meio. Um exemplo bastante elucidativo é o caso do sujeito que está dirigindo um veículo. Sua finalidade, ir de um lugar para outro, assim como o meio empregado, veículo, são penalmente irrelevantes. O modo como o sujeito usa o meio é que será objeto de atenção, isto é, conduzir em velocidade excessiva é que trará consequências jurídicas.
Conforme já mencionado, o conceito de culpa se baseia na inobservância de um dever de cuidado. Isso quer dizer que, sobre cada homem na sociedade, recai o dever de praticar os atos da vida com as devidas cautelas, para que bens jurídicos de terceiros não sejam lesionados. Todavia, inexiste um dever de cuidado geral, capaz de abarcar todas as situações fáticas possíveis. Por isso, em determinados fatos lesivos nos quais não seja possível distinguir pelas normas jurídicas se foram obedecidas as cautelas necessárias, dever-se-á analisar de acordo com o caso concreto o que era razoavelmente exigido do agente em determinada situação.
Outro ponto que merece especial atenção é a previsibilidade, aspecto subjetivo da culpa. Entende-se como a possibilidade de conhecer o perigo que a conduta descuidada do agente pode gerar aos bens jurídicos alheios, isto é, embora não preveja efetivamente o resultado, o agente poderia prevê-lo. Embora seja um aspecto bem subjetivo, delimitado por diversos fatores, situações e pessoas, essa previsibilidade deverá ser aferida pelo juiz com base na perspicácia comum, normal dos homens. Por isso é chamada de previsibilidade comum, baseada no homem médio, de prudência e conhecimentos medianos.
Para parte da doutrina, porém, devido ao fato de os homens serem diferentes no que concerne à inteligência, conhecimento e instrução, deve ser considerada também a previsibilidade subjetiva, em que a reprovabilidade da conduta será constatada de acordo com a previsibilidade de cada um, levando em conta as características do sujeito focalizado.
2.3.2. MODALIDADES DE CULPA
a) Imprudência
A imprudência é a atitude em que o agente atua sem o cuidado necessário. Ela implica sempre em um comportamento ativo do sujeito, provido de precipitação/insensatez. Exemplos de imprudência são: dirigir veículo em rua movimentada com excesso de velocidade; caçar em locais públicos; manejar arma carregada etc..
b) Negligência
Diferentemente da imprudência, na negligência tem-se uma modalidade marcada pela omissão. Pode ser entendida como a falta de precaução, de cuidado. É a inércia do agente antes de começar a agir. Assim, podendo tomar as cautelas exigíveis, não o faz por indolência ou preguiça. Deixar arma de fogo ao alcance de crianças bem como deixar de reparar e verificar pneus e freios antes de viajar são exemplos de condutas negligentes.
c) Imperícia
A imperícia é a ação ou omissão que demonstram incapacidade/inaptidão técnica para o exercício de profissão ou atividade. Assim, o atirador de elite que mata a vítima em vez de acertar o criminoso é um clássico exemplo de imperícia.
Vale ressaltar que se a imperícia advier de pessoa que não exerce arte ou profissão, como o curandeiro que faz uma intervenção cirúrgica, tem-se imprudência.
2.3.3. ESPÉCIES DE CULPA
a) Culpa consciente
A culpa consciente é aquela em que o sujeito prevê o possível resultado e mesmo assim age, na crença sincera de que este não ocorrerá. Há no agente a representação da possibilidade do resultado, mas ele a afasta de imediato, por entender que o evitará e que sua habilidade impedirá o evento lesivo.
Essa espécie de culpa se aproxima muito do dolo eventual. Por hora, basta o entendimento de que ambos são marcados pela previsão do resultado, tendo como principal ponto de divergência o fato de que no dolo há a indiferença da ocorrência do resultado, enquanto que na culpa não existe essa indiferença.
Em decorrência dessa proximidade, geradora de dúvidas e incertezas sobre qual instituto aplicar em determinados delitos, tratar-se-á, no capítulo subsequente, de todos os pontos que os diferenciam, bem como suas consequências com as respectivas aplicações.
b) Culpa inconsciente
A culpa inconsciente ocorre quando o agente não prevê o resultado, embora pudesse e devesse ter previsto. Portanto, essa se afigura como a noção tradicional de culpa, englobando todos os seus elementos constituintes, dentre eles a previsibilidade da ocorrência do resultado (previsibilidade objetiva) e a violação de um dever de cuidado.
Como exemplo simplório, tem-se a situação do sujeito que, ao dirigir em alta velocidade, perde o controle do carro e atropela uma vítima. O agente que dirigia o carro não teve a antevisão do resultado, entretanto, o fato de dirigir em alta velocidade ensejaria previsibilidade do resultado a qualquer pessoa.
3. DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE
3.1. A DIFERENCIAÇÃO ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE
Como dito anteriormente, o dolo eventual se aproxima muito da culpa consciente, restando complicado ter a precisão de qual instituto aplicar nos delitos, principalmente nos homicídios no trânsito. Diante desse impasse, várias teorias foram criadas pela doutrina a fim de explicar a diferenciação entre ambos.
A resposta à pergunta “qual a diferença entre culpa consciente e dolo eventual”, pode ser dada por Fernando Capez na seguinte lição:
A culpa consciente difere do dolo eventual porque neste o agente prevê o resultado, mas não se importe que ele ocorra (“se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, vou prosseguir”). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (“se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas estou certo de que isso, embora possível, não ocorrerá”). O traço distintivo entre ambos, portanto, é que no dolo eventual o agente diz: “não importa”, enquanto na culpa consciente supõe: “é possível, mas não vai acontecer de forma alguma” (CAPEZ, 2001, p. 193).
Destarte, como explicitado pelo ilustre doutrinador, a principal divergência entre dolo eventual e culpa consciente consiste na indiferença ou não do autor na ocorrência do resultado.
O limite entre os dois institutos reside no reconhecimento de que na culpa com representação o que se conhece é o perigo de que o resultado danoso possa ocorrer, embora este perigo seja rejeitado pelo agente, pois ele acredita que, chegado o momento, ele evitará o resultado ou este não ocorrerá. Portanto, na culpa consciente, o agente não aceita o resultado e não assume o risco de produzi-lo. Já no dolo eventual o agente aceita o resultado e assume o risco de produzi-lo, haja vista o resultado danoso ser para ele indiferente.
Note-se que assumir um risco não é somente prever o resultado. Deve o agente, além de prevê-lo, aceitá-lo ou, pelo menos, tolerá-lo, e não se importar com o acontecimento. Assim, quando age com culpa consciente, o agente não quer o resultado, mas, por erro ou excesso de confiança (imprudência), por negligência ao deixar de empregar a diligência necessária ou por falta de preparo para concretizar seu intento, acaba por lhe dar causa. Já no dolo eventual, ocorre uma aceitação do resultado – o agente não se interessa pelo que pode vir a ocorrer, é indiferente ao resultado de sua conduta.
3.2. TEORIAS EXPLICATIVAS DA DIFERENCIAÇÃO
a) Teorias intelectivas
Juarez Tavares (2002) propõe uma classificação a respeito das teorias existentes sobre o dolo eventual e a culpa consciente. O autor agrupa as diversas teorias em dois grandes grupos: intelectivas e volitivas, seguindo a divisão dos elementos que compõem o dolo e a estrutura do tipo.
Segundo as teorias intelectivas, os limites do dolo devem ser determinados com base no conhecimento do agente a respeito dos elementos do tipo subjetivo. Dentre elas, merecem destaque:
a.1) Teoria da representação (possibilidade)
Teoria elaborada por Schroeder e Schmidhauser que defende uma redução simplista entre dolo eventual e culpa consciente. Segundo essa teoria, a culpa consciente nao existe, mas apenas a inconsciente, uma vez que seria contraditório o agente prever o resultado que ele não aprova e mesmo assim continuar na conduta com a certeza de que aquele não acontecerá.
O dolo eventual é caracterizado pela percepção do risco pelo agente. A mera representação da possibilidade de uma lesão já bastaria para sua configuração. Assim, se o condutor do veículo percebe, ao ultrapassar os limites de velocidade, que cria um risco e é possível a eventual lesão ou morte de alguém em decorrência daquele comportamento, haverá dolo eventual, independente de sua vontade em relação a tal resultado — seja indiferença, seja certeza de que nada ocorrerá.
A crítica a essa teoria advém da sua abrangência, pois estende demais o conceito de dolo. Basta a percepção da criação do risco para que o dolo eventual fique configurado, não importando se o condutor tenha certeza de que nada vai acontecer devido à sua habilidade ou ao fato de ter tomado os cuidados necessários para evitar o resultado lesivo. Assim sendo, é uma teoria que não deve ser acolhida, pois reduz o dolo a um elemento intelectual apenas, sem conteúdo volitivo.
a.2) Teoria da probabilidade
Na teoria da probabilidade, desenvolvida por Hellmuth Mayer, se o agente contava com a probabilidade do resultado, isto é, considerava altamente provável que o evento se realizaria e, assim mesmo, continuou agindo, deve responder por dolo eventual. O autor dizia que “a probabilidade significa mais do que a mera possibilidade”.
Portanto, haverá dolo eventual quando o agente prevê como provável, e não apenas como possível, o resultado, atuando, admitindo ou não o resultado. Entretanto, se a produção do resultado for pouco provável, haverá culpa consciente. Um exemplo dessa situação é o caso em que X atira a longa distância em Y, com o intuito de testar a eficácia do tiro da arma. Se X, no momento da ação, tiver consciência da possibilidade concreta do resultado morte (probabilidade) de Y, e, ainda assim, disparar e ocorrer o evento, significa que o consentiu e houve o dolo eventual.
a.3) Teoria da evitabilidade
A teoria da evitabilidade foi plenamente desenvolvida por Armin Kaufmann. Segundo essa doutrina, a linha divisória entre dolo eventual e culpa consciente é a responsabilização dolosa dos efeitos concomitantes representáveis pelo autor como prováveis, não apenas possíveis.
