Resumo: O trabalho apresenta uma análise crítica da posição do Tribunal de Contas de União acerca de seu papel na fiscalização dos acordos substitutivos celebrados por agências reguladoras federais. Em seu desenvolvimento, adotou-se o método do levantamento e exame da legislação e doutrina nacionais, além da análise crítica de decisões selecionadas da Corte de Contas Federal. O objetivo geral é avaliar se o Tribunal de Contas da União define com clareza as possibilidades e limites de sua fiscalização sobre os referidos acordos, chamando atenção para as potenciais consequências da posição externada. A análise se justifica pelos desdobramentos práticos que a questão pode ter na ampliação do uso dos instrumentos pelas agências reguladoras federais. A hipótese de trabalho é a de que a inexistência de critérios objetivos na delimitação do papel do controle externo sobre os acordos substitutivos inibe sua utilização.
Palavras-chave: acordo substitutivo; consensualidade; agência reguladora federal; Tribunal de Contas da União; competência.
Sumário: 1. Introdução; 2 Os acordos substitutivos e as agências reguladoras; 2.1 A competência sancionatória das agências reguladoras e o seu caráter instrumental; 2.2. Acordo substitutivo celebrado por agência reguladora; 3 Relevância de critérios objetivos na definição do papel do Tribunal de Contas da União na fiscalização dos acordos substitutivos celebrados por agências reguladoras federais; 3.1 A origem do problema: a definição da competência do Tribunal de Contas da União; 3.2 O que diz o Tribunal de Contas da União; 3.3 Potenciais consequências da ausência de clareza do papel do Tribunal de Contas da União na fiscalização dos acordos substitutivos; 4 Considerações Finais; Referências.
Nos últimos anos, a consensualidade vem ganhando espaço entre os métodos utilizados pela administração pública para o cumprimento de suas funções. Embora não se trate propriamente de um instrumento novo, pois previsto na legislação brasileira há alguns anos de forma pontual, fato é que seu uso e prescrição normativa ampliaram-se sensivelmente na última década, fruto de variadas razões. Dentre estas, merece destaque a demanda por uma maior participação dos particulares na atuação da administração pública e a busca por alternativas nos casos em que a forma de agir imperativa e unilateral do Poder Público não alcança os resultados almejados.
Mesmo o campo do Direito Administrativo Sancionador, densamente marcado por poderes exorbitantes e pela relação verticalizada entre a administração pública e o administrado, foi permeado pelo consensualismo, que pode se concretizar por diversas formas, dentre elas a celebração de acordos para assunção de obrigações em substituição à aplicação de penas ou com efeitos impeditivos do prosseguimento de processo administrativo sancionador.
As agências reguladoras protagonizaram o movimento observado de ampliação da consensualidade em matéria sancionatória. Com o avanço do uso dos acordos em matéria sancionatória pelas agências reguladoras federais, emergiu um importante ator no cenário: o Tribunal de Contas da União. A Corte de Contas passou a atuar fortemente na análise e mediante a expedição de comandos relacionados aos referidos instrumentos e regulamentos emitidos pelas agências para o regramento de sua celebração. A partir daí nasceram tormentosas discussões sobre o papel e limites da atuação do Tribunal de Contas da União na fiscalização da celebração e execução dos acordos.
O objetivo geral do trabalho é avaliar se o Tribunal de Contas da União define com clareza o seu papel na fiscalização dos acordos substitutivos celebrados por agências reguladoras federais, chamando atenção para as potenciais consequências da posição externada. O tema é atual e proporciona relevantes desdobramentos práticos, na medida em que coloca luzes sobre questão de cuja solução depende o aperfeiçoamento do uso do instrumento.
Para desenvolver o estudo foi empregado como método a pesquisa e análise de doutrina, especificamente a nacional, bem como o levantamento e análise crítica de decisões selecionadas do Tribunal de Contas da União, além do levantamento e análise da legislação.
O item 2 do trabalho delineia a competência sancionatória das agências reguladoras e seu caráter instrumental, a fim de que se compreenda o contexto em que são celebrados os acordos objeto do estudo. Mais adiante, busca-se identificar o objetivo da celebração dos acordos substitutivos no âmbito da função regulatória. O item 3 apresenta a problemática da ausência de clara definição do papel da Corte de Contas Federal, destacando a sua origem. Examina-se em sequência duas importantes decisões do Tribunal de Contas da União no ponto em que tratam de seu papel na fiscalização dos acordos substitutivos celebrados por agências reguladoras federais. No item 4 são apesentadas as considerações finais do estudo.
2 OS ACORDOS SUBSTITUTIVOS E AS AGÊNCIAS REGULADORAS
A década de 90 foi marcada pelo início de um processo de reformulação do Estado brasileiro. Houve a diminuição de sua intervenção direta na economia, através da produção de bens e serviços, passando ele a adotar o papel de promotor e regulador do desenvolvimento econômico. Embora não fosse possível falar em um Estado regulador, pois sua presença na economia ainda ocorria – como ainda ocorre – de forma direta, o período foi marcado pela redução de sua atuação como prestador de serviços e produtor de bens[1].
Como produto desse momento sugiram as agências reguladoras, autarquias criadas sob um regime especial com autônima administrativa, patrimonial e financeira, às quais foram atribuídas a função regulatória de setores da economia ou atividades de interesse público, incluídos aí os serviços públicos e outras utilidades colocadas à disposição da população em geral.
Em 1995, as Emendas Constitucionais n°s. 8 e 9 deram conta de incluir na Constituição a figura, até então inexistente na legislação, dos órgãos reguladores, respectivamente, do setor de telecomunicação e do monopólio da União Federal nas atividades relacionadas à exploração do petróleo no território nacional, no caso, a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, instituída pela Lei n° 9.472/1997, e a Agência Nacional de Petróleo – ANP, criada pela Lei n°. 9.4781997.