Em apertada síntese, para a teoria da evitabilidade, na culpa consciente o agente ativa os contrafatores necessários a fim de evitar a realização do tipo, mesmo que não consiga. No dolo eventual, ao contrário do instituto anterior, o agente não ativa esses contrafatores necessários para evitar o tipo.
a.4) Teoria do risco
Sobre a presente teoria, merece destaque a lição de Juarez Cirino dos Santos:
A teoria do risco de Frisch (às vezes classificada como variante da teoria da possibilidade), define dolo pelo conhecimento da conduta típica, excluindo do objeto do dolo o resultado típico porque a ação de conhecer não pode ter por objeto realidades ainda inexistentes no momento da ação; não obstante, trabalha com o critério de tomar a sério o e de confiar na evitação do resultado típico para distinguir a decisão pela possível lesão do bem jurídico (dolo eventual) da mera imprudência consciente, aproximando-se, por isso, da teoria dominante. A crítica à teoria se concentra na questão do objeto do dolo: a ausência do elemento volitivo tornaria artificiosa a atitude do autor; depois, seria inaceitável um dolo sem conhecimento das circunstâncias de fato, especialmente do resultado típico, definido pela teoria como mero prognóstico – embora seja nesse sentido que o resultado típico constitui o objeto do dolo (SANTOS, 2008, p. 148).
Para melhor explicar a presente teoria, tem-se o seguinte exemplo: no homicídio, o objeto não será a morte da vítima, mas sim a conduta típica. Assim, para que o dolo eventual reste configurado, basta o sujeito ter conhecimento do risco de sua conduta, não podendo ser qualquer risco, e sim o risco tipificado como ação proibida.
a.5) Teoria do perigo descoberto
Assim como Fisch, Herzberg, ao desenvolver essa teoria, desloca o elemento volitivo do conteúdo do dolo, tornando-o um assunto essencialmente ligado à imputação objetiva. A distinção entre dolo eventual e culpa consciente reside na natureza do perigo, ou seja, segundo Juarez Cirino dos Santos (2008), o perigo pode ser considerado como desprotegido, protegido e desprotegido distante. Pelo primeiro entende-se aquele marcado pela dependência de meros fatores de sorte-azar (a sorte é que decidirá se o resultado lesivo ocorrerá ou não), como na roleta russa, em que o dolo estará configurado mesmo que o autor confie na ausência do resultado.
A culpa consciente se faz presente nos casos de perigo protegido, quando o possível resultado é evitado mediante cuidado ou atenção do autor; da vítima ou de terceiro. O caso do professor que deixa seus alunos nadarem em um rio caudaloso, onde há uma placa indicativa do perigo das águas, não terá contra si imputação ao tipo objetivo, caso algum de seus alunos venha a morrer.
Por fim, o perigo desprotegido distante se assemelha ao perigo protegido, cujo dolo eventual é afastado.
Juarez Tavares relata a fragilidade dessa teoria na seguinte lição:
... nem sempre haverá só culpa consciente quando o perigo for resguardado, por exemplo, no caso em que o risco do resultado lesivo se apresente claro ao autor, deixando este que o acaso ou a sorte decidam acerca das consequências de seu ato, como no exemplo da professora que autoriza o banho de mar em condições absolutamente perigosas e sem nenhuma margem de segurança ou do motorista que cruza o sinal vermelho na frente de outros veículos, em alta velocidade. Mas, nem sempre haverá dolo eventual quando o resultado tenha sido deixado ao acaso. Pois, em caso de dúvida remota acerca da constituição do objeto, a postura subjetiva do agente é no sentido de esperar que este resultado não ocorra, por exemplo, no caso da sedução em que, pela compleição física da vítima, poderia ele supor que se tratasse de pessoa maior de idade. O critério da evitabilidade objetiva, ainda que incerto, pode valer, porém, como elemento acessório da identificação da assunção do risco relativamente à postura do agente de tomar como séria a possibilidade de produzir o resultado (TAVARES, 2002, p. 340).
Dessa forma, essa teoria não conseguiu abarcar todas as situações, trazendo certa imprecisão ao diferenciar dolo eventual de culpa consciente em determinados casos concretos.
b) Teorias volitivas
Em oposição às anteriores – teorias intelectivas -, nas teorias volitivas a vontade é o fator determinante para se estabelecer a diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente. Assim, deve-se levar a cabo tanto elementos intelectivos quanto elementos volitivos nas presentes teorias, quais sejam: teoria da indiferença e teoria do consentimento.
b.1) Teoria da indiferença
Para a teoria da indiferença, defendida por Engisch e parte da doutrina brasileira, o dolo eventual está marcado pela indiferença do autor quanto aos possíveis resultados colaterais típicos de sua conduta. Em outras palavras, a diferenciação do dolo eventual da culpa consciente esbarra no grau de indiferença por parte do agente para com o bem jurídico ou a sua lesão. No outro viés, a culpa consciente é caracterizada pela inaceitabilidade do resultado por parte do agente.
Critica-se tal teoria pelo reducionismo do dolo eventual. Mesmo que não haja indiferença e o agente tenha o efetivo desejo de que o resultado lesivo não ocorra, ser-lhe-á imputado o dolo eventual, caso ele tenha previsto a possibilidade de o resultado lesivo e mesmo assim tenha continuado com seu comportamento, sob a justificativa de que houve aceitação do risco.
Além disso, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos (2008) “a ausência de representação do resultado, própria da imprudência inconsciente, pode indicar o mais elevado grau de indiferença em relação ao bem jurídico protegido”.
b.2) Teoria do consentimento
Teoria desenvolvida por Mezger e adotada pelo Código Penal Brasileiro, no artigo 18, inciso I. O dolo eventual é definido pelo ato de aprovar o resultado típico previsto como possível juntamente com o fato de esse resultado agradar ao autor. Não obstante esses dois elementos, o que caracteriza de fato o dolo eventual é o “consentir”, o “aceitar” ou o “assumir o risco” de produzir o resultado lesivo, sendo o lado emocional (agradar ao autor) considerado uma exigência apenas para parte dos adeptos dessa formulação. Essa ideia é reforçada por Juarez Tavares (2002), que subdivide a teoria do consentimento em duas vertentes: a dos que exigem que o resultado seja agradável ao agente e; a dos que dispensam referido requisito. Tal posicionamento, apesar de divergir da ideia de Mezger, se mostra coerente, haja vista que, mesmo o resultado sendo desagradável, o dolo eventual não estará afastado, pois do contrário estar-se-ia transformando o dolo eventual em dolo direto.
Damásio de Jesus (2005), para melhor explicar essa teoria, destaca a existência de dois elementos fundamentais para a configuração do dolo eventual, um intelectivo e outro volitivo. Pelo primeiro, o sujeito deve prever a possibilidade de produção do resultado em face dos meios utilizados e do fim almejado, não se exigindo consciência da probabilidade. O elemento volitivo se refere ao fato de o agente consentir na concretização da conduta, reconhecendo e conformando-se com essa possibilidade.
Concomitantemente às formulações teóricas de distinção entre dolo eventual e culpa consciente, Frank, doutrinador alemão ícone da Teoria do Delito, cria dois critérios práticos conhecidos como Teoria Positiva do Consentimento e Teoria Hipotética do Consentimento.
A Teoria Hipotética do consentimento aduz para que a previsão da possibilidade de ocorrência do resultado somente constituirá dolo quando antevisto o evento como certo pelo agente e esse, mesmo assim, continuou na ação. Portanto, configurado estará o dolo eventual quando o sujeito, prevendo o resultado como possível, agiu sem se importar com a sua ocorrência. Em contrapartida, ocorrerá culpa consciente quando ao agente for previsível um resultado incapaz de fazê-lo prosseguir na sua consecução, mas ele acredita e espera a sua não ocorrência.
A Teoria Positiva do Consentimento, baseada na fórmula 2 de Frank e prevalente na legislação brasileira, entende que no dolo eventual o sujeito não leva em conta a possibilidade do evento previsto, agindo e assumindo o risco de sua produção (“seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei”).
Diante do exposto, pode-se dizer que a fórmula de Frank não é um critério penal e sim processual penal, ligada a prova. Ao invés de, no plano teórico, saber distinguir o que é dolo eventual de culpa consciente, a fórmula remete ao caso concreto, exigindo que o aplicador decida, hipoteticamente, se o sujeito agiria “pouco se importando com a produção do resultado”, tendo a certeza da sua ocorrência. Assim, o aplicador teria que, a partir das provas produzidas, decidir o que teria feito o réu, punindo-o na pendência de uma suposição.
Concluindo a presente discussão, resta claro que a teoria dominante no Brasil não apresenta um critério penal claro na distinção entre dolo eventual e culpa consciente, fazendo com que não haja certeza em qual modalidade de imputação aplicar e, consequentemente, gerando graves prejuízos ao réu.
3.3. CONSEQUÊNCIAS DA APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL E DA CULPA CONSCIENTE
A diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente deve, ou pelo menos deveria, ser um “mistério” passível de solução no plano teórico, uma vez que esta confusão pode trazer graves consequências para o autor de um delito. Dependendo da tipificação dada pelo magistrado à ação do agente, a repressão estatal se manifestará de forma mais ou menos severa a uma mesma conduta.
No Brasil essa indefinição traz consequências gravíssimas. Caso um sujeito, praticando homicídio simples, responda por dolo eventual, sua pena será de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. Em contrapartida, se lhe for imputado culpa a pena máxima será de 3 (três) anos. Tomemos como exemplo a tragédia de Santa Maria – RS. Ao considerar homicídio culposo, produzindo-se diversas mortes, a regra é aplicar o concurso formal, aumentando a sanção até a metade. Assim, a pena poderia chegar ao máximo de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses. Considerando como dolo eventual, há quem possa sustentar a presença do desígnio autônomo e aplicar a regra prevista na segunda parte do artigo 70 do Código Penal, ou seja, somar as penas dos crimes cometidos. Dessa forma, o mesmo crime, por ter sido enquadrado em dolo eventual ao invés de culpa consciente, teria a pena mínima de 6 (seis), somada 245 (duzentos e quarenta e cinco) vezes pelo cúmulo material (fruto das 245 (duzentos e quarenta e cinco) mortes ocorridas naquela trágica noite), resultando em uma condenação de 1.470 (mil quatrocentos e setenta) anos de reclusão, embora o limite constitucional seja de 30 (trinta) anos.