Também naquele mesmo período, foram criadas, no plano infraconstitucional, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, por força da Lei n° 9.427/1996; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, pela Lei n°. 9.782/1999; a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, através da Lei n°. 9.961/2000; e a Agência Nacional de Águas – ANA, por força da Lei n° 9.984/2000[2], demonstrando ser irreversível a mudança da forma como o Estado passaria se relacionar com os setores e atividades reguladas. A cada uma dessas agências foram atribuídas competências específicas por suas leis de criação, de modo a viabilizar o cumprimento de sua função no contexto dos setores em que atuam.
Apenas em 2019, foi instituída uma Lei Geral das Agências Reguladoras, a Lei n°. 13.848/2019, que um trouxe rol taxativo das agências reguladoras existentes até então e definiu regime próprio destas entidades. A norma atribuiu às agências “natureza especial”, caracterizada na norma pela “ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos”.
Cabe a tais entidades uma grande gama de atividades, a exemplo do monitoramento, regulação, fiscalização, todas elas exercidas de acordo com os objetivos fixados em lei para o setor específico. Para este estudo interessa a competência sancionatória das agências reguladoras, pois é no contexto de seu exercício que se inserem os acordos objeto do estudo.
Trata-se de uma competência instrumental, desenhada para possibilitar o exercício eficaz das demais atribuições que foram conferidas às agências reguladoras, notadamente a de regular e fiscalizar determinadas atividades ou setores.
Não é possível conceber a regulação sem que seja possível a punição daquele que não atender às normas e aos padrões instituídos no âmbito dessa função. Seria igualmente inimaginável o exercício da fiscalização desassociado do poder de sancionar. A competência sancionatória não é um fim em si mesma.
A competência sancionatória não caracteriza uma função própria e distinta da regulatória. Insere-se nesta, servindo como instrumento para dar-lhe concretude. A respeito do papel instrumental da competência sancionatória das agências, explica o Professor Floriano de Azevedo Marques (2.000, p. 357):
Temos, então, uma primeira nota relevante: a finalidade da atividade regulatória estatal não é a aplicação das sanções e sim a obtenção de metas, pautas e finalidades que o legislador elegeu como relevantes alcançar. Para o atingimento destas finalidades primaciais pode lançar mão, dentre outros instrumentos, do poder de sancionar. As penas não são um fim em si mesmo, mas um instrumento de que se utiliza o ente estatal para obrigar aos particulares condutas desejadas.
Com efeito, as leis de criação das agências reguladoras conferiram, na seara de suas respectivas funções, o poder-dever de punir os particulares a tais entidades com vista a conduzi-los a atuarem conforme determinados padrões e objetivos. Não houve um desenho único adotado pela legislação. Em alguns casos, o legislador ordinário arquitetou quase que por completo a maneira com a qual a agência deve exercer a referida atribuição, definindo as condutas passíveis de sancionamento e procedimento sob o qual a aplicação da pena deve ocorrer; já em outros, a atribuição foi prevista de forma genérica, deixando-se o detalhamento para o campo infra-legal.
Não cabe aqui trazer as regras de acordo com as quais cada uma das agências reguladoras federais exerce sua competência sancionatória. Como dito, é grande a diversidade, assim como os debates gerados sobre os caminhos escolhidos pelo legislador em cada caso. O importante é fixar que o Direito Administrativo Sancionador[3] se faz presente nas agências reguladoras e, no âmbito da regulação, a punição visa persuadir os agentes regulados a aturem em conformidade com as normas. Deve ser entendida, assim, como um instrumento de regulação, sem o qual as regras aplicáveis ao setor e a própria atuação da agência reguladora não teria êxito.
2.2 Acordo substitutivo celebrado por agência reguladora
No contexto da revisão do papel do Estado brasileiro e suas formas de atuação, viu-se a ampliação do uso da consensualidade pela administração pública como método para a consecução de seus objetivos. Embora não se trate propriamente de uma prática nova, pois a legislação brasileira prevê mecanismos consensuais há muito anos, como é o caso, por exemplo, da desapropriação amigável[4], foi mais recentemente que se observou a ampliação do uso do método em substituição à atuação unilateral e imperativa do Estado.
De forma paulatina, a atuação da administração pública marcada por poderes exorbitantes cedeu espaço a uma forma de agir consensual. O ato administrativo, enquanto meio de concretização de prerrogativas unilaterais e da relação verticalizada entre a administração e os particulares, deixa de ser a único instrumento de consecução das funções públicas[5].
Não há unanimidade sobre as razões que motivaram esse fato, mas é possível apontar duas frequentemente citadas: a necessidade de conferir maior participação aos particulares na atuação da administração pública e a busca por mecanismos alternativos nos casos em que a atuação unilateral não se mostra eficaz para o atingimento de seus objetivos.
O Direito Administrativo Sancionador também avançou em direção ao consensualismo[6]. Houve ressalvas ao movimento por parcela da doutrina sob o receio de que a utilização do método poderia significar na disposição do poder de punir, em prejuízo à supremacia do interesse público sobre o privado. Fato é que mesmo nesse campo do direito, fortemente marcado por uma atuação imperativa do Estado, foram dados passos em prol do uso da consensualidade. A legislação específica passou a prevê-la de forma ampla.
Os acordos em matéria sancionatória não são uniformes. Há aqueles que têm como objetivo a cessação de uma prática infracional; e outros cujo efeito é a redução ou extinção da pena ou impedir a instauração ou prosseguimento do processo administrativo sancionador[7].
Existe um amplo arsenal de acordos em matéria sancionatória colocadp à disposição da administração pública, cada qual com contornos e objetivos específicos. Dentre eles, recebem destaque os acordos substitutivos de sanção. Através desse tipo de ajuste a administração pública substitui sua atuação unilateral e imperativa típica do ius puniendi por um instrumento bilateral celebrado com o particular de efeito impeditivo ou extintivo do processo administrativo sancionador[8].