Outra consequência da decisão de qual tipificação será dada (dolo ou culpa) à conduta do agente é a determinação da competência e do rito processual a ser seguido. De acordo com o artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d” da Constituição Federal, o júri é o competente para julgar os crimes dolosos contra a vida. Em contrapartida, se o crime contra a vida (homicídio, por exemplo) acontecer na modalidade culposa, a competência para julgar a ação será do juiz singular.
Mais uma consequência é a de que a princípio não cabe prisão provisória em crimes culposos, cabendo, no entanto, em todas as modalidades de dolo (direto ou indireto) de homicídio.
Assim, mesmo ainda não existindo um critério seguro e conceitos precisos para determinar qual título de imputação aplicar a certa conduta, essa decisão deverá respeitar os princípios penais bem como critérios político criminais, uma vez que existe uma relevante diferença entre as consequências da aplicação do dolo eventual ou da culpa consciente.
4. HOMICÍDIO NO TRÂNSITO
4.1. SEGURANÇA NO TRÂNSITO À LUZ DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
A proteção de bens jurídicos tangíveis, como a propriedade, o patrimônio e a vida, sempre foi alvo da dogmática penal, visto que suas lesões são facilmente apreciáveis. Acontece que outros interesses passíveis de apreciação, mesmo que intangíveis, também foram surgindo com o tempo, como é o caso da segurança no trânsito.
No que concerne ao direito à segurança do trânsito, vale expor a bela lição de Arnaldo Rizzardo:
Tão importante tornou-se o trânsito para a vida nacional que passou a ser instituído um novo direito, ou seja, a garantia a um trânsito seguro. Dentre os direitos fundamentais, que dizem como a própria vida, como a cidadania, a soberania, a saúde, a liberdade, a moradia e tantos outros, proclamados no art. 5º da Constituição Federal, está o direito ao trânsito seguro, regular, organizado ou planejado, não apenas no pertinente à defesa da vida e da incolumidade física, mas também relativamente à regularidade do próprio trafegar, de modo a facilitar a condução dos veículos e a locomoção das pessoas (RIZZARDO, 2008, p. 37).
Dessa forma, a segurança no trânsito passou a ser um direito previsto constitucionalmente, fazendo correlação com o artigo 5º da Carta Magna ao dizer que são garantidos aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Com a Legislação Específica instituidora do Código de Trânsito Brasileiro – Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997 –, a segurança no trânsito passou a ser vista como um direito coletivo, conforme artigo 1º, parágrafo 2º do referido diploma legal:
Art. 1º
[...]
§2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.
Assim, essa norma deve ser interpretada como um princípio (princípio da universalidade do direito ao trânsito seguro), já que cria um direito aplicável a todos, indistintamente. Nesse sentido, Damásio de Jesus (2009) conclui que a objetividade jurídica principal nos delitos de trânsito pertence à coletividade, nada impedindo que se reconheça nesses delitos uma objetividade jurídica secundária, já que a respectiva norma penal protege por via indireta interesses individuais, como a vida, a integridade, a saúde, entre outros.
Para Juliano Viali dos Santos, esse direito é uma espécie do gênero direito à segurança, conforme se verifica na lição abaixo:
Com isso, o legislador de trânsito, na busca de soluções para a violência e as crescentes perdas no trânsito, especificou esse direito fundamental de segurança, com o surgimento do direito fundamental de todos a um trânsito em condições seguras (trânsito seguro), como uma espécie do gênero advindo da norma constitucional e para concretizar o conteúdo do direito humano fundamental genérico (segurança) nas relações do trânsito.
Dessa forma, o Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 1º, § 2º, erigiu o direito fundamental de um trânsito seguro, ou seja, que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito (SANTOS, 2008, p. 7).
Destarte, o direito a segurança no trânsito foi positivado pelo legislador objetivando a redução da violência verificada no trânsito brasileiro, atribuindo aos órgãos e entidades que compõem o Sistema Nacional de Trânsito o dever de adotar as medidas indispensáveis à sua concretização.
A despeito de ser um direito, a segurança no trânsito é também uma obrigação, pois depende da participação de toda a sociedade para que o direito seja garantido, não sendo possível responsabilizar somente órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito. Nesse diapasão, o caput do artigo 28 do Código de Trânsito Brasileiro merece ser transcrito a fim de elucidar o entendimento:
Art. 28 O condutar deverá, a todo momento, ter domínio do seu veículo, dirigindo-o com atenção e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito.
Observando a estrutura dos delitos previstos no Código de Trânsito Brasileiro constata-se que a segurança no trânsito é o bem jurídico principal a ser tutelado em quase todos os crimes, tendo como sujeito passivo o titular do interesse jurídico, qual seja, a coletividade.
Os delitos de trânsito podem ser classificados em próprios e impróprios, sendo estes delitos que podem, também, serem praticados fora da circulação de veículo, como por exemplo, o homicídio culposo. Já os crimes próprios só podem ser cometidos na circulação de veículos, como o “racha”, a embriaguez ao volante, etc. Critica-se a ideia de considerar os crimes de trânsito como de perigo abstrato ou presumido, sendo estes inconstitucionais, por não permitirem prova em contrário, ferindo os princípios da lesividade, alteridade, fragmentariedade, proporcionalidade, entre outros.
Portanto, em consonância com o pensamento de Damásio (2009), sendo a segurança no trânsito o bem jurídico principal tutelado nos crimes de trânsito, todos esses crimes seriam delitos de lesão, já que acarretariam, ao menos, lesão à segurança no trânsito.
O Código de Trânsito Brasileiro, diante de seu objeto jurídico primário (segurança no trânsito), preocupou-se em antecipar o dano, punindo condutas que geralmente resultam em eventos gravosos. Por meio do reflexo das normas de circulação e punições a condutas danosas à segurança no trânsito, a legislação busca proteger, também, bens jurídicos particulares.
Cabe ressaltar que a legislação de trânsito não se baseia somente no Código de Trânsito Brasileiro, mas compreende as normas em sentido amplo, representadas pelos atos normativos emanados pelos órgãos de trânsito, em especial as Resoluções do CONTRAN, que complementam o CTB. Ainda assim, deve-se falar do artigo 291 do Código de Trânsito Brasileiro, cuja previsão possibilita a aplicação das normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, bem como da lei 9.099/95, supletivamente em relação aos crimes cometidos na direção de veículos automotores previstos no CTB.
4.2.1. HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO (ARTIGO 302 DO CTB)
Devido aos altos índices de violência no trânsito e o grande número de condutores infratores, o Código de Trânsito Brasileiro passou a tipificar o homicídio culposo, em seu artigo 302, com a seguinte redação: “praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor”.
Analisando a letra da lei, consistente se faz a crítica elaborada por Damásio de Jesus:
O conceito típico é criticável. Nunca houve maneira mais estranha de descrever delito. O verbo, que tecnicamente representa o núcleo do tipo, refletindo a ação ou a omissão, não menciona a conduta principal do autor. É “praticar”. Ora, o comportamento do autor no homicídio culposo, para fins de definição típica, não consiste em “praticar homicídio culposo”, e sim “matar alguém culposamente”. O verbo típico é “matar”, não “praticar”. O sujeito é punido não porque “praticou”, mas sim porque “matou alguém”. O autor é quem realiza a conduta contida no verbo do tipo, e não quem “pratica homicídio” (DAMÁSIO, 2009, p. 71).
Para que seja configurado o homicídio culposo no trânsito necessário se faz que o agente esteja conduzindo o veículo no momento do cometimento do crime. Assim, a conduta seria atípica caso o agente não se encontrasse na direção do veículo. Um exemplo dessa situação é o caso de quando o carro encontra-se desligado e o agente, imprudentemente, o empurra, resultando em um homicídio. Aqui se estará perante um homicídio culposo disciplinado pelo Código Penal, e não pelo Código de Trânsito Brasileiro.
Outra característica do crime de homicídio culposo no trânsito é que ele pode ocorrer tanto em vias públicas quanto privadas, bastando que seja praticado em um veículo automotor. Dessa forma, independente de o crime ser praticado em um estacionamento particular ou em uma rodovia, configurado estará o delito.
A caracterização da culpa nos delitos de trânsito provém, inicialmente, do desrespeito às normas disciplinares contidas no próprio Código de Trânsito, como imprimir velocidade excessiva; dirigir embriagado; avançar sinal vermelho etc.. Todavia, essas não são as únicas hipóteses que ensejam o crime culposo, pois o agente, ainda que não desrespeite as regras disciplinares impostas, pode agir com inobservância do cuidado necessário e, assim, cometer o crime. A ultrapassagem feita em lugar permitido, mas sem a necessária atenção, pode causar acidente e implicar na ocorrência do crime culposo, mostrando claramente que, mesmo que um ato não seja infração administrativa, pode ser causa de um homicídio culposo no trânsito.
Mister se faz a distinção entre dolo eventual e culpa consciente no que tange à conduta do agente de matar alguém na direção de veículo. Dependendo do enquadramento, ela será considerada culposa e, portanto, disciplinada pelo artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro; ou dolosa, seguindo o disposto no Código Penal. Acerca dessa diferenciação, Arnaldo Rizzardo traz uma lição:
Diante do quadro que presentemente se descortina, há dolo eventual sempre que se dá a adesão ao resultado previsível, e assim quando alguém arremessa um veiculo contra outrem, quando se imprime desenfreada velocidade em via perigosa e com pedestres em seu leito, quando o motorista se lança na direção encontrando-se embriagado, dentre centenas de outras hipóteses.