O direito regulatório protagonizou o fenômeno da proliferação dos acordos em matéria sancionatória no ordenamento brasileiro, sobremaneira através de normas infra-legais. Não por acaso foi no âmbito das agências reguladoras que esses tipos de acordos surgiram com maior força. A estruturação de agências autônomas incumbidas da regulação de setores da economia ou atividades de interesse público no Brasil sofreu grande influência norte-americana, onde a consensualidade é amplamente utilizada por ter suas bases no pragmatismo jurídico, corrente nascida nos Estados Unidos da América[9].
Ainda, o caráter instrumental da competência sancionatória das agências reguladoras, conforme apresentado no tópico anterior, confere força à possibilidade de substituição das penas ou processos sancionatórios por obrigações do particular cujo cumprimento se revele mais eficaz no atingimento de determinados objetivos ínsitos à própria regulação, segundo uma visão utilitarista.
Como exemplo de normas que preveem os acordos em matéria sancionatória, vale citar o art. 29 da Lei 9.656/1998; o art. 21 da Resolução ANEEL 63/2004; o art. 29 da Resolução ANS 48/2003; o art. 4°, §1°, da Resolução ANTT-152/2003; o art. 24 da Resolução ANTAQ-987/2003; os arts. 83 a 87 da Resolução ANTAQ n° 3259; os arts. 1° e seguintes da Resolução ANATEL n° 629/2013. A leitura dos referidos dispositivos revela que não houve uniformidade no tratamento normativo dos instrumentos. Cada qual tem requisitos e objetivos próprios, desenhados a partir da demanda regulatória do setor.
Nesse contexto, não parece adequado definir características únicas para todos os acordos em matéria sancionatória celebrados por agências reguladoras. O aprofundamento no estudo do tema demanda um tratamento quase casuísticos no propósito de compreender os acordos. Isso não elimina seu caráter, comum a todos esses acordos, utilitarista, no sentido de que podem ser mais eficazes na consecução dos objetivos da regulação que o processamento de um processo administrativo sancionador ou a aplicação de penalidades.
Segundo tal lógica, o acordo em matéria sancionatória celebrado por agência reguladora consiste em um dos instrumentos da função regulação. Sanção e acordo objetivam a mesma finalidade: de conduzir o agente regulado a atuar em conformidade com as normas, cedendo um espaço ao outro quando este se revelar mais apto a alcançar os objetivos da regulação.
3 RELEVÂNCIA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS NA DEFINIÇÃO DO PAPEL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO NA FISCALIZAÇÃO DOS ACORDOS SUBSTITUTIVOS CELEBRADOS POR AGÊNCIAS REGULADORAS FEDERAIS
O Tribunal de Contas da União vem exercendo importante papel no aperfeiçoamento das atividades dos órgãos da Administração Pública Federal. São inegáveis os avanços conquistados com a ampliação de sua atuação. Com o decorrer do tempo, abandonou-se a noção de que a fiscalização exercida pelo Tribunal de Contas da União seria de ordem essencialmente formal, passando ele a examinar também os resultados concretos dos atos da administração[10].
A competência do Tribunal de Contas da União foi estabelecida nos arts. 70 e 71 da Constituição Federal. O primeiro atribuiu ao Congresso Nacional a competência para realizar a “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas”, mediante controle externo ou controle interno de cada Poder.
Ao Tribunal de Contas da União foi conferido o papel de auxiliar o Poder Legislativo na realização do controle externo, para o exercício do que lhe compete, segundo o art. 71 da Carta Maior, uma série de atividades, dentre elas, apreciar as contas do Presidente da República e julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta.
O texto dos art. 70 e 71 da Constituição de 1988 foi fruto de uma série de discussões no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, na qual os representantes dos Tribunais de Contas do País apresentaram propostas ampliativas da competência em debate. Thiago Reis e Pedro Dutra (2020, não paginado) relatam toda a atuação dos representantes dos Tribunais de Contas na Assembleia Constituinte, inclusive com a pretensão de que o Tribunal de Contas da União figurasse, no texto constitucional, entre os Poderes da República, sem subordinação aos demais e derivado diretamente da soberania popular, com competência para fiscalizar todos os atos executórios do Estado[11].
Apesar da ênfase com que os Tribunais de Contas defenderam sua proposta de autonomia e ampliativa das atribuições do Tribunal de Contas da União previstas na Constituição de 1967, foi ela rejeitada, mantendo-se a Corte de Contas Federal no papel de auxiliar do Poder Legislativo no exercício do controle externo.
Mesmo vencidos em suas propostas, a doutrina mais balizada demonstra que os representantes do Tribunal de Contas da União insistiram na pretensão de ampliar sua competência, agora não mais na seara constitucional[12]. As inciativas se deram no processo legislativo da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União.
A Lei n°. 8.443, de 16 de julho de 1992, ao detalhar a competência constitucionalmente atribuída à Corte de Contas, disse, logo em seu art. 1°, que o Tribunal de Contas da União consistiria em órgão de controle externo, e não em auxiliar do Poder Legislativo no exercício dessa função, destoando do texto constitucional. Além da atuação junto ao Legislativo no processo legislativo da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, há uma série de normativos infra-legais expedidos pela própria Corte de Contas Federal em que se vê claramente o objetivo de registrar sua autonomia e ampliar sua competência. É o caso, por exemplo, das Normas de Auditoria do Tribunal de Contas da União, revisada pela última vez em junho de 2011[13]. Diz a normativa: “O TCU exerce competências próprias, independentes das funções do Congresso Nacional, e de suas decisões não cabem recursos ao Congresso Nacional ou a outros Poderes, se não no seu próprio âmbito. ”
É possível extrair do texto acima as mais amplas autonomia e atribuições do Tribunal de Contas da União, que, segundo escrito, deve buscar a conformação das ações dos gestores ao interesse público.
O contexto acima trazido serve, em vista dos objetivos do presente estudo, para demonstrar a origem e quão tortuosa e problemática é a definição da competência do Tribunal de Contas da União. O texto da Constituição Federal não foi suficiente para encerrar as discussões tidas anteriormente à sua promulgação sobre a amplitude das atribuições da Corte de Contas Federal. O debate persiste e o aumento da complexidade das atividades da administração pública só tornam mais difíceis as discussões.
As agências reguladoras, cuja justificativa para sua criação inclui a necessidade de autonomia política e institucional de um ente incumbido de regular os serviços públicos e determinadas atividades, não ficaram à margem do debate. Muito pelo contrário. Justamente por demandarem a citada autonomia geram críticas mais fortes à visão ampliativa das competências do Tribunal de Contas da União e interferências em seus atos[14].
Nesse contexto estão inseridos os acordos substitutivos celebrados pelas agências reguladoras. A medida em que é ampliado o uso dos instrumentos, o Tribunal de Contas da União avança em sua análise e fiscalização, com a emissão de ordens para a alteração do conteúdo dos acordos e para que sejam submetidos ao seu crivo previamente à celebração, gerando grandes discussões e dúvidas sobre o seu papel.
Em que pese as grandes divergências sobre a possibilidade de o Tribunal de Contas da União fiscalizar a celebração de acordos em matéria sancionatória pelas agências reguladoras, o fato é que a Corte de Contas vem assim procedendo, mediante inclusive a emissão de ordens para alteração dos instrumentos e das normativas expedidas pelas agências reguladoras com o propósito de regular seu uso. Não há dúvidas, assim, que o Tribunal de Contas da União entende ter competência para analisar e balizar o uso da consensualidade pelas agências reguladoras.
Nesse contexto, cabe tentar identificar, em suas decisões, a delimitação dessa competência que entende deter. Não há muitas manifestações do Tribunal de Contas da União sobre o tema, tendo em vista que a ampliação do uso da consensualidade em processos de matéria sancionatória no âmbito das agências reguladoras é fenômeno relativamente recente. Foram selecionadas duas importantes decisões da Corte de Contas Federal nas quais examina a celebração de termos de ajustamento de conduta por duas agências reguladoras, a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL e a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. Tratam-se, respectivamente, do Acórdão n°. 548/2020 – TCU, proferido em 11/03/2020, e do Acórdão nº 2.533/2017 – TCU, de 14/11/2017, ambos do Plenário do Tribunal de Contas da União[15].
O mais antigo, tombado sob o n° 2.533, foi proferido em processo originado de representação feita por Auditor de Controle Externo do próprio Tribunal de Contas da União em face de possíveis irregularidades na celebração de Termos de Ajuste de Conduta (TACs) entre a ANTT e concessionárias de serviços públicos de transporte rodoviário e ferroviário. O representante apontou uma série de ilegalidades nos instrumentos, e inclusive a ilegalidade das normativas expedidas pela ANTT que disciplinam a celebração dos TACs, sob a alegação de que ultrapassariam a competência deferida na Lei da Ação Civil Pública.
Aqui não se pretende examinar qual a posição do Plenário do Tribunal de Contas da União em relação a cada uma das ilegalidades levantadas na representação. O acórdão é utilizado, no presente estudo, com o propósito exclusivo de identificar qual a posição da Corte de Contas sobre o seu papel na celebração dos ajustes por agências reguladoras e respectivos limites. Com esse propósito, extrai-se do voto do relator, cuja posição foi acolhida integralmente pelo Plenário, as passagens a seguir:
Conforme frisei no Despacho saneador e nos fundamentos do Acórdão 675/2016-Plenário, desde que observados os standards ou limites de competência definidos pela Lei 10.233/2001, a Agência reguladora dispõe de certa margem de discricionariedade para, diante da violação ao contrato de concessão, aos regulamentos de regulação dos serviços delegados e à lei, escolher o instrumento que melhor atenda ao interesse público no caso concreto, seja ele medida punitiva ou acordo substitutivo. Em princípio, a própria Agência, atenta às dinâmicas do setor regulado, o contexto do contrato e as peculiaridades da situação vertente, haverá sempre de sopesar os prós e contras da celebração de acordo que possa colocar termo às pendências verificadas na execução da avença, como alternativa à instauração ou ao prosseguimento de processo sancionador, justificando a solução adotada como a aquela que mais convenha ao interesse público.
Em todo caso, a escolha entre a abertura de processo administrativo sancionador ou a celebração de termo de ajuste de conduta que permita, mediante a adesão do compromissário, cessar as irregularidades e compensar os danos causados na prestação de serviço, haverá sempre de ser motivada pelo Administrador, de tal forma que sua regularidade e atendimento ao interesse público possam ser sindicados pelos órgãos controle externo judicial ou administrativo.
Nessa vereda, não estará o Tribunal de Contas da União se imiscuindo no âmbito de discricionariedade do gestor, mas verificará se a opção eleita pelo Administrador atende ao interesse público primário. (...)
Dessa forma, a escolha pelo acordo substitutivo não pode ser realizada à custa de mera assunção ou diminuição das obrigações ordinárias já estabelecidas em contrato de concessão, mas deve estar fundada no compromisso de o concessionário assumir obrigações extraordinárias, seja, por exemplo, sob a forma de investimentos suplementares na melhoria e atualização tecnológica do serviço, seja na diminuição das tarifas. Assim, tais compensações haverão de contribuir para melhoria dos serviços regulados, além de desestimular o concessionário a incorrer em futuras transgressões da avença e da legislação regulatória.
Como se vê, o relator inicia seu voto dizendo que a opção de celebrar, ou não, o acordo substitutivo de sanção diante do descumprimento contratual, das normas regulatórias e da lei pela concessionária está no âmbito da discricionariedade da agência reguladora, a ser avaliada segundo as circunstâncias concretas e desde que o faça motivadamente. Logo adiante, contudo, registra que o Tribunal Contas da União verificará se a opção eleita atende ao interesse público primário, aduzindo que tal iniciativa não implicaria em ingressar na discricionariedade do gestor. Por fim, o relator traça algumas balizas impostas ao gestor na formulação do acordo substitutivo.