Já na culpa stricto sensu há a vontade do ato, mas não do resultado, nem a previsibilidade deste (RIZZARDO, 2008, p. 594).
Assim, havendo a violação do dever de cuidado e o preenchimento de requisitos como: i) conduta humana voluntária; ii) ausência de previsão, que deveria e poderia ser previsto pelo agente - previsibilidade; iii) resultado; iv) nexo causal e; v) tipicidade, será possível afirmar que o agente agiu culposamente. Essa inobservância dos cuidados necessários deverá ser aferida de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto, avaliando, na situação específica, qual era a postura que se esperava do agente para evitar a lesão à segurança no trânsito.
Na maioria dos casos, a espécie de culpa que se encontra nos delitos de trânsito é a culpa inconsciente. Nessa, o agente não previu o resultado, mas poderia e deveria ter previsto. A grande questão da tipificação dos crimes de trânsito recai sobre a culpa consciente. Essa, muito parecida com o dolo eventual, ocorre quando o agente previu o resultado, mas acreditava veemente na sua não ocorrência ou na possibilidade de evitá-lo. Um exemplo bem claro trazido por Damásio de Jesus (2009) é o caso do “motorista que vê que um transeunte vai atravessar a pista adiante de seu veículo e que poderá atropelá-lo. Exímio condutor, acredita que, se necessário, será capaz de manobrar habilmente o automóvel para evitar o choque. Prossegue seu trajeto e vem a matar a vítima”.
Diante dessa dupla possibilidade de se aplicar um ou outro texto legal (Código de Trânsito Brasileiro ou Código Penal), necessário se faz tratar do conflito existente entre a norma prevista no CTB e a prevista no CP, no que tange às sanções impostas. Ambos os textos trazem a previsão do homicídio culposo, em que o sujeito é punido por sua conduta negligente, imprudente ou imperita, que resulta no dano ao bem jurídico mais precioso, a vida.
O mesmo fato se amolda a duas normas incriminadoras, isto é, há uma unidade de fato e uma pluralidade de normas identificando esse fato como criminoso. A partir desse conflito, alguma solução jurídica deverá ser encontrada e, no caso específico, o mais indicado é utilizar o princípio da especialidade. Por esse a norma especial afasta a aplicação da norma geral, restando válido salientar que a norma se diz especial quando contiver os elementos de outra (geral) e acrescentar pormenores.
O Código Penal prevê no seu artigo 47, inciso III, a hipótese de suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo, modalidade de pena que comina na interdição temporária de direitos, aplicável aos crimes culposos de trânsito, conforme artigo 57 do mesmo diploma legal. Mesmo com essa previsão, o Código de Trânsito Brasileiro, como dito anteriormente, tipificou o homicídio culposo no trânsito em seu artigo 302, aumentando sua pena-base (pena de dois a quatro anos no CTB, enquanto o CP limita-se entre um e três anos) e cumulando-a com outras restritivas de direitos.
Maurício Antonio Ribeiro Lopes (1998) entende que há uma inconstitucionalidade na exacerbação da pena de detenção frente ao artigo 121, parágrafo 3º do Código Penal. Para ele “nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal ofende o princípio constitucional da isonomia e o consequente direito subjetivo do réu a um tratamento igualitário”.
Além das diferenças já trazidas entre os dois tipos, o perdão judicial e a suspensão do processo são outros dois institutos que podem ser aplicados ao homicídio culposo do Código Penal, ao passo que no homicídio culposo do Código de Trânsito Brasileiro (artigo 302) impossível se faz a aplicação.
O perdão judicial, causa extintiva da punibilidade prevista no artigo 107 do Código Penal, é o instituto pelo qual o juiz, mesmo reconhecendo a existência de todos os elementos para condenar o acusado, deixa de aplicar a pena devido à existência de circunstâncias especiais previstas em lei. Trata-se de um direito subjetivo do acusado, devendo ser aplicado somente em casos previstos em lei. Assim, devido à ausência de previsão legislativa expressa e a impossibilidade de aplicação analógica de normas penais não incriminadoras excepcionais, o referido instituto é inaplicável ao homicídio culposo no trânsito. Não obstante a inexistência de previsão legislativa, a maior parte da doutrina e da jurisprudência já aceita como legítima sua aplicação em homicídio de trânsito.
Assim, sedento por punir de forma mais rigorosa o motorista imprudente, o legislador acabou excedendo princípios elementares de Direito Penal, tais como a razoabilidade e a proporcionalidade. Isso é claramente visto no caso do agente que provoca um homicídio culposo em decorrência de um disparo acidental de arma de fogo. Esse sujeito poderá ser beneficiado com o perdão judicial, dependendo das circunstâncias, e com a suspensão do processo, caso esteja de acordo com o disposto no artigo 89 da lei 9.099/95. No entanto, aquele que na direção de um veículo automotor provocou o mesmo resultado do exemplo supracitado, terá uma pena base maior (dois a quatro anos), cumulada com uma restritiva de direitos e, portanto, não será beneficiado com a suspensão do processo, nem com o perdão judicial, para muitos doutrinadores.
Um ponto extremamente pertinente e que merece certo destaque é a nova redação do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, instituída pela lei 12.971 de 9 de maio de 2014, cuja vigência iniciou no dia 01 de novembro de 2014 (a lei entra em vigor no 1º dia do 6º mês após a sua publicação). O caput teve sua redação inalterada com o advento da nova lei. Já o parágrafo único, apesar de sua redação continuar intacta, passou a estar previsto no parágrafo primeiro do artigo 302.
A grande diferença trazida pela nova lei foi a inserção do parágrafo segundo, criando uma forma qualificada de homicídio no trânsito, nos termos a seguir:
Art. 302º
[...]
§2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:
Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Nota-se que não houve alteração no lapso temporal, isto é, na quantidade da pena, e sim na modalidade da pena privativa de liberdade (de detenção passou a ser reclusão). Portanto, essa qualificadora, diferentemente das outras qualificadoras na seara penal, é qualitativa, e não quantitativa.
Inobstante o intuito do legislador tenha sido o de possibilitar aos juízes fixar regime inicial fechado de cumprimento de pena, na prática essa novidade não surte muito efeito, tendo em vista que a maioria dos magistrados geralmente fixa a pena nos crimes de trânsito no regime aberto. Além disso, o fato de a natureza da pena ser de reclusão, não impede que o juiz faça a substituição por pena restritiva de direitos, conforme artigo 44, inciso I do Código Penal (qualquer que seja a pena aplica, se o crime for culposo, caberá a devida substituição).
4.2.2. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (ARTIGO 306 DO CTB)
A Lei 12.760, de 20 de dezembro de 2012, fez algumas alterações no Código de Trânsito Brasileiro, dentre elas o artigo 306, no qual vem criminalizada a conduta de dirigir veículo automotor sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa.
Nesse dispositivo não há referência a dano potencial, bastando que o sujeito conduza o veículo automotor com capacidade psicomotora alterada para que o delito esteja consumado. Desta feita, o crime do artigo 306 (embriaguez ao volante) é de perigo abstrato, ou seja, a lei é que presume que conduzir veículo nas condições referidas é ação perigosa. Assim, incidirá a norma penal caso a condução do veículo se dê nesse estado, mesmo que a ação apresente-se normal e, no caso concreto, não oferte perigo potencial.
Importante destacar na reforma ocorrida com a vigência imediata da Lei 12.760, a retirada do caput da concentração de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue. Agora basta que o condutor esteja com a “capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência” para que a conduta esteja tipificada. Portanto, ao invés de um tipo penal engessado, que exigia prova numérica e quantitativa da concentração de álcool, hoje, de forma mais flexível, se admite um conceito mais amplo, tendo em vista que basta a “influência”.
Outro aspecto significativo da mudança diz respeito ao alargamento dos meios de prova para se comprovar a embriaguez ao volante. Atualmente não é mais necessária a realização do bafômetro ou exame de sangue para que haja prisão em flagrante do sujeito que pratica o crime do artigo 306 do CTB. Usando a prova testemunhal poderá a autoridade, no mínimo, conduzir o indivíduo até a Delegacia de Polícia para deliberação da Autoridade Policial.
Todavia, a grande questão será apurar quando o agente está com sua capacidade psicomotora alterada. Nesse interim, há duas possibilidades que devem ser colocadas: a) Resolução 432 de 23 de janeiro de 2013 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) que, em seu anexo, elenca várias diretivas para tal aferição; b) Parágrafo primeiro, inciso I do próprio artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, que dispõe que a materialidade será constatada por “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar”. Essa imposição numérica do inciso I do parágrafo primeiro do artigo 306 merece uma crítica, já que cada indivíduo reage de uma forma ao álcool e tem sua própria tolerância. Em outras palavras, um sujeito pode ficar embriagado com dois copos de cerveja, ao passo que outro, com essa mesma quantidade, pode não surtir nenhum efeito. Dessa forma, a quantidade pré-estabelecida não pode ser tomada como uma presunção absoluta de que o agente está com a capacidade psicomotora alterada e, consequentemente, praticou o crime.
Insta salientar que a nova previsão do parágrafo 2º do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (redação dada pela Lei 12.971 de 2014), já aduzida anteriormente e que expõe acerca da forma qualificada de homicídio culposo quando o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada, tornou certa a impossibilidade de incidência concomitante do artigo 306 – embriaguez ao volante –, sob pena de haver punição duas vezes pelo mesmo fato e, assim, violar o princípio do non bis in idem.
Para entendimento de alguns juízes e Tribunais, caso venha a ocorrer algum homicídio culposo qualificado pelo agente, conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, deverá ser aplicado o concurso material ou formal de crimes. Contudo, tal posicionamento se mostra inadequado (estar-se-á punindo o mesmo fato duas vezes), devendo o delito de perigo do artigo 306 ser absorvido pelo delito de dano do artigo 302 (homicídio culposo).