Embora a exposição do relator apresente certa lógica, as afirmações parecem contraditórias. Primeiro é dito que cabe ao gestor, diante das circunstâncias do caso, decidir qual o caminho seguirá frente ao descumprimento do contrato, das regras regulatórias e da lei, em um sinal de que o Tribunal de Contas da União não poderia interferir na escolha. Adiante, contudo, afirma-se que cabe a este avaliar se a opção escolhida é adequada para atender ao “interesse público primário”.
A segunda passagem do trecho do voto acima transcrito segue em sentido oposto da primeira. Uma vez verificado que o Tribunal de Contas da União tem competência para avaliar se a celebração do acordo substitutivo atende ou não ao interesse público primário é porque a opção do gestor na decisão está sujeita ao seu controle. Com base nessa ideia, ao analisar TAC celebrado pela ANTT, o Tribunal de Contas concluiu:
Não obstante haver certa evolução nos termos do acordo, sobretudo quanto à renúncia da concessionária compromitente a eventuais contestações administrativas e judiciais em processos de aplicação de penalidades, ainda assim, o novo TAC ostenta fragilidades que denunciavam excessiva permissividade da Agência reguladora em favor da TLSA e em detrimento do interesse público, como exemplificada nas seguintes condições: (...)
Muito embora a norma regulamentadora que lastreou a celebração dos referidos termos de ajustamento de conduta (artigos 16 a 18, da Resolução ANTT 442/2004) tenha sido editada dentro das competências deferidas à Agência Nacional de Transportes Terrestres pelos artigos 20 a 24 da Lei 10.233/2001, ainda assim, ressente-se de lacunas que a tornam mera recomendação ao concessionário para correção de pendências, destituída qualquer consectário jurídico que a torne eficaz e efetiva ao interesse público atinente à regular prestação do serviço público concedido.
Não foram estipuladas sanções adicionais que inibissem o descumprimento do termo de ajustamento de conduta. (...)
Considerando que as lacunas normativas apontadas nestes autos pode engendrar futuros acordos substitutivos, com as mesmas fragilidades e vícios, determino à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) que se abstenha de celebrar Termos de Ajuste de Conduta (TACs) que não prevejam medidas compensatórias para as infrações praticadas e apenas estipulem, como cominação pelo descumprimento das obrigações pactuadas, a adoção das providências necessárias à instauração de processo administrativo para apuração das responsabilidades e aplicação das penalidades cabíveis ou ao seu prosseguimento, se anteriormente instaurado, porquanto referida cominação não é capaz de compelir os compromissários ao integral cumprimento das obrigações estipuladas na avença, em desapreço aos princípios da eficiência, da finalidade administrativa e da supremacia do interesse público.
A decisão evidencia que o próprio Tribunal de Contas da União não é claro ao delimitar o seu papel na fiscalização da celebração dos acordos em matéria sancionatória pela ANTT. No plano abstrato, afirma a discricionariedade do gestor na escolha da medida a ser adotada diante de uma conduta infracional, mas, ao decidir, avoca o poder-dever de avaliar se a decisão atende ao interesse público primário, em cujo exercício expede uma série de regras que devem, segundo ele, ser obrigatoriamente previstas nas normativas da ANTT e observadas pelo conteúdo dos TACs.
A julgar pela decisão acima, o Tribunal de Contas da União pretende reservar ao gestor certa margem de discricionária na decisão quanto à celebração de acordo em substituição de sanção, mas desde que, e no limite daquilo que, ele próprio, o Tribunal de Contas da União, entende atender ao “interesse público primário”.
O raciocínio é problemático, e se torna mais complexo diante da dificuldade de se definir interesse público primário. O ponto é que, ao dizer que avaliará se os TACs atendem ao interesse público primário, e não havendo uma forma objetiva de definir em que este consiste ou de que maneira pode ser alcançado, – mesmo porque não há tão somente um único caminho para tanto – o Tribunal de Contas da União joga a decisão do gestor sob um tortuoso crivo, cujos contornos não são claros.
A decisão mais recente analisada no presente estudo também não contribui com o objetivo de aclarar a questão. O Acórdão n°. 548/2020 – TCU, da relatoria do Ministro Bruno Dantas, foi proferido em processo instaurado para o acompanhamento da celebração de TAC entre a ANATEL e o Grupo TIM. O caso teve origem em um outro processo, o TC 022.280/2016-2, no qual foi apreciada representação referente à atuação da ANATEL na negociação, celebração e fiscalização de TAC. Naquela primeira oportunidade, o Tribunal de Contas da União analisou as normativas da ANATEL que regiam os acordos e o caso concreto da Telefônica Brasil S/A, em negociação pela agência na ocasião.
O caso ficou famoso porque consistiu na primeira importante investida da Corte de Contas Federal em face das normativas e acordos substitutivos de sanção formulados por agência reguladora, a qual teve como resultado a desistência da concessionária em seguir com a negociação, tendo em vista as diversas recomendações do Tribunal de Contas da União quanto ao conteúdo e requisitos para a celebração do acordo. Na sequência, foram proferidos sucessivos acórdãos de acompanhamento do cumprimento, pela ANATEL, daquelas recomendações. A decisão aqui estudada é um deles. Ela analisa se a agência atendeu aos comandos anteriormente expedidos pelo Tribunal de Contas da União e uma proposta de acordo feita pela concessionária TIM.
Em trecho de seu voto, acolhido pelo Plenário, o relator retoma algumas de suas considerações feitas nos processos anteriores. Sobre a atuação do Tribunal de Contas da União diz:
43. Nesse ponto, reforço os contornos do controle externo em relação aos termos de ajustamento de conduta, que, por se tratarem de processos substitutivos de sanções, se inserem nas atividades finalísticas das agências reguladoras.
44. A jurisprudência deste Tribunal aponta para um controle externo de segunda ordem em relação às atividades finalísticas das agências, com o objetivo de verificar a regularidade da sua atuação, respeitando suas escolhas regulatórias e a sua autonomia funcional.
45. Além disso, a natureza negocial desses ajustes pressupõe maior espaço de discricionariedade do agente público, de modo que se o controle externo impuser rígido controle burocrático poderá minar o instrumento e sacramentar a ineficiência da atuação sancionadora da atividade regulatória.
Em relação aos acordos substitutivos de sanção celebrados por agências reguladoras, é possível extrair, da passagem acima, duas afirmações: a uma, inserem-se nas atividades finalísticas das agências reguladoras e, a duas, pressupõem um maior espaço para a discricionariedade na sua celebração. Quanto ao papel do Tribunal de Contas da União, também se observam duas afirmações: a uma, consiste em um controle de “segunda ordem” e, a duas, não pode impor rígido controle burocrático.
É claro o objetivo do relator de limitar a atuação do Tribunal de Contas da União, no controle desse tipo de acordo ao reconhecer a existência da certa margem de discricionariedade em sua celebração. Contudo, ao definir o seu papel, a Corte de Contas utiliza expressão sem sentido preciso, qual seja, “controle de segunda ordem”. Embora sinalize para uma autocontenção, o termo controle de segunda ordem parece não ser suficiente para delimitar a competência da Corte na fiscalização da celebração dos acordos. Não há no acórdão um outro trecho que esclareça em que consistiria tal espécie de controle. A depender da interpretação, pode-se conferir um sentido amplo ou mais restrito ao termo.
A expressão “controle de segunda” ordem vem sendo utilizada pelo Tribunal de Contas da União desde 2004, em diversas decisões sobre sua atuação junto às agências reguladoras[16]. Nenhuma delas, contudo, esclarece do que exatamente se trataria. Tiago Reis e Pedro Dutra (2020, sem paginação) comentam o uso da expressão nas decisões da Corte de Contas, dizendo:
Além de problemas de forma, o conceito de fiscalização de segunda ordem levanta sérias dúvidas em razão do seu próprio conteúdo. Não há notícia, na literatura nacional ou estrangeira, de entendimento igual ou similar ao adotado pelo Tribunal de Contas desde 2004, em diversas decisões para caracterizar o tipo de controle que exerce sobre as Agências Reguladoras. Ao que tudo indica, isso se deve ao fato de que, mais uma vez, está-se diante de uma criação original do TCU[17].
A partir da análise das decisões acima, observa-se que o próprio Tribunal de Contas da União não é preciso ao definir o seu papel no tocante à celebração dos acordos substitutivos por agência reguladora federal, seja pela contradição ou pelo uso de termos imprecisos em suas decisões.
3.3 Potenciais consequências da ausência de clareza do papel do Tribunal de Contas da União na fiscalização dos acordos substitutivos
Embora haja um claro esforço do Tribunal de Contas da União em prol da delimitação e justificativa, do ponto de vista teórico, do âmbito de sua atuação na celebração de acordos substitutivos, o uso de conceitos indeterminados e a contradição entre o reconhecimento, em abstrato, da discricionariedade e o crivo a que pretende submeter a opção do gestor deixa sérias dúvidas quanto às possibilidade e limites de sua fiscalização.
O grau de generalidade com que se manifesta sobre a questão não oferece segurança àqueles que se lançam na tarefa de avaliar em que medida a Corte de Cortes ingressará no conteúdo e opção do gestor de celebrar acordo em substituição de sanção ou impeditivo de processo administrativo sancionador.
Não que caiba ao próprio Tribunal de Contas da União, através de suas decisões, definir sua competência. Evidentemente que não. A delimitação de sua competência foi realizada pelo texto constitucional, não sendo as decisões ou normativas internas da Corte instrumentos hábeis para ampliá-la. Contudo, uma vez reconhecida pelo Tribunal de Contas de União a importância de tais acordos na consecução da função das agências reguladoras e do interesse público, situando-os, inclusive, dentre as atividades finalísticas desta, deve buscar tanto quanto possível conferir clareza às possibilidades e limites de seu papel, a fim de conferir segurança jurídica aos envolvidos, sobremaneira aos gestores, a respeito do espaço que detêm para fazer escolhas na celebração e definição do conteúdo dos acordos.
É notável a produção doutrinária sobre o tema da competência do Tribunal de Contas da União na fiscalização das atividades das agências reguladoras. Há uma recorrência no alerta para o fato de a Corte vir exorbitando a sua competência constitucional em suas investidas e controle mais recentes sobre tais entidades[18]. De outra banda, existem vozes que reconhecem a importância de sua postura atual[19].
Já sobre o papel da Corte de Contas na celebração de acordos em matéria sancionatória pelas agências reguladoras por enquanto não existem manifestações mais densas. Diante desse cenário, e considerando o histórico apresentado anteriormente, marcado por investidas internas da Conte de Contas da União Federal de ampliação de sua atuação, há a tendência de a discussão a respeito dos limites de sua fiscalização sobre as atividades das agências reguladoras ser projetada para os acordos substitutivos.
Nesse último caso as consequências podem ser mais severas que geradas pelo antigo embate. É que, para além de produzir gestores inibidos e que priorizam mais atender a demandas burocráticas que cumprir com os objetivos-fim das agências reguladoras e insegurança no setor regulado, a ausência de clareza nos limites da atuação do Tribunal de Contas da União coloca em risco a ampliação e o uso dos acordos substitutivos, apesar do reconhecimento dos ganhos que pode trazer na consecução da função regulatória. Não se trata aqui de reduzir ou enfraquecer o controle. Muito pelo contrário. O ponto em discussão cinge-se à necessidade de clareza das atribuições dos atores envolvidos.