Nessa seara, válidas são as lições de Guilherme de Souza Nucci:
Não há possibilidade de se considerar que o crime de perigo, existente para evitar a concretização do delito de dano, seja punido quando já se efetivou. Ilustrando, sob outro cenário: se o homicídio for comedido com emprego de arma de fogo e o agente não possuir porte ou registro da arma, será punido somente por homicídio. Não mais interessa a infração referente à arma de fogo, crime de perigo, pois atingido o delito de dano (NUCCI, 2013, p. 716).
Conclui-se, portanto, que adotando o princípio da consunção a norma que descreve violação mais grave deverá prevalecer, absorvendo aquela que criminaliza a violação mais branda.
4.2.3. RACHA E VELOCIDADE EXCESSIVA (ARTIGO 308 DO CTB)
O artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro, que descreve o crime de “racha” ou velocidade excessiva, também passou por modificações devido a Lei 12.971 de 9 de maio de 2014. Assim, conforme dito anteriormente, a partir do 6º (sexto) mês após a publicação dessa lei, isto é, no dia 01 de novembro de 2014, já estará vigente a nova redação.
No caput do dispositivo, a expressão “desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada” foi substituída por “gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada”. Por ser um crime de perigo, a expressão “situação de risco” se enquadra melhor no tipo penal e, para entendimento majoritário, o delito continua sendo um crime de perigo concreto, de forma que, para que se configure, é necessária a demonstração da potencialidade lesiva.
Outra mudança bastante significativa foi a majoração da pena máxima, que passou de 2 (dois) anos para 3 (três) anos. Com isso, o delito deixa de ser infração penal de menor potencial ofensivo e, consequentemente, fica impedido de ser julgado pelo Juizado Especial Criminal, já que o teto ultrapassa o limite previsto pelo artigo 61 da Lei 9.099/95.
Ainda assim, previu o legislador duas modalidades qualificadas para o delito em comento, se encontrando nos respectivos parágrafos:
Art. 308º
[...]
§1º Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
§2º Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
O que interessa ao presente trabalho é a conduta resultante em morte, como consta no parágrafo segundo supramencionado. Nessa perspectiva há uma imprecisão quanto a interpretação a ser feita comparativamente ao disposto na segunda parte do parágrafo segundo do artigo 302, ambos do Código de Trânsito Brasileiro.
Ambos os dispositivos preveem situações similares, ou seja, no artigo 308 o legislador agregou um resultado naturalístico ao crime de perigo, nivelando-o com o delito de homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor. Assim, ambas as infrações penais preveem o mesmo resultado, qual seja, a morte de alguém.
Isso trouxe à tona uma relevante questão: caso um agente, durante um “racha”, atropele e mate alguém, por qual crime deverá ser responsabilizado, partindo-se do pressuposto que agiu com culpa?
Nessa toada, o jurista Luiz Flávio Gomes, brilhantemente, expôs a problemática na seguinte lição:
O problema: aqui no art. 308 o resultado morte provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de participação em “racha”. Já no art. 302 (homicídio culposo), é a participação em “racha” que o torna qualificado (mais grave). No delito de participação em “racha”, é a morte que o qualifica. No delito de homicídio, é a participação no racha que o qualifica. Mas tudo isso é a mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes. Na primeira situação (art. 302), a descrição legal foi de trás para frente (morte em virtude do “racha”); na segunda (art. 308), da frente para trás (“racha” e depois a morte). Para não haver nenhuma dúvida (talvez essa tenha sido a preocupação do emérito legislador), descreveu-se o mesmo fato duas vezes. Seria uma mera excrescência legis (o que já é bastante reprovável), se não fosse o seguinte detalhe: No art. 302 (homicídio culposo em razão de “racha”) a pena é de reclusão de dois a quatro anos; no art. 308 (“racha com resultado morte decorrente de culpa”) a pena é de cinco a dez anos de reclusão! Mesmo fato, com penas diferentes (juridicamente falando, sempre se aplica a norma mais favorável ao réu, ou seja, deve incidir a pena mais branda – in dubio pro libertate) (GOMES, 2014, “Nova lei de trânsito: barbeiragem ou derrapagem do legislador”, disponível em: http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/118689473/nova-lei-de-transito-barbeiragem-e-derrapagem-do-legislador)
Ainda se tratando dessa divergência interpretativa, o professor Márcio André Lopes Cavalcante, tentou explicar tais complicações trazidas pela nova lei nas seguintes palavras:
1) Se o agente queria causar a morte (agiu com dolo direto quanto ao resultado): deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com o art. 121 do CP. Exemplo: o condutor percebeu que seu inimigo estava assistindo ao “racha” na calçada e joga o veículo contra ele.
2) Se o agente assumiu o risco de causar a morte (agiu com dolo eventual quanto ao resultado): deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com o art. 121 do CP. Exemplo: o condutor percebe que há muitos expectadores próximos à pista, mesmo assim resolve fazer a curva fechada, sem se importar caso alguém seja atingido. Em seu íntimo, tanto faz se alguém for atropelado.
3) Se o agente não queria nem assumiu o risco de causar a morte, mas apesar disso atuou de forma negligente, imprudente ou imperita (agiu com culpa CONSCIENTE): deverá responder pelo delito do art. 308, §2º do CTB (ou pelo art. 302, §2º, a depender da interpretação que seja dada pelos Tribunais). Exemplo: o condutor percebe que há muitos expectadores próximos à pista, mas mesmo assim resolve fazer a curva fechada, confiando sinceramente nas suas habilidade e que poderia concluir a manobra sem atingir ninguém.
4) Se o agente não queria nem assumiu o risco de causa a morte, mas apesar disso atuou de forma negligente, imprudente ou imperita (agiu com culpa INCONSCIENTE): deverá responder pelo delito do art. 302, §2º, CTB. Exemplo: é madrugada e o condutor que estava participando do “racha” não percebe que há um pedestre próximo à pista (apesar de isso ser previsível); ao fazer a curva, perde o controle do carro e acerta o transeunte, causando a sua morte (CAVALCANTE, 2014, “Comentários à Lei 12.971/2014, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro”, disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html).
Apesar dos esclarecimentos oferecidos pelo eminente autor, a solução para Rogério Greco (2014) é a “revogação do §2º do art. 302 do CTB, punindo-se os condutores nos termos dos §§1º e 2º do art. 308 do mesmo diploma legal, casos seus comportamentos venham a eles se amoldar”.
Portanto, o desfecho dessa antinomia normativa ainda é incerto, devendo o aplicador do direito dar a melhor solução para o caso concreto.
5. POSIÇÕES JURISPRUDENCIAIS E A INFLUÊNCIA DA ÂNSIA SOCIAL PELA REPRESSÃO NOS HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO
5.1.1. A PROBLEMÁTICA JURISPRUDENCIAL/DOUTRINÁRIA ACERCA DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE NOS HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO
Os capítulos anteriores discorreram exaustivamente acerca da diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente. Ficou evidenciado que essa distinção é um assunto polêmico e bastante controverso no mundo jurídico, tendo em vista que mesmo com a exposição da história, dos conceitos, das teorias de diferenciação e das consequências dos respectivos institutos, a conclusão é de que a doutrina e jurisprudência não conseguem chegar a um consenso sobre qual instituto aplicar a determinadas situações.
Foram apresentados também os principais delitos que estão relacionados de alguma forma ao homicídio no trânsito (embriaguez ao volante e “racha” ou velocidade excessiva), ressaltando-se a antinomia criada entres os tipos penais com a nova redação dada pela Lei 12.971 de 2014.
Existe grande divergência na doutrina e na jurisprudência quando se pretende transportar os conceitos teóricos do dolo eventual e da culpa consciente para a vida prática, principalmente quando se trata de crimes de trânsito. Como já dito anteriormente, nem mesmo os doutrinadores conseguem apresentar um critério penal claro para distinguir qual dessas modalidades de imputação aplicar.
Tomando por base as atuais decisões jurisprudenciais sobre o assunto, observa-se que grande parte dos juízes insiste em criar uma fórmula exata para a solução do problema, tendendo sempre em punir os responsáveis pelos acidentes de trânsito da maneira mais severa possível.
O judiciário estaria, nas palavras do professor André Luís Callegari:
Em primeiro plano aceitando até mesmo uma responsabilidade objetiva, tudo pela repercussão social que causou o delito cometido pelo agente, em segundo lugar, demonstrar-se-á o desconhecimento de elementos fundamentais da Teoria Geral do Crime pelos operadores do direito (CALLEGARI, 1995, p. 513).
Portanto, a partir de tudo que já foi exposto até aqui, sabe-se que os julgadores, no momento da análise da decisão de um caso de homicídio ocorrido no trânsito, deverá levar em conta o elemento subjetivo do agente, aferindo a existência ou não de assentimento com a produção do resultado.
5.1.2. O ELEVADO NÚMERO DE MORTES EM ACIDENTES DE TRÂNSITO
Todos os dias nos deparamos com notícias trágicas sobre acidentes automobilísticos, só fazendo aumentar o temor e a angústia provocados pelos altíssimos índices de acidentes ocorridos no trânsito.
De acordo com dados do Mapa da Violência de 2014, o número de mortos em acidentes de trânsito no país cresceu 38,3% no período de 2002 a 2012. Esse dado tem como base o Sistema de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, e mostra que o número de mortes no trânsito vem crescendo gradativamente desde 2000.
Ainda assim, a seguradora Líder, administradora do seguro DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres), divulgou que só no primeiro semestre de 2014 (entre os meses de janeiro a junho) foram pagas 25.181 (vinte e cinco mil cento e oitenta e uma) indenizações por mortes no país, contabilizando uma média de 4.196 (quatro mil cento e noventa e seis) mortes por mês.