Estar-se-á a tratar de um instrumento cuja concretização depende, também, da vontade e escolha do concessionário ou agente regulado que praticou ou está sob a suspeita da prática da infração. Por mais desfavorável que seja sua posição e maiores as vantagens do acordo, nunca existirá a obrigação por parte do particular de celebrar o instrumento. Submeter todos os acordos a uma instância revisional geral, cujas possibilidades e limites não são bem conhecidos, gera a insegurança para as partes sobre a eficácia daquilo que se ajustou.
Sabe-se que tais espécies de instrumento demandam uma dosimetria de incentivos e ônus que ultrapassa sua mera prescrição normativa para que sejam efetivos. Excessivas vantagens ou riscos para o agente regulado ou gestor da agência reguladora podem eliminar a atratividades do instrumento.
Por outro lado, qualquer tipo de negociação exige dos envolvidos uma visão do timing de cada passo realizado. As decisões são tomadas a partir de cenários, normalmente afetados por uma série de variáveis, a exemplo da economia do País, estratégia comercial e imagem perante o mercado das empresas. Excessivo tempo, burocracia e idas e vindas do procedimento da negociação poderão gerar perdas de oportunidade e do timing em geral pelo particular ou agência reguladora ao ponto de inviabilizar as negociações.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos, viu-se a ampliação do uso da consensualidade pela administração pública para o desempenho de suas funções. As prerrogativas excepcionais e a relação verticalizada entre Poder Público e particulares cedeu espaço para o método consensual. Mesmo no campo do Direito Administrativo Sancionador, que expressa fortemente a imperatividade da administração, a consensualidade tem se mostrado instrumento útil à consecução de objetivos públicos.
No Brasil, as agências reguladoras protagonizaram o movimento em direção à utilização da consensualidade, inclusive no âmbito de sua competência sancionatória. O claro papel instrumental desta dá suporte ao alargamento do uso do método em alternativa à aplicação de sanções. A medida em que sua utilização foi se alargando, os acordos em matéria sancionatória passaram a fazer parte da pauta de fiscalização do Tribunal de Contas da União, órgão de controle indispensável para o aperfeiçoamento da administração pública brasileira. Foram adotadas iniciativas pela Corte de Contas na fiscalização da celebração dos referidos instrumentos por agências reguladoras federais.
Como consequência natural do cenário, surgiram as dúvidas e debates acerca das possibilidades e limites da atuação do Tribunal de Contas da União naquele campo. Esse tipo de problemática não é recente. Antes até da promulgação da Constituição Federal de 1988, eram comuns as discussões sobre o papel da Corte frente à administração pública brasileira. Os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte foram marcados por investidas de representes dos Tribunais de Contas do País, especialmente o da União, para a ampliação e reforço de sua competência e autonomia, algumas delas formalizadas através de anteprojeto apresentado na Assembleia.
Naturalmente, esse debate se projeta para o tema do papel do Tribunal de Contas na União na fiscalização dos acordos substitutivos celebrados por agências reguladoras. A jurisprudência da Corte não ajuda a apaziguar as discussões. Em análise de decisões da Corte envolvendo a ANTT e ANATEL, proferidos em dois casos paradigmáticos, percebe-se uma tentativa de preservar o espaço de decisão do gestor no uso do instrumento, mas, contraditoriamente, a Corte de Contas Federal finca o seu dever-poder de avaliar se a escolha do agente atende ao “interesse público primário”. O uso de expressões com conceitos indeterminados, criadas por mão própria do Tribunal, a exemplo do “controle de segunda ordem”, também prejudica a clareza quanto ao papel que entende ter na fiscalização dos acordos.
O salutar debate entre a academia, julgadores e equipe técnica do Tribunal de Contas da União pode auxiliar a conferir maior segurança jurídica àqueles que negociam um acordo substitutivo. Isso não dispensa, contudo, que a Corte de Contas Federal busque em sua jurisprudência catalisar esse processo, delimitando com a maior precisão possível o seu campo de atuação. Se reconhece serem os acordos substitutivos instrumentos válidos e úteis para o cumprimento das funções atribuídas às agências reguladoras, deve se posicionar de forma clara sobre as possibilidades e limites de sua atuação na fiscalização da celebração e conteúdo dos instrumentos.
Isso não significa o dever de atender à crítica da doutrina no sentido de que estaria exorbitando a sua competência constitucional, restringido sua atuação, ou tampouco de ampliá-la com base em atos internos de seu corpo. Quer dizer apenas que não deve almejar ou contribuir para uma plasticidade de seu papel na fiscalização dos acordos celebrados pelas agências reguladoras em matéria sancionatória.
Não se trata aqui de diminuir o controle. Este tem se mostrado cada vez mais essencial ao bom funcionamento e aperfeiçoamento da administração pública brasileira. Mas é importante o esforço do Tribunal para aclarar o tema em sua jurisprudência, sob pena de limitar a utilização dos acordos substitutivos.
REFERÊNCIAS
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[1] Sobre a mudança do papel do Estado no Brasil, confira em MOREIRA, Egon Bockmann. Qual é o futuro do direito da regulação no Brasil. In: Direito da Regulação e Políticas Públicas. Malheiros. São Paulo: 2014. p. 107-139.
[2] O rol das agências reguladoras citadas é exemplificativo. Entres os anos de 1996 e 2005, foram criadas também a Agência Nacional de Vigilância Sanitária -ANVISA, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC.
[3] Sobre a evolução e identidade do Direito Administrativo Sancionador, confira PIMENTA, José Roberto; GROTTI, Dinorá Adelaide. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. In: Revista Interesse Público. Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83-126, mar./abr. 2020.
[5]Juliana Bonacorsi de Palma (2015) diz existirem três conceitos utilizado pela doutrina para conceituar a consensualidade na administração pública. O primeiro teria sentido amplíssimo, compreendendo toda forma de aproximação entre a administração e particular; o segundo, de sentido amplo, abarcaria os contratos administrativos e outras formas negociais; e a terceiro e último, teria sentido restrito, abrangendo os acordos administrativos, gênero do qual os acordos substitutivos seriam espécie.
[6] A respeito da consensualidade no direito administrativo sancionador, veja em GUEDES, Francisco Augusto. Os Princípios Constitucionais da Administração Pública e os Acordos Substitutivos de Procedimentos e Sanções Administrativas. In: XXI Congresso Nacional do Conpedi/UFF, 2012, Niterói-RJ. Direito e Administração Pública, 2012. p. 131-151.
[7] Emerson Garcia (2018, sem paginação) apresentada a seguinte distinção: “A consensualidade pode visar, pura e simplesmente, à cessação de uma prática ilícita ou o aperfeiçoamento de uma atividade, sem incursão no plano sancionador propriamente dito, destinando-se, muitas vezes, a evitar a caracterização de um ilícito passível de sanção. A consensualidade também pode estar funcionalmente voltada à obtenção de um benefício no plano sancionador. Nesse caso pode assumir os contornos de consensualidade de colaboração ou puramente reprimenda. Na consensualidade de pura reprimenda, por sua vez, o autor aceita a imediata oposição de uma restrição em sua esfera jurídica, não sendo necessário que ofereça informações úteis.”
[8] Sobre os acordos substitutivos, explica Juliana Bonacorsi de Palma (2015, p. 252): “Os acordos substitutivos caracterizam-se pelo efeito terminativo do processo administrativo no qual são celebrados. Quando firmados, estes acordos substituem decisão unilateral e imperativa da Administração Pública ou findam o processo instaurado para a conformação do provimento administrativo. Neste modelo consensual fica evidente a dualidade atuação administrativa típica/atuação administração consensual, dado o papel desempenhado pelo acordo substitutivo, de instrumento alternativo de exercício da função administrativa.”
[9] Sobre o pragmatismo jurídico norte-americano, confirma DEWEY, John. O desenvolvimento do pragmatismo americano. Revista Eletrônica de Filosofia: São Paulo, Volume 5, Número 2, julho - dezembro, 2008, p. 119-132. Trad. Cassiano Terra Rodrigues. Disponível em http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo
[10]Floriano de Azevedo Marques (2009, p. 202) aponta como desafio do controle da Administração Pública contemporânea a criação de mecanismos mais focados na averiguação do alcance concreto de resultados ao invés da aferição do cumprimento de exigências burocráticas.
[11]A pretensão de o Tribunal de Contas da União figurar, na Constituição de 88, como Poder autônomo e de alcançar todos os atos executórios do Estado é extraída do documento intitulado Carta de Porto Alegre, redigida no XIV Congresso dos Tribunais de Contas do Brasil, realizado 1987, quando iniciados os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.
[12] Nesse sentido confira a obra de André Rosilho (2019) intitulada Tribunal de Contas da União: competências, jurisdição e instrumentos de controle. Trata-se de uma das obras mais completas sobre o Tribunal de Contas da União, fruto de criteriosa e ampla pesquisa.
[13]Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/normas-de-auditoria-do-tribunal-de-contas-da-uniao-nat.htm. Consulta em 11/11/2020.
[14] Sobre o tema, confira MONTEIRO, Vera; ROSILHO, André. Agências reguladoras e o controle da regulação pelo Tribunal de contas da União. In: Direito da Infraestrutura. Saraiva: São Paulo. 2017, p. 7-58.
[15] A escolha dos acórdãos citados se justifica no fato de o Plenário do Tribunal de Contas ter, nas decisões, manifestando-se sobre seu papel na fiscalização dos acordos celebrados pelas agências reguladoras e, ainda, em razão dos comentários que rendeu em cada um dos respectivos setores regulados.
[16] Nesse sentido, veja o Acordão n°. 1.757, de 10.11.2004, da relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues; o Acordão n°. 798, de 06.04.2016, da relatoria do Ministro Vital do Rego; e o Acordão n°. 1.407, de 01.06.2016, também da relatoria do Ministro Vital do Rego.
[17] Na sequência, os autores defendem que a expressão fiscalização de segunda ordem utilizada pelo Tribunal de Contas da União decorre de uma transposição, para o direito regulatório, do conceito de observação de segunda ordem utilizada na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.
[18] Nesse sentido, veja: GOMES, Eduardo Granha Magalhães. As agências reguladoras independentes e o Tribunal de Contas da União: conflito de jurisdições? Revista de Administração Pública. v. 40, n°.4, Rio de Janeiro, p. 615-630, jul./ago, 2006; DUTRA, Pedro; REIS, Thiago. O soberano da regulação: o TCU e a infraestrutura. São Paulo: Singular. E-book. 2020.
[19]Confira em MENEZES, Monique. O tribunal de contas da união, controle horizontal de agências reguladoras e impacto sobre usuários dos serviços. Revista de Sociologia e Política. Vol. 20, n°. 43 Curitiba, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782012000300006&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 03 de janeiro de 2021.
Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Pós-Graduada em Licitações, Contratos Administrativos e Responsabilidade Fiscal pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Formas contemporâneas de contratação pública e seu impacto e efetividade nas atividades administrativas” da PUC/SP; Pesquisadora do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Gabriela Duque Poggi de. Controle externo exercido pelo Tribunal de Contas da União sobre os acordos substitutivos celebrados por agências reguladoras federais: relevância de critérios objetivos na definição do papel do controlador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jan 2021, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56126/controle-externo-exercido-pelo-tribunal-de-contas-da-unio-sobre-os-acordos-substitutivos-celebrados-por-agncias-reguladoras-federais-relevncia-de-critrios-objetivos-na-definio-do-papel-do-controlador. Acesso em: 22 nov 2024.
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