Diante de tais números alarmantes, a população clama por punições mais severas, desencadeando decisões desacertadas do judiciário que se rendem a essa pressão. Crimes notadamente culposos são enquadrados como dolosos, na modalidade dolo eventual, trazendo consequências de tamanha monta para os réus, que serão julgados por seus iguais, os mesmos que anseiam por uma maior reprovabilidade das condutas criminosas no trânsito.
O que se pretende com o presente trabalho é mostrar que a comoção social não pode ser um peso determinante na aplicação da lei pelos julgadores. O clamor da população não pode continuar exercendo tanta influência sobre o judiciário como vem exercendo, tendo em vista que os princípios penais e a segurança jurídica devem sempre ser respeitados. Além disso, como as instâncias máximas de poder consideram legítimo esse interesse social por maiores punições aos causadores de acidentes no trânsito, a medida mais adequada a ser tomada não é depreciar o bom funcionamento jurisdicional e sim promover uma alteração legislativa, mudando-se as sanções previstas para esses crimes.
Passemos agora à análise de alguns julgados recentes que versam sobre os delitos resultantes em homicídio no trânsito, enaltecendo suas distorções.
5.2. ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA
5.2.1. A GENERALIZAÇÃO USADA PARA SOLUCIONAR O PROBLEMA, CONCLUINDO PELA EXISTÊNCIA DO DOLO EVENTUAL
Verificando os julgados colacionados adiante, percebe-se que grande parte da jurisprudência brasileira tem se posicionado no sentido de adotar o dolo eventual para homicídios no trânsito, sejam os causados por embriaguez sejam os resultantes de “racha”.
Ante o clamor midiático e o recrudescimento da pressão social frente ao expressivo número de acidentes envolvendo veículos automotores, os tribunais têm adotado uma perigosa fórmula matemática para resolver os casos concretos: “embriaguez + velocidade excessiva + direção de veículo automotor + morte = dolo eventual”.
Essa generalização na resolução das questões tem sofrido duras críticas por parte da doutrina, como observa Rogério Greco (2008) ao dizer que “não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte de outras pessoas”.
Diante de tudo que foi exposto até aqui, resta claro que para concluir se o crime foi praticado a título de dolo eventual ou culpa consciente, o julgador deve alhear-se das influências externas aos autos e examinar caso a caso, não aplicando fórmulas pré-determinadas. Somente as circunstâncias do caso concreto é que permitirão ao emérito julgador afirmar o elemento anímico do agente ao tempo da conduta delitiva, razão pela qual não se pode generalizar que, nos casos de embriaguez ao volante ou “racha” resultantes em morte, houve, necessariamente, dolo eventual.
Analisemos, portanto, as seguintes decisões:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DELITO DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO. EMBRIAGUEZ E ALTA VELOCIDADE. DOLO EVENTUAL.
A prova carreada aos autos é suficiente para embasar a pronúncia do réu. A embriaguez do réu e os relatos de que estaria em alta velocidade e realizando manobras perigosas são suficientes para a manutenção da sentença de pronúncia. A comprovação da materialidade e os indícios de autoria são bastantes para submeter o julgamento ao Tribunal do Júri. A presença ou não do animus necandi não deve ser decidida na fase de pronúncia, a não ser que cabalmente demonstrada a sua inocorrência. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO NÃO PROVIDO. DECISÃO DE PRONÚNCIA MANTIDA.
(TJ-RS, Recurso em Sentido Estrito: RSE 70059072967 RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Data de Julgamento: 21/08/2014, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 15/09/2014)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - CRIMES DE HOMICÍDIO E LESÃO CORPORAL GRAVE NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR - DOLO EVENTUAL - ALEGAÇÃO DE CULPA CONSCIENTE - RÉU QUE CONDUZ VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO, EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ E INVADE CONTRAMÃO DIRECIONAL - INDÍCIOS DA OCORRÊNCIA DE DOLO EVENTUAL - ASSUNÇÃO DO POSSÍVEL RESULTADO DANOSO - COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI - MANUTENÇÃO.
- A soma das circunstâncias do caso concreto (condutor inabilitado e provável ingestão de bebida alcoólica) constitui forte indício da ocorrência de dolo eventual na conduta praticada, devendo a totalidade da acusação e as teses defensivas serem examinadas pelo Conselho de Sentença.
(TJ-MG – Recurso em Sentido Estrito: 10322080052697001 MG, Relator: Delmival de Almeida Campos, Data de Julgamento: 04/09/2013, 4ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 11/09/2013)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. DOLO EVENTUAL. HOMICÍDIO SIMPLES. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. TESTEMUNHA ARROLADA A DESTEMPO. INOCORRÊNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A TIPIFICAÇÃO CONTIDA NOCÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. MATERIALIDADE INCONTROVERSA E INDÍCIOS DE AUTORIA EXISTENTES. ELEMENTOS INDICIÁRIOS SUFICIENTES DE QUE O CONDUTOR DO VEÍCULO AUTOMOTOR TENHA ASSUMIDO O RISCO DE PRODUZIR O RESULTADO MORTE. VELOCIDADE EXCESSIVA EM VIA MOVIMENTADA E COMPROVADA EMBRIAGUEZ. SENTENÇA MANTIDA.
Não há dúvida: "[...] sendo os crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado" (STJ, HC n.º 58.826/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 8.9.2009). Logo, no contexto, empreendendo o condutor velocidade excessiva, em rodovia curvilínea, aliado à comprovada embriaguez, parece adequada, num primeiro momento, a acusação formulada pelo crime contra a vida, na modalidade dolosa (dolo eventual), ou seja, a mistura do álcool com a velocidade revela que o apelante assumiu o risco de produzir o resultado.
(TJ-SC – Recurso Criminal: RC 20130104607 SC 2013.010460-7 (Acórdão), Relator: Ricardo Roesler, Data de Julgamento: 29/07/2013, Segunda Câmara Criminal Julgado)
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP , por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi condenado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia, e, ainda, por estar sob influência do álcool, circunstância apta a demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV - Habeas Corpus denegado.
(STF – HC: 115352 DF, Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 16/04/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013)
Destarte, a jurisprudência pátria ao tratar dos homicídios de trânsito, tem usado critérios e elaborado fórmulas práticas para julgar os casos em comento. Decisões tipificando a conduta delituosa como dolo eventual são recorrentes quando há embriaguez do motorista; mais de uma vítima e; excesso de velocidade ou racha.
É certo que o clamor social influencia e pressiona o Judiciário a todo momento na tentativa de acabar com o sentimento de impunidade aos condutores infratores. Contudo, a visão dos leigos é atécnica e chega a influenciar decisões judiciais que beiram ao absurdo do ponto de vista jurídico, como nos casos em que se usa a figura do dolo eventual nas situações em que o veículo dirigido pelo agente colide frontalmente com o veículo da vítima, trazendo graves lesões também para o autor da ação.
Para ilustrar essa “anomalia” técnica, Rogério Greco traz um exemplo:
Determinado sujeito, durante a comemoração de suas boas de prata, bebe excessivamente e, com isso, se embriaga. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para sua residência, pois que queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida na televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão de seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia ao seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a família (GRECO, 2008, p. 209).
Nesse caso é fácil aferir que o agente jamais consentiu com o resultado, já que se assim o fizesse, aceitaria sua própria morte e a dos demais membros de sua família.
Atualmente, o dolo tem sofrido uma elasticidade tamanha a fim de que seja enquadrado em casos de homicídio no trânsito. Portanto, ante a generalização da figura do dolo, ela está sendo utilizada, como supracitado, até mesmo em casos em que o veículo dirigido pelo agente colide frontalmente com o veículo conduzido pela vítima, gerando uma consequência humanamente absurda, qual seja, o consentimento com a sua morte.
Nelson Hungria relatou um caso real ocorrido no Estado do Rio Grande do Sul que é de grande monta para a presente discussão:
Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados a opinar, pode ser citado o seguinte: três rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automóveis pela estrada que liga as cidades gaúchas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores não pôde evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrário, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado em estado gravíssimo, para um hospital, onde só várias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os três rapazes, vieram a ser pronunciados como co-autores de homicídio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor: se estes houvessem previamente anuído a tal evento, teriam, necessariamente, consentido de antemão na eventual eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas, evidentemente, confiariam em sua boa fortuna, afastando de todo a hipótese de que ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente, para o próprio suicídio (HUNGRIA, 1958 apud WUNDERLICH, “O dolo eventual nos homicídio de trânsito: uma tentativa frustrada”, disponível em: http://jus.com.br/artigos/1732/o-dolo-eventual-nos-homicidios-de-transito/4).
Concluindo esse tópico, resta evidente que a solução criada e aplicada indistintamente pela jurisprudência tem falhas cruciais. Muito embora ela busque ceder à ânsia social por punições mais severas, falta-lhe técnica jurídico-penal.
5.2.2. ANÁLISE DO CASO CONCRETO PARA DEFINIÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO
O julgamento do Habeas Corpus 107.801/SP, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, sob a liderança do voto do Ministro Luiz Fux, no dia 6 de setembro de 2011, foi um marco para a problemática da distinção entre dolo eventual e culpa consciente nos homicídios de trânsito. Isso porque delineou um critério para se diferenciar, na prática, a aplicação dos respectivos institutos.
Abaixo será apresentada a ementa dessa importante decisão:
PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.
1. A Classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcóolicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que "O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. §1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo. §2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato" (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243). 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, rel. Min. Moreira Alves, DJ 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB). 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.
(STF – HC 107.801/SP, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 06/09/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011)
No presente caso, os impetrantes alegaram que o homicídio na direção de veículo automotor causado por embriaguez se trata de crime culposo. Disseram ainda que o paciente não anuiu com o risco da ocorrência do resultado, tendo agido com imprudência na condução do veículo por estar alcoolizado, sendo o caso, portanto, de culpa consciente (acreditava na sua habilidade na direção e, por isso, jamais imaginou que o fato típico poderia ocorrer).
O Ministro Luiz Fux, em seu voto, enfatizou o problema da utilização banalizada do Tribunal do Júri. Disse ainda, em outra oportunidade, que o Tribunal do Júri é “sabidamente atécnico e, às vezes, até mesmo apaixonado, a depender do local...”.
No que se refere à embriaguez ao volante e o dolo eventual, o Ministro alegou que o único modo de utilização da teoria da actio libero in causa para conduzir ao reconhecimento do dolo é no caso da embriaguez preordenada, aquela em que o agente, com o fim precípuo de cometer crime, embriaga-se para buscar coragem suficiente para a execução do ato ou ao menos consentir com a ocorrência do resultado previsto. Portanto, segundo o eminente julgador, nos homicídios de trânsito presumir-se-á que se trata de culpa consciente, já que o legislador previu tipo penal específico no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, devendo ser enquadrado como dolo somente quando houver embriaguez preordenada.
Há de se realçar e até mesmo elogiar a conduta do Ministro Luiz Fux, já que com esse julgado do STF, um vazio na jurisprudência pátria foi preenchido, contribuindo, concomitantemente, para o avanço da dogmática penal. O ilustre julgador teve a capacidade intelectual, o equilíbrio e a coragem (tomar uma decisão que vai contra o clamor social por uma repressão maior aos condutores infratores) para encarar uma divergência muito relevante para o direito penal, qual seja, a distinção prática entre dolo eventual e culpa consciente.
Abaixo estão colacionados outros julgados que buscaram se aperfeiçoar com a boa técnica, prezando pela aplicação da lei penal de acordo com a vontade nela intrínseca.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO.
Recorrente pronunciado como incurso nas penas do artigo 121, caput, e artigo129, § 1º, inciso I, c/c artigo 61, inciso II, alínea h, na forma do artigo 70, todos do Código Penal e artigo 306 da Lei nº. 9.503/97, na forma do artigo 69 do Código Penal, para que seja submetido a julgamento perante o Egrégio Tribunal do Júri desta Comarca. Postula a Defesa, em suas razões recursais, a nulidade da sentença de pronúncia, ante a inexistência de suporte probatório suficiente a fundamentar a decisão. Materialidade robustamente comprovada. Indícios suficientes de autoria. Réu pronunciado por lesão corporal grave e homicídio praticado com dolo eventual, causado por acidente de trânsito. Controvérsia quanto ao elemento subjetivo em relação ao crime de homicídio doloso. Decisão de pronúncia que deve conter mero juízo de admissibilidade da acusação. Exame perfunctório das provas. Delitos de trânsito com tipos penais específicos e definidos em legislação própria. Não restou suficientemente demonstrado a configuração do dolo eventual. O alegado excesso de velocidade bem como a embriaguez devem ser analisados em conjunto com as demais provas. Local do acidente desfeito e com sinalização deficiente. Não há laudo de perícia em local de homicídio. Não há notícia de que o recorrente estivesse participando de algum tipo de competição, popularmente denominada "racha". Evento ocorrido em Rodovia. Vítimas que trafegavam de bicicleta pelo acostamento. Enquadramento legal à conduta do recorrente de competência do juízo de primeiro grau. Matéria relativa à culpabilidade do agente. Distinção entre dolo eventual e culpa consciente a ser demonstrada na condução de veículo automotor. Questão de direito. Complexidade que foge ao âmbito do Tribunal do Júri. A valoração do conjunto probatório compete ao juiz singular. Voto no sentido de DAR PARCIAL PROVIMENTO ao apelo para despronunciar o réu e remeter o julgamento do feito ao Juízo singular da Comarca de origem.
(TJ-RJ, RSE 00012976120108190010 RJ 0001297-61.2010.8.19.0010, Relator: DES. MARCIA PERRINI BODART, Data de Julgamento: 10/12/2013, Data de Publicação: 22/01/201)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO DOLOSO. DESCLASSIFICAÇÃO.
Homicídio. Desclassificação. A existência de indícios de embriaguez e velocidade excessiva não conduz ao entendimento de que o acusado assumiu o risco de causar a morte da vítima. Para que seja caracterizado o dolo eventual, é necessária a comprovação de que o condutor obtinha a previsão do acontecimento e indiferença quanto ao resultado. No caso de morte, esse resultado deve ser considerado e avaliado pelo acusado do fato. Deve haver demonstração de que ele se manteve indiferente com a possibilidade da morte da vítima. Distingue-se o dolo eventual da culpa consciente, pois nesta firmemente crê que nada acontecerá. Como se trata de acusação de homicídio, no caso dos autos não ficou demonstrado que o recorrido previamente tenha assumido o risco de causar a morte do ofendido. A dogmática construída em torno do instituto do dolo eventual deve ser aplicada no caso dos autos. Doutrina. Precedente deste órgão fracionário. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO.
(TJ-RS, Recurso em Sentido Estrito Nº 70053877783, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 07/11/2013, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: 10/12/2013)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO SIMPLES. DELITO COMETIDO NA CONDUÇÃO DE MOTOCICLETA. PRONUNCIA. ART. 121, CP E ART. 306 E 309, CTB. DOLO EVENTUAL. RECURSO DA DEFESA. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. DISTINÇÃO INTRINCADA ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE QUE EXIGE CONTROLE MAIS ACURADO NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DA PRONÚNCIA NOS CRIMES CONTRA A VIDA EM QUE ENVOLVAM ACIDENTE DE TRÂNSITO. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTO CONCRETO, DIVERSO DA EMBRIAGUEZ, QUE DEMONSTRE TER O RÉU ANUIDO, AO DIRIGIR EMBRIAGADO, COM O RESULTADO MORTE. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE HOMICÍDIO DOLOSO (ART. 121, CAPUT, DO CP) PARA O CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO COMETIDO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 302, DO CTN). RECURSO PROVIDO. - Não havendo, na espécie, outro fator que aliado à embriaguez, a qual, por si só, configura quebra do dever de cuidado (art. 165, do CTB), que permitisse aferir que o réu agiu por motivo egoístico, que possibilitasse amparar um juízo de fundada suspeita de que o réu anuiu com o resultado, ou seja, de que o réu agiu com dolo eventual, é de rigor que se desclassifique o crime de homicídio doloso (art. 121, caput, do CP) para o crime de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, do CTN). - É de se frisar que aqui não se está a afastar a competência, constitucionalmente assegurada, do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, o que se faz é, através da distinção do dolo eventual e da culpa consciente, com amparo em balizas mais concretas, consistente na necessidade de ficar evidenciado um "plus" que demonstre o agir egoístico, torpe, do motorista embriagado que possa evidenciar que o mesmo anuiu com o resultado morte, afastar a configuração do dolo eventual.
(TJ-PR, Recurso em Sentido Estrito 8387906 PR 838790-6 (Acórdão), Relator: Naor R. de Macedo Neto, Julgado em 09/02/2012).
HOMICÍDIO - CRIME DE TRÂNSITO - EMBRIAGUEZ - DOLO EVENTUAL - AFERIÇAO AUTOMÁTICA - IMPOSSIBILIDADE - DESCLASSIFICAÇAO PARA HOMICÍDIO CULPOSO - RECURSO PROVIDO, POR MAIORIA. 1. Em delito de trânsito, ou se demonstra o dolo direto, ou se reduz em demasia a possibilidade do dolo eventual ante a perspectiva de que o próprio agente ativo da relação penal substantiva poderia ser, também, vítima fatal do evento a que deu causa. 2. A embriaguez não autoriza a presunção de dolo eventual, o que importaria em odiosa conclusão automática da existência de um elemento subjetivo do tipo, indemonstrado. 3. Recurso provido para desclassificar o delito para homicídio culposo. 4. Decisão por maioria.
(TJ-SE - RECSENSES: 2010302076 SE, Relator: DES. EDSON ULISSES DE MELO, Data de Julgamento: 02/08/2010)
Diante do exposto, fica evidente que é indispensável que o operador do Direito analise o elemento subjetivo do tipo, antes de simplesmente presumir o dolo eventual. Em outras palavras, o correto é analisar todas as circunstâncias do caso para aferir o ânimo do agente, sendo a conclusão pelo dolo eventual algo excepcional nos homicídio de trânsito. Portanto, a alteração da estrutura típica do delito, muitas vezes feita pelos magistrados a fim de atender ao interesse da sociedade por uma punição mais severa, deve ser uma atitude descartada do cotidiano forense.
5.3. A FORÇA DA COMOÇÃO SOCIAL EXERCIDA SOBRE OS OPERADORES DO DIREITO
Essa etapa final do presente estudo mostra-se extremamente importante para se entender as distorções da aplicação da lei penal, analisando a influência que a sociedade tem sobre as decisões judiciais relacionadas aos homicídios no trânsito. Além disso, chegar-se-á a conclusão de que para tentar sanar a celeuma tratada em todo o trabalho, deve-se aplicar a técnica de interpretação do direito de acordo com o caso concreto, excluindo os agentes externos, como a repressão social e seus efeitos.
Diante da linha tênue que separa o dolo eventual da culpa consciente, os Tribunais têm proferido julgamentos distantes da técnica, desvirtuando a lei a fim de se evitar o sentimento de impunidade nos crimes em questão. Por isso, ora tem-se decidido pela existência de culpa, ora concluída pela modalidade de dolo eventual, em clara tentativa de atender à ânsia de “repressão” à violência no trânsito.
Atrelado a esse anseio popular, ou até mesmo sendo a fonte de instigação a esse desejo, está a mídia. A mídia de modo geral tem conferido grande atenção aos homicídios de trânsito, dando sempre maior destaque àqueles decorrentes da embriaguez ao volante e àqueles oriundos de competições, conhecidas como racha ou pega. Como consequência disso, tem-se incutido na mente dos cidadãos uma dita “impunidade”, o que tem gerado reações de caráter repressivo não apenas entre a população, mas também no seio do Judiciário.
Um exemplo singelo desse impressionismo midiático, que tem influenciado vários cidadãos, é uma entrevista feita pelo Dr. Drauzio Varella com a médica Julia Greve, a qual será reproduzida um breve trecho:
Drauzio – Como você acha que esse assunto deve ser tratado?
Julia Greve – O problema do álcool é sério e a solução não é simples. A repressão é importante, assim como o é a educação. A questão é como convencer um jovem de que ele não pode beber. Campanhas moralistas não surtem nenhum efeito. A mídia está repleta de mensagens do tipo: “Se beber, não dirija”. De certa forma, essa banalização do assunto faz com que as pessoas se mostrem anestesiadas e não se impressionem com o testemunho de alguém que sofreu um acidente grave depois de ter bebido. Os aspectos educativos são importantes, mas é preciso conscientizar a sociedade de que muita gente está morrendo por causa disso e que inverter essa situação é responsabilidade de todos.
Drauzio – Nos países em que a legislação é rígida, o uso do bafômetro é encarado com naturalidade e não é raro encontrar pessoas que foram testadas várias vezes por ano nas ruas, na saída dos supermercados ou perto de bares e cinemas. Aqui, não conheço ninguém que tenha passado por essa experiência. Essa certeza de impunidade facilita o consumo de bebidas alcoólicas. É comum ver nas ruas, especialmente nas noites de sextas-feiras e nos finais de semana, gente bêbada dirigindo automóveis, fazendo acrobacias mirabolantes e pondo em risco a própria vida e a vida dos outros. Você não acha que deveria haver uma conscientização maior associada a uma fiscalização eficaz e permanente para reduzir o número de acidentes de trânsito?
Julia Greve – Acho que as duas medidas devem ser tomadas conjuntamente. Num primeiro momento, como o problema é grave, a repressão tem de ser enérgica e é inevitável. Na legislação brasileira existe um empecilho importante. A Constituição Federal reza que o indivíduo não pode fornecer provas contra si próprio e ele está fazendo isso no instante em que embriagado sopra no bafômetro. Esse artifício jurídico precisa ser discutido. Até que ponto uma pessoa embriagada, que coloca em risco a vida dos outros, tem o direito de negar-se a fazer esse exame?
Nos países que levam o problema a sério, se a quantidade de álcool presente no ar alveolar superar os níveis permitidos por lei, o infrator é levado à delegacia onde pode ser submetido a exames complementares, mas aquela primeira soprada é prova cabal e indiscutível de que ele estava embriagado e transgredindo a lei. No Brasil, como o sujeito pode negar-se a soprar o bafômetro, é levado à delegacia para colher sangue e tem de esperar o médico legista para uma avaliação. Com isso, já se passaram duas ou três horas, o nível de álcool no sangue baixou e não há punição possível. Pensando nisso, é que defendo a idéia da repressão. A sociedade precisa entender que essa história de dar um jeitinho de que se vangloriam tanto os brasileiros não resolve coisa alguma.
Por outro lado, o exemplo dos pais é fundamental para os filhos aprenderem que, sob nenhum pretexto, devem dirigir embriagados. Acidentes de trânsito não são privilégio do Brasil. Existem no mundo inteiro, mas aqui o número de mortes ligadas a indivíduos, que beberam mais do que deviam, é maior por causa da certeza da impunidade (Dráuzio Varella, “Acidentes de trânsito”, disponível em: http://drauziovarella.com.br/dependencia-quimica/alcoolismo/acidentes-de-transito-2/).
Aqueles que defendem o uso do dolo eventual nos homicídios de trânsito acham que esse é o instrumento capaz de moralizar o trânsito no país, mesmo que para isso se tenha que deixar de lado os fundamentos da Teoria Geral do Delito. O argumento usado para essa tese é o de que aquele que dirige embriagado, ou em velocidade acima da permitida, ou praticando o chamado “racha” ou “pega”, estará assumindo o risco de matar.
Se mostrando uma justificativa bastante simplista, esse embasamento não merece ser acolhido na vida prática, uma vez que o conceito de dolo eventual, quando entendido, se faz de forma destorcida. O que se tem visto, na prática judicial, é que em razão desses clamores, crimes claramente culposos e sujeitos à legislação específica, se convertem em dolosos, por meio da figura do dolo eventual.
Portanto, essa corrente jurídica repressivista que utiliza o direito penal como solução para todas as adversidades sociais, exacerbada pela mídia sensacionalista, traz para a sociedade uma ilusória pacificação do trânsito brasileiro. Por isso, deve ser deixada de lado em face da aplicação de um verdadeiro conhecimento jurídico-penal. O alarde público do processo já seria, ao mesmo tempo, uma medida punitiva ao agente e uma advertência à sociedade.
Para evitar esse perigoso método repressivo, deve-se utilizar as garantias fundamentais como instrumentos capazes de restringir a violência do poder punitivo do Estado. Assim, com base no princípio da presunção da inocência e do in dubio pro reo, a punição deve se pautar na conduta praticada pelo réu, podendo ser culposa ou dolosa, desde que analisadas as circunstâncias do caso e preservados os pressupostos dogmáticos do direito penal.
6. CONCLUSÕES
Depois de conhecer afinco os institutos do dolo eventual e da culpa consciente, sobretudo no que concerne às suas aplicações aos crimes de trânsito de embriaguez ao volante e de racha automobilístico, coerente se faz tecer algumas conclusões a respeito da zona tênue de diferenciação entre ambos na vida prática, respeitando, sempre, o prolongamento da discussão do tema.
No caminhar do presente estudo, constatou-se que o dolo eventual se aproxima muito da culpa consciente, o que faz gerar uma imprecisão sobre qual instituto aplicar nos casos concretos que envolvam homicídios de trânsito. Contudo, teorias da diferenciação foram apresentadas, restando claro que, para se imputar a modalidade dolosa é indispensável reconhecer além da previsão do resultado ilícito, a anuência ao advento desse resultado.
A teoria do consentimento, desenvolvida por Mezger, é a mais aceita na legislação brasileira, mais especificamente no artigo 18, inciso I do Código Penal Brasileiro. Ademais, outros autores da teoria finalista da ação, cujo pensamento é o de que o agente deve ser responsabilizado por sua intenção de agir, embasam a ideia de que os juízes devem buscar no caso concreto elementos capazes de caracterizar o dolo eventual e, não os achando, concluir pela existência de culpa.
O grande problema das atuais decisões jurisprudenciais sobre o assunto é que se tem criado uma fórmula exata para a solução do problema de diferenciação entre os institutos ora mencionados, sendo que os magistrados estão tendendo sempre em punir os responsáveis pelos acidentes de trânsito da maneira mais severa possível. Assim a banalização do dolo põe de lado a análise do elemento subjetivo do agente, presumindo-se, sempre, a ocorrência do dolo eventual.
As circunstâncias próprias de cada caso devem ser analisadas, a fim de se aferir o ânimo do agente, não podendo ser ignoradas em detrimento do simples fato de o motorista estar embriagado ou em velocidade excessiva e, muito menos do clamor social por punições mais severas. Destarte, a situação fática é que mostrará se o agente, prevendo o resultado danoso, o aceita e assume o risco de produzi-lo, uma vez que esse é indiferente para o agente.
Diante de tudo que foi exposto até aqui, o presente trabalho defende a ideia de que a dúvida na aplicação entre dolo eventual ou culpa consciente nos homicídios de trânsito resultantes da embriaguez ao volante ou do racha automobilístico deve ser sanada após uma análise aguda de todas as circunstâncias do fato. Ou seja, não se pode aplicar uma regra posta indistintamente sem que os elementos circundantes do caso sejam analisados.
A sociedade, estimulada pela mídia, anseia por maior repressão aos condutores infratores causadores de acidentes no trânsito. Consequentemente, esse clamor social influencia os julgadores e, assim, sobrepõem o ideal emocional ao racional, ou seja, deixam de aplicar o direito penal de forma técnica em vista da vontade popular por combate a impunidade.
No capítulo IV, foram elencados diversos julgados nos quais se pôde constatar essa ideia dos aplicadores do direito em punir de forma mais severa aqueles que causam homicídios no trânsito. O dolo eventual era aplicado de maneira indistinta, pautando-se apenas em elementos objetivos como a embriaguez ou o excesso de velocidade. Com isso, as consequências para o réu eram mais graves e a sociedade se via mais “satisfeita” com as decisões judiciais. Contudo, há de se ressaltar que tais provimentos se distanciavam da doutrina finalista da ação, não correspondendo, portanto, com a técnica correta a ser aplicada.
O julgamento do Habeas Corpus 107.801/SP pelo STF, em setembro de 2011, clareou, de certa forma, a questão controvertida. A culpa passou a ser vista e aplicada como regra nos homicídios de trânsito, sendo o dolo eventual uma tipificação excepcional e ocorrendo somente quando as circunstâncias fáticas o alegar.
Vale ressaltar ainda que, se tratando de homicídios no trânsito, a Lei 12.971 de 2014 trouxe algumas importantes alterações. Com a intenção de impor um maior rigor ao homicídio no trânsito, o legislador falhou e não conseguiu superar antigas lacunas e divergências, como demonstrado no presente trabalho.
Enfim, o que se deve ter como certo quando se trata de qual imputação dar aos delitos de trânsito resultantes em homicídios é que a técnica jurídica-penal não pode ser ofuscada pela ânsia social por repressão à violência no trânsito. Independente de se considerar culposa ou dolosa uma conduta, as circunstâncias de cada caso devem ser sempre analisadas, pois só assim se chegará ao real ideário de justiça.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Pós-Graduado pela PUC Minas. Oficial Judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Tulio Barros. Dolo eventual ou culpa consciente nos homicídios de trânsito: a influência da ânsia social pela repressão à violência no trânsito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56070/dolo-eventual-ou-culpa-consciente-nos-homicdios-de-trnsito-a-influncia-da-nsia-social-pela-represso-violncia-no-trnsito. Acesso em: 22 nov 2024.
